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3. Un caso cLinico!! Passo a descrever a seguir um caso clinico que, certamente, pode ilustrar o funcionamento mental peculiar & perversdo, bem como colocar em questo o delicado problema da clinica psicanalitica desse tipo de quadro. Julgo que esse caso contém elementos que nos permitem situar com precis&o conceitos freudianos fundamentais sobre a perversao, bem como ideias importantes de autores pés-freudianos de diferentes tradigdes tedrico-clinicas que se debrugaram sobre essa problematica. Ainda nos primeiros anos de minha pratica analitica’’, fui procurado por um jovem publicitério, de trinta e poucos anos, a quem darei aqui o nome de André. Sua queixa inicial, formulada na primeira entrevista, era a de que “o tempo_ estava passando”, ele j4 nao era mais téo mogo e, até entdo, nao conseguira “ter alguém”. Embora tivesse muitos amigos e uma intensa vida social, André sentia que a sua relagio com 1 Alguns dados objetivos sobre o paciente foram propositadamente distorcidos, para impedir qualquer possibilidade de identificacio. 2 Agradeco a Jurandir Freire Costa, Lufs Carlos Menezes, Lucta Barbero Fuks ¢ Renata Cromberg pela supervisio desse caso na ocasiio em que dele me ocupei, época em que eu faria o Curso de Psicanilise do Instituto Sedes Sapientiae. 50 CoLEcAo “CLinica PSICANALfTICA” as pessoas era ficticia e estereotipada; nao raro apanhava-se como que representando teatralménte durante o tempo em que estava junto com alguém. Mesmo parecendo, aos olhos de todos, feliz e bem realizado, comegava a sentir uma angiis- tia, até entao estranha a ele, e adquiria a consciéncia de que, na verdade, era um solitario, conquanto vivesse rodeado de pessoas boa parte de seu tempo. André comegava a temer a solidao e a pensar como poderia vir a softer no futuro, quando estivesse velho e sem ninguém. a Mogo elegante, sempre muito alinhado e bem vestido, e favorecido por um sucesso profissional muito grande, André cir- culava nas altas rodas. Havia tracado, de forma calculada, um objetivo de vida bastante preciso, que era o de enriquecer, frequentar a pita sociedade, conhecer pessoas ricas e influen- tes, enfim, levar uma vida glamorosa, diferente daquela de sua familia de origem. Foi assim que, vindo do interior de um outro Estado para fazer o curso superior em Sao Paulo, conhe- ceu um colega muito rico de quem se tornou o melhor amigo, aponto de ser “adotado”, como dizia, por sua familia, passando a frequentar amidde sua casa, conquistando a estima de seus Pais e vindo a compartilhar da intimidade familiar. Formados, André e seu amigo tornaram-se sécios em um empreendimento Profissional. Favorecidos pela influéncia da poderosa familia do sécio, nunca lhes faltaram clientes abonados e, em poucos anos, André j4 era um mogo rico e bastante requisitado pro- fissionalmente. Portanto, obtivera éxito em seu projeto, o que PERVERSAO 51 era motivo de uma autoconfianga que me parecia, as vezes, desmedida. a André falava com muito orgulho do modo como se fora entrosando nos circulos. importantes, fazendo-se visivel para as pessoas de sucesso e sendo sempre solicitado tanto para realizar trabalhos vistosos como também para participar de eventos sociais badalados. Algo, porém, j4 nos chamava a ateng&o logo naquele inicio de andlise: apés ter vivido, por alguns anos, um clima de grande euforia, decorrente da construgao de seu sucesso pessoal e profissional, a pon- ta de um questionamento incémodo comegava a surgir. A consisténcia de seu trabalho profissional e de suas relagdes pessoais era perigosamente colocada a prova. Desse exame poderia resultar a conclusao nada tranquilizadora de