Gazeta Literaria 1761 62 Reflexos e Somb

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GAZETA LITERARIA (1761-62) —reflexos e sombras de um jornal das «Luzes» por Joaquim Fernandes* INTRODUCGAO. A vida efémera da «Gazeta Literdria» (1761-1762) foi o ponto de Partida para um conjunto de reflexdes: a leitura das suas paginas sus- citam duvidas, pistas e informagoes plurais, numa soma de ambiguidades Proprias de qualquer época de grandes sobressaltos culturais e politicos. As observagGes que aqui procuramos recensear visaram esclarecer, se Possivel, trés grandes dreas de questdes: a posigao de «intelligentzia» portuguesa perante a torrente de propostas de inovagao cientifica de meados do século XVIII; 0 quadro de adesio de potenciais leitores ¢ respectiva representatividade em termos sociais coevos; aespecificidade da publicagao periédica perante o programa de politica cultural do poder vigente — 0 despotismo josefino-pombalino — procurando aferir afinidades da mensagem publicada com as estratégicas desses mesmos «tutores de boa vontade», no dizer de Kant. Para 0 primeiro grupo de questdes comegémos por investigar as personalidades do tinico redactor da «Gazeta», Francisco Bernardo de Limae do seu patrono ou protector, Jodo de Almada e Mello; agrupémos * Licenciado em Histéria; jornalista. 206 REVISTA DA FACULDADE DE LL Areas de conhecimento, ou disciplinas, abordadas na publicagao ¢ res- pectivas origens geograficas. Na segunda ordem de preocupagdes buscdmos 0 esboco de um universo sociolégico dos Jeitores enquanto assinantes do periddico, na tipificago do chamado «Antigo Regime», classificando-os por critérios de natureza socio-profissional contidos na listagem que a publicaco, ela mesma, inseriu em 1761. A terceira inter- rogac4o procuramos responder instituindo, como referentes, os pontos capitais da legislacdo pombalina no tocante a reforma universitéria, elegendo também como contraponto a obra de Luis Antonio Verney, «O verdadeiro método de estudar». O presente texto constitui uma stimula de um trabalho mais vasto, feito no Ambito curricular da Facul- dade de Letras do Porto. O século XVIII torna-se numa vitrina prolifera de gazetas, jornais ¢ livros que amplificaram, em novos territ6rios, as sementes de trans- formagdes bem conhecidas. Daj, as reunides cientificas onde seanalisam todas estas produgdes periddicas'. Nao € dificil conjecturar acerca da importancia das gazetas literdrias e cientificas na formagao daquilo que hoje se chama «opiniao publica». ‘A «Gazeta Literdria» surge na pratica jornalistica portuguesacomo algo diverso dos seus antecessores. O projecto corresponde, com mais de meio séculodeatraso, busca de um meio de comunicagocosmopolita que «fosse verdadeiramente europeu»,comoassinala Paul Hazard. Este fluxo heterodoxo vai incorporar um crescente dinamismo da leitura, da troca epistolar e da comunicagao académica entre sociedades. eruditas europeias. Os dirigentes politicos nao perdem tempo: «Os escritores contratados tinham como tarefa dar aos principes da Alemanha as primicias dos produtos de Paris», enquanto «os jornais eram invadi- dos pela apreciagéo dos livros de além mar («Biblioteca Inglesa», «Biblioteca Germanica», «Jornal Estrangeiro», etc.), e outros ainda, no titulo, invocam o seu cardcter europeu: «A Europacrudita», «Biblioteca Universale o gran giornale d’Europa», «Correo general historico, lite- rario y economico de la Europa». Cf. os estudos de Roger Chartier e Daniel Roche, p. ex., sobre esta probl matica apresentados sob os