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O Natal Do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo - Charles Dickens
O Natal Do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo - Charles Dickens
Página de rosto
CHARLES DICKENS
O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Tradução de Lucília Filipe
COLECÇÃO MIL FOLHAS
Ficha técnica
Colecção Mil Folhas
PÚBLICO
O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Charles Dickens
Título original: A Christmas Carol e The Chimes
Tradução: Lucília Filipe
© PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. 2001
© 2002 M.E.D.I.A.S.A.T. / Promoway Portugal Comércio de Produtos
Multimédia, Ltda. para esta edição.
Impressão Printer, Industria Gráfica, S.A.
Barcelona
Data de impressão Dezembro de 2002
ISBN 84-96075-69-9
Depósito Legal B. 45 430-2002
PÚBLICO COMUNICAÇÃO SOCIAL SA
Rua João de Barros 265
4150-414 Porto
Índice
Personagens
Prefácio
ESTROFE I
O fantasma de Marley
Para começar, Marley tinha morrido. Disso não restam dúvidas. O
registo do seu enterramento estava assinado pelo pastor, pelo oficial
do cartório, pelo cangalheiro e pelo principal enlutado. Scrooge
assinara-o. E o nome de Scrooge valia ouro, quando ele se resolvia a
pôr a mão em qualquer coisa.
O velho Marley estava mais morto do que um prego de porta.
Note-se que isto não significa que eu saiba claramente o que há de
especialmente morto num prego de porta. Cá por mim, até talvez me
sentisse mais inclinado a olhar um prego de caixão como a coisa mais
morta no reino da ferragem. Mas na comparação reside a sabedoria dos
nossos antepassados e não serão as minhas mãos profanas que deverão
perturbá-la, ou então o País está perdido. Permitir-me-ão, portanto,
que repita enfaticamente que Marley estava morto como um prego de
porta!
Scrooge sabia que ele estava morto? Claro que sabia. E como não
havia de sabê-lo? Scrooge e ele foram sócios durante não sei quantos
anos. Scrooge era o seu único testamenteiro, o seu único
administrador, o seu único cessionário, o seu único herdeiro
universal, o seu único amigo e o único que por ele pôs luto. E mesmo
assim, Scrooge não ficou tão terrivelmente deprimido pelo triste
acontecimento que não tivesse ainda feito um excelente negócio no
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tem o tio de estar triste? Que razão tem para estar taciturno? É
muito rico.
Scrooge, não tendo melhor resposta pronta de repente, disse «Bah!»
outra vez e repetiu:
— Aldrabices!
— Não esteja zangado, tio! — disse-lhe o sobrinho.
— Que mais posso eu estar — objectou o tio —, vivendo num mundo
destes? Feliz Natal! Deixa-te de Feliz Natal! O que é para ti o Natal
além da época de pagar as contas sem dinheiro, altura de dares
contigo mais velho um ano, mas nem uma hora mais rico, altura de
fazeres o balanço das tuas contas e teres cada parcela delas, em
todos os doze meses do ano, com um saldo negativo? Se eu pudesse agir
à minha vontade — disse Scrooge, indignado —, todo o idiota que anda
para aí com essa de «Feliz Natal» na boca devia ser cozinhado com o
seu pudim e enterrado com uma estaca de azevinho espetada no coração.
Isso é que devia!
— Tio! — suplicou o sobrinho.
— Sobrinho! — respondeu o tio asperamente. — Vive o Natal à tua
maneira que eu vivo-o à minha.
— Vive-o! — repetiu o sobrinho de Scrooge. — Mas o senhor não o
vive.
— Então deixa-me não o viver — disse Scrooge. — Vale de muito!
Sempre te valeu de muito!
— Eu diria que há muitas coisas das quais talvez tenha tirado algo
de bom e de que não tirei nenhum lucro — retorquiu o sobrinho. —
Entre elas o Natal. Mas sei que sempre pensei no Natal — não falando
na veneração devida ao seu sagrado nome e origem, se é que algo a ele
ligado pode estar afastado dela —, pensei nele sempre como uma época
boa; uma época de perdão, de caridade e de alegria; a única época de
todo o ano, que eu saiba, durante a qual homens e mulheres parecem
abrir,de comum acordo e livremente, os seus corações fechados e
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pensar nos que estão abaixo deles como se de facto fossem seus
companheiros de viagem para a sepultura e não uma outra raça de seres
destinados a outras viagens. E por isso, meu tio, ainda que ele não
me tenha metido ao bolso uma só migalha de ouro ou de prata, acredito
que me tem feito bem e me fará... bem e digo: bendito seja!
O empregado que estava no cubículo aplaudiu involuntariamente.
Apercebendo-se imediatamente da inconveniência, atiçou o lume e
apagou definitivamente a última e ténue centelha.
— Que eu oiça outro som teu — disse Scrooge — e vais viver o teu
Natal sem emprego! Vossa excelência é um grande orador — acrescentou
virando-se para o sobrinho —, até admira não estar no Parlamento!
— Vá lá tio, não se zangue. Olhe, venha jantar connosco amanhã.
Scrooge despediu-se dele — foi o que fez. E utilizou toda a extensão
da expressão dizendo que o queria ver à distância.
— Mas porquê? — gritou o sobrinho de Scrooge. — Porquê?
— Porque é que te casaste? — disse Scrooge.
— Porque estava apaixonado.
— Porque estavas apaixonado! — rosnou Scrooge, como se aquilo fosse
no mundo a única coisa mais ridícula do que um feliz Natal. — Boa
tarde!
— Não, tio, mas antes de isso ter acontecido o senhor nunca me foi
visitar. Porque apresenta agora isso como razão para não ir?
— Boa tarde — disse Scrooge.
— Não lhe peço nada. Nada quero de si. Porque é que não havemos de
ser amigos?
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— Boa tarde — disse Scrooge.
— Lamento de todo o coração vê-lo tão irredutível. Nunca houve entre
nós qualquer discussão, na qual eu tivesse sido participante. Mas em
homenagem ao Natal fiz a minha tentativa e manterei a minha boa
disposição de Natal até ao fim, por isso, tio: Feliz Natal!
— Boa tarde! — disse Scrooge.
— E Feliz Ano Novo!
— Boa tarde! — disse Scrooge.
O sobrinho deixou a sala sem uma palavra exaltada e sem oposição.
Parou na porta exterior para apresentar ao empregado as saudações da
época e aquele, embora frio como estava, conseguiu ser mais caloroso
que Scrooge, porque lhas retribuiu cordialmente.
— Ali está outro — murmurou Scrooge que o tresouviu: — O meu
empregado com quinze xelins por semana, mulher e família e a falar de
feliz Natal. Vou é para Bedlam.
Aquele lunático, ao acompanhar o sobrinho de Scrooge à porta,
deixara entrar duas pessoas. Eram cavalheiros imponentes, agradáveis
à vista, e estavam agora de pé no escritório de Scrooge, tendo tirado
os chapéus. Tinham na mão livros e papéis e faziam-lhe vénias.
— Scrooge e Marley, segundo creio — disse um dos cavalheiros
reportando-se à sua lista. — A quem tenho o prazer de me dirigir, ao
senhor Scrooge ou ao senhor Marley?
— O senhor Marley morreu há sete anos — respondeu Scrooge. — Faz
exactamente sete anos esta noite.
— Não temos a mínima dúvida de que a sua liberalidade está
condignamente representada pelo seu sócio sobrevivente — disse o
cavalheiro, apresentando as suas credenciais.
E é que estava mesmo, porquanto ambos tinham sido espíritos da mesma
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Scrooge pegou na régua com uma tal decisão de agir que o cantor
desapareceu aterrorizado, deixando aquela porta ainda mais envolvida
pelo nevoeiro e por uma geada que lhe era mais congenial. Por fim
chegou a hora de fechar o seu escritório. Scrooge desceu do banco, de
má vontade, e tacitamente deu consentimento ao empregado que esperava
no seu cubículo e que instantaneamente apagou a vela e pôs o chapéu.
— Suponho que queres ter todo o dia, amanhã? — disse Scrooge.
— Se lhe convém, senhor Scrooge.
— Não me convém — disse Scrooge — e não é justo. Se te descontasse
meia coroa, achar-te-ias explorado, creio?
O empregado sorriu timidamente.
— E afinal — acrescentou Scrooge — não me consideras explorado,
quando te pago o salário de um dia sem trabalhares.
O empregado objectou que isso acontecia apenas uma vez no ano.
— Isso é uma fraca desculpa para se pilhar a bolsa dum homem todos
os anos no dia vinte e cinco de Dezembro! — disse Scrooge, abotoando
o sobretudo até ao pescoço. — Bom, mas afinal de contas acho que
deves ter o dia todo. Faz por cá estares bem cedo na manhã seguinte.
O empregado prometeu que estaria e Scrooge saiu com um resmungo. O
escritório foi fechado num instante e o empregado, com as pontas do
cachecol a balouçarem-lhe sobre o peito (porque sobretudo era coisa
que não tinha), escorregou vinte vezes até Cornhill, atrás duma fila
de rapazes, em honra da Véspera de Natal, e correu depois até casa,
em Candem Town, tão depressa quanto podia, para jogar à cabra-cega.
Scrooge comeu o seu jantar melancólico, na habitual e melancólica
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três parelhas por uma escadaria ou de abrir caminho por uma lei
recém-criada e errada; mas o que eu quero realmente dizer é que se
poderia fazer subir por aquela escada um carro funerário
transversalmente, com a barra de tracção virada para a parede e a
porta para a balaustrada e fá-lo-íamos com toda a facilidade. Talvez
por esta razão, Scrooge pensou ver um carro funerário avançando à sua
frente na escuridão. Meia dúzia de candeeiros a gás não chegariam
para iluminar suficientemente a entrada, por isso já se pode imaginar
quão escuro estava só com a vela de sebo que Scrooge levava.
Scrooge subiu, sem se importar com isso. A escuridão não lhe custava
dinheiro, e isso era o que agradava a Scrooge. Antes, porém, de
fechar a pesada porta, deambulou pelas dependências, para se
certificar de que tudo estava bem. Tinha ainda bem presente a
recordação daquele rosto, para sentir vontade de agir assim.
Sala de estar, quarto de dormir, quarto de arrumações. Ninguém
debaixo da mesa, ninguém debaixo do sofá; um lume fraco na grelha, a
colher e a malga prontas e a caçarola com o caldo de aveia na estufa
do fogão (Scrooge estava com coriza). Ninguém debaixo da cama,
ninguém no armário, ninguém no seu roupão que pendia da parede com ar
suspeito. O quarto de arrumação estava como de costume. Um velho
guarda-fogo, sapatos velhos, dois cestos para peixe, um lavatório de
três pernas e um atiçador.
Satisfeito, fechou a porta e trancou-se por dentro; deu duas voltas
à chave, o que não era seu costume. Seguro assim contra qualquer
surpresa, tirou a gravata, vestiu o roupão, calçou as chinelas, pôs o
barrete de dormir e sentou-se em frente do lume para comer o caldo de
aveia.
O lume estava realmente bastante fraco; em semelhante noite era como
se não existisse. Viu-se obrigado a sentar-se muito perto e a
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aninhar-se sobre ele, antes que pudesse extrair algum calor daquele
punhado de combustível. O fogão de sala, velho, teria sido há muito
construído por algum comerciante holandês e era todo ele forrado com
estranhos azulejos holandeses, cujos desenhos ilustravam as
Escrituras. Havia Cains e Abeis, filhas de faraó, rainhas do Sabá,
angélicos mensageiros descendo do ar, das nuvens semelhantes a
colchões de penas, Abraões, Baltazares, Apóstolos largando para o mar
em molheiras, centenas de figuras que lhe atraíam os pensamentos, no
entanto aquele rosto de Marley, morto havia sete anos, aparecia-lhe
como o bordão do antigo profeta e envolvia tudo. Se cada azulejo liso
estivesse inicialmente em branco e possuísse o dom de dar forma na
sua superfície a qualquer figura, em cada um deles haveria uma cópia
do rosto de Marley, proveniente dos fragmentos dispersos dos seus
pensamentos.
— Tretas! — disse Scrooge e atravessou o quarto. Depois de várias
voltas, tornou a sentar-se. Ao encostar a cabeça na cadeira,
aconteceu os seus olhos pousarem numa campainha, uma campainha sem
utilidade que estava pendurada na sala e que, para algum fim
esquecido, comunicava com um quarto no andar superior do edifício.
Foi com grande espanto e inexplicável temor que viu a campainha
começar a balouçar. A princípio balouçava tão levemente que mal se
ouvia o som, mas subitamente soou alto, o mesmo sucedendo a todas as
campainhas da casa.
Isto deve ter durado meio minuto, ou um minuto, mas pareceu durar
uma hora. As campainhas calaram-se, tal como tinham começado a soar,
simultaneamente. Sucedeu-lhes um ruído de tinir, lá no fundo, como se
alguém estivesse a arrastar uma pesada corrente sobre os cascos, lá
em baixo na adega do taberneiro. Scrooge lembrou-se, então, de ter
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no seu limitado ambiente, seja ele qual for, achará a sua vida mortal
demasiado curta para as suas vastas possibilidades de utilidade. Não
saberes que nenhum arrependimento ilimitado poderá compensar uma
oportunidade desperdiçada na vida! E assim eu fiz! Oh! Assim eu fiz!
— Mas sempre foste um bom homem de negócios, Jacob — gaguejou
Scrooge, que começava agora a aplicar a si próprio aquelas palavras.
— Negócios! — gritou o espírito, torcendo novamente as mãos. — A
humanidade é que era o meu negócio. O bem comum é que era o meu
negócio: a caridade, a misericórdia, a tolerância e a benevolência,
esses sim eram os meus negócios. A forma de negociar, no meu
comércio, era apenas uma gota de água no oceano que compreendia o meu
negócio!
Ergueu os braços a toda a altura e com eles a corrente, como se nela
estivesse toda a causa do seu inútil pesar, e de novo a arremessou
pesadamente ao chão.
— Nesta altura do ano que decorre — disse o espectro —, sofro ainda
mais. Porque haveria eu de ter caminhado por entre a multidão dos
meus semelhantes de olhos postos no chão e nunca os hei-de ter
erguido para essa abençoada estrela que conduziu os Reis Magos a uma
pobre morada! Será que não havia casas pobres onde a sua luz me
tivesse conduzido?
Scrooge estava imensamente aterrado ouvindo o espectro prosseguir
neste tom e começou a tremer muitíssimo.
— Escuta-me! — gritou o fantasma. — O meu tempo está quase a findar.
— Escuto-te — disse Scrooge —, mas não sejas difícil comigo! Não
sejas poético, Jacob! Diz!