que, na verdade, ele “ enganava” as pessoas com o trabalho que fazia, isto é, de que nao era um artista tao talentoso que fizesse jus & imagem que vendia de si proprio e de que seu vinculo com o sécio e com os amigos em geral era ficticio, ou seja, suas telagdes pessoais eram-lhe pouco significativas. André, no fundo, nunca se sentia genuinamente em contato com ninguém. Esse tipo de pensamento, evidentemente, trazia-lhe uma sensacao de falsidade desconfortavel. Percebia viver uma vida publica que nao era verdadeira, totalmente dissociada de uma outra vida particular, secreta e solitaria, que concernia as suas atividades sexuais. Mas pensar nessa dicotomia perturbadora era um esforgo muito angustiante e, dessa maneira, no decorrer 52 CoLecao “CLIiNtca PsiCANALITICA” de sua anilise, André se aproximava dela a passos lentos, e dela também fugia a passos largos. André se definia como alguém “anormal” no campo da sexualidade. Contava-me com detalhes sobre a sua vida sexual compulsiva e, segundo ele mesmo, “depravada” e promiscua. Referia-se a suas relagdes sexuais como “putarias” que fazia com uma frequéncia incrivel. Mantinha varias relagGes ho- mossexuais em um tnico dia. Muitas vezes, sua propria rotina de trabalho era perturbada pela necessidade que sentia de procurar parceiros para um sexo rapido. Em sua pratica se- : 'safa a caga xual, seguia invariavelmente o mesmo ‘toteir e nunca tardava a localizar, onde quer que ue fosse, al se dispusesse a ent&r com ele no esconderijo n mais préximo, locais muitas vezes arriscados, onde poderia ser surpreendido por alguém ou onde ndo estivesse em seguranga. Em seguida, abria a braguilha d da calga de seu parceiro e praticava a fe felagao. Cada detalhe er era de suma importancia nessa montagem: a seducio e1 era feita com uma voz especial, baixa e infantilizada; o ato de abrir 0 zfper e de, repentinamente, ver surgir agin que ali se escondia era fundamental para o incremento de sua excitacao. Por fim, deveria sugar aquele pénis de modo a provocar o maior prazer possfvel em seu parceiro, engolindo © esperma que jorrasse. Referia-se a esse esperma como uma espécie de néctar nutritivo e revitalizante, de consisténcia e sabor excepcionalmente agradaveis, particularmente quando provinha de um parceiro jovem, na flor da adolescéncia. Nao tocava seu proprio pénis, nem fazia questo de que o PERVERSAO 53 outro o tocasse. Alias, esse detalhe chamava-lhe a atengao: como podia ele prescindir da participagio de seu préprio_ pénis nas relagdes sexuais e na obtengao do orgasmo? Se- tia isso indicio de uma anormalidade muito grave? André sempre chegava ao orgasmo) extasiante, segundo dizia, ao final dessa répida encenacao. Quando eventualmente era instado a mudar seu roteiro, isto €é, quando o parceiro lhe pedia alguma variacao, tal como ser penetrado ou penetrar, ele relutava em aceitar e, se o fazia, sentia apenas um certo tédio até o final da relagao. Preferia evitar qualquer pratica sexual | que nao estivesse dentro de seu roteiro habitual. Seu (Gnico prazefera mesmo 0 de praticar a felacéo, em quem quer que fos: . Nenhum outro atributo do parceiro lhe interessava. Surpreendia-se, 4s vezes, por manter relag6: com homens feios) que nao tinham o menor atrativo. Até o comego de sua andlise, André jamais havia repeti- do uma relagao com o mesmo parceiro. Apés uma telagéo, nao restava mais o menor interesse por aquela pessoa. Era como um “palito de fésforo que se queima”, como ele proprio tratava de me explicar. Durante muito tempo, em sua anélise, André me falou dessas relagGes. Contava como era capaz de fazer uma longa viagem de carro, passando por dezenas de € postos de gasolina e nit de Wequincia a locais onde sabia haver ho- mens em situacao de abstinéncia forgada pelas circunstancias, paus” , como costumava “chupando” uma Srie infinit: dizer. Dirigia-se com que aceitavam, sem maiores problemas, suas ofertas sexuais. 