auspicios da SIEDE — Sociedade Internacional de Estu- dos sobre o século XVIII — desde 1963. No presente caso seguimos o inventirio do periddico portuense feito por Giuseppe Carlo Rossi, «La Gazeta Literaria del Padre Francisco Bernardo de Lima (1761-1762)», Népoles, Instituto Universitario Orientale, 196. Hazard, Paul, «O pensamento europeu no século XVIII», Lisboa, Editorial Presenga, 1983, pag. 403. GAZETA LITERARIA 207 No repert6rio destes jornais as tradugdes aportam as novidades, outros modos de ser, de pensar, Mas também uma grande soma de equi- vocos, como sublinha o mesmo autor: «Tradugées onde se inscreve, em contrasensos, em enormidades, a ignorancia dos intrépidos que nao conheciam nem a lingua estrangeira nem a sua...«. Todavia, € por esses novos acessos, ainda que incipientes e de alcance reduzido em termos sociais, que «por intermédio da Franca, os italianos, os espanhéis, os portugueses e, pelo menos, até meio do século, os alemaes, conheceram a literatura inglesan’. Desta acco dos publicistas, sob orientagdo dos poderes consti- tufdos, ou interpostos patronos, ou ainda de discretos grupos de pressao — para usar uma terminologia actual — resulta um evidente «feedback» da informagao emitida regularmente pelos varios quadrantes europeus. Neste sumério retrato da imprensa das «Luzes», importa reter que uma «opinido publica» era ja tributria das gazetas ¢ periddicos de matizes varios, como veremos no caso da «Gazeta Literéria». Certamente nor- teada por intengdes polemistas, com a sua dose de diletantismo e acade- mismo de «capela», as intervengdes dos seus leitores correspondem, em paralelo, a relativamente estreita faixa social que acedia aeste género de comunicagao. 1. A publicagio 1.1. O Redactor e 0 Patrono A producio integral da «Gazeta Literdria» ficou a dever-se a um Ginico redactor: Francisco Bernardo de Lima, cénego secular de S. Joao Evangelista, nascido na cidade do Porto em 1727 e falecido em 1764, segundo a «Biblioteca Cirdrgica», ou em 1770 conforme a «Descripgao do Porto», de Agostinho Rebelo da Costa. De acordo com Inocéncio da Silva, «a maneira por que sao redigidas (as «Gazetas») da claro teste- munho dauniversalidade de conhecimentos ¢ erudicao do autor. Contém, afora outros artigos, muitos juizos criticos e bem ajustados de varias obras portuguesas saidas por aquele tempo»*, * Ibidem, pag. 403. * Ibidem, pag. 412 * Silva, Inocéncio Francisco da, «Dicionario Bibliog Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, Tomo II, pag. 352-353. ico Portugués», 208 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Algo mais nos diz Manuel de Sé Matos, «familiar do Santo Oficio, cirurgiao-mor de Infantaria, partidista da Camara e satide publica», do Porto, quando biografa Bernardo de Lima e o define como «sabio que, professando muito mais elevado habit do que 0 de médico, anatomico ou cirtrgico, honrou positivamente estas artes de uma maneira pouco exemplar»®. ‘Temos, pois, um membro do clero que recebia rasgados encémios pela sua estatura de sabio ao apoiar a emancipacao dos cirurgides da sua patria. Exclusiva dedicagao as ciéncias do corpo? Parece que nao. Na opiniao de José Manuel Tengarrinha, o redactor da «G. L.» (passaremos a designar o periddico pela abreviatura) destaca-se por ser considerado «o primeiro folhetinista e primeiro critico teatral portugués»’. Nao sera motivo de espanto algum a iniciativa de Bernardo de Lima, numa tarefa que & sociedade laica portuguesa seria mais dificil de empreender. Isto porque, conforme observa