— Não te sei dizer como é que te apareço sob uma forma que consegues
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ver. Por muitos e muitos dias estive sentado a teu lado, em forma
invisível.
Não era uma ideia agradável. Scrooge tremia e limpou o suor da
testa.
— Esta não é uma parte leve da minha pena — prosseguiu o fantasma. —
Estou aqui esta noite para te avisar de que ainda tens uma
oportunidade e uma esperança de escapares ao meu destino. Uma
oportunidade e uma esperança por minha intervenção, Ebenezer.
— Sempre foste um bom amigo — disse Scrooge. — Obrigado!
— Vais ser perseguido por três espíritos — resumiu o fantasma.
A expressão de Scrooge esmoreceu quase tanto como a do fantasma.
— É essa a oportunidade e a esperança que mencionaste, Jacob? —
perguntou em voz titubeante.
— É.
— Acho que era melhor que não fosse — disse Scrooge-
— Sem as visitas deles — disse o fantasma —, não poderás ter
esperança de evitar o caminho que eu trilho. Espera o primeiro
amanhã, quando o sino bater a uma.
— Não poderia recebê-los logo todos ao mesmo tempo e acabarmos com
isto, Jacob? — sugeriu Scrooge.
— Espera o segundo na noite seguinte, à mesma hora. O terceiro na
noite seguinte, quando tiver deixado de vibrar a última badalada da
meia-noite. Não esperes voltar a ver-me e tenta para teu próprio bem
lembrar-te do que se passou entre nós!
Ao terminar estas palavras, o fantasma pegou na ligadura que estava
em cima da mesa e enrolou-a à cabeça, como estava antes. Scrooge
soube-o, pelo som esquisito que os dentes produziram, quando a
ligadura uniu os dois maxilares. Ousou erguer novamente os olhos e
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ESTROFE II
O primeiro dos três espíritos
Estava tão escuro quando Scrooge acordou que, olhando da cama, mal
conseguia distinguir a janela transparente da opacidade das paredes
do quarto. Estava ele a tentar penetrar a escuridão com o seu olhar
agudo quando os sinos duma igreja vizinha bateram os quatro quartos.
Ficou à escuta esperando ouvir a hora.
Para sua grande surpresa, o pesado carrilhão passou das seis para as
sete, das sete para as oito e assim por diante até às doze; então,
parou. Doze! Já passara das duas quando se deitara. O relógio não
estava certo. Um pingente de gelo devia ter penetrado no mecanismo.
Doze.
Tocou no botão do relógio de repetição, para emendar aquele
carrilhão idiota, mas o seu pulsar rápido bateu as doze e parou.
— Ah!, não é possível — disse Scrooge — que eu tenha dormido um dia
inteiro e continuado a dormir outra noite. Não é possível que tenha
acontecido alguma coisa ao Sol e que seja meio-dia!
Como esta ideia era assustadora, rebolou para fora da cama e
caminhou às apalpadelas até à janela. Teve de limpar a geada com a
manga da camisa de noite para conseguir ver alguma coisa, e mesmo
assim conseguiu ver muito pouco. A única coisa que conseguiu
distinguir foi que ainda estava nevoeiro e fazia um frio intenso e
que não havia barulho de pessoas a correr de cá para lá, nem o grande
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Não havia nem um eco latente na casa, nem o chiar e o tumulto dos
ratos no forro, nem o pingar da goteira semiderretida, lá atrás no
pátio, nem um suspiro entre os ramos sem folhas dum tristonho choupo,
nem o balançar indolente duma porta de armazém, nada, nem um estalido
no lume, mas o coração de Scrooge foi tocado por uma branda
influência e deu livre curso às lágrimas.
O espírito tocou-lhe no braço e apontou-lhe para o seu eu mais novo,
debruçado na leitura. Subitamente apareceu lá fora, na janela, um
homem com traje de estrangeiro, maravilhosamente real e distintamente
visível, com um machado preso no cinto e trazia à rédea um burro
carregado de lenha.
— Olha, é o Ali Babá! — exclamou Scrooge extasiado. — É o meu
querido e honesto, o meu velho Ali Babá! Sim, sim, já sei! Foi num
Natal, quando aquela criança solitária aqui foi deixada completamente
só, que ele apareceu, pela primeira vez, tal qual assim. Pobre rapaz!
E Valentine — disse Scrooge —, e o seu irmão selvagem, o Orson, lá
vão eles! E como se chama aquele, o que foi posto em ceroulas, a
dormir às portas de Damasco, não vê? E o Lacaio do Sultão, posto de
pernas para o ar pelo Génio. Lá está ele de cabeça para baixo! E bem
feito. Ainda bem. Que é que ele tinha de casar com a Princesa?
Teria sido, sem dúvida, uma grande surpresa para os seus
companheiros de negócios, da cidade, ver Scrooge despender toda a
energia da sua natureza em coisas daquelas e com uma voz invulgar,
entre o riso e as lágrimas, bem como o seu rosto extasiado e
excitado.
— Lá esta o Papagaio! — gritou Scrooge. — De corpo verde e cauda
amarela e com uma coisa semelhante a uma alface no cimo da cabeça. Lá
está ele! Pobre Robinson Crusoé, chamava-lhe ele, quando voltou para
casa depois de ter navegado em torno da ilha. «Pobre Robinson Crusoé,
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— Vim buscar-te para te levar para casa, meu querido irmão! — disse
a criança, batendo as mãozitas e curvando-se a rir. — Levar-te para
casa, para casa, para casa!
— Para casa, minha pequena Fan? — respondeu o rapaz.
— Sim! — disse a criança, transbordante de alegria. — Para casa e
para sempre e tudo. Para casa e para sempre, sempre. O pai está muito
mais carinhoso do que era e aquela casa é um céu! Ele falou-me tão
ternamente numa doce noite, quando eu me ia deitar, que não tive medo
de lhe pedir mais uma vez que te deixasse vir para casa e ele disse
que sim, que virias e mandou-me vir buscar-te de carruagem. E vais
fazer-te um homem! — disse a criança abrindo os olhos. — E nunca mais
voltarás para aqui, mas primeiro vamos passar juntos toda a época do
Natal e vamos divertir-nos como ninguém.
— És uma verdadeira mulher, querida Fan! — exclamou o rapaz. Ela
bateu as palmas e riu e tentou tocar-lhe na cabeça; mas, como era
muito pequenina, riu-se e ficou em bicos de pés para o abraçar.
Depois começou a puxá-lo para a porta, na sua ansiedade infantil;
nada contrariado de ir, acompanhou-a.
Uma voz terrível gritou no átrio: «Tragam para baixo a mala do
menino Scrooge!», e no átrio apareceu o próprio professor, que olhou
para o menino Scrooge com uma feroz condescendência e o lançou num
estado de espírito terrível, só de lhe apertar a mão. Confiou-o
depois à irmã, numa sala de visitas horrível, que era o mais velho
poço que jamais se vira, no qual os mapas suspensos da parede e os
globos terrestre e celeste que estavam nas vitrinas luziam com o
frio. Aqui fazia ele aparecer uma decantação de vinho fraco e um
bloco de pesado bolo e oferecia pedaços daquelas guloseimas aos
jovens, mandando ao mesmo tempo um criado escanzelado oferecer um
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alta que, se fosse duas polegadas mais alta, o faria bater com a
cabeça no tecto, Scrooge gritou muito excitado:
— É o velho Fezziwig! Abençoado seja. E o Fezziwig novamente vivo!
O velho Fezziwig pousou a caneta e levantou os olhos para o relógio
que marcava as sete. Esfregou as mãos, apertou o colete largo, abriu-
-se num sorriso que lhe ia dos sapatos até ao órgão da bondade e
chamou numa voz fluente, rica, forte e jovial:
— Ei, vocês aí! Ebenezer! Dick!
O ex-eu de Scrooge, agora já um jovem, entrou subitamente
acompanhado pelo aprendiz seu colega.
— É o Dick Wilkins, com certeza! — disse Scrooge ao espírito. —
Valha-me Deus, é mesmo. Ali está ele. Era muito meu amigo, aquele
Dick. Pobre Dick! Caro, caro Dick!
— Ei, rapazes! — disse Fezziwig. — Por hoje acabou-se o trabalho. É
a véspera de Natal, Dick. Natal, Ebenezer! Vamos pendurar os taipais
— gritou Fezziwig com uma sonora batidela de palmas —, antes que o
Diabo esfregue um olho!
Nem imaginam como aqueles dois se atiraram a isso! Avançaram para a
rua com os taipais — um, dois, três —, já os tinham colocado —
quatro, cinco, seis —, trancaram-nos e aparafusaram-nos — sete, oito,
nove — e regressaram antes de contar até doze, arquejantes como
cavalos de corrida.
— Eia! — gritou o velho Fezziwig, escorregando da sua alta
secretária com uma estupenda agilidade. — Sumam-se, rapazes, e
deixemos o campo livre! Viva, Dick! Ânimo, Ebenezer!
Desaparecer! Não houve nada que não fizessem desaparecer ou que
pudessem não ter feito desaparecer, com o velho Fezziwig a vigiar.
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Ficou pronto num minuto. Tudo o que era móvel foi arrecadado, como se
fosse para desaparecer da circulação para sempre. O chão foi varrido
e regado, prepararam-se os candeeiros, foi lançado combustível na
lareira e o armazém ficou tão agradável, tão quente, tão seco e tão
brilhante como uma sala de baile, tal como se desejaria vê-la numa
noite de Inverno.
Entrou um violinista com uma pauta, subiu para a cadeira alta da
secretária e formou uma orquestra que soava como cinquenta dores de
estômago. Entrou a senhora Fezziwig, com um enorme sorriso. Entraram
três meninas Fezziwig, resplandecentes e adoráveis. Entraram os seis
jovens acompanhantes, cujos corações elas despedaçaram. Entraram
todos os homens e mulheres que trabalhavam no negócio. Entrou a
criada com o seu primo padeiro. Entrou a cozinheira com o amigo
íntimo de seu irmão, o leiteiro. Entrou o rapaz que era de mais longe
e que se suspeitava não ser convenientemente bem alimentado pelo
patrão e que tentava esconder-se atrás da rapariga da segunda porta
depois da nossa e a quem sabíamos ter a patroa puxado as orelhas.
Todos entravam uns após outros. Uns timidamente, outros
atrevidamente, outros graciosamente, outros desajeitadamente, uns
empurrando, outros puxando. Todos eles entravam de qualquer maneira e
por todo o lado. De novo todos desapareciam, vinte pares ao mesmo
tempo. As mãos em semiarco e de novo voltando à mesma posição. Ao
meio e para cima, rodando, rodando em várias poses de amistosos
grupos. O velho casal da frente, virando sempre no sítio errado, o
novo casal da frente recomeçando, mal lá chegavam, por fim todos os
casais à frente sem nenhum na retaguarda a ajudá-los! Quando se
atingiu este resultado, o velho Fezziwig gritou, batendo as palmas
para que a dança parasse: «Muito bem!», e o violinista mergulhou o
rosto quente num púcaro de cerveja preta, especialmente arranjada
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e depois? A alegria que ele nos dá é quase tão grande como se tivesse
custado uma fortuna.
Sentiu o olhar do espírito e deteve-se.
— Que há? — insistiu o fantasma.
— Nada de especial — disse Scrooge.
— Acho que há algo — insistiu o fantasma.
— Não — disse Scrooge. — Não. Gostaria de poder dizer uma palavra ao
meu empregado, neste momento. Só isso.
O seu ex-eu apagou as luzes enquanto ele exprimia o seu desejo e
Scrooge e o espírito voltaram a estar novamente lado a lado, ao ar
livre.
— Já tenho pouco tempo — avisou o espírito. — Depressa!
Isto não se dirigia a Scrooge ou a quem quer que estivesse à vista,
mas provocou um efeito imediato, porque de novo Scrooge se viu a si
próprio. Era agora mais velho. Um homem na flor da vida. O rosto não
possuía as linhas duras e rígidas dos anos posteriores, mas já
começava a dar sinais de preocupação e avareza. Havia no olhar um
movimento ávido, ambicioso e inquieto que denotava a paixão que se
enraizara e o local onde a árvore que crescia iria tombar.
Não estava só, pelo contrário, estava sentado ao lado duma bela
jovem vestida de luto e em cujos olhos havia lágrimas que brilhavam à
luz que irradiava do Espírito do Natal Passado.
— Pouco importa — dizia ela baixinho. — Para ti, muito pouco. Outro
ídolo roubou o meu lugar; e se eu puder dar-te alegria e conforto num
futuro, como eu tentaria fazer, não tenho razão para estar triste.
— Que ídolo é que te roubou o lugar? — retorquiu ele.
— Um de ouro.
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evitar vê-lo. Dizem que o sócio dele está a morrer e ele ali está
sentado sozinho. Só no mundo, creio eu.
— Espírito! — disse Scrooge em voz alquebrada. — Leva-me deste
lugar.
— Já te disse que isto são sombras de coisas passadas — disse o
fantasma. — Se elas são o que são, não me tornes as culpas!
— Leva-me daqui! — exclamou Scrooge. — Não suporto isto!
Virou-se para o fantasma e vendo que ele o olhava com uma cara na
qual, por qualquer estranha razão, havia pedaços de todas as caras
que lhe mostrara, lutou com ele.
— Deixa-me! Leva-me de volta. Não me persigas mais!
Durante a luta, se é que àquilo se poderia chamar luta, enquanto o
fantasma, sem qualquer aparente resistência da sua parte, se mostrava
imperturbado por qualquer esforço exercido pelo adversário, Scrooge
observou que a sua luz brilhava clara e forte e, fazendo uma obscura
ligação entre isto e a sua influência sobre ele, agarrou no barrete e
com um movimento rápido enfiou-lho na cabeça.
O espírito caiu debaixo dele e assim o barrete cobriu toda a sua
forma; mas, embora Scrooge enterrasse o barrete com toda a força, não
conseguia esconder a luz que se escapava por baixo em jorro
ininterrupto, espalhando-se pelo chão.
Tinha a consciência de que estava exausto e avassalado por uma
irresistível sonolência e além disso de que estava no seu quarto.
Apertou o barrete como numa despedida, depois do que relaxou a mão e
mal teve tempo de cambalear para a cama antes de mergulhar num pesado
sono.
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ESTROFE III
O segundo dos três espíritos
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chama como essa lareira estupidamente petrificada jamais conhecera no
tempo de Scrooge, de Marley e de há muitas e muitas estações.