54 Cot Ao “CLiNICA PSICANALITICA” Esses locais eram, em geral, obras de construcdo civil distantes dos centros urbanos. La ele sabia no haver muitas mulhe- tes disponfveis, e 0 fato de os homens estarem necessitados sexualmente facilitava-lhe o trabalho de sedugao. Costumava também adentrar quartéis militares 4 noite para abordar solda- dos. Certa vez contou-me, como quem narra um feito heroico, que se formara uma fila de homens para serem chupados um a um por ele. Quando estava prestes a acabar a aventura, apa- receu um militar de patente mais elevada, que inspecionava , _‘ 0 quartel, e ele teve de fugir correndo. A expo: ao_perigo, era-lhe muito excitante, mas, em algumas ocasiées, fé-lo passar por maus ‘or maus bocadd. De outra feita —e esta foi uma situacao que teve especial importancia quando trabalhada em sua anilise -, André entrou em um canavial 4 margem de uma estrada, onde encontrou um trabalhador rural. Como de habito, perguntou-lhe se nao desejava receber seus favores sexuais, a0 que 0 homem opés uma certa resisténcia. Ele insistiu, garantindo-lhe que seria bom e que essa experiéncia em nada o desabonaria, até porque ninguém precisaria ficar sabendo do que aconteceria entre eles. Foi entdo que aquele homem o convidou para adentrar um pouco mais 0 canavial, a fim de ficarem em um local onde seria impossfvel serem surpreendidos por alguém. André 0 seguiu até um determinado ponto. L4 chegando, 0 homem apanhou um facao enorme e pés-se a correr atras dele, dirigindo-lhe insultos e dizendo que iria castr4. lo, maté-lo e depois retalhar 0 seu corpo. Apavorado, André correu até a estrada, onde deixara seu carro estacionado, e escapou por pouco do perigo. PeRVERSAO 55 Em suas investidas habituais, quando o parceiro escolhi- do oferecia alguma resisténcia inicial, André sempre “sabia” como convencé-lo a aceitar sua Prspoess Fazia uma voz voz de si st- plica que, segundo el ele, tornava- peat At julgava-se capaz de provar 4 {todo} jomem que, Ti arelacao homos- sexual era secretamente mais prazerosa do que a heterosexual. O que ocorria era que muitos homens nao sabiam ‘disso, isto é, ainda nao tinham tido a oportunidade de receber aquela revelagio e de provar daquela delfcia que apenas os mai is) iluminados, como ele, conheciam. Alias, esta era uma carac- teristica que se alastrava da vida sexual para toda a esfera de suas experiéncias. Ele '“‘sabi "0 ) que era bom e prazeroso, e as pessoas “normais”, © contar sobre suas noites agitadas, em qi = Fesuentava festas, boates e terminava por ter suas “grandiosas” aventuras sexuais, no era raro que me dissesse que, enquanto ele fazia tudo aquilo, eu, provavelmente, estava em casa, sentado de pijama no sofé assistindo televisio.... Curioso era observar o fluxo de suas narrativas na cor- relagéo que mantinham com a experiéncia emocional que veiculavam. Algumas vezes elas tinham infcio com um tom le- vemente depressivo: ele se percebia falando-me, na verdade, de sua doenga, de sua anormalidade, de sua ua soliddo e, enfim, de seu sofrimento. Contudo, fugindo d da ‘dor que isto podia trazer-lhe, sua narrativa ia adquirindo v um colorido > maniaco, e ele se-empolgava como se estivesse contando um autént co! ie iene heroico. E dizia-me ter a certeza de que era o'mais Intéressante de meus pacientes e que duvidava que os 56 CovegAo “CLENICA PSICANALITICA” outros me entretivessem com historias tao emocionantes... Mas o movimento emocional veiculado