Norman Hampson, «o clero, sobretudo na Europa catélica, desempenha um papel intelectual quase to importanbte como o da nobreza ja que a sua receptividade as novas ideias é maior do que se pensa»’. Associado a figura do redactor aparece-nos com evidente destaque grafico no «rosto» do primeiro numero da «G.L.» — na proporgéio do «corpo» do titulo principal! —o nome de Jodo de Almada e Mello. Esta personagem, ao tempo, acumulava diversos cargos militares de respon- sabilidade: «sargento-mor de batalha, governador-general da provincia e da cidade do Porto, do seu partido e de toda a marinha da Beira Baixa, brigadeiro doexército de Sua Magestade». Sabe-se que faleceu no Porto em 16 de Outubro de 1786 e por sua iniciativa se deve a introdugao do teatro lirico no burgo portuense, no velho edificio do Corpo de Guarda, inaugurado a 15 de Maio de 1762 com a 6pera «Il Transcurrato», atri- buida a Pergholese. Posta nestes termos, classicos e grandiloquentes, a gratidéo da sua meméria, entende-se que este mecenas militar, cativado pelas «Ciéncias e¢ Belas Artes», fosse o protector escolhido para o langamento e continuidade da nova publicagdo. Num relance pela «Dedicatéria» de * Mattos, Manuel de Sa, «Bibliotheca Elementar Chirurgico-Anatémica», Porto, oficina de Anténio Alvarez Ribeiro, 1788, pag, 145-147. ? In D-H. P., dir. Joel Serrio, Porto, Livraria Figueirinhas, 1985, tomo III, pag. 248. * Hampson, Norman, «Histoire de la pensée européene. Tomo 4, Le siécle des Lumieres», Paris, Editions du Seuil, 1972, pig. 113 GAZETA LITERARIA 209 Bernardo de Lima a Joao de Almada a Mello obtém-se a justificagaio: «A nobreza de elevada ascendéncia de V. Exceléncia, o luzimento dos seus brilhantes titulos, a gloriosa eleigdo que dos seus talentos fez um Rei iluminado para o éxito de empresas criticas e dificcis, condecoram € nao menos honram esta Obra, conseguindo ela aos olhos populares uma protecedo famosa e segura» (sublinhados nossos)’. A cortesia do redactor€é total, alias, quando se subscreve, na mesma «Dedicatéria», «o mais obsequioso e reverente criado, Francisco Bernardo de Lima». 1.2. Modelo grafico e programa editorial-cultural Para Silva Pereira, «a «G.L.» foi 0 periddico que verdadeira- mente iniciou 0 jornalismo literdrio em Portugal», apés as tentativas de «O Anénimo» e o «Oculto Instrufdo», tendo recebido os elogios de Camilo Castelo Branco". Noplano grafico, os espécimes constituem um produto melhorado em relagao aos seus predecessores, seguindo o natural refinamento da técnica: melhor correc¢ao de provas, caracteres mais nitidos, formatos mais c6modos; entre o formato mintisculo dos libelos ¢ 0 in-folio que nao se consegue manuscar o in-octavo e in-quarto sao o auténtico livro moderno», tais as virtudes assinaladas por Pierre Chaunu, o qual indica a fase de 1720-40 como tipica deste progresso". A «Gazeta Literdria» ou noticia exacta dos principais escritos modernos, conforme a andlise que deles fazem os melhores criticos diaristas da Europa» assume jé essa actualizacao gréfica correspondente 8 afirmagao do livro estandardizado. Os dois volumes da publicagio, relativos a 1761 ¢ 1762 foram editados no formato in-quarto. O «rosto» destas edigdes mensais é simplificado: omite-se a referéncia ao protector Joao de Almada e Mello — embora fazendo-se dele mengao na «Dedicatéria» de Janeiro de 1762 — mantendo-se, como subtitulo, no genérico, a frase «ou noticia exacta dos principais escritos modernos». O periddico dirigido por Bernardo de Lima comegou por ser impresso, em 1761, no Porto, na oficina de Francisco Mendes Lima e, * «Gazeta Literaria», Janeiro 1762 "" «Verbo» — Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Lisboa, 1969, vol. IX, pag. 272-273. "” Chaunu, Pierre, «A Civilizagao da Europa das Luzes», Lisboa, Editorial Estampa, 1985, vol. I, pag. 231. 