Empilhados no chão, a formarem uma espécie de trono, havia perus,
gansos, caça, criação, brawn, grandes peças de carne, leitões,
grandes fieiras de salsichas, pastelões, pudins de ameixas, barricas
de ostras, castanhas em brasa, maçãs vermelhas, tigelas de ponche
fervente que enevoavam o quarto com o seu vapor delicioso (Nota da
tradutora: Brawn - preparado em que entra cabeça de porco, língua e
chispe, tudo picado, cozido e temperado). Sobre este trono estava
sentado um gigante de aspecto glorioso, que tinha na mão um facho
brilhante de forma não muito diferente da cornucópia e o levantava
muito alto, para derramar sobre Scrooge a sua luz, quando ele
apareceu a espreitar à porta.
— Entra! — exclamou o fantasma. — Entra, homem, e vem conhecer-me
melhor!
Scrooge entrou timidamente e em frente do espírito pendeu a cabeça.
Já não era o obstinado Scrooge que tinha sido; e, ainda que o
espírito tivesse um olhar límpido e bom, não queria fixá-lo.
— Eu sou o Espírito do Natal Presente — disse o espírito. — Olha
para mim!
Reverentemente, Scrooge assim fez. Vestia uma simples túnica verde
debruada de pele branca. Este trajo pendia tão solto da silhueta que
o seu largo peito estava destapado, como se desdenhasse ser protegido
ou limitado por qualquer ornamento. Os pés, que eram visíveis por
baixo das pregas da túnica, estavam também descalços e na cabeça não
usava outra coisa senão uma grinalda de azevinho, presa aqui e ali
por brilhantes pingentes de gelo. Os seus caracóis castanho-escuro
eram compridos e estavam soltos, livres com o seu rosto genial,
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A voz de Bob tremia ao dizer-lhes isto e mais tremia quando disse
que o pequeno Tim ia crescendo forte e alegre.
A sua muletazinha diligente ouviu-se a bater no chão e, antes que
dissessem outra palavra, aí vinha o pequeno Tim, escoltado pelo irmão
e pela irmã, dirigindo-se ao seu banquinho junto da lareira, enquanto
Bob, arregaçando os punhos — pobre diabo, como se fossem susceptíveis
de se gastar mais —, preparava num jarro uma mistura quente com gim e
limão, mexia e remexia e punha-a na chapa do fogão para ferver a fogo
lento. O menino Peter e os dois irmãos, com o dom da ubiquidade,
foram buscar o ganso e em breve regressaram com ele em procissão.
Seguiu-se um tal alvoroço que se poderia pensar que um ganso era o
mais raro dos animais, um fenómeno emplumado à vista do qual um cisne
negro era coisa vulgar — e assim era realmente naquela casa. A
senhora Cratchit fazia o molho (pronto antecipadamente, numa pequena
caçarola) chiar de quente; o menino Peter esmagava as batatas com um
incrível vigor, a menina Belinda adoçava o molho de maçã, Marta
limpava os pratos quentes, Bob levou o pequeno Tim para o pé dele, a
um cantinho da mesa, os dois pequenos Cratchits puseram as cadeiras
para todos, não esquecendo as suas e montando guarda aos seus
lugares, de colheres cheias na boca para que não gritassem a pedir
ganso antes de chegar a vez de serem servidos. Por fim os pratos
foram postos e foram dadas graças. Sucedeu-se um silêncio em que nem
se respirava, quando a senhora Cratchit, olhando lentamente ao longo
da faca de trinchar, se preparou para a espetar no peito; mas quando
assim fez e quando brotou o jorro de recheio, ergueu-se um murmúrio
de prazer em volta da mesa, e até o pequeno Tim, incitado pelos dois
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— Não, não — disse Scrooge. — Não, bom espírito! Diz que ele será
poupado.
— Se estas sombras permanecerem inalteradas pelo futuro, nenhum
outro da minha raça o encontrará aqui — respondeu o espírito. — E
depois? Se tiver de morrer que morra. Assim diminuirá o excesso
populacional.
Scrooge deixou pender a cabeça ao ouvir as suas próprias palavras
repetidas pelo espírito e foi assaltado pelo remorso e pelo desgosto.
— Homem — disse o espírito —, se é que humano e não de rocha é o teu
coração, abstém-te dessa maldosa hipocrisia até teres descoberto o
que é o excesso populacional e onde existe. Decidirás tu quem deve
viver e quem deve morrer? Pode ser que, aos olhos do Altíssimo, sejas
tu menos valioso e apto a viver do que milhões como o filho daquele
pobre homem. Oh, céus! Ouvir o insecto da folha pronunciar-se sobre o
excesso de vida existente entre os seus esfomeados irmãos do pó!
Scrooge curvou-se perante a censura do fantasma e, a tremer, pôs os
olhos no chão, mas ao ouvir o seu próprio nome levantou-os
rapidamente.
— O senhor Scrooge! — disse Bob. — Ofereço-te o senhor Scrooge como
o patrono da festa.
— Claro, o patrono da festa! — gritou a senhora Cratchit, corando. —
Quem me dera tê-lo aqui. Dar-lhe-ia um pedaço do meu pensamento, para
com ele festejar, e desejava-lhe bom apetite.
— Querida, olha as crianças! — disse Bob. — É dia de Natal!
— Deve ser mesmo no dia de Natal tenho a certeza — disse ela —, que
se deve beber à saúde de tão odioso, avarento, duro e insensível
homem como o senhor Scrooge. E tu sabes que é, Robert! Ninguém melhor
do que tu, ó infeliz, sabe isso!
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que falava duma criança perdida na neve, cantada pelo pequeno Tim,
que tinha uma voz arrastada e cantou realmente muito bem.
Nada havia de especial. Não eram uma família elegante, não estavam
bem vestidos, os seus sapatos estavam bem longe de serem à prova de
água, as roupas eram escassas e Peter devia conhecer, e provavelmente
conhecia, por dentro, a casa de penhores. Mas estavam felizes, gratos
e satisfeitos uns com os outros e contentes com a época; e ao
desvanecerem-se, parecendo ainda mais felizes envolvidos nos
brilhantes salpicos da tocha do espírito que se afastava, Scrooge
manteve o olhar pousado neles até ao fim, especialmente no pequeno
Tim.
Nesta altura estava a escurecer muito e a nevar fortemente e, à
medida que Scrooge e o espírito avançavam pelas ruas, era maravilhoso
o brilho das lareiras bramindo nas cozinhas, nas salas e em todas as
divisões. Aqui o tremular da chama denunciava os preparativos para um
aconchegado jantar, com tabuleiros quentes a assar no lume e com as
cortinas vermelhas prontas a serem cerradas, isolando do frio e da
escuridão exteriores. Ali corriam as crianças da casa pela neve, ao
encontro das suas irmãs casadas, dos irmãos, dos primos, das tias,
para serem os primeiros a saudá-los. Aqui, de novo, havia nas
venezianas das janelas sombras de convidados reunidos; e ali ia um
grupo de belas raparigas de capuz e calçadas de pele, falando todas
ao mesmo tempo e saltando ligeira e levemente dirigiam-se a alguma
casa das vizinhanças e aí, mal do simples humano que as visse entrar
resplandecentes — artificiosas feiticeiras, elas bem o sabiam!
Mas, se tivessem visto as pessoas que havia no seu caminho em
amigáveis grupos, poderiam ter pensado que não havia ninguém em casa
para as acolher quando lá chegassem, em vez de em todas as casas se
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melhor época do que o Natal, quando o seu próprio Fundador foi também
uma criança. Alto! Houve primeiro um jogo de cabra-cega. Claro que
houve. E acredito tanto que o Topper estivesse mesmo cego como que
tivesse olhos nas botas. A minha opinião é de que havia coisa
combinada entre ele e o sobrinho de Scrooge e que o Espírito do Natal
Presente estava a par. A forma como ele perseguiu a irmã gorducha de
lenço de renda era uma afronta à credulidade humana. Derrubando os
atiçadores do lume, tropeçando nas cadeiras, esbarrando no piano,
embrulhando-se nos cortinados, onde quer que ela fosse, ele ia! Sabia
sempre onde estava a irmã gorducha. Não apanhava mais ninguém. Se se
lhe metesse à frente de propósito (como alguns deles fizeram), fingia
uma tentativa de o apanhar, que seria uma afronta à sua compreensão e
imediatamente se esgueirava em direcção à irmã gorducha. Às vezes ela
gritava que não era justo; e não era mesmo. Mas quando por fim ele a
agarrou; quando, apesar de todo o frufru da seda das suas rápidas
passagens por ele, conseguiu apanhá-la num canto donde não havia
saída; então a sua conduta foi do mais execrável. Fingindo não a
conhecer e fingindo ser necessário tocar-lhe o toucado, e além disso
para se assegurar da sua identidade ter de apalpar um certo anel que
ela tinha no dedo e uma certa corrente que tinha ao pescoço, foi
simplesmente vil e monstruoso! Sem dúvida que ela lhe exprimiu a sua
opinião sobre o facto quando, estando já de serviço outro homem
vendado, ficaram muito juntos confidenciando, por trás das cortinas.
A sobrinha de Scrooge não estava metida na brincadeira da cabra-
cega, mas sim instalada numa ampla cadeira com um banquinho para os
pés num aconchegado canto, onde por trás dela estavam Scrooge e o
fantasma. Mas juntou-se-lhes no jogo das prendas e encantou o seu
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que lhe era feita, o sobrinho soltava uma nova gargalhada e era tão
inexplicavelmente atacado de riso que era obrigado a levantar-se do
sofá e a bater o pé. Por fim a irmã gorducha, que caíra num estado
semelhante, gritou:
— Já descobri! Já sei o que é, Fred! Sei o que é!
— Que é? — gritou Fred.
— É o tio Scro-o-o-o-oge!
E era mesmo. A admiração foi geral, embora alguns tivessem objectado
que a resposta a «E um urso?» deveria ter sido «Sim!», visto que uma
resposta negativa era suficiente para lhes ter afastado o pensamento
do senhor Scrooge, se é que se tinham chegado a inclinar para que
fosse ele.
— Ele tem-nos feito divertir muito — disse Fred —, e seria
ingratidão não bebermos à sua saúde. Temos neste momento aqui à mão
um copo de vinho quente e eu digo: «Ao tio Scrooge!».
— Sim! Ao tio Scrooge! — gritaram.
— Feliz Natal e próspero Ano Novo para o velhote, seja lá ele o que
for! — disse o sobrinho de Scrooge. — De mim não o aceitaria, mas
mesmo assim desejo-lho. Ao tio Scrooge!
Imperceptivelmente, o tio Scrooge tornara-se tão alegre e de coração
tão leve que, se o fantasma lhe tivesse dado tempo, teria brindado em
troca, à despreocupada companhia, e ter-lhes-ia agradecido em
discurso inaudível. Mas toda a cena desapareceu com o sopro da última
palavra dita pelo sobrinho e ele e o espírito em breve viajavam de
novo.
Muito viram e muito viajaram e muitos lares visitaram, mas todos com
um final feliz. O espírito esteve à cabeceira de doentes e eles
estavam alegres; em terras estrangeiras e todos estavam próximo de
casa; junto de homens que lutavam e eles eram pacientes na sua maior
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pudessem aplicar. Mas, não duvidando de que, a quem quer que elas se
referissem, continham em si qualquer moralidade latente e que
serviria para a sua melhoria, resolveu entesourar cada palavra que
ouvia e tudo quanto via; e sobretudo observar a sua própria sombra
quando ela aparecesse, porque guardava a esperança de que a conduta
do seu eu futuro lhe daria a pista que lhe faltava e facilmente lhe
daria também a resposta a estes enigmas.
Olhou em volta, naquele mesmo lugar, à procura da sua própria
imagem; mas havia outro homem no seu canto habitual e, embora o
relógio marcasse a hora habitual do dia em que ele ali estava, não
viu nem sombras de si entre a multidão que afluía pelo pórtico. Isso,
no entanto, não lhe causou grande surpresa, pois que tinha estado a
meditar numa mudança de vida e esperou ver naquela as suas recém-
-tomadas resoluções.
O fantasma permanecia a seu lado, silencioso e negro, de mão
estendida. Quando acordou da sua pensativa investigação, imaginou,
pela posição da mão e pela sua posição em relação a ele, que os Olhos
Ocultos o olhavam penetrantemente, o que o fez estremecer e gelar.
Deixaram aquela cena movimentada e dirigiram-se a uma parte escura
da cidade, onde Scrooge nunca penetrara, se bem que conhecesse a sua
localização e a sua má reputação. Os caminhos eram imundos e
estreitos, as lojas e casas arruinadas, as pessoas seminuas,
embriagadas, desmazeladas e feias. Becos e travessas, como se fossem
fossas, vomitavam sobre as ruas vizinhas o cheiro, o lixo e a vida; e
todo o quarteirão cheirava a crime, a sujidade e a miséria.
No fundo deste antro de infame frequência havia uma loja baixa e
saliente, por baixo dum alpendre onde se comprava ferro, farrapos,
garrafas, ossos e sebo de reses. Lá dentro, no chão, estavam
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nem ossos mais velhos do que os meus. Ah, ah! Estamos bem uns para os
outros, fazemos um lindo par! Venham para a sala. Venham para a sala!
A sala era um espaço por detrás da cortina de farrapos. O velho
espevitou o lume com um velho varão de passadeira e, tendo regulado o
enfarruscado candeeiro com a haste do cachimbo, voltou a pô-lo na
boca.
Enquanto fazia isto, a mulher que já tinha falado pôs a trouxa no
chão e sentou-se num banco em atitude importante, cruzando os braços
em volta dos joelhos e olhando os outros dois com ar de desafio.
— Que é que há de mal nisto? Que é que há de mal, senhora Dilber? —
disse a mulher. — Todos têm o direito de olhar por si. Foi isso que
ele sempre fez.
— Lá isso é verdade! — disse a lavadeira. — Ninguém mais do que ele
o fez.
— Então, mulher, não fiques para aí a olhar como se tivesses medo.
Quem é o mais esperto? Acho que não vamos pôr-nos a cortar na casaca
uns dos outros!
— Claro que não! — disseram ao mesmo tempo a senhora Dilber e o
homem. — Esperamos bem que não!
— Pois muito bem! — gritou a mulher. — Já chega. A quem é que
prejudica a perda dumas coisitas como estas? Ao morto não é com
certeza, acho eu.
— Claro que não — disse a senhora Dilber a rir.
— Se queria conservá-las depois da sua morte, aquele velho patifório
— prosseguiu a mulher —, porque é que não foi bom em vida? Se o
tivesse sido, teria tido quem olhasse por ele quando estava a morrer,
em lugar de ficar ali sozinho a dar as últimas.
— É a maior verdade que já foi dita — afirmou a senhora Dilber. — É
um juízo sobre ele.