por sua narrativa acabava por dar uma volta completa e, desse modo, nao era incomum que, apds contar tanta vantagem, sentisse um esgotamento e se visse, inelutavelmente, diante_ do vazio. que aquilo ‘tudo significava: ele nao tinha “ninguém e nem conseguia desejar alguém de modo continuo. Um exemplo dramatico de como isto ocorria em suas sessdes deu-se apés uma viagem que André fez a uma ilha no Pacifico, acompanhado por um grupo de turistas de outros paises. Contou-me ele que nesta ilha havia um museu de historia natural onde se encontrava 0 exemplar r remanescente de uma espécie de tgrtaruga jé extinta. Era um(machg aquem se tinha dado o apelido de “Lonely George”, em razao de sua condigao solitdria. Nao havia mais nenhuma femea da espécie; portanto, esta se extinguiria defini ivamente quando George morresse. ‘Tampouco! havia outro macho semelhante que lhe pu- desse fazer companhia! * Como no grupo da viagem havia varios casais e subgrupos compostos por amigos que ficavam juntos no hotel e nos pas- seios, André, que estava sempre desacompanhado ou ausente — para suas “escapadas” sexuais —, acabou apelidado “Lonely André”, numa referéncia a tartaruga solitaria. Tnicialmente, ele me relatou o fato como algo d divertido e até mesmo ‘digno de orgulho: ele erao Gnicoexemplar de uma espécie, ou seja, formava uma_espécie prépria, o que lhe garantia uma dife- tencia¢ao total em relagdo a todos os outros seres. Mas foi PERVERSAO, 57 inevitavel que o ‘ horror}que o mesmo fato lembrava Viesse a tona logo a seguir. t Ele se dava conta do cardter absolutamente melancélico da comparagao. Nessas ocasides, 0 desespero vinha a tona e ele se ntia muito doente. Chegou a confessar-me que invejava a paz que eu tinha em minha vida recatada, de pijama diante da televisao, “curtindo” a minha familia. Um detalhe deve ser aqui escla- recido: uma vez ele me vira chegar ao consultério de carro e percebera haver um cadeirao de ‘bebé no banco traseiro. Muito emocionado, comegou a sessao daquele dia contando-me ter descoberto que eu era pai, certamente um 6timo- pai, muito bom para os meus filhos. André era 0 segundo filho de uma familia de quatro irmaos, todos homens. Nao era dificil deduzir, por toda a historia fa- miliar que me relatava, que sua mée era uma mulher muito perturbada, de quem ele procurava manter ¢ distancia. “Nunca a trouxera para visitar a sua casa em Sao Paulo, muito embo- ra ela nao disfargasse seu sonho de conhecer a casa do filho, chegando a colecionar, orgulhosamente, revistas de arquitetura e decoragao em que esta era retratada. André fazia-lhe visitas de tempos em tempos, mas estas eram-lhe custosas, pois na0_ suportava a ansiedade da mae e acabava tr travando violentas discusses com ela nessas ocasides, Recusavaa comida que « ela 5 lhe preparava, tendo, certa vez, —— da cozinha o iogurte que ela lhe ofereceu pela manha. Dava-lhe, no entanto, ‘dinheiro para seu sustento e providenciava para que ela néo * passasse privagdes. Suspeitava que ela redistribufa sua ajuda para os irmaos, todos em situag&o econémica confusa. 58 COLECAO “CLINICA PSICANALITICA” piuite roel eraa explicagao que André arranjara para e assim if 07 primeiro filho, entio, tornou-se heterossexual porque nao havia sofrido interferéncia negativa la mae. _Meni- « na, se endo essa a razdo por que ell veio: a tornar- se e homossexual, 5 Quando engravidou pela terceira vez, a mae queria, com muito mais ardor ainda, uma filha mulher. E entao esse irmao tornou- se também homosexual, s6 que mais “grave” " do que ele: era violentos, tendo varias vezes recorrido 4 mae para socorré-lo nas situagGes mais degradantes e vexatérias. André se achava mais saudavel do