4 210 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS no ano seguinte, passou para o prelo de Lisboa, na oficina de Miguel Rodrigues («impressor do Eminentissimo Senhor Cardeal Patriarca»). Esta opcao tanto poderd significar dificuldades de edi¢3o no burgo portuense, ou procura de aprovacio ao mais alto nivel religioso. Ou ambas as coisas. Ocerto é que, com obstéculos ou sem eles, a distribuicao da gazeta melhora bastante, no tocante a postos de venda, de um ano para o outro. O que nos parece sintomatico do ponto de vista de aceitagao social na venda directa. Em 1761, Bernardo de Lima dispde de trés postos distribuidores, um em cada das cidades de Porto, Lisboa e Coimbra. No ano seguinte, 0 periddico ja pode ser encontrado em quatro postos em Lisboa, trés no Porto — dois na rua das Flores e um na rua dos Mer- cadores — e um em Coimbra. Na auséncia de uma «lei de Imprensa», equivalente a dos nossos dias, a autorizagao «administrativa» do contetido da publicagao era regulada pela concessio das habituais e conhecidas «licengas». Trés, no total: do Santo Oficio, do Ordindrio e do Pago, esta tiltima curiosamente concedidacom o parecer do abade Diogo Barbosa Machado, da Academia Real, que observa (4/6/1761): «o Autor desta obra é merecedor de aplauso universal pela defesa que faz dos nossos autores, acusados pela petulante mordacidade de alguns modernos Aristarcos». Aduz o mesmo. clérigo tratar-se do «primeiro que neste género de estudos saiu em Portugal» sendo o autor «igualmente perito nas Iinguas mais polidas da Europa». ‘Aparentemente, pois, o projecto do periddico granjeava, a partida, as gracas das élites governativas quer na vertente civil quer na religiosa. Reconhece J. M. Tengarrinha que «durante quase todo 0 século XVIII ainfluéncia da imprensa é ainda muito restricta «tendo-se tornado. um «mero instrumento décil ao servico dos poderes constitufdos ou, pelo menos, nao os hostilizando», resultando numa escassa influéncia ou capacidade de interven¢ao, ao invés do que ocorria em paises como a Inglaterra, Paises Baixos ou Franga. E alids, o perfodo em andlise — a segunda metade do século XVII — que é definido como o «mais pobre» no tocante a imprensa periddica, mormente na administrag’io de D. José (1750-1777) durante a qual apenas se criaram 10 ou J1 jornais (entre os 37 fundados neste século) que pouca influéncia tiveram»"?. A nao hostilidade inicial, e mesmo colaboragao com o Poder tem- poral ¢ espiritual dominante, através de interposto protector, — espécie D. H. P., tomo III, artigo «lmprensa», passim. GAZETA LITERARIA 2 de caugdio— sintetiza, desde logo, um programa — por necessidade ou convicgao — enunciado por Bernardo de Lima nas paginas da «G. L». Sao objectivos que transparecem, sem rodeios, no «Discurso preliminar» do n.