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A VIDA DAS CRIANCAS DE ELITE DURANTE O IMPERIO Ana Maria Mauad Imagine a cena: jovem professora alema ao entrar na classe encontra as meninas na maior bagunga e falagdo. Na confusdo de sua pouca experiéncia recorre ao método Bormann, de disciplina alema, ordenando-as a levantar e a sentar repetidamente, até o nlimero de cinco vezes. Pensando estar aplicando um castigo que em sua terra seria no minimo vergonhoso, a jovem professora sé consegue exaltar o Gnimo das alunas que, ao tomarem o castigo por uma boa brincadeira, “pulavam perpendicularmente [...] divertindo-se regiamente”». Desconcertada, a professora conclui: “as criangas brasileiras, em absoluto, nao devem ser educadas por alemies; & trabalho perdido, pois enxerto de planta estrangeira que se faz na juventude daqui nfo pegaré”2 Quem deseteve tal experiéncia é Ina von Binzer, professora de alemio em um dos tantos colégios particulares para meninas, existentes na Corte imperial, nos idos anos de 18824, Tha € também uma entre tantos viajantes que chegaram ao Brasil depois de 1808, com a abertura dos portos promovida por Dom Jogo VI, ¢ que relataram suas experiéneias e vivéneias, em crénicas, correspondéncias, didrios, relatbrios ete. Na maioria dessas narrativas, o que predomina é o tom de desconforto e inadequagao. Reclamam dos mosquitos, do calor, da falta de cuidado com a cidade, dos costumes desordenados e das criangas. Estas verdadeiras selvagens, enfant terribles, para um outro viajante, desta vez um inglés: “uma crianga brasileira & pior que mosquito hostil [...] criangas no sentido inglés no existem no Brasil” Toda essa avaliagdo negativa esté relacionada, em boa parte, a incompreensdo dos estrangeitos em relagao aos habitos tropicais, uma adaptagao dos cédigos de comportamento portugueses 4 rotina da sociedade colonial ¢ a forte influéncia da cultura negra. Para os viajantes estrangeiros, a vida doméstica no Brasil oitocentista era um verdadeiro caos. Antes de ser professora de alemiio, Ina von Binzer também teve oportunidade de dar aulas de piano na fazenda Sao Francisco, no interior da provincia fluminense. Como o piano era presenga obrigatéria nas casas de fazenda, Ina possuia dois, um de cauda, localizado na sala de visitas, no qual as criangas nao tocavam, por pertencer a parte nobre da casa; ¢ outro, um piano de armirio situado na chamada sala de trabalho. Esta, por sua ver, localizada no centro da casa, pertencia ao territério da vida cotidiana e ao espago da convivéncia. A sala de trabalho se interligavam, como descreve a professora, diversos cOmodos: “uma despensa, o banheiro, o dormitério das criangas, os da *inquisi¢Z0’, um vestidrio e uma sala de costura. Por ai pode se calcular o barulho que se ouve neste agradavel recinto,”5 Portanto, se em condigdes normais a sala de trabalho jé seria um local bastante agitado, em um dia da primavera de 1881, esta se tornou um completo pandeminio, A descoberta de camundongos na despensa da casa ctiou um verdadeiro alvorogo. Para esvazii-la, Dona Alfonsina, a dona da casa, recorreu a duas escravas e um escravo, empilhando o seu contetido na sala de estudos, erigindo ao redor de Ina e sua pupila, uma barricada de caixotes ¢ sacos. Para completar 0 cendrio caético de gritarias e notas descompassadas, descreve a pobre alema: ‘uma mutta, & gual Dona Gabriela ensna a ler, dvido barsicada que se empihave no canto onde estuda, ostou-se de repent ats de nbs soletrando © seu monstono bs, bi, be, A ui i Era demas! Levanteime farina [..]€ acabeia aula no sai Pelo qual foi advertida, afinal de contas, nao havia motivo para aborrecimentos, corria tudo normalmente. [Na lente do fetdgrafo otocentsao infanteentre ero e ts anos) ea erianga na puercia(ente tts © 14 anos). B dentro desta normalidade cotidiana que as criangas brasileiras da elite oitocentista viviam. Como eram educadas, quais 0s principios, sentimentos ¢ atitudes que os adultos, no Brasil imperial, possufam em relagdo a seus filhos? Por outro lado, como a experiéneia da juventude foi vivenciada e registrada por estes mesmos filhos? E nos vestigios deixados por estes personagens, pais, filhos, avés, tios, padrinhos, preceptoras e professores que encontramos elementos