— Quem me dera que fosse um juízo mais severo — respondeu a mulher —
; e devia ter sido, lá isso podes estar certa. Ah!, se eu pudesse ter
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deitado a mão a mais alguma coisa! Abre essa touxa, Joe, e diz-me lá
quanto vale. Fala sinceramente. Não tenho medo de ser a primeira, nem
tenho medo que eles vejam. Acho que sabíamos muito bem que nos
estávamos a abotoar antes mesmo de nos termos encontrado aqui. Não é
pecado. Abre a trouxa, Joe.
Mas a delicadeza dos companheiros não o permitiu e o homem vestido
de preto ruço, antecipando-se, exibiu o seu saque. Não era grande. Um
sinete ou dois, um estojo de lápis, um par de botões de punho, um
broche de pouco valor — era tudo. Foram minuciosamente examinados
pelo velho Joe, que ia escrevendo a giz na parede a quantia que
estava disposto a pagar por cada um; e, vendo que nada mais havia,
fez a soma.
— Esta é a tua conta — disse Joe — e, nem que me matem, não te dou
nem mais um cêntimo. Quem se segue.
Seguia-se a senhora Dilber. Lençóis e toalhas, alguma roupa usada,
duas colheres de chá, de prata, já antiquadas, um par de tenazes de
açúcar e uns pares de botas. A sua conta foi igualmente feita na
parede.
— Dou sempre demasiado às senhoras. É uma fraqueza minha e é assim
que me arruino — disse o velho Joe. — Esta é a tua conta. Se me
pedisses mais um penny e fizesses questão nisso, arrependia-me de ser
tão liberal e descontava-te meia coroa.
— E agora desfaz a minha trouxa, velho Joe — disse a primeira
mulher.
Joe ajoelhou-se para maior comodidade em abrir e, depois de desatar
uma data de nós, tirou de lá um pesado rolo de tecido escuro.
— Que é isto? — disse Joe. — São cortinas de cama!
— Ah! — retorquiu a mulher, rindo e dobrando-se sobre os braços
cruzados. — São cortinas de cama!
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altar e sobre ele depuseste tais horrores, à tua ordem, pois que este
é o teu domínio! Mas da cabeça amada, respeitada e honrada, não podes
tu mudar um só cabelo para os teus terríveis fins, ou tornar as
feições odiosas. Não interessa que a mão esteja pesada e caia quando
a largam, não interessa que o coração e o pulso tenham cessado, o que
importa é que a mão enquanto aberta foi generosa e leal, o coração
corajoso, quente e terno e o pulso o de um homem. Ataca, Sombra,
ataca! E da ferida verás brotar as suas boas acções para semearem no
mundo a vida imortal!
Nenhuma voz pronunciara estas palavras ao ouvido de Scrooge, e no
entanto ouviu-as quando olhava para a cama. Pensou então quais seriam
os principais pensamentos daquele homem se pudesse ser ressuscitado
nesse momento. Seriam preocupações pungentes, de avareza ou de
negócios difíceis? Esses tinham-no, de facto, levado a um lindo fim!
Ali jazia numa casa vazia, sem homem, mulher ou criança que pudesse
dizer: «Ele foi bom para mim, nisto ou naquilo e em memória duma boa
palavra vou ser bom para ele». Um gato esgatanhava na porta e havia
barulho de ratos a roer, por baixo da pedra da lareira. Scrooge não
se atrevia a pensar o que queriam eles duma câmara funerária e porque
estavam tão desassossegados e inquietos.
— Espírito! — disse. — Este lugar é tenebroso. Ao deixá-lo, acredita
que não esquecerei a lição que encerra. Vamos!
No entanto o espírito continuava a apontar para a cabeça com um dedo
imóvel.
— Compreendo-te — retorquiu Scrooge — e fá-lo-ia, se pudesse. Mas,
espírito, não tenho esse poder! Não tenho esse poder!
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olhando para Peter que tinha na frente um livro. Mãe e filha estavam
ocupadas a coser, mas estavam também muito caladas!
— E Ele tomou uma criança e sentou-a no meio deles.
Onde é que Scrooge já ouvira aquelas palavras? Não as tinha sonhado.
O rapaz devia estar a lê-las, quando ele e o espírito cruzaram a
soleira. Porque é que ele não continuou?
A mãe pousou o trabalho na mesa e levou a mão ao rosto.
— A cor fere-me os olhos — disse.
A cor? Ah, pobre pequeno Tim!
— Agora já estão melhores — disse a mulher de Cratchit. — A luz da
vela enfraquece-os e não quero, por nada deste mundo, mostrar olhos
enfraquecidos ao vosso pai, quando ele regressar. Deve estar na hora
de ele chegar.
— Até já passa — respondeu Peter fechando o livro. — Mas acho que
nestas últimas noites deve ter vindo mais devagar do que é costume,
mãe.
Ficaram de novo muito calados. Por fim ela disse, numa voz alegre e
firme que só hesitou uma vez:
— Lembro-me de ele caminhar... lembro-me de ele caminhar com o
pequeno Tim aos ombros e muito depressa.
— Também eu — exclamou Peter. — Muitas vezes.
— Também eu — disse outro. E todos se lembravam. — Mas ele era
levezinho — rematou ela, concentrada no seu trabalho — e o pai amava-
o tanto que isso não o maçava nada, nada. Aí está o vosso pai, à
porta!
Ela correu ao seu encontro e o pequeno Bob, com o seu cachecol (bem
precisava dele, pobre homem), entrou. O chá estava pronto na chapa do
fogão e todos queriam ser quem mais ajudava. Então os dois Cratchits
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Sim! E a coluna da cama era a sua. A cama era a sua, o quarto era o
seu. Melhor que tudo isso: o tempo que tinha à sua frente era seu,
para se emendar!
— Viverei no passado, no presente e no futuro! — repetia Scrooge,
enquanto rebolava para fora da cama. — Os espíritos dos três
empenhar-se-ão no meu íntimo. Oh, Jacob Marley! Que o Céu e o Natal
sejam por isto louvados! Digo isto de joelhos, velho Jacob, de
joelhos!
Estava tão excitado e tão entusiasmado com as suas boas intenções,
que a sua voz alquebrada mal correspondia ao seu apelo. Estivera a
soluçar violentamente durante o conflito com o espírito e o seu rosto
estava molhado de lágrimas.
— Não estão derrubadas — gritava Scrooge, abraçando uma das cortinas
da cama. — Não estão derrubadas, têm argolas e tudo. Estão aqui... eu
estou aqui... as sombras das coisas que podiam vir a ser podem ser
afastadas. E serão, sei que serão!
As suas mãos estiveram sempre ocupadas com a roupa, virando-a do
avesso, de cima para baixo, rasgando-a, pendurando-a e fazendo-a
participar em todas as extravagâncias.
— Não sei o que fazer! — exclamou Scrooge, rindo e chorando ao mesmo
tempo e parecendo qual Laoconte, enrolado nas peúgas (Nota da
tradutora: Personagem mitológico que foi devorado por serpentes). —
Sinto-me
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leve que nem uma pena, feliz que nem um anjo, alegre que nem um
garoto e tonto que nem um ébrio. Feliz Natal para todos! Próspero Ano
Novo, para toda a gente! Eia, aí! Hoopi! Viva!
Tinha pulado até à sala e ali estava de pé, completamente ofegante.
— Cá está a caçarola onde estava a papa! — gritou Scrooge, pondo-se
novamente em movimento em volta da lareira. — Lá está a porta por
onde Jacob Marley e o espírito entraram! Lá está o canto onde se
sentou o Espírito do Natal Presente! Lá está a janela onde eu vi as
almas penadas! Tudo é certo, tudo é verdade, tudo aconteceu. Ah, ah,
ah!
Para um homem que tinha perdido o treino há tantos anos, era
realmente uma gargalhada maravilhosa, uma gargalhada esplendorosa. A
mãe de muitas e muitas outras gargalhadas cristalinas!
— Não sei que dia do mês é! — disse Scrooge. — Não sei quanto tempo
estive entre os espíritos. Não sei nada. Sou um verdadeiro bebé. Não
importa. É melhor ser um bebé. Eia! Hoopi! Viva!
Os seus transportes foram detidos pelos mais fortes repiques que
jamais ouvira. Choquem, retinam, martelem; ding, dong, piam. Piam,
dong, ding; martelem, choquem, retinam! Glória, glória!
Correu para a janela, abriu-a e deitou a cabeça de fora. Não havia
nevoeiro nem neblina. Que belo ar fresco! Que alegres sinos! Oh,
glória, glória!
— Que dia é hoje? — gritou Scrooge lá para baixo, para um rapaz de
fato domingueiro, que provavelmente se atrasou para olhar em volta.
— Hã? — respondeu o rapaz, com todo o assombro.
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— Que dia é hoje, meu bonitão? — disse Scrooge.
— Hoje? — respondeu o rapaz. Eia! É DIA DE NATAL!
— É dia de Natal! — disse Scrooge para consigo. — Não o perdi. Os
espíritos fizeram tudo numa só noite. Conseguem fazer tudo quanto
querem. Claro que conseguem. Olá, amigalhaço!
— Olá! — respondeu o rapaz.
— Conheces o galinheiro, na segunda rua, à esquina? — inquiriu
Scrooge.
— Queira Deus que sim! — replicou o rapaz.
— És um rapaz inteligente! — disse Scrooge. — Um rapaz notável!
Sabes se venderam aquele peru premiado que lá tinham pendurado?.. Não
é o peru premiado pequeno, é o grande.
— O quê, aquele tão grande como eu? — respondeu o rapaz.
— Que estupendo rapaz! — disse Scrooge. — É um prazer falar com ele.
Sim, meu peralvilho!
— Está agora lá pendurado — respondeu o rapaz.
— Está? — tornou Scrooge. — Vai lá comprá-lo.
— Haaã! — exclamou o rapaz.
— Não, não — disse Scrooge. — Estou a falar a sério. Vai lá comprá-
-lo e diz-lhes que mo tragam cá e eu dar-lhes-ei a morada onde devem
levá-lo. Volta cá com o homem que te darei um xelim. Volta dentro de
cinco minutos e dou-te meia coroa!
O rapaz desapareceu que nem uma seta. Teria de ter um bom dedo para
o gatilho quem quisesse disparar com metade da velocidade.
— Vou mandá-lo ao Bob Cratchit! — murmurou Scrooge, esfregando as
mãos e desatando a rir. — Não deve saber quem lho manda. É duas vezes
maior que o pequeno Tim. Nunca houve uma piada batida tão boa como
esta de o mandar ao Bob!
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A mão com que escreveu a morada não era das mais firmes, mas mesmo
assim escreveu e desceu para abrir a porta da rua, preparado para a
chegada do galinheiro. Enquanto ali esperava que ele chegasse, deram-
-lhe os olhos no batente.
— Amá-lo-ei enquanto viver! — exclamou Scrooge, dando-lhe umas
pancadinhas amigáveis. — Antes mal olhava para ele. Que expressão tão
honesta ele tem no rosto! É um batente maravilhoso!.. Aqui está o
peru. Olá Hoopi! Como está? Feliz Natal!
Era um peru! Uma ave daquelas nunca devia ter conseguido pôr-se em
cima das pernas. Devia parti-las logo, como se fossem paus de lacre.
— Ui, é impossível levar isso a Camdem Town — disse Scrooge. — Tem
de tomar um carro.
O riso com que disse isto, o riso com que pagou o peru, o riso com
que pagou o carro, o sorriso com que recompensou o rapaz, só foram
ultrapassados pelo riso com que se sentou na cadeira onde riu até
chorar.
Barbear-se não foi tarefa fácil, já que a mão continuava a tremer-
-lhe muito e o barbear requer atenção, mesmo que não estejamos a
dançar enquanto nos barbeamos; mas se ele tivesse cortado a ponta do
nariz, ter-lhe-ia posto um bocado de adesivo e teria ficado
satisfeito.
Vestiu-se «com o melhor» e saiu por fim para a rua. A essa hora as
ruas pululavam de gente, tal como ele as tinha visto com o Espírito
do Natal Presente; e, de mãos atrás das costas, Scrooge olhava todos
com um sorriso de prazer. Em resumo: parecia tão irresistivelmente
alegre que três ou quatro indivíduos bem humorados disseram: «Bom
dia, senhor! Feliz Natal para si!». E Scrooge disse depois muitas
vezes que, de todos os alegres sons que já ouvira, aqueles soaram aos
seus ouvidos como os mais alegres.
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Não tinha ido longe quando viu, avançando para ele, o cavalheiro
imponente que na véspera entrara no seu escritório e lhe dissera:
« Scrooge e Marley, não é assim?». O coração deu-lhe um baque ao
pensar como é que aquele cavalheiro o iria olhar quando se
encontrassem; sabia o que o esperava e avançou.
— Meu caro senhor — disse Scrooge apressando o passo e apertando
ambas as mãos do cavalheiro. — Como está? Espero que tenha conseguido
ontem. Foi muito simpático da sua parte. Feliz Natal para si!
— Senhor Scrooge?
— Sim — disse Scrooge. — Sim, é esse o meu nome, e receio que não
lhe seja agradável. Permita-me que lhe peça desculpa. E terá a
bondade — aqui Scrooge segredou-lhe ao ouvido.
— Valha-me Deus! — gritou o cavalheiro, como se lhe tivesse faltado
o ar. — Meu caro senhor Scrooge, está a falar a sério?
— Por favor — acrescentou Scrooge —, nem um quarto de pény a menos.
Já aí incluo muitos pagamentos atrasados, pode estar certo. Far-me-á
esse favor?
— Meu caro senhor — disse o outro apertando-lhe a mão. — Não sei o
que dizer a tanta generosi...
— Não diga nada, por favor — retorquiu Scrooge. — Venha visitar-me.
Virá?
— Virei! — exclamou o cavalheiro. E não havia dúvida que estava
decidido a fazê-lo.
— Obrigado — disse Scrooge. — Estou-lhe muito agradecido. Agradeço-
-lhe cinquenta vezes. Deus o abençoe!
Foi à igreja e vagueou pelas ruas, observou as pessoas que se
afadigavam de cá para lá, deu palmadinhas na cabeça das crianças,
interrogou mendigos, espreitou para as cozinhas das casas e para as
janelas e descobriu que tudo lhe podia dar prazer. Nunca sonhara que
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Uma história de duendes sobre uns sinos, que repicavam pela saída do
ano velho e pela entrada do ano novo
Personagens
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(excepto Tobias) sem uma lei especial, tendo ele sido tornado
oficialmente cristão no seu dia, como os sinos o tinham sido no
deles, ainda que sem tamanha solenidade ou júbilo público.