que esse irmo, visto que nao o deixava, afeminado ¢ Bae nto estudara e envolvia-se com homens mente, transparecer sua homossexu: lidade, sendo até muito assediado por mulheres * elissimas” e “milionérias”. Final- mente, ao engravidar pela quarta vez, a mae, de tao frustrada, j4 desistira de ter uma filha e se encontrava indiferente; nao queria nem mesmo aquela, gravidez. Por essa razo, o cacula tornou-se heterossexual, tal como 0 primogénito. Se o primeiro passou incélume por corresponder ao desejo) materno, o ulti- mo também escapara da praga por ter-se-visto livre de todo e qualquer desejo proveniente da mae". '} Esta “teoria” de André revela-se como uma intuigéo daquilo que Lacan tratava como sendo aincidéncia do desejo da mae sobre o inconsciente do filho, fato que tem participagio decisiva 1a formago do sintoma. No caso de André poderiamos, talvez, falar mais de uma “invasio” do que propriamente de “desejo”. 59 PERVERSAO Qpaifera, aparentemente,.uma figura de pouca i Oficial ‘militar reformado, era descrito como um homem ético, calado e demasiadamente conformado com a postura agressiva da mulher, com quem (nunca) se confrontava. J4 aposentado, foi acometido por uma enfermidade que o deixou entreva- do. A mae, nao suportando o fardo de cuidar do )marido doente, pediu o divércio. O pai entao passou a viver sozinho em um apartamento comprado para ele por André, que jue também pa- gava a enfermeira que o assistia. André cresceu em uma vila militar em seu Estado de origem. Relatava-me que, , desde muito pequeno, cultivava o habito de vagar pela vila 4 espreita dos soldados; mais especificamente, na tentativa dé é flagrad igum deles a urinar em um canto qual- quer. Conhecia um m lugar onde podia instalar-se as escondidas, préximo ao alojamento dos soldados, de onde era 1 possivel espiar o seu interior. Assim, costumava passar longos momentos a observar uma grande quantidade de pénis) dos soldados que se trocavam, tomavam banho e urinavam. Esse hébito, alids, ele conservara na vida adulta: gostava de ‘frequentar festas de rodeio e outras similares no interior, pois ali os homens bebem muita cerveja e os banheiros sao pequenos para acomo- dar tanta gente. Assim, | eles acabam tendo de urinar em qualquer canto. André passava horas sentado em algum lugar de onde pudesse apreciar dezenas ou até mesmo centenas de. . 6rgaos masculinos. Em algumas dessas ocasides atingia 0 orgas-_ mo sem sequer masturbar-se ou tocar o proprio érgao sexual. 60 COLEGAO “CLINICA PSICANALETICA” Quando pequeno, sua mae vestia-o e também os irmaos de branco, exigindo que se mantivesseny limpinhos,o dia todo, mesmo vivendo em um local semirrural; sine d rem, ela ficava furiosa. O branco da roupa tinha de permanecer le se suja- imaculado até o final do dia. Por essa razio, os quatro irmaos eram chamados pelos meninos da vila de “os mariquinhas da Dona Fulana” (o nome da mie). Esse pormenor foi ‘associado, no decorrer da andlise, a uma especial fixago que André t inha por homens sujos. Os borracheiros constitufam um de seus alvos favoritos. As mios e as vestes sujas de Preto! funcionavam como um elemento altamente excitante. Sem contar 0 fato adicional de que os borracheiros Aostam de manifestar sua convic¢do heterossexual pregando pésteres-de mulheres nuas nas paredes das borracharias. Assim, a “ ‘conversao desses homens a pratica homossexual tinha um sabor ¢ especial. Quando se relacionava com esse tipo de homem que con- siderava viril e até mesmo tosco, André introduzia uma outra variante na a relagao. Apés a abordagem inicial, comegava o ato, como de habito, por sugar o pénis is daqueles homens. Mas, ao perceber que eles comegavam a gostar ea