° 1, de Julho de 1761, contando para tal com «a racional tolerancia dos soberanos e governos sabios a respeito de todo o género de producées literdrias, as que ndo tendem adestruir os dogmas e maximas estabelecidas da Religiao e do Estado (sublinhado nosso) para 0 que requer igualmente «o patrocinio e o favor dos grandes reis para os homens sébios» num momento em que «aparecem novos descobrimentos nas ciéncias e artes de pura utilidade», ¢ nas «de gosto pretende-se emular as inimitaveis belezas da antiga Grécia e Roma». Com estes pressupostos editoriais, Bernardo de Lima apostava fazer «utilmente estudiosa aquela classe de povo que geralmente nos paises menos civilizados se condenam a uma total ignordncia por falta de livros adaptados & sua compreensao», insistindo ainda no «conhecimento perfeito das linguas em que esto escritas as diferentes obras». Evidentemente que 0 estimulo e razio de ser deste projecto sio oriundos de toda uma agitacao que abala a Europa, via academias, socie- ais ou menos discretas ou indiscretas — a alegada filiagdo mag6nica de Pombal é assunto que tem apaixonado «fiéis» e «des- crentes»!* — enquanto Portugal jazia adormecido, de costas voltadas para 0 movimento geral do pensamento. Como avaliar 0 peso especifico do perfil editorial exposto por Bernardo de Lima e os consequentes contetidos preferenciais? Quando © redactor fala em «gosto pelas artes e ciéncias que neste século se tem felizmente propagado por todas as nag6es civilizadas (que) produz tal variedade de novas ideias (...) qual o nivel de identificagao com o cendrio global dos luminares das «Luzes», quer na sua apropriagdo politico/institucional, quer na configuracaio dos «philosophes» enciclo- pedistas? Em que corrente(s) navega Bernardo de Lima e quais os vectores que orientam, na esséncia, 0 seu discurso editorial ao longo de um ano de edigdes? Optdmos por uma tentativa de elucidagdo do que chamamos «valores ou unidades de sentido» contidos no j4 citado «Discurso Oliveira Marques, A. H. de, «Ensaios de Magonariay, Lisboa, Quetzal . 1988, pag. 18-19. Este autor e Joo J. Alves Dias sustentam, por outro lado, 4 filiagdo de Pombal na Magonaria, tese contestada, entre outros, por José A. Ferrer Benimeli, da Universidade de Saragoga (cf. Pombal revisitado, Lisboa, Editorial Estampa, 1948, vol. I, pag. 61-95). REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS preliminar do periddico. A metodologia ensaiada, com todos os riscos e limites de uma tentativa deste tipo, consistiu na observagio e andlise de 228 vocdbulos que pudessem materializar pistas de estrita defini¢ao, i.e., conceitos operatérios que orientam uma visdo do mundo. Trata-se daquilo a que Lucien Febvre designou por «utensilagem mental» («Le probleme de I incroyance...»), nogdes e representagdes comuns, modelos educativos e os comportamentos geralmente designados pelaexpressao «géneros de vida». De acordo com o mesmo autor, a andlise das uten- silagens mentais» pressupde uma exploracao das linguagens e, em primeiro lugar, vocabuldrion™ Nessa tentativa de descodificagdo, ou «grelha» dos «valores ou unidades de sentido», agrupamos os 228 vocdbulos referidos em sete grandes grupos, procurando afinidades e complementaridades, quer semAnticas quer ideoldgicas. Composto esse glossario referencial distri- buimo-lo pelas seguintes «unidades de sentido»: estético-filosof literdrio-ético: politico-social; moral-social; epistemolégico; cientifico- artistico. Observando o grafico | reparar-se-d no equilibrio percentual (com 51 vocdbulos) dos grupos literdrios-ético —nogoes de «repiiblica das Letras», «homens sébios», «bibliotecas» etc. —e estético-filosdfico nogdes de «bom gosto», «juizo criticor, «razio sdlida», etc. Ao invés, o menos conotado é 0 moral-social onde as nogoes de «civilizar>, «liberdade», Ibidem, Junho, 1762, pag. 148. ” Ibidem, Junho, 1762, pag. 159. ™ Ibidem, REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS ao Ordindrio diocesano e sem compromisso