Pela minha parte, confesso-me partidário da opinião de Toby Veck,
pois tenho a certeza de que não lhe faltaram oportunidades de a
formular correctamente. E o que quer que o Toby Veck tenha afirmado —
eu afirmo-o. E tomo lugar a seu lado, se bem que o seu lugar fosse
permanecer todo o dia (e que trabalho cansativo, aquele!) à porta da
igreja. Ele era realmente moço de recados, esse Toby Veck, e ali
esperava pelas tarefas.
E que lugar aquele no Inverno para esperar: ventoso, arrepiante,
gélido, glacial e de fazer bater o dente. Toby Veck bem o sabia! O
vento vinha da esquina espadanando (sobretudo o vento leste), como se
tivesse brotado dos confins da Terra expressamente para soprar sobre
Toby. Muitas vezes parecia chocar com ele mais depressa do que
contava, porque, arremetendo da esquina e ultrapassando Toby,
rodopiava novamente para trás como se gritasse: «Olha, cá está ele!».
Incontidamente, levantava-se então o seu aventalinho como as roupas
de um menino mau, e via-se a sua débil bengalinha lutar e debater-se
em vão na sua mão, e as suas pernas sofriam uma tremenda agitação, e
o pobre Toby todo de esguelha, virando-se ora para um lado ora para
outro, era de tal modo sacudido, esbofeteado, descomposto,
perturbado, empurrado e erguido que dir-se-ia faltar um passo para
que se desse um autêntico milagre, o de ser erguido no ar em corpo
como o são por vezes uma colónia de rãs ou de caracóis ou de outros
seres portáteis e novamente despejado, para grande espanto dos
nativos, nalgum canto do mundo onde os moços de recados fossem coisa
desconhecida.
Mas o tempo ventoso, apesar de o cansar tanto, era no fim de contas,
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Fazia essa caminhada várias vezes por dia, porque eles eram para ele
uma companhia; e quando lhes ouvia as vozes queria olhar o seu
abrigo, pensando na forma como eram movidos e nos martelos que lhes
batiam. Talvez sentisse mais curiosidade por eles por haver pontos de
semelhança entre os sinos e ele. Ambos ali estavam, com qualquer
tempo, aguentando as arremetidas do vento e da chuva, vendo apenas a
parte exterior de todas aquelas casas, nunca se aproximando dos
brilhantes lumes que se viam das janelas ou cujo fumo saía pelas
chaminés e incapazes de participar de qualquer das coisas boas que
eram constantemente entregues a fantásticos cozinheiros às portas de
serviço ou às grades das propriedades. Em muitas janelas apareciam e
desapareciam caras, por vezes caras bonitas, jovens, agradáveis;
outras vezes o contrário; mas Toby sabia tanto como os sinos (embora
muitas vezes especulasse sobre esses nadas, enquanto permanecia
ocioso pelas ruas) donde vinham ou para onde iam ou, quando os lábios
deles se moviam, se iriam dizer durante todo o ano uma palavra amável
a seu respeito.
Toby não era um casuísta (pelo menos que o soubesse), nem eu quero
dizer que, quando se começou a afeiçoar aos sinos e a tecer a
primeira tosca relação com eles transformando-a em algo de mais
delicada trama, tivesse feito uma a uma tais considerações ou que as
tenha passado em revista na sua mente. Mas o que quero dizer, e digo,
é que tal como as funções orgânicas de Toby cumprem os seus
objectivos, as do seu aparelho digestivo, por exemplo, faziam por seu
próprio atributo uma quantidade de operações que ele ignorava em
absoluto e cujo conhecimento o espantaria grandemente, assim também
as suas faculdades mentais, sem a sua autorização ou contributo,
desencadeavam todos estes mecanismos e molas e milhares de outros,
quando trabalhavam no sentido de o fazerem gostar dos sinos. E ainda
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Senhor, faz com que algo de melhor nos possa vir com a aproximação do
Ano Novo!
— Oh, pai, pai! — disse uma voz agradável, ali próximo.
Mas Toby, não a ouvindo, continuou a trotar para trás e para diante,
meditando à medida que avançava e falando de si para si.
— É como se não achássemos o caminho certo, como se não
conseguíssemos agir acertadamente ou não nos fizessem justiça — disse
Toby. — Eu cá por mim não tive grande instrução, quando era novo; e
não consigo perceber se andamos a fazer alguma coisa ao cimo da Terra
ou se não. Por vezes penso que sim, pelo menos um pouco; outras vezes
acho que estamos a mais. Fico por vezes tão confuso que nem consigo
ajuizar se há em nós algo de bom, ou se nascemos maus. Parece que
somos coisas horríveis e que trazemos montes de complicações. Sempre
se queixam de nós e estão sempre na defensiva a nosso respeito. Duma
maneira ou de outra, enchemos os jornais. E por falar em Ano Novo! —
disse Toby, tristonho. — Consigo conservar a coragem, em certas
alturas, tanto como qualquer outro e por vezes melhor do que muitos,
porque sou forte que nem um leão e nem todos o são, mas supondo que
não temos realmente direitos a um Novo Ano, supondo que somos
realmente intrusos...
— Ó pai, pai! — disse novamente a voz agradável. Desta vez Toby
ouviu. Partiu. Parou. Encurtando o olhar, que tinha estado dirigido
para longe, como se procurasse ser esclarecido no coração do ano que
se aproximava, encontrou-se cara a cara com a sua própria filha e
olhou-a no fundo dos seus olhos.
E que olhos brilhantes eram aqueles! Olhos que suportavam um mundo
de olhares antes que as suas profundezas fossem exploradas. Olhos
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— Está em brasa! — exclamou Meg. — Ah, ah, ah! Está a escaldar!
— Ah! ah! ah! — gargalhou Toby, dando uma espécie de pontapé. — Está
em brasa!
— Mas o que é, pai? — disse Meg. — Vá lá. Ainda não adivinhou o que
é. Tem de adivinhar o que é. Nem pensar em tirá-lo antes de adivinhar
o que é. Não tenha tanta pressa! Mais um momento! Mais um bocadinho
da cobertura. Adivinhe lá!
Meg estava assustada, não fosse ele adivinhar cedo de mais;
encolhia-se, ao mesmo tempo que lhe estendia o cesto, encurvando os
seus lindos ombros, encaracolando a orelha com a mão, como se fazendo
isso conseguisse tirar da boca de Toby a palavra certa. E continuava
a rir de mansinho.
Toby, entretanto, pôs as mãos nos joelhos, inclinou o nariz até ao
cesto e inspirou profundamente a tampa; durante esse processo o
sorriso rasgou-se na sua face mirrada, como se ele estivesse a inalar
gás hilariante.
— Ah! É muito bom — disse Toby. — Acho que são salpicões, não são?
— Não, não, não! — exclamou Meg, encantada. — Nada que se pareça com
salpicões!
— Não — disse Toby, depois de nova cheiradela. — É mais macio do que
os salpicões. É muito bom. A cada momento se torna melhor. É
demasiado categórico dizer que são pezinhos de porco. Não é?
Meg estava exultante. Ele não poderia afastar-se mais da verdade do
que afirmando que eram pezinhos de porco (excepto dizendo que eram
salpicões).
— Fígado? — disse Toby falando para consigo. — Não. Há nisto uma
suavidade que não corresponde a fígado. Pezinhos? Não. Não é
suficientemente suave para serem pezinhos. Falta-lhe a viscosidade
das cabeças de galo e sei que não são salsichas. Já te digo o que é.
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São tripas!
— Não, não são! — exclamou Meg, num ímpeto de prazer. — Não são!
— Oh, mas que estou eu a pensar? — disse Toby retomando bruscamente
uma posição tão próxima da perpendicular quanto lhe era possível. —
Depois disto, nem do meu nome me vou lembrar. É bucho!
E era mesmo bucho. Meg, na sua grande alegria, replicou que ele
teria de dizer, dentro de meio minuto, que se tratava do melhor bucho
que jamais fora guisado.
— E agora — disse Meg, atarefando-se exultante com o cesto —, vou já
pôr a toalha, pai; porque trouxe o bucho numa tijela e embrulhei-a
num lenço de algibeira e se por uma vez desejo ser orgulhosa e
estendê-lo como se fosse uma toalha, chamando-lhe toalha, não há lei
que mo proíba, pois não, pai?
— Que eu saiba, não, minha querida — disse Toby. — Mas estão sempre
a inventar novas leis.
— E segundo aquilo que no outro dia lhe li no jornal, pai, sabe que
o juiz diz que nós, os pobres, devemos sabê-las todas. Ah, ah! Que
disparate! Meu Deus, como eles nos julgam espertos!
— Sim, minha querida — disse Trotty—; e gostariam muito daquele que
realmente as soubesse todas. Esse homem havia de engordar com o
trabalho que arranjasse e seria muito querido por todos os senhores
da região. Era mesmo assim!
— Comeria o seu jantar com apetite, fosse ele quem fosse, se ele
cheirasse assim — disse Meg alegremente. — Despache-se, porque também
tem batata quente e meio quartilho de cerveja recém-tirada, numa
garrafa. Onde é que janta, pai? Na estação ou nos degraus? Querido
pai, como somos importantes. Temos dois lugares à escolha!
— Hoje é nos degraus, querida — disse Trotty. — Nos degraus com
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farão de nós velhos antes que demos por isso. Ele diz que se nós,
gente da nossa condição, esperarmos até termos caminho aberto, o
caminho será bem estreito (será o caminho vulgar), será a campa, pai.
Para um homem mais ousado que Trotty Veck, teria sido necessário
castigar bem a sua ousadia, para negar isto. Trotty ficou quieto.
— E como é duro, pai, envelhecermos e morrermos a pensar que nos
poderíamos ter acarinhado e ajudado um ao outro! Como é difícil, com
vidas como as nossas, amarmo-nos e sofrermos separados, vendo-nos
mutuamente trabalhar, modificar-nos, tornar-nos velhos e grisalhos.
Ainda que conseguisse ultrapassar isto e esquecê-lo (o que nunca
faria), ó meu querido pai, como seria duro ter um coração tão cheio
como o meu está agora e viver para vê-lo ser drenado gota a gota, sem
a compensação de um momento feliz dos da vida de uma mulher, para me
amparar e confortar e fazer-me sentir melhor!
Trotty continuava sentado e em silêncio. Meg enxugou os olhos e
disse em tom mais alegre, ou seja, com um sorriso aqui, e um soluço
ali, e acolá um soluço e um sorriso ao mesmo tempo:
— O Richard diz então, pai, que como o trabalho dele ficou desde
ontem assegurado por algum tempo e visto que eu o amo e há três anos
que não deixo de o amar (oh!, há mais tempo! Se ele soubesse!...),
poderia casar com ele no dia de Ano Novo, o melhor e o mais feliz dos
dias de todo o ano, diz ele, e aquele que traz de certeza boa sorte.
É um prazo curto, não é, pai? Mas eu não tenho fortuna a assegurar,
ou fatos de casamento a fazer, como as grandes senhoras, não é, pai?
Ele disse tanta coisa e disse-as à sua maneira, em tom tão forte e
decidido, mas sempre tão amável e terno, que eu disse que vinha falar
consigo, pai. E como me pagaram esta manhã (sem eu esperar) aquele
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trabalho que eu fiz e como o pai ganhou tão pouco esta semana, e como
eu não podia deixar de desejar que houvesse algo que fizesse deste
dia como que um dia de festa, pai, bem como um dia caro e feliz para
mim, fiz um pequeno festim e comprei-lhe isto para lhe fazer a
surpresa.
— E vê lá como ele a deixa ali a arrefecer no degrau — disse uma
outra voz.
Era a voz do próprio Richard que tinha chegado até junto deles sem
darem por isso e ali se erguia perante pai e filha, olhando para
eles, com um rosto tão brilhante como o ferro em que o seu enérgico
martelo de forja malhava todos os dias. Era um jovem bonito, bem
constituído e vigoroso, de olhos brilhantes como gotas chamejantes
duma fornalha, cabelo negro que se encaracolava disperso sobre a
fronte morena e um sorriso... um sorriso que confirmava o elogio de
Meg acerca do seu estilo de conversa.
— Vêem como ele o deixa arrefecer no degrau? — disse Richard. — A
Meg não sabe do que ele gosta. Não é ela que sabe!
Trotty, todo ele cheio de entusiasmo e dinamismo, estendeu
imediatamente a mão a Richard e ia a dirigir-se-lhe com grande pressa
quando uma porta se abriu inesperadamente e um lacaio quase meteu o
pé no bucho.
— Saiam do caminho, vocês! Têm de estar sempre sentados nos nossos
degraus! Nunca chega a vez dos vizinhos, pois não? Saem do caminho,
ou não saem?
Falando com propriedade, aquela última pergunta era irrelevante,
porque eles já o tinham feito.
— Que é que há, que é que há? — inquiriu o senhor para quem a porta
fora aberta, saindo de casa num passo leve (esse compromisso
esquisito entre o andar e o meio trote), naquele em que um cavalheiro
já no doce outono da vida, usando botas novas, relógio de corrente e
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roupa branca lavada, pode sair de sua casa, não só sem qualquer
quebra da sua dignidade, mas com uma expressão de quem tem
importantes e rendosos negócios noutro lado.
— Que há? Que há?
— Estamos sempre a pedir-te e a rogar-te, pelas tuas pernas
curvadas, que deixes em paz os nossos degraus! — disse o lacaio a
Trotty Veck com grande ênfase. — Porque é que não os deixas em paz?
NÃO CONSEGUES deixá-los em paz?
— Pronto! Já chega! Já chega! — disse o cavalheiro. — Tu aí! Moço! —
apontou com a cabeça para Trotty Veck.
— Vem cá. Que é isso? É o teu jantar?
— Sim, senhor — disse Trotty, deixando-o lá atrás, a um canto.
— Não o deixes ali — exclamou o cavalheiro. — Trá-lo para aqui.
Então, é isto o teu jantar?
— É sim, senhor — repetiu Trotty, olhando, com olhar fixo e boca
aguada, para um último pedaço de bucho, que reservara para uma última
e deliciosa trincadela e que o cavalheiro virava e revirava, agora
com a ponta do garfo.
Dois outros senhores tinham saído com ele. Um era um cavalheiro
desanimado e de meia-idade, de trajo modesto e de cara desconsolada,
que mantinha permanentemente as mãos nos bolsos, das suas estreitas
calças sal e pimenta, bolsos muito largos e dobrados para fora do
fato. Não estava particularmente bem escovado e lavado. O outro era
um cavalheiro bem constituído, insinuante, bem arranjado, de casaco
azul, com botões brilhantes e de gravata branca. Este cavalheiro
tinha a cara muito vermelha, como se uma porção indevida do sangue do
seu corpo tivesse sido espremida para a cabeça, o que talvez
explicasse o facto de ele ter o coração bastante frio.