entusiasmar-se, entdo fazia-Ihes também algumas « caricias, nas pernas ou ou na barriga. Se nao encontrava resisténcia, usava sua técnica de ir conduzindo © parceiro a uma espécie | de torpor extatico, e entdo comecava a passar a mao em suas | nédegas. Quando conseguia esse feito, sentia-se vitorioso pot, provar que aquele homem se deixara tratar como um “veado”. Imaginar que es- tava destruindo a masculinidade de um homem dava-lhe uma hr aa + PerversAo, i 61 sensacao del triunfo) Certa vez, depois de praticar a felagdo em um caminhoneiro a beira da estrada, percebeu que este se inquietava porque seu filho adolescente, que fora dar uma volta, reaproximava-se do caminhio. Perturbado pelo medo de ser apanhado pelo filho, 0 parceiro pediu-lhe que saisse logo dali. Levando o homem ao desespero, André lhe propés deixar que fizesse 0 mesmo com ofilho. Afinal, ele nao podia negar que havia gostado, e o filho poderia desfrutar do mesmo gozo... No fim da histéria, André acabou concordando em afastar- se dali, mas nao sem antes divertir-se_sadicamente diante daquele homem que ficara, por alguns minutos, em maus lengéis. Havia um aspecto da vida de André que me chamava a ateng4o como algo significativo para a compreensao de sua dinamica psfquica. Trata-se do fato de que ele dormia pouco, pois passava as noites em festas, invariavelmente seguidas de “cagadas” e aventuras sexuais na madrugada. Mas, como era muito responsdvel em seu trabalho, acordava sempre logo cedo. Assim, no era raro que dormisse apenas duas ou _trés horas por noite, coisa que também me contava com uma} Soberba) napole6nica. Suas sessdes eram no inicio da manha e, mesmo assim, oe nunca 2 faltava ou se > atrasava, e, =, antes ntes de chegar 20 ao ca ‘faltyfoi n no dia er em que o pai morreu repentinamente e ale teve de viajar as pressas para cuidar do funeral, visto que seus irm&os eram incapazes de tal empresa. Do mesmo modo como ee necessidade de sono, negava também a falibilidade séu corpo. Se adoecia, procurava nao se importar e em nada Pp iP 62 CoegAo “CLINICA PSICANALITICA” alterava sua rotina; mesmo que estivesse com febre, mantinha o ritmo habitual de trabalho e de atividades sociais e sexuais. Antes de vir ter comigo, André experimentara por poucas semanas um tratamento com um outro analista, de quem es- capou apavorado. Contou-me que, ao narrar sua vida sexual promiscua, aquele analista lhe alertou para o perigo que corria ra arremessé-lo a um abismo, ao falar-lhe de uma coisa tao sombria que lhe despertara muito medo e 0 fizera sentir-se na iminéncia do desespero e de um colapso psiquico. Se eu estendesseg relato desse caso de forma pormenori- zada, certamente teria matéria para centenas de pdginas. Assim, 0 que cabe fazer, por ora, € mencionar alguns pontos da_ evolugio da anilise de André e algumas mudangas psiquicas conseguidas a duras penas, tanto para ele como para mim. As série de relatos “ ‘heroicos” ' prosseguia, mas, cada vez mais, era-nos possivel r refletir sobré of 08 afetos)que veiculavam ou dissi- mulavam, 1, bem como sobre os afetos que » André experimentava na situa¢4o analftica e, aos poucos, ia podendo exprimir. Eu tinha a certeza de que a depresso potencial, ocultada por toda aquela tagem peryersa, era algo de porte oce4nico, e que resultaria em algum avango se atravessdssemos, ali, © pantano infernal que cercava sua vida psfquica. Impressionava-me a quase compulsao com que André me contava de sua vida sexual, de detalhes minuciosos dos atos PERVERSAO 63 sexuais e, particularmente, da anatomia sexual dos parceiros, de cuja fisionomi: ele nem sequer se lembrava. Colecionava mentalmente os penis que i ia conhecendo e era capaz de