para recompor 0 quebra-cabeca do passado. O OLHAR ADULTO Diferentes discursos produzidos pelo universo adulto enquadraram a crianga ¢ 0 adolescente, determinando os espagos que eles poderiam frequentar ¢ estabelecendo os prineipios ¢ conceitos norteadores do seu crescimento © educagao. Paralelamente, era a rotina do mundo adulto que ordenava 0 cotidiano infantil e juvenil, por meio de um conjunto de procedimentos e priticas aceitos como socialmente vilidos. © século x1x ratifica a descoberta humanista da especificidade da infincia e da adolescéncia como idades da vida’. Os termos crianga, adolescente « menino, ja aparecem em dicionarios da década de 1830, Menina surge primeiro como tratamento carinhoso ¢, sé mais tarde, também como designativo de “creanga ou pessoa do sexo feminino que esti no periodo da meninice”’, Crianga, neste momento, é a cria da mulher, da mesma forma que os animais e plantas também possuem as suas criangas. Tal significado provém da associagdo da crianga ao ato de criagdo, onde criar significa amamentar, ou, como as plantas no amamentam, alimentar com sua propria seiva. Somente com a utilizagdo generalizada do termo pelo senso comum, ja nas primeiras décadas do século x1x, que os diciondrios assumiram o uso reservado da palavra “crianga” para a espécie humana. ‘Ao contrario do que muitos pensam, o termo adolescente ja existia, no entanto, seu uso no era comum no século XIX. A adolescéncia demarcava-se pelo periodo entre 14 e 25 anos, tendo como sindnimos mais utilizados mocidade ou juventude, Os atributos do adolescente exam o crescimento ¢ a conquista da maturidade. Uma adolescéntula, feminino de adolescente, era também uma rapariga em flor. Muito menos clara era a definigao de infincia, por envolver uma distingdo entre capacidade fisica e intelectual. Para a mentalidade oitocentista, a inffincia era a primeira idade da vida e delimitava-se pela auséncia de fala ou pela fala imperfeita, envolvendo o periodo que vai do nascimento aos trés anos. Era seguida pela puericia, fase da vida que ia dos trés ou quatro anos de idade até os dez ou 12 anos. No entanto, tanto infaneia quanto puericia estavam relacionadas estritamente aos atributos fisicos, fala, dentigdo, caracteres secundérios femininos e masculinos, tamanho, entre outros, Por outro lado, 0 periodo de desenvolvimento intelectual da crianga era denominado meninice, cujo significado relacionava-se is ages proprias do menino, ou ainda, & falta de juizo numa pessoa adulta. E neste jogo, de termos significados, que se entrevé um conjunto de principios e preceitos que nortearam as representagdes simbélicas e os cuidados emrelagio ds criangas e aos adolescentes na sociedade oitocentista MONUMENTOS INFANTIS Una primeira referéneia para quem se debruga com um olbar curioso para o século x1X, sio as fotografias. Mas as fotografias nio so janelas que se abrem para 0 passado, sio monumentos, vestigios de uma vontade de ver perenizada, na superficie sensivel do papel, uma determinada imagem de si proprio e dos seus, A escolha da pose, da indumentiria, do olhar, dos objetos e acompanhamentos compunham a mise-en-seéne do retrato itocentista, da qual nem as crianeas estavam livres. Fram enfeitadas e engalanadas, para fazerem boa figura, e, além disso, aprisionadas em cadeitas ou nos bracos da mie ou da avé. Por cerca de no minimo um minuto, o tempo necessirio pata a fixagdo da luz na superficie da chapa de vidro, nao podiam fazer sequet um movimento, caso contrério, a foto sairia tremida e todo 0 trabalho teria sido em vio. Um verdadeiro suplicio para as criangas e os fotégrafos. Desta forma, os meninos ¢ as meninas eram clientes atendidos sob condigio, como bem adverte o amincio do fot6grafo publicado no Jornal do Comércio de 1855: “Tira-se retratos todos os dias, das nove horas da manha as trés horas da tarde — se forem criancas de dois a seis anos 86 até 0 meio-dia”. Para criangas irrequietas, quanto mais luz, mais répido o trabalho era feito com grandes chances de éxito. Os retratos geralmente etam tirados em dois tamanhos: um menor ~ 0 carte-de-visite — © outro um pouco maior — 0 cabinet size. Ambos serviam para serem trocados, como forma de estima e lembranga, entre os membros ou amigos de uma familia. Depois eram acondicionados em dlbuns enfeitados que ocupavam as mesas das salas de visitas tanto das casas de fazendas, quanto dos sobrados avarandados das cidades Como objetos de consumo e admiragdo, a fotografia informa-nos bastante sobre os signos que forneciam especificidade as diferentes idades da vida: da inffincia adolescéncia, Apesar da mise-en-scéne limitar 0 movimento e impor uma disciplina de muda observagdo, tudo aquilo que compde o quadro fotogrifico ¢ de uma eloquéncia impar. Sobre o que a fotografia “fala”? Sobre os trajes, os penteados, as poses, os objetos e paisagens relacionados a uma imagem adequada de crianga e adolescente, Somente com a fotografia portatil e instantinea, na virada do século, se poderd flagrar o desalinho dos trajes e penteados da rotina doméstica. O que a fotografia mostra & o enquadramento do olhar adulto para o objeto do olhar: a crianga e o adolescente. ‘Num dlbum de familia, a presenga de bebés, meninos, meninas, mogas e rapazes ocupam 0 mesmo espaco reservado aos homens e mulheres individualmente, Na maior parte das vezes eram retratados sozinhos com roupas de sair — saia de babado, meia botinha e lagarote para as meninas e calgas curtas, meia e jaquetinha para os meninos -, bem penteados e sentadinhos em cadeiras ou apoiados em algum aparador, no era raro uma foto tremida, e mesmo assim, guardada. Quando o tamanho da foto permitia, o grupo aumentava; se as fotos fossem de férias, o fundo artificial variava entre os temas maritimos ou campestres. Neste tipo de foto, o traje das mocas era claro e alegre, geralmente com plumas nos chapéus, variando a silhueta conforme a década — cintura marcada ¢ saia larga para os anos de 1860 € corpete definido ¢ saia mais reta para os anos de 1880. 14 os rapazes mantinham a sisudez da monotonia da moda oitocentista masculina; os trajes claros de tecidos mais leves s6 foram permitidos, aos mais mogos, bem no final do XIX. ‘A familia imperial foi uma das mais fotografadas da época, devido ao grande interesse do imperador pela fotografia, sendo ele mesmo um fotégrafo amador. Além do gosto pessoal, Dom Pedro Il incentivava a pratica da fotografia, concedendo aos fot6grafos mais destacados da Corte o titulo de fot6grafo da casa imperial, e concedendo-lhes 0 direito de ter os servigos contratados pela familia. Um destes fotdgrafos, Hervert Klumb, além de retratar 0 crescimento das princesas, foi professor de fotografia da princesa Isabel adolescente. Para a familia imperial, a fotografia também atuava como um lugar de meméria, constituindo as melhores imagens das duas geragdes que por ela foram perenizadas. Dentre elas, a foto de Klumb, onde a princesa Maria Teresa Cristina posa devidamente acomodada, e por detras dela, no fundo da foto, irrompem duas cabegas das curiosas princesas, dando um toque de irreveréncia A foto, A fotografia dos filhos da princesa Isabel brineando com um cavalinho nos jardins do palacio imperial ou da familia reunida no patio perto das 4rvores com os netos de Dom Pedro abragados pelo pai. Séo posadas com alguma ceriménia, mas revelama presenga das criangas nas vivéncias familiares. ATRIBUTOS DA INFANCIA E ADOLESCENCIA Um breve folhear das revistas ilustradas e periédicos didrios do periodo, ja nos permite ter uma ideia dos signos que forneciam especificidade As criangas e adolescentes. No entanto, como a maior parte das publicagSes ilustradas importavam modelos ¢ figurinos da Franga, ha que se fazer a devida adaptagdo entre 0 proposto ¢ 0 vidvel. Por exemplo, em um dos nimeros da revista O Novo Correio das Modas, de 1854, 0 figurino dedicado & moda de inverno mostrava um ringue de patinagao no gelo e todas as criangas trajando capas e cachecdis, além dos necessérios patins de gelo, modelo completamente inadequado ao clima do Brasil. ‘A Franga era efetivamente um modelo a ser seguido ou mesmo adaptado. As fotografias mostram que os modelinhos das meninas e meninos de elite seguiam a risca o figurino francés. O que variava era o tipo de tecido empregado: morim, algodio, morim superior, cambraia, chita, cretone, lézinha, seda, mermé e cetim. Os mais caros custavam em média mil € quinhentos réis (18500) o metto, um prego bastante razodvel, considerando-se que pata comprar uma lata de biscoitos eram necessirios oitocentos réis ($800). Em 1829, a relagdo de roupas da princesa imperial Dona Januéria, filha de Dom Pedro I, contava com 306 pecas indispensdveis ao guarda-roupa de uma menina nobre de sete anos de idade. A etiqueta orientava para a rigida combinago do traje com o evento e o lugar. Por exemplo, os vestidos enfeitados variavam de acordo com a natureza do enfeite, podendo ser ‘bordado a ouro ou de seda branco matizado” ¢ os pares de calgas que acompanhavam os vestidos poderiam “ser ricas com rendas ou de cassa menos rica”; e mais uma série de componentes que incluiam saias com jalecos de modelos variados, coletes, corpetes, xales, chapéus variados, inclusive de sol, capotes ¢ sapatos francesa ou de couro (cerca de vinte pares). ‘Além dos artefatos de toalete, que, estes sim destacavam-se por uma simplicidade infantil: escovas de dentes, pente de alisar, pente fino e escova de cabega, um de cada um!”, Desde 0 inicio do século, os viajantes destacavam a atividade da costura como sendo propria das escravas domésticas: “as senhoras dio tarefas de costura as mulatas, pois quase todos os vestidos das criangas, do dono e da dona da casa eram cosidos em casa”, Nas fazendas de café do Vale do Paraiba, o trabalho de costura era dividido entre a dona da casa e alguma ajudante, ficando ao encargo da primeira a compra de tecidos com os mascates que visitavam as fazendas, como anota em seu didrio dedicado ao ano de 1886, a viscondessa do Arcozelo: “comprei 21 metros de chita; 16 metros de reiscado, 13 metros de casemira, trés de morim, dois de chita, [...] Mandei chamar a comadre Chiquinha para ajudar as custuras dos meninos” No entanto, nas lojas da Corte era facil encomendar uma variedade de roupas e emxovais a pregos médicos. O Armarinho Leal anuncia enxoval para noivas e batizados, mas era no Vestidos e Capas, loja com filiais na rua Larga de S. Joaquim e na praca da Constituicdo, que a grande liquidagdo era anunciada: “vestidinhos bordados desde a idade de um a 12 anos por 58, 10S, 15$ e 208 e enxovais para batizados completos por 10$ ¢ 158000”. J4 no inverno, o medo do ar frio na cabega € nos pezinhos das criangas, inspiravam os anunciantes: “grande sortimento de capotinhos de lé para crianga — 1$500; 28; 2$500; 3$ © 4§ — toucas de Ia ou sapatinhos de la para criangas por $500, 1$ ¢ 18500” eram ammeiados por uma loja na rua Gongalves Dias no 4012. Além de vestidos e capotinhos era possivel encontrarem-se sapatarias especializadas em calgados para meninos, onde também se achava inclufdo 0 piblico feminino infantil existia uma roupa voltada para o adolescente, mas com 12 anos os meninos comegavam a largar as calgolas ¢ as meninas encompridavam os vestidos, assumindo gradualmente a maneira de se vestir dos adultos. Colletes Pompadour anunciavam: “cinturas preguigosas — colletes higyénicos para senhoras embaragadas. Colletinhos para menina cedo, deveriam se adaptar aos suplicios da boa figura. ‘Aos poucos também os brinquedos feitos fora de casa passam a se tornar objeto dos desejos infantis. Em carta a seu filho, escrita no exilio, Dom Pedro I envia “huns poucos bonitos, que estimarei te agradem”. Com seis anos, entdo, Nho-nho, como D. Pedro II era carinhosamente chamado pelo pai, deve ter se deliciado com o conjunto de brinquedos recebidos, dentre 8 quais: “trés balloens, uma caixa de soldados, uma espingarda, um talabarte, uma espada, uma lanterna migica, uma pistolla, uma carroga, uma corda para saltar © um trem de cozinha”!4, Inspirados nos models vindos da Franga.as meninas da familia imperiahisavam vestdosrcamente enfetados Dois anos mais tarde, Dom Pedro largaria os jogos infantis entregando-se totalmente as atividades do espirito; com oito anos jé era um homenzinho, Ao agradecer os presentes recebidos pela madrasta em 4 de julho de 1833, Dom Pedro revelaria: ‘nada me pode ser realmente mais agradivel que aquilo que relacions com estudo,principalmente com desenho © geogratin; outros assuntes podem me verti um momento mas nunca tem para mim oineresse que encontro em um eartio-bristl com um bom ip! Mas Dom Pedro era um caso, definitivamente, & parte, Suas filhas, criadas numa disciplina militar, nio abriram mio tio cedo de seus regalos infantis