de voto solene». Nas suas fileiras incorporavam-se, geralmente, elementos oriundos da classe média que «tentam fazer uma ponte entre as altas especulagdes da teologia mistica e a ascética da burguesia». O mesmo investigador define-os como «o principal concorrente dos Jesuitas na educagao da juventude», conciliando 0 conservadorismo das ordens religiosas com as novas correntes do pensamento: cartesianismo na filosofia, classicismo na arte, jansenismo na religiao, criticismo em quase tudo»*!. Recuando um pouco no tempo e ao espago francés, recordamos que 0 magistério de Malebranche orientou decisivamente 0 comportamento cultural dos oratorianos. P. Chaunu classifica-os como uma espécie de «direita cartesiana», (a «esquerda» seria espinosista) cuja expressao religiosa, o jansenismo, concretizaria «o mais valido do pensamento catélico do século XVII», centrado na Revelagdo, apoiado sobretudo em Santo Agostinho. O produto final seria uma sintese de cosmologia e teologia «unidos por princfpios e pelo método geométrico que instrufa sem discutir». Por seu turno, Rupert Hall lembra na sua obra «A revolugao na Ci€ncia (1500-1750)» 0 papel destes neo-agostinianos teocéntricos na aplicagao dos principios matematicos as formulacées geométricas de Newton, gracas ao qual se dissolveram as resisténcias do cartesianismo francés face ao autor dos «Principia»™. Assim, nao € dificil estabelecer uma evidente sintonia ideolégica, um atridngulo» perfeito, dir-se-ia, entre 0 espirito concorrencial orato- riano, as orientagdes de Verney — cujo «Método», no dizer de Silva Dias, «arruinou 0 dispositivo inaciano» — e a abertura de Bernardo de Lima e da sua gazeta aos ventos inovadores. No entanto, como destaca aquele autor, «a posig’o dos Congregados interessa mais pelamentalidade que revelam do que propriamente pelas doutrinas que ensinaram», tudo isso «sem perderem de vista aesséncia do aristotelismoe os imperativos da ortodoxia religiosa®. O redactor da «G. L.» privilegia, de facto, como guias quase absolutos, os mestres do Oratério, no que toca 4 confrontagao comentada de maior expresso nas paginas do periédico. Nelas se alude a nomes como Manuel Alvares, com a sua «Histéria da cri do Mundo» em que Moisés e 08 fildsofos sao referéncias equivalentes e na qual o autor Dias, J. Silva, op. cit., pag. 137 es Hall, Rupert, «A revolugdo na ciéne 1988, pag. 478. * Dias, J. Silva, op. cit. pag. 155. (1500-1750)», Lisboa, Edigdes 70, GAZETA LITERARIA pretende erigir «um sistema alternativo ao de Newton, fundado no movimento rapido de rotacdo que o Criador deu aquela massa informe e rude que criou no principio do tempo»; o ja citado Anténio Alvares, autor da «Ortografia da Lingua Latina», cujas cartas ao editor da gazeta despertaram o sentido de independéncia de Bernardo de Lima; finalmente, porventura o mais cotado oratoriano da época, Teodoro de Almeida. ‘A participagao dos oratorianos no contetido da «G. L.» no se reduz a recensdo das obras de que sao autores. De igual modo, hd obras estrangeiras que chegam as mios do redactor por envio directo dos padres congregados, ou recebem ainda o seu elogioso «imprimatur». E 0 caso da «Colecedo académica composta de memérias...» Cujo 4° volume, relativo a 1755, resenha um alargado leque de actas cientificas traduzidas em francés «por uma sociedade de homens de letras»: Lima escreve, a propésito, que «a obra nos foi mandada pelo padre Manuel Alvares, da Congregagao do Oratério, do Porto». O mesmo ocorre com a apresentacio de uma obra do cirurgiao Fran- cisco