passar minutos descrevend6-os. Gabava-se de conhecé-los aos milha- res. Eume interrogava frequentemente sobre o sentido daquilo tudo, daquela falta de privacidade, daquele escancaramento. Suas aventuras sexuais heroicas, que no inicio chocavam-me um pouco, passaram a entediar-me sobremaneira. Como sair daquilo? Fui percebendo, | entdo, quao pobre era seu mundo onfrico e quao estereotipadas e repetitivas eram suas fantasias. Aquilo que poderia parecer uma exuberdincia fantasmitica ia-se revelando como um estado de verdadeira paupéria da vida fantasias eram imutaveisle invariavelmente atuadas mental/A de modo lo compulsivo. Alids, André dizia que)nunca rsonhav: ra ou, pel los menos, nunca se lembrava de seus sonhos, se € que sonhava. Acreditava nao ter sonhos. Eis, ent4o, que, apds dois anos de anélise, teve um, a) pavoroso, um pesadelo qu que o despertou no meio da noite. estado de panico foi tal que se sentiu mal fisicamente, achando que teria algum problema cardfaco, e nao mais conseguiu con- ciliar o sono naquela noite. Custou a decidir se o que lhe tinha sucedido era sonho ou se fora uma visdo real. Ainda sob forte impacto emocional daquela experiéncia, ele me contou, na ses- so da manha subsequente, que sonhara com um pssaro preto e grande. Essa ave horrenda e pavorosa, de mau agouro, havia entrado em seu quarto e feitoum voo Tasante, quase 0 atingindo. Achou que se tratava de um mau press4gio. Era s6 isso. Foutrr vf gee | Pensei entao com meus botoes quer nos paproximévamos de as as figuras “dal castracao recs da} da fee ance que a a perversao escondia como se fosse um muro sélido e irremovivel, do Pavor lancinante que o ameagava constantemente mas era. rechacado com veeméncia e, enfim, da perigosa depressao em que cairia se removéssemos aquelasdefesas que, ao longo de sua histéria, foram-se estruturando para que ele se protegesse da morte psiquica, da sensagao d de evazio jinexisténci e futilidade. Nesse momento crucial de sua anilise, cabé dizer, sua vida vinha passando por significativas alteragées. Arranjara um namorado com quem ficou por alguns meses, sem, No entanto, abandonar suas py icas_sexuais corriqueiras. Confessou-me sentir-se aturdido por descobrir 0. o.quanto era bom. bom.dormi ir uma noite inteira com alguém e ter relagdes sexuais deitadg, jaque nunca havia experimentado uma relacao que naotivesse sido rapida e realizada em pé em um canto secreto qualquer, muitas vezes em um banheiro pablico. Apés essa experiéncia de na- moro, conheceu um outro rapaz, de origem bem mais simples do que o primeiro, com quem permaneceu mais tempo e por quem se dizia apaixonado. Quando: adoecia, gripe, esse rapaz cuidava dele, levando cama. André se emocionava Muito com isto, embora sempre geralmente com ie ché e remédios na manifestasse desconfianga | quanto & autenticidade de suas proprias | emogées. Menciono esses fatos por acreditar que foram de uma importancia monumental e resultantes de uma mudanga psiquica conseguida que indicava, por consequéncia, PERVERSAO 65 uma mudanga concernente ao \estatuto_do objeto’ em seu mundo relacional. E interessante também o fato de que, concomitantemente a essas mudangas, André passou a viver um4 | crise)profissional em que, descontente com seu trabalho, por julgélo p pouco criativo, viu sua relagao com o sécio cada vez mais desgastada. Este nunca soubera nada sobre a sua vida intima, ‘desconhi cendo a sua homossexualidade. André chegou a ter, antes do inicio de sua andlise, um namoro de mais de um ano com uma amiga do sécio, moga da alta sociedade, que seria a esposa id eal segundo os parametros da conveniéncia social. Esse casamento consagraria, inclusive, sua entrada definitiva