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Coisa muito imprópria e grosseira para uma pessoa do teu sexo! Mas
deixemos isso. Depois de casada vais ter discussões com o teu marido
e transformar-te-ás numa esposa infeliz. Podes pensar que não, mas
assim vai ser, porque assim to digo. Agora faço-te um aviso justo:
decidi destruir as esposas infelizes. Portanto, que não venhas à
minha presença. Vais ter filhos... rapazes. Esses rapazes crescerão
maus, claro, e andarão à solta pelas ruas, sem meias nem sapatos.
Toma cuidado, minha jovem amiga! Condená-los-ei sumariamente, um a
um, porque estou decidido a destruir rapazes sem sapatos nem meias. O
teu marido morrerá provavelmente jovem e deixar-te-á com um bebé.
Serás expulsa da casa e vaguearás pelas ruas. Não passes junto de
mim, minha querida, porque estou decidido a destruir todas as mães
que vagueiam. Estou decidido a destruir todas as espécies e tipos de
mães jovens. Não penses alegar como desculpa a doença e as crianças.
Comigo não! Porque estou disposto a acabar com todos os doentes e
crianças (espero que conheças o serviço religioso, mas receio bem que
não)! E se tentares, ingrata, desesperada, impiedosa e
fraudulentamente afogar-te, ou enforcar-te não terei de ti qualquer
piedade, porque decidi destruir todos os suicidas! Se há alguma coisa
— disse Alderman com o seu sorriso de auto-satisfação — da qual possa
dizer que estou decidido mais do que a qualquer outra, essa é
destruir o suicídio. Por isso não o experimentes. É assim que se diz
não é? Ah, ah! Agora entendemo-nos.
Toby não sabia se devia estar angustiado ou contente, vendo Meg
ficar mortalmente pálida e largar a mão do namorado.
— Quanto a ti, meu néscio — disse Alderman, virando-se para o jovem
ferreiro ainda com mais jovialidade e lhaneza —, para que é que
pensas que te vais casar? Para que te queres casar, meu palerma? Se
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eu fosse um tipo jovem e forte como tu, tinha vergonha de ser tão
maricas que me fosse coser às saias duma mulher! Ela vai fazer-se uma
velha, antes que tu sejas um homem de meia-idade! E que bonita figura
vais fazer então com uma mulher desmazelada e um rancho de filhos
escanzelados, atrás de ti, por onde quer que vás!
Oh, ele sabia bem como meter a ridículo a gente do povo, aquele
Alderman Cute!
— Pronto! Muda de opinião — disse Alderman — e arrepende-te. Não
faças o disparate de casar no dia de Ano Novo. Antes do próximo dia
de Ano Novo já deves pensar de maneira muito diferente. Um jovem
bonito como tu, com todas as raparigas atrás de ti. Pronto! Vai-te lá
embora!
Eles lá se foram. Não de braço dado, ou de mão na mão, ou trocando
olhares brilhantes, mas ela lacrimosa e ele triste e cabisbaixo. Eram
estes, então, os corações que tinham feito Toby recuperar da sua
fraqueza, ultimamente? Não, não. O Alderman (abençoado seja!) tinha-
-os deitado abaixo.
— Já que aqui estás — disse Alderman a Toby —, levas-me uma carta.
Consegues ser rápido? És velho.
Toby, que tinha estado muito estupidamente a seguir Meg com o olhar,
encontrou maneira de murmurar que era muito rápido e muito forte.
— Que idade tens? — indagou Alderman.
— Tenho quase sessenta, senhor — disse Toby.
— Oh, este homem já ultrapassou de longe a média da idade, sabem —
exclamou o senhor Filer, como se isto fosse de mais para o que a sua
paciência ainda podia suportar.
— Acho que estou a mais, senhor — disse Toby. — Esta manhã bem tive
dúvidas. Valha-me Deus!
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Alderman atalhou, dando-lhe a carta que tinha no bolso. Toby devia
também receber um xelim; mas como o senhor Filer demonstrou
claramente que nesse caso ele roubaria um determinado número de
pessoas em nove pennies e meio cada, recebeu apenas seis pennies e
achou-se assim muito bem pago.
Alderman deu então o braço aos seus amigos e afastou-se leve que nem
uma pena; mas imediatamente voltou atrás, sozinho, como se se tivesse
esquecido de dizer alguma coisa.
— Moço de recados! — disse Alderman.
— Sim, senhor? — respondeu Toby.
— Toma cuidado com a tua filha. É demasiado bonita.
«Até a sua beleza é roubada a alguém, acho eu», pensou Toby, olhando
para os seis pennies que tinha na mão e pensando no bucho. «Ela deve
ter roubado quinhentas senhoras, um sopro de beleza a cada uma, não
me admira. É horrível!»
— Ela é demasiado bonita, meu velho — repetiu Alderman. — O mais
certo é acabar mal, estou mesmo a ver. Toma nota no que eu digo. Olha
por ela! — E dizendo aquilo afastou-se novamente.
— De toda a maneira está mal. Está sempre mal! — disse Trotty
torcendo as mãos. — Nascemos maus. Não há aqui nada a fazer!
Os sinos começaram a badalar sobre ele, quando acabou de proferir
estas palavras. Plenos, fortes e sonoros... mas sem encorajamento.
Nem pitada.
— O som mudou — exclamou o velho, ao ouvi-los. — Não há nele uma
palavra sequer de tudo aquilo que imaginei. E porque é que haveria?
Nada tenho a ver com o Ano Novo, nem com o velho. Quero é morrer!
Mesmo assim os sinos, repicando as suas variações, faziam o próprio
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«Não faz mal», pensou Trotty. «Eu sei o que quero dizer e isso
basta-me.» E, ruminando estas palavras de conformação, continuou a
trotar.
Havia naquele dia uma forte geada. O ar estava revigorante, fresco e
transparente. O Sol de Inverno, ainda que sem força para aquecer,
espreitava radiosamente o gelo, que não conseguia derreter, fazendo-o
resplandecer. Noutra altura Trotty poderia ter extraído do Sol de
Inverno uma lição sobre o homem pobre, mas já ultrapassara essa fase.
Aquele dia ainda era de ano velho. O ano paciente suportara as
censuras e os desmandos dos seus caluniadores e cumprira fielmente a
sua missão. Primavera, Verão, Outono e Inverno. Trabalhara durante
toda a sua vida e pousava agora a cabeça para morrer. Ele próprio já
fora de qualquer esperança, de qualquer impulso forte, de qualquer
felicidade activa, mas ainda activo mensageiro de muitas alegrias
para outros, apelava no seu declínio para que lembrassem os seus dias
de labuta e as suas horas de paciência e para morrer em paz. Trotty
podia ter lido no ano que morria a alegoria do homem pobre, mas já
ultrapassara essa fase.
E seria só ele? Ou teria o mesmo apelo sido feito em vão, durante
setenta anos, aos trabalhadores ingleses?!
As ruas estavam cheias de movimento e as lojas estavam alegremente
decoradas. O novo ano era esperado como um novo herdeiro para o
mundo, com presentes, boas-vindas e alegria. Havia livros e
brinquedos para o Ano Novo, brilhantes adornos para o Ano Novo,
vestidos para o Ano Novo, projectos de sorte para o Ano Novo e novas
invenções para passar o tempo. A sua vida estava parcelada em
almanaques e agendas, já naquele momento se sabia com antecedência
das suas luas, das estrelas e das marés, todo o funcionamento das
estações,dos dias e das noites, estava calculado com a mesma precisão
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para eles cantarem, esse mesmo Fern (agora me lembro dele) levou a
mão ao chapéu e disse: «Peço-lhe humildemente perdão, minha senhora,
mas não serei eu diferente duma mocetona?». Já esperava aquilo,
claro. Quem é que pode esperar outra coisa senão insolência e
ingratidão daquele tipo de gente? Mas isso não vem agora ao caso. Sir
Joseph! Que ele sirva de exemplo!
— Hum! — tossiu Sir Joseph. — Senhor Fish, quer ter a bondade de
tomar nota...
Imediatamente o senhor Fish pegou na caneta e escreveu o que Sir
Joseph ditou.
— Particular. Meu caro senhor. Agradeço-lhe profundamente a sua
gentileza, acerca do assunto dum tal William Fern, do qual, lamento
acrescentar, nada de favorável tenho a dizer. Sempre me considerei
uniformemente como seu pai e amigo, mas retribuiu-me (é um caso
comum, lamento dizê-lo) com ingratidão e uma oposição constante aos
meus planos.É um espírito rebelde e turbulento. O seu carácter não
suportará uma investigação. Nada o convencerá a ser feliz quando
podia sê-lo. Nestas circunstâncias, parece-me, tenho para mim que,
quando ele voltar à sua presença (como me informou que fará amanhã,
durante o seu inquérito e creio que nesse ponto se pode confiar
nele),
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subtraí ao trabalho, por mais duro ou mais mal pago que fosse. E quem
puder negá-lo que ma corte! Mas quando o trabalho já não me sustenta
como a um ser humano, quando a minha condição de vida é tão má que
tenho fome dentro e fora de casa, quando vejo toda uma vida de
trabalho começar assim, prosseguir assim e terminar assim, sem uma
oportunidade ou uma alteração, então digo à gente de bem: «Afastem-se
de mim! Deixem em paz a minha cabana. A minha porta já é
suficientemente escura, sem que vocês a ensombrem mais. Não esperem
ver-me no parque para ajudar à festa quando houver um aniversário ou
um belo discurso, ou sei lá que mais outras representações e jogos,
que vocês fazem sem mim, e que lhes faça muito bom proveito e se
divirtam muito. Não temos nada que ver uns com os outros. Estou muito
melhor sozinho!».
Ao ver que a criança que tinha ao colo abrira os olhos e olhava em
redor espantada, deteve-se para lhe dizer uma ou duas palavras ao
ouvido, numa tagarelice pateta, e para a pôr em pé no chão, ao lado
dele. Então, enrolando e tornando a enrolar lentamente uma das suas
longas tranças em volta do indicador grosseiro, como se fosse um
anel, enquanto ela se pendurava na perna poeirenta dele, disse a
Trotty:
— Acho que não sou um homem mal-humorado por natureza e tenho a
certeza de que facilmente me satisfaço. Não guardo qualquer rancor
contra nenhum deles. Só quero viver como uma criatura de Deus. Não
posso, não vivo e aí está cavado o fosso entre mim e eles, que podem
e vivem. Outros há como eu. E contam-se mais depressa por centenas e
por milhares do que por unidades.
Trotty sabia que neste ponto ele dizia a verdade e abanou a cabeça
para concordar.
— Assim tenho eu uma má reputação — disse Fern
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— Eu nada mais sei que o seu nome — disse ele — mas já lhe abri o
meu coração, porque lhe estou grato e com razão. Aceito o seu
conselho e afasto-me desse tal...
— Magistrado — adiantou Toby.
— Ah! — disse ele. — Se é esse o nome que lhe dão, a esse
magistrado. Amanhã vou ver se tenho mais sorte, por aí próximo de
Londres. Boa noite e feliz ano novo!
— Espere! — disse Toby agarrando-se à mão dele quando ele já soltava
a sua. — Fique! O ano novo não poderá ser feliz para mim se nos
separarmos assim. Nunca o ano novo poderá ser feliz para mim se vir
você e a criança afastarem-se para aí ao deus-dará, sem saberem para
onde e sem refúgio onde se abrigarem. Venham para casa comigo! Vá, eu
levo-a! — declarou Toby pegando na criança. — Tão bonitinha! Era
capaz de transportar vinte vezes o peso dela, sem dar por isso. Diga-
-me se vou depressa de mais para si. Eu sou muito rápido. Sempre fui!
— Ao dizer isto Trotty deu seis dos seus passitos de trote, com as
suas pernitas trementes sob o peso que transportava, enquanto o seu
parceiro exausto dava uma passada.
— Ah, ela é tão leve — disse Trotty, trotando tanto na fala como na
maneira de andar, porque não suportava agradecimentos e temia por
isso calar-se —, tão leve como uma pena. Mais leve que uma pena de
pavão, muito mais leve. Aqui estamos nós e cá vamos! Depois desta
curva à direita, tio Will, depois da bomba e de nos esgueirarmos pelo
corredor, mesmo em frente da hospedaria. Cá estamos e cá vamos nós!
Passe, tio Will, e cuidado com o homem das empadas de rim que está à
esquina! Aqui estamos e aqui vamos nós! Por baixo da cavalariça, tio
Will, e pare na porta preta, que tem escrito na madeira «T. Veck,
moço de recados», aqui estamos e aqui vamos nós, já cá estamos mesmo,
minha querida Meg, aqui tens uma surpresa!
Com estas palavras Trotty, sem fôlego, depôs a criança no meio do
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aqui... não, não é isso, não é isso que eu quero dizer. Eu... que é
que eu ia dizer, Meg, minha querida?
Meg olhou para o seu hóspede, que estava inclinado na cadeira, com o
rosto desviado do dela, e acariciou a cabeça da criança, semi-
-escondida no seu regaço.
— Para dizer a verdade — disse Toby —, para dizer a verdade, não sei
o que é que estou para aqui a divagar, esta noite. O meu juízo está
enovelado, quer parecer-me. Will Fern, venha comigo. Você está
exausto e alquebrado por falta de descanso. Venha comigo.
O homem ainda acariciava os caracóis da criança, ainda estava
inclinado para a cadeira de Meg, ainda tinha a cara voltada. Não
falava, mas nos seus dedos rudes e grosseiros, que se abriam e
fechavam no cabelo louro da criança, havia uma eloquência que dizia
muito.
— Sim, sim — disse Trotty, respondendo inconscientemente àquilo que
via escrito no rosto da filha. — Leva-a contigo, Meg. Mete-a na cama.
Vá! Agora Will, vou mostrar-lhe onde você dorme. Não é lá grande
coisa, é apenas um palheiro, mas ter um palheiro, é o que eu digo
sempre, é uma das grandes conveniências de viver num estábulo; e até
esta cocheira e este estábulo terem melhor inquilino, aqui vivemos
por preço em conta. Lá em cima há muito feno fofo, que pertence a um
vizinho e está muito limpinho. A Meg pode compô-lo. Alegre-se! Não
desista. Sempre um coração novo, para um novo ano!
A mão soltou-se do cabelo da criança e caiu tremente na mão de
Trotty. Trotty, falando então sem parar, conduziu-o tão terna e
facilmente como se ele próprio fosse uma criança.
Regressando antes de Meg, escutou durante um momento à porta do
quartinho dela, o compartimento ao lado. A criança balbuciava uma
simples oração antes de se deitar para dormir e quando se lembrou do
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Toby Veck, Toby Veck, estamos à tua espera, Toby! Vem ver-nos, vem
ver-nos, trá-lo até nós, trá-lo até nós, assombra-o e persegue-o,
assombra-o e persegue-o, interrompe o seu sono interrompe o seu sono!
Toby Veck, Toby Veck, Toby Veck, abre toda a porta, Toby...»,
voltando depois furiosamente à sua impetuosa canção, ressoando dentro
dos próprios tijolos e do gesso das paredes. Toby escutava.
Imaginava, imaginava! Os remorsos que tinha por ter fugido deles
naquela tarde! Não, não. Nada disso. Repetiu uma, duas, uma dúzia de
vezes: «Assombra-o e persegue-o, assombra-o e persegue-o. Trá-lo até
nós, trá-lo até nós!». Ensurdeciam toda a cidade!
— Meg — disse Trotty baixinho, dando pancadinhas na porta dela. —
Ouves alguma coisa?
— Oiço os sinos, pai. Esta noite soam realmente muito alto.
— Ela está a dormir? — disse Toby, desculpando-se por espreitar.
— Tão feliz e tranquilamente! No entanto, ainda não a posso deixar,
pai. Olhe como ela me segura na mão!
— Meg — murmurou Trotty. — Escuta os sinos! Ela escutou, sempre de
cara virada para ele, mas nada nela se alterou. Ela não os entendia.
Trotty retirou-se, retomou o seu lugar junto do lume e mais uma vez
escutou, sozinho. Ali ficou durante algum tempo.
Era impossível suportá-los; a sua energia era terrível.
— Se a porta da torre estiver aberta — disse Toby, pondo
apressadamente de lado o avental, sem nunca pensar no chapéu —, que é
que me impede de ir ao campanário e fazer o gosto? Se estiver
fechada, pronto, chega.
Quando se esgueirou silenciosamente para a rua, ia absolutamente
seguro de que iria encontrá-la fechada e trancada, porque conhecia
bem a porta e raramente a vira aberta, que nem três vezes ao todo,
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Terceiro quarto
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chovendo dos sinos, sem parar. Via-os em volta dele, no chão; por
cima dele, no ar; a fugir dele, trepando pelas cordas; olhando para
ele lá de cima, das maciças vigas cintadas de ferro; espreitando-o
pelas gretas e buracos das paredes; espalhando-se mais e mais em
torno dele, em círculos que se alargavam, tal como a ondulação da
água dando lugar a uma grande pedra que nela caía de repente. Viu-os
de todos os ângulos e formas. Viu-os feios, bonitos, aleijados e de
formas caprichosas. Viu-os novos e velhos, viu-os bons e cruéis, viu-
-os alegres e carrancudos; viu-os dançar e ouviu-os cantar; viu-os
puxarem-se os cabelos, e ouviu-os uivar. Viu o ar cheio deles. Viu-os
irem e virem incessantemente. Viu-os flutuar para baixo, elevarem-se
muito alto, vogarem para longe e empoleirarem-se ali mesmo à mão,
todos incansáveis e violentamente activos. A pedra, o tijolo, a
ardósia e a telha tornaram-se tão transparentes para si como para
eles. Viu-os dentro das casas, de volta das camas dos que dormiam.
Viu-os a sugar pessoas que sonhavam; viu-os bater-lhes com chicotes
de nós; viu-os gritarem-lhes aos ouvidos; viu-os tocarem a mais suave
música sobre as suas almofadas; viu-os acarinharem alguns com cantos
de pássaros e aromas de flores; viu-os fazer horríveis caras no sono
perturbado de outros, em frente de espelhos encantados que traziam na
mão.
Viu estes seres, não só entre os que dormiam, como entre os que
estavam despertos, ocupados com perseguições, irreconciliáveis uns
com os outros e possuindo ou fingindo maneiras de ser completamente
opostas. Viu um afivelando a si numerosas asas para aumentar a sua
velocidade e outro carregando-se de correntes e de pesos para a
diminuir. Viu uns adiantando os ponteiros do relógio e outros
atrasando-os, e outros ainda tentando parar completamente o relógio.
Viu-os representando aqui uma cerimónia de casamento, ali uma de
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funeral; neste quarto uma eleição, naquele um baile; por todo o lado
viu irrequieto e incansável movimento.
Confuso pela multidão de figuras extraordinárias e em movimento, bem
como pelo troar dos sinos, que durante todo este tempo continuavam a
tocar, Trotty agarrou-se a um pilar de madeira como que procurando
apoio, e virava a pálida cara para cá e para lá, num espanto mudo e
aturdido.
Enquanto assim olhava, os sinos pararam. Deu-se uma modificação
instantânea. Toda a multidão esmoreceu! As suas formas desvaneceram-
-se, a velocidade abandonou-os; tentaram voar, mas no momento de
caírem morriam e dissolviam-se no ar. Nenhum novo grupo vinha
substituir aquele. Um deles isolado saltou muito rapidamente da
superfície do sino grande e pousou aos pés dele, mas antes que
tivesse tempo de se virar já ele se sumira. Alguns do último grupo,
que tinham dado cambalhotas na torre, lá permaneceram um pouco mais,
girando e rodopiando; mas a cada volta se tornavam menos nítidos,
menos numerosos, mais débeis, e em breve tiveram o mesmo destino dos
outros. O último de todos era um pequeno corcunda, que se tinha
metido num recanto que ecoava, onde flutuou e girou e rodopiou
durante muito tempo, sozinho; mostrava muita perseverança, até que
por fim ficou reduzido a uma perna e até a um pé apenas, antes de
desaparecer finalmente. Sumiu-se por fim e a torre ficou em silêncio.
Só então Trotty viu em cada sino uma figura barbuda do volume e da
estatura dos sinos. Era incompreensivelmente uma figura e o próprio
sino. Pregado ao chão, ali estava ela, gigantesca, ameaçadora e
observando-o sombriamente.
Figuras misteriosas e terríveis! Apoiadas no nada;
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profundezas, como das ramagens duma velha floresta seca para seu
fantasmagórico uso, mantinham o seu olhar tenebroso e fixo.
Uma corrente de ar (que fria e arrepiante!) atravessou a torre,
gemendo. Quando já desaparecia, o sino grande, ou o gnomo do sino
grande, falou.
— Quem é este visitante? — disse. A voz era baixa e profunda e
Trotty imaginou que ela ressoava também nas outras figuras.
— Pensei que os sinos chamavam pelo meu nome! — disse Trotty,
erguendo as mãos numa atitude de súplica. — Mal sei porque aqui
estou, ou como vim. Há todos estes anos que ouço os sinos. Muitas
vezes eles me encorajaram.
— E tu agradeceste-lhes? — disse o sino.
— Mil vezes! — respondeu Trotty.
- Como?
— Sou um homem pobre — gaguejou Trotty — e só podia agradecer-lhes
com palavras.
— E sempre assim fizeste? — inquiriu o duende do sino. — Nunca nos
feriste com palavras?
Trotty ia a responder «Nunca!», mas parou e ficou perturbado.
— A voz do tempo — disse o fantasma — grita ao homem «Avança!». O
tempo serve para avançar e melhorar; para sua maior utilidade, sua
maior felicidade, sua melhor vida; para o seu progresso em direcção
àquele objectivo ao alcance do seu conhecimento e da sua visão e que
foi ali estabelecido, no período em que o tempo e ele foram criados.
Épocas de trevas, de maldade e de violência vieram e foram, milhões
incontáveis sofreram, viveram e morreram, para lhe apontar o caminho.
Quem procura fazê-lo retroceder ou impedir o seu curso, faz parar uma
poderosa máquina, que destruirá o intrometido; e ele tornar-se-á,
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— Tu tens sido a única pessoa que fizeste disto vida — disse Lilian,
beijando-a ardentemente —; por vezes foste a única coisa que me fez
querer viver mesmo assim, Meg. Tanto, tanto trabalho! Tantas horas,
tantos dias, tantas e tão longas noites de trabalho sem esperança,
sem alegria e sem fim e não para amontoar riquezas, não para viver
bem e alegremente, nem sequer para viver remediadamente, ainda que de
maneira rudimentar, mas para ganhar pão seco. Economizar apenas o
suficiente para nos permitir continuar a mourejar, a necessitar, a
manter viva em nós a consciência do nosso duro destino! Oh, Meg, Meg!
— Ela levantou a voz e cruzou os braços em volta do corpo, enquanto
falava como se sofresse. — Como pode este mundo cruel continuar a
girar e suportar ver tais vidas?!
— Lilly! — disse Meg acarinhando-a e afastando-lhe o cabelo do rosto
molhado. — Oh, Lilly! Tu! Tão bonita e tão jovem!
— Oh, Meg! — interrompeu-a ela, agarrando-lhe nos braços e olhando-a
no rosto, suplicante. — O pior de tudo, o pior de tudo! Que Deus me
envelheça, Meg! Que me faça definhar e enrugar e me liberte dos
terríveis pensamentos que tentam a minha juventude!
Trotty virou-se para o seu guia, mas o espírito da criança tinha
voado. Desaparecera.
Também ele não ficara no mesmo sítio. Sir Joseph Bowley, amigo e pai
dos pobres, dava uma grande festa em Bowley Hall, em honra do
aniversário natalício de Lady Bowley. E como Lady Bowley nascera no
dia de Ano Novo (o que os jornais locais consideravam uma designação
especial de primeiro lugar, dada pela Providência à predestinada
figura de Lady Bowley, na criação), era no dia de Ano Novo que esta
festa se realizava.
A mansão Bowley estava cheia de convidados. Lá estava o senhor de
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naquela direcção.
— Meu caro Alderman Cute — disse o senhor Fish. — Chegue-se um pouco
mais para aqui. Aconteceu uma coisa horrível. Recebi neste momento o
recado. Acho que é melhor não se dar conhecimento a Sir Joseph antes
de o dia findar. O senhor conhece Sir Joseph e dar-me-á a sua
opinião. Foi um acontecimento terrível e deplorável!
— Fish! — retorquiu Alderman. — Fish, meu bom amigo, que há? Espero
que não seja nada de revolucionário! Nenhuma tentativa de interferir
com os magistrados!
— Deedles, o banqueiro — sussurrou o secretário. — Deedles Brothers
(que era para cá ter estado hoje), o mais importante nos escritórios
da companhia Goldsmith...
— Não me diga que foi suspenso! — exclamou Alderman. — Não pode ser!
— Suicidou-se.
— Meu Deus!
— Pôs uma pistola de dois canos à boca, no seu próprio escritório —
disse o senhor Fish —, e estourou com os miolos. Sem motivo. Altas
razões!
— Razões? — exclamou Alderman. — Um homem de nobre fortuna. Um dos
homens mais respeitáveis. Suicidar-se, senhor Fish! Por sua própria
mão!
— Esta manhã mesmo — replicou o senhor Fish.
— Oh, o cérebro, o cérebro! — exclamou o piedoso Alderman erguendo
as mãos. — Ah, os nervos, os nervos! Os mistérios desta máquina
chamada Homem! Tão pouco basta para a desengonçar. Que pobres seres
nós somos! Talvez por um jantar, senhor Fish. Talvez pela conduta de
seu filho, que segundo ouvi dizer era muito descontrolada e que tinha
o hábito de fazer contas em seu nome sem a mínima autoridade! Um
homem muito respeitável. Um dos homens mais respeitáveis que alguma
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este lugar seja melhor para quadros do que para se viver. Bom, ali
vivi! Quão duramente, quão amarga e duramente ali vivi, nem posso
dizer. Qualquer dia do ano, e todos os dias, podem julgar por vós
próprios.
Falou como falara na noite em que Trotty o encontrara na rua. A sua
voz era mais profunda e mais rouca e havia nele de vez em quando uma
certa tremura, mas nunca a elevou com paixão e raramente ela soou
mais acima do nível duro e firme dos próprios factos domésticos que
ele relatava.
— É mais duro do que vocês pensam, meus senhores, crescer
decentemente, com um mínimo de decência, num tal lugar. Ter crescido
como um homem, e não como um selvagem, já diz algo de mim... do que
eu era, então. Por aquele que eu sou agora, nada pode ser dito nem
feito. Já ultrapassei essa fase.
— Estou contente por este homem ter entrado — observou Sir Joseph,
olhando em volta, com serenidade. — Não o interrompam. Parece que foi
o destino. Ele é um exemplo, um exemplo vivo. Tenho esperança, confio
e espero confiantemente que ele não se perca entre os meus amigos
aqui presentes.
— Continuei a arrastar-me — disse Fern após um momento de silêncio —
, de qualquer maneira. Nem eu nem qualquer homem sabe como, mas tão
pesadamente que não podia mostrar boa cara ou fingir aquilo que não
era. Olhem, cavalheiros, vocês cavalheiros, que vão ao Parlamento,
quando vêem um homem com expressão de descontentamento no rosto dizem
uns para os outros: «É suspeito. Tenho as minhas dúvidas sobre o Will
Fern», dizem, «vigiem esse indivíduo!». Não digo, meus senhores, que
não seja muito natural, mas assim é e, desse momento em diante, tudo
o que Will Fern fizer, ou deixar de fazer, mas tudo, será contra ele.
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Ó juventude e beleza, felizes como vós deveis ser, olhai para isto.
Ó juventude e beleza, abençoada e abençoando tudo o que está ao teu
alcance e cumprindo os fins do teu benévolo Criador, olha para isto!
Ela viu a figura que entrava, gritou o seu nome, exclamou:
— Lilian!
Ela precipitou-se e caiu-lhe de joelhos aos pés, agarrando-se-lhe ao
vestido.
— Upa, Lilian! De pé! Minha queridinha!
— Nunca mais, Meg, nunca mais! Aqui, aqui! Próximo de ti, abraçando-
-te, sentindo o teu hálito no meu rosto!
— Querida Lilian! Adorada Lilian! Filha do meu coração, deita a tua
cabeça no meu peito. Não há amor de mãe mais terno do que este.
— Nunca mais, Meg. Nunca mais! Quando te vi pela primeira vez, Meg,
ajoelhaste diante de mim. Agora ajoelho-me eu, antes que morra.
Deixa-me aqui estar!
— Voltaste, meu tesouro! Viveremos juntas, trabalharemos juntas,
juntas teremos esperança e juntas morreremos!
— Ah, beija-me, Meg, envolve-me com os teus braços, aperta-me ao teu
peito, olha-me com doçura, mas não me ergas. Deixa-me estar. Deixa-me
ver pela última vez o teu rosto, de joelhos!
Ó juventude e beleza, felizes como deveis ser, olhai para isto! Ó
juventude e beleza, cumprindo os fins designados pelo vosso benévolo
Criador, olhai para isto!
— Perdoa-me, Meg! Querida, querida! Perdoa-me! Sei que me perdoas,
vejo-o, mas diz-mo, Meg!
Ela disse-o com os lábios na face de Lilian e com os braços em torno
do que ela sabia agora ser um coração despedaçado.
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— Que a Sua benção desça sobre ti, minha querida. Beija-me uma vez
mais! Ele deixou que ela se sentasse a Seus pés e lhos secasse com o
seu cabelo. Ó Meg, que piedade e que compaixão!
Mal ela morreu, o espírito da criança regressou inocente e radiante,
tocou o velho com a mão e acenou-lhe que se afastasse.
Quarto quarto
Uma nova lembrança das fantasmagóricas figuras dos sinos; uma ténue
impressão do som dos sinos; uma confusa consciência de ter visto a
multidão de fantasmas reproduzidos e reproduzidos até a reminiscência
deles se perder na confusão do seu número; um conhecimento apressado,
que ele não sabia como lhe tinha chegado, de que mais anos tinham
passado; e Trotty, com o espírito da criança acompanhando-o,
continuava a observar o mundo dos mortais.
Gente gorda, corada, bem instalada. Só havia dois, mas eram corados
por dez. Estavam sentados em frente dum lume brilhante, com uma
mesinha baixa entre eles; e a menos que a fragrância do chá quente e
dos bolinhos se misturasse por mais tempo naquela salinha do que em
muitas outras, a mesinha tinha sido utilizada muito recentemente.
Todas as chávenas e pires, porém, estavam limpas e no seu lugar na
cantoneira; e o garfo de grelhados, de cobre, estava no seu recanto
habitual, com os seus quatro dentes ociosos bem abertos como se
quisesse parecer-se com uma luva; não havia outros indícios visíveis
da refeição que tinha terminado, a não ser no ronronar e no lamber
dos bigodes do gato e o brilho nas faces afáveis, para não dizer
gordas, dos seus donos.
Este confortável casal (casado, evidentemente) dividira entre si
muito justamente o lume e estavam sentados olhando as brilhantes
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da sua menina estiolada, que para ele fora uma tristeza até o facto
de não constar no livro razão da senhora Chickenstalker.
— Que tempo faz esta noite, Anne? — inquiriu o antigo lacaio de Sir
Joseph Bowley, estendendo as pernas em frente do lume, esfregando-as
tanto quanto os seus braços curtos permitiam, com um ar que dizia:
«Se está mau, aqui estou; e se está bom, não quero sair».
— Faz vento e está a cair granizo — respondeu-lhe a mulher — e
ameaça nevar. Está escuro e muito frio.
— Estou contente por pensar que temos bolinhos — disse o ex-lacaio,
no tom de alguém que tivesse posto a consciência em descanso: — É
mesmo o género de noite talhada para os bolinhos, bem como para bolos
finos e para bolinhos de chá.
O ex-lacaio mencionava sucessivamente cada tipo de comestível, como
se enumerasse contemplativamente as suas boas acções. Depois disso
voltou a esfregar as pernas gordas, como anteriormente fizera,
puxando-as pelos joelhos para que o fogo desse nas partes ainda não
assadas, rindo-se como se alguém lhe estivesse a fazer cócegas.
— Estás contente, meu querido Tugby — observou a mulher.
A firma era Tugby, ex-Chickenstalker.
— Não — disse Tugby. — Não, nem por isso. Estou um bocado excitado.
Os bolinhos caíram-me mesmo bem!
Ao dizer isto riu-se até ficar negro e custou-lhe tanto a mudar de
cor que as suas pernas gordas fizeram as mais estranhas evoluções no
ar. Só adquiriram um certo decoro quando a senhora Tugby lhe deu
violenta palmada nas costas e o abanou como se ele fosse uma grande
garrafa.
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— Lá em cima a coisa vai mal, senhora Tugby — disse o cavalheiro. —
O homem não resiste.
— Nem o sótão das traseiras resiste! — gritou Tugby, aparecendo na
loja para se juntar à reunião.
— O sótão das traseiras, senhor Tugby — disse o cavalheiro —, vai
desabar em breve, e muito em breve ficará abaixo da cave.
Olhando ora para Tugby, ora para a mulher, fez ressoar com os nós
dos dedos as profundezas do barril, procurando o fundo à cerveja e,
tendo-o encontrado, tocou uma melodia na parte vazia.
— O sótão das traseiras, senhor Tugby — disse o cavalheiro, enquanto
aquele permanecia numa consternação silenciosa, durante uns momentos
—, está a ir-se.
— Então — disse Tugby, virando-se para a mulher —, ele tem de ir
antes que se acabe, já sabes.
— Acho que não conseguem movê-lo — disse o cavalheiro, abanando a
cabeça. — Eu próprio não tomaria a responsabilidade de dizer que ele
podia ser mudado. Faziam melhor deixá-lo onde está. Pode viver mais
tempo.
— É o único assunto sobre o qual discutimos, ele e eu; e veja o que
deu! — disse Tugby, fazendo baixar sobre o balcão com estrondo a
balança da manteiga, sob o peso do seu pulso. — No fim de contas, ele
vai morrer aqui. Vai morrer aqui! Vai morrer em nossa casa!
— E onde é que ele havia de morrer? — gritou-lhe a mulher.
— No asilo — respondeu-lhe ele. — Para que é que servem os asilos?
— Para aquele, não! — disse a senhora Tugby com grande energia. —
Para aquele não! Nem foi para isso que eu casei contigo. Não penses
nisso, Tugby. Não tolero. Não permito. Antes queria separar-me de ti
e nunca mais te ver. Quando o meu nome de viúva estava naquela porta,
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como esteve durante muitos anos, esta casa era conhecida por toda a
gente como a da senhora Chickenstalker e só pelo seu crédito honesto
e pelas suas boas referências. Quando o meu nome de viúva estava
sobre aquela porta, Tugby, eu conheci-o como um jovem bem parecido,
vigoroso, másculo e independente, e conheci-a a ela, a rapariga mais
doce que jamais conheci. Conheci o pai dela (pobre velhote, caiu do
campanário durante o sono e morreu) como o homem mais simples, mais
trabalhador, de coração mais puro que jamais existiu. E quando eu os
expulsar da minha casa e do meu lar, que os anjos me expulsem do Céu.
Que assim faça e é bem feito!
A cara dela, que antes de se darem estas modificações era balofa e
com covinhas, parecia superá-la, ao dizer estas palavras; e quando
ela secou os olhos e abanou a cabeça e o lenço para Tugby, com uma
expressão de determinação a que era evidente não se poder facilmente
resistir, Trotty disse: «Abençoada seja! Abençoada seja!».
Escutou depois, com o coração ofegante, o que se seguiria. Sabendo
apenas naquela altura que falavam de Meg.
Se Tugby tivesse sido mais nobre na sala, talvez tivesse ajustado
aquelas contas, sem ficar um pouco deprimido na loja, onde estava
agora olhando fixamente para a sua mulher, sem tentar sequer dar
resposta; levando porém em segredo (ou por acesso de abstracção ou
por medida de precaução), nos bolsos, o dinheiro da caixa
registadora, enquanto a fitava. O cavalheiro que estava em cima da
pipa de cerveja, que parecia ser médico autorizado, com tabuleta,
estava evidentemente habituado a pequenas diferenças de opinião entre
marido e mulher, para fazer naquele momento qualquer observação.
Permanecia sentado, assobiando calmamente e deixando cair no chão
pequenas gotas de cerveja, até se restabelecer a completa calma. Foi
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companhias, todas as tais coisas que seriam melhores para ele do que
um lar. Perdeu o seu bom aspecto, a sua personalidade, a sua saúde,
as suas forças, os seus amigos, o seu trabalho, tudo!
— Não perdeu tudo, senhora Tugby — replicou o cavalheiro —, porque
ganhou uma esposa, e quero saber como é que ele a ganhou.
—Já lá vou, dentro de momentos. Isto continuou durante anos e anos.
Ele cada vez mais se afundava. Ela, pobrezinha, sofria miséria que
chegava para lhe tirar a vida. Por fim, estava tão abatido e era tão
repudiado que já ninguém lhe dava trabalho nem lhe ligava; fosse onde
fosse, todas as portas se lhe fechavam. Pedindo aqui e ali e de porta
em porta e indo pela centésima vez ter com um senhor que já muitas
vezes lhe dera oportunidades (ele foi até ao fim sempre um bom
trabalhador), esse senhor, que conhecia a sua história, disse-lhe:
«Acho que és incorrigível, só há uma pessoa no mundo que pode
emendar-te. Até ela o tentar, não me peças que confie mais em ti».
Disse-lhe uma coisa assim deste género, para sua cólera e vexame.
— Ah! — disse o cavalheiro. — E então?
— Então, ele foi ter com ela, ajoelhou-se, disse-lhe que era assim e
que sempre fora assim e implorou-lhe que o salvasse.
— E ela?... Não se aflija, senhora Tugby.
— Ela veio ter comigo naquela noite, pedir-me para viver aqui. «O
que ele um dia foi para mim», disse ela, «está enterrado numa
sepultura, lado a lado com o que eu fui para ele. Mas pensei nisto e
tomei a decisão. Na esperança de o salvar, pelo amor daquela
jovenzinha feliz (lembra-se dela?) que se ia casar no dia de Ano Novo
e por amor de Richard.» E disse que ele tinha vindo ter com ela, da
parte de Lilian e que Lilian confiava nele e ela não podia esquecer
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dia para não ser interpelada pela sua única amiga, porque algum
auxílio que recebia dela ocasionara recentes discussões entre a boa
mulher e o marido e para ela era mais um desgosto ser a causa diária
de contendas e discussões, numa casa onde tanto devia.
Mesmo assim amava a criança. Amava-a cada vez mais. Mas operou-se
uma modificação na forma do seu amor. Uma noite.
Cantava levemente para a adormecer e passeava de cá para lá,
embalando-a, quando a porta se abriu suavemente e um homem espreitou
para dentro.
— Pela última vez — disse ele.
— William Fern!
— Pela última vez!
Pôs-se à escuta como um homem que é perseguido e falou em surdina.
— Margaret, a minha corrida está quase a chegar ao fim. Não podia
acabá-la sem uma palavra de despedida para ti. Sem uma palavra de
gratidão.
— Que é que fizeste? — perguntou, olhando-o aterrorizada.
Ele olhou-a, mas não lhe deu resposta.
Depois de um curto silêncio, fez um gesto com a mão, como se
quisesse afastar a pergunta dela, como se a varresse; e disse:
— Já lá vai muito tempo, Margaret, mas essa noite está tão fresca na
minha memória como sempre esteve. Mal sabíamos nós, então — completou
o que dizia olhando em volta —, que nos viríamos a encontrar assim. É
o teu filho, Margaret? Deixa-me pegar-lhe. Deixa-me pegar no teu
filho.
Pôs o chapéu na mão e pegou-lhe. E tremia ao olhá-lo da cabeça aos
pés.
— É uma menina?
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— É.
Ele pôs a mão em frente da carinha do bebé.
— Estás a ver como estou fraco, Margaret, preciso até de arranjar
coragem para olhar para ela! Deixa-a estar por um momento. Não lhe
faço mal. Já lá vai muito tempo, mas... Como se chama?
— Margaret! — respondeu ela rapidamente.
— Ainda bem — disse ele. — Ainda bem!
Parecia respirar mais à vontade; e depois de se calar por um
momento, retirou a mão e olhou para a cara da criança, mas voltou a
cobri-la imediatamente.
— Margaret! — disse ele, devolvendo-lhe a criança. — É a Lilian.
— A Lilian!
— Tive o mesmo rosto nos meus braços quando a mãe de Lilian morreu e
a deixou!
— Quando a mãe de Lilian morreu e a deixou! — repetiu ela
asperamente.
— Falas tão asperamente! Porque é que me fixas assim? Margaret!
Ela afundou-se na cadeira e apertou a criança ao peito, chorando
sobre ela. Às vezes aliviava o abraço, para olhar ansiosamente a sua
carita, apertando-a depois contra o peito, novamente. Nessas alturas,
quando a fitava, havia algo de terrível e cruel que começava a
místurar-se ao seu amor. Foi então que o seu velho pai desanimou.
«Segue-a!», ouviu-se na casa. «Aprende com a pessoa a quem mais
amas!»
— Margaret — disse Fern, inclinando-se sobre ela e beijando-a na
testa —, agradeço-te pela última vez. Boa noite. Adeus! Põe a tua mão
na minha e diz-me que a partir deste momento me esquecerás e tenta
pensar que eu acabei aqui.
— Que é que fizeste? — perguntou ela novamente.
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varridos como folhas. Vejo isso, na corrente! Sei que devemos confiar
e ter esperança e não duvidarmos de nós, nem duvidarmos da bondade
dos outros. Aprendi isso com o ser que mais amo neste mundo. Aperto-a
de novo nos meus braços. Ó piedosos e bons espíritos, com ela aperto
ao peito a vossa lição! Ó espíritos piedosos e bons, eu vos agradeço!
Podia ter dito mais, mas os sinos, os velhos sinos amigos, começaram
a repicar pelo Ano Novo, tão forte, tão feliz e tão alegremente que
pulou sobre os seus pés e quebrou o feitiço.
— E faça o que fizer, pai — disse Meg —, não volte a comer bucho,
sem perguntar a um doutor qualquer se está de acordo com a forma como
se tem portado. Valha-me Deus!
Ela estava a coser na mesinha pequena, junto do lume. Vestia o seu
modesto vestido de casamento, com fitas, tão silenciosamente feliz,
tão florescente e tão jovem, tão cheia de belas promessas, que ele
soltou um grito enorme, como se houvesse em sua casa um anjo; e
correu a estreitá-la nos braços.
Mas enredou os pés no jornal que tinha caído ao chão e alguém veio a
correr interpor-se entre os dois.
— Não — gritou a voz desse mesmo alguém, uma voz generosa e jovial.
— Nem o senhor. Nem o senhor. O primeiro beijo da Meg no ano novo é
meu. Meu! Tenho estado lá fora à espera deste momento, para ouvir os
sinos e vir reclamá-lo. Meg, minha valiosa recompensa, feliz ano
novo! Uma vida de felizes anos, minha querida esposa!
E Richard sufocou-a com beijos.
Nunca viram em toda a vossa vida coisa parecida com Trotty, depois
de ter presenciado isto. Não importa onde viveram ou o que viram, não
viram foi nada que se assemelhasse a ele! Sentou-se na cadeira
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FIM