José Brandao sobre a circulagdo do sangue, destinada a «prin- cipiantes» e que recebe os elogios do padre Prepésito, oratoriano portuense, «cujo voto, decisivo em matérias de literatura, deu a esta Instrucdo...», assinala o redactor™, De um modo geral, os mestres do Oratério sdo ecléticos: por exemplo, Joio Baptista nao pertence ainda a escola newtoniana mas, para Silva Dias, foi «o primeiro portugués a ligar conscientemente a fisica 4 matemAtica», ao aproximar-se de Leibniz e valorizando a expe- riéncia e a observacao. Pedro Correia Gargao, a quem Pombal olhava como «parcial dos padres congregados», observou que «fizeram amanhecerestes grandes homens em Portugal a primeira luz da Filosofia e nos ensinaram os nomes de Halley, Boyle, Locke, Cartésio’’. Todavia, acrescentao referido arcade, para «muitos ignorantes e cegos de paixdes esta filosofia (oratoriana) era herética e nela se ensinaram cousas contra a nossa Santa Fé Catélica Romana»™. M 4G. Le», Junho, 1762, pag. 72 'S Tbidem, Abril, 1762, pag. 42 ¢ seg. % Tbidem, Maio, 1762, pag. 20. Dias, J. Silva, op. cit., pag. 151. Entre as obras que pertenceram & Con- gregagio do Oratério descritas no catilogo existente na Biblioteca da Ajuda, refere © autor as seguintes: «De l'éducation des enfants», 1721, de Locke; «Traité de Morale», 1697, de Malebranche; «Essai de Physique, 1730, de Muschembroeck; «De Mundi Sistemate», 1731, de Newton, (notas N, pag. 272, op cit.) “ thidem, cit. por J, Silva Dias, pag. 156, nota 3 224 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Vale a pena recordar que 0 esfor¢o dos oratorianos, em prol da actualizacao cientifica, extravasa as fronteiras do pais e acolhe-se a sombra das prestigiadas «Philosophical Transactions». Rémulo de Carvalho dedicou-se ao exame da colaboragao portuguesa no orgao da «Royal Society» e aporta dados curiosos. Assim, desde a data da funda¢do daquela sociedade, e até aos finais do século XVIII, contam- ~se 18 nomes portugueses nos seus registos, metade dos quais se referem apersonalidades que desempenharam funges diplométicas em Inglaterra. Deste modo, ao lado de Sebastiao José de Carvalhoe Melo, vemos Jacob de Castro Sarmento, introdutor das concepgdes de Newton entre nds, José Correia da Serra, Joao Chevalier e Teodoro de Almeida, estes dois tiltimos do Oratorio. Conclusio O fim da gazeta portuense, pode dizer-se, foi dramatico. Inespera- damente, Bernardode Lima reage com veeménciaadetractores anénimos, acobertode uma «sociedade composta de pessoas de diversas profissdes, cujo chefe parece andar procurando meios de se desacreditar a si proprio com caltinias e censuras». Reunido em assembleia, diz-nos 0 redactor, esse grupo acusara a «G. L.» de «erros capitais». Na sua breve resposta a essa sociedade, Bernardo de Lima refuta as alegagdes que apontavam o facto dea gazeta «nao referir todas as obras que se instruem», do essencial da publicagaio consistir nas tradugdes dos didrios estrangeiros e que «quase tudo 0 que dizfamos» estava em dois ou trés jornais. E, para provar 0 contrario, 0 redactor enuncia todos os titulos de orgdios congéneres que alimentavam asua recensao periddica (cf. quadro 2). Por ele registamos a profusao de fontes literdrias e cientificas e a reiterada acuidade do cénego «azul» na eleicdo das novidades. Selecgao que, como vimos, teve os seus limites 6bvios. Mas nao se pode dizer que, 4 sua maneira e no conforto da sua erudigao, o redactor nao se esforgasse por dar alguma «luz» aos seus compatriotas. Quando os membros da dita sociedade criticam Bernardo de Lima pelo facto deste publicar cartas de leitores de que duvidam a existéncia, 0 redactor exalta-se ¢ contesta que «os diaristas da Europa inserem nos seus didrios as cartas que se Ihes escrevem sobre assuntos literérios. Que lei hd que nos proiba o usarmos do mesmo privilégio?»”, “ Ibidem, pag. 172-173. |AZETA LITERARIA 225 A identificagao dos detractores resta por fazer. Nao faltardio candi- datos, desde a Arcadia Lusitana aos Anénimos Ilustrados, dos Esquecidos ‘aos Ocultos, entre tantas outras academias que proliferaram em Portugal desde 0 inicio do século XVIII. Contudo, parece nao haver dtividas que, num tempo de contengao/explosao, a «G. L.» foi alvo de pressdes com- binadas, numa conjuntura hostil, desvanecidos os apoios que inicialmente invocara ao abrigo das «luzes» portuguesas, a cujo programa faltou — nas palavras de A. Coimbra Martins — a marca da tolerncia®. Retemos, para concluir, 0 desabafo do publicistae critico evange- lista, crivado pelas acusagdes que reputava de injustas: «em lugar de fazer do templo das Letras 0 da maledicénciae da inveja, deviam louvar- -nos 0 termos executado o que prometemos». “ D. HL P., tomo IV, pag. 87-105. Towavnd VaNVTI vissnud voins Od ~ VHNVdsa VISsou viogns WOUVVNIG VANVIOH VHNYWSTV voyut VONVad VaaLVIONT “sony “4905 "wouonsy SHOT samen “D sosytid OLNAWIDAHNOD Jd SvVaAYy GAZETA LITERARIA » FONTES BIBLIOGRAFICAS DA «GAZETA LITERARIA> 1 — Revista do Més Revista Critica 3 — Revista Imparcial 4 — Memérias Figis dos Livros Novos — Registo Anual 6 — Didrio de Verdun 7 —Mereiirio Galante 8 — Ano Literirio 9 — Cartas Hebdomandrias de Betim 10 — Disrio dos Doutos 1 — Memérias de Trevoux 12 — Dito do Comércio 13 — Disrio Econémico 14 — Disrio de Vandermond 15 — Historia Litera de tia 16 — Ensaio Critco da Literatura Bstangeira 17 — Médico ou Biemérides da Medicina 18 10 Estrangeiro de Arnaud 19 — Ditirio lopédico de Copenhaga 20 — Dirio Dinamarqueés de Busching 21 — Magavine Sueco de Klein 22. — Meretirio Literdrio da Dinamarca 23 — Ditirio Estrangeiro de Berna 24 — Biblioteca Filosoiea de Windhern 25 — Diirio dos Doutos de Hamburgo 26 — Cartas sobre os Escritos Modernos 27 — Anais Tipogrificos 28 — Biblioteca Germanica 29 — Observador Literiio 30. — Magavine de Hamburgo 31 — Extractos das Obras Modernas 32 — Journal des Savants 33 — Actas literdrias de Leipzig M— Diario da Soc. Real das Ciéneias de Goettingen QUADRO 2 228 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS VALORES/UNIDADES DE SENTIDO PREAMBULO DA GAZETA LITERARIA ESTETICO/FILOSOFICO. 22.4% POLITICO/SOCIAL 11.1% TECNICO/LITERARIO 11.4% LITERARIO/ETICO 2.4% MORAL/SOCIAL 44% CIENTIFICO/ARTISTICO 11.0% EPISTEMOLOGICO. 4% TOTAL DE VOCABULOS ANALISADOS — 228 GRAFICO 1 VALORES/UNIDADES DE SENTIDO PREAMBULO DA GAZETA LITERARIA sténopyradeI00 Pa reungpcon worngpa, comeepasnsnan owongyniad caress * 1 GAZETA LITERARIA ASSINANTES «CLASSES» SOC LETRADOS. 18.3% NOBREZA 19.3% BURGUESUA 42,1% CLERO % TOTAL: 197 GRAFICO 2 230 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS AREAS DE CONHECIMENTO REC 0 CRITICA 20 15 10 : o HIST RELL ASTR CIEN. LITE, POLL. MEDL GUER DIRE. EDuc. FILO. GEOG, TEMAS Séries A TOTAL: 84 OBRAS CITADAS GRAFICO 3 AREAS DE CONHECIMENTO RECENSAO CRITICA GAZETA LITERARIA 234 AREAS DE. CONHECIMENTO REGISTOS / NOTICIAS 60 50 40 30 20 10 0 GEOG. LITE, CIEN. HIST. POLL ASTR. DIREC, FILO, EDUC. TEMAS Séries A TOTAL DE INFORMAGOES: 104 GRAFICO 4 AREAS DE CONHECIMENTO REGISTOS / NOTICIAS

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