no meio social a quea familia do sécio pertencia. Mas esse namoro era, segundo ele préprio dizia, apenas “de fachada” . Ele raramente conse- guia excitacdo suficiente para manter uma telagdo sexual com anamorada, dizendo-me que ela deveria ser cega para nao ver que havia algo de errado com ele. Ocorre que, 4 medida que André assumia relacionamentos homossexuais, sua vida social _ alterava- se substancialmente. Se antes 0 sécio nada podia ver, porque suas relagdes eram répidas e feitas As escondidas, agora iva era incompativel.com.o.convivio no.meio que sua vida afe frequentara até entao. Disto resultaram 0 estabelecimento de um frculo de izades, o afastamento do sécio e uma série de desentendimentos que culminaram em um fim tempestuoso da sociedade, com acusacoes recfprocas. No ini- @ que determinados contatos tatos anteriores negécid p prosperai Pw de] Gamba C flewge & Pr ker, 66 CoLecao “CLiNIcA PSICANALITICA” mostraram-se suficientemente sdlidos para que ele passasse a atuar de forma independente no mercado. André criticava, no sdcio, 0 fato de ele ter rapenas o dinheiro_ como objetivo, nao se importando com a qualidade artistica do que produziam e nem com os pressupostos ideolégicos que Os norteavam. Sabia ter compartilhado esse ideal durante muito tempo, mas agora nao mais tolerava aquele 1 modo « de trabalhar, E muito curioso como almudanga tia vida sexual/deu- -se atre- lada a uma ‘mudanca 1a_profissional/rumo a uma atuago mais Gtiativa e mais ética. André estava enfadado da duplicidade que impusera a sua vida, e passou a combater aquela dicotomia atormentadora. Eu diria que ele comegava a integrar partes do seu mundo que sempre mantivera separadas e incomunicdveis, num reflexo da pperacao psiquica que agora lhe permitia inte- grat algumas partes de si proprio até entao cindidas. Nao é de estranhar que, a essa altura dos acontecimentos, agora j4 em torno do quarto ano de andlise, tenha aparecido medojda doenga no universo dos seus sentimentos. Afinal, avi dos afetos vinha sendo, de algum modo, desbloquea- da. Nao quero afirmar aqui, evidentemente, que esse processo era completo. Apenas trato dele comparativamente ao mo- do como André se apresentava quando iniciamos nosso contato. Foi entdo que uma febre intermitente 0 levou ao desespero, visto que lhe acenava com a possibilidade insuportavel de ter irido © virus da‘ ‘AIDS) fato estatisticamente muito pro- vavel, j4 que ele j jamais fOmara qualquer precaugao em suas telagGes sexuais de altissimo risco. PERVERSAO, 67 André rejeitava terminantemente a ideia de fazer um exa- me anti-HIV. Bastante desorganizado, passou a exprimir-se, comigo, de um modo afetivamente carregado, ora criticando minha impoténcia e dizendo que interromperia a anilise, ota chorando e acusando- -me de nao perceber 0 quanto eu era importante para ele e 0 quanto cle gostava e precisava. de mim. Paradoxalmente, | pensava eu, 0 passo que ele deraem direcao auma maior integracao psiquica era, entao, o fator ‘responsdvel por sua capacidade de vivenciar aquelé sofrimentoctuel. * Em meio a essa crise, André eu-astia andlise de uma forma que eu diria intempestiva, acusando-me de nao curar a sua dor. Mas, ao sair da sala, na sua Ultima sesso, voltou rapidamente ae sala de espera até minha porta e disse = algumas sentir-se rompido comigo. ~~“Alguns anos mais tarde, encontrei-o casualmente em um evento social. André parecia bem de satide, nada indicando qué estivesse doente, como eu também havia temido por ele. Olhando-me com ar admirado e, de certo modo, divertido e provocativo, disse-me apenas: “Olha_ s6, nao é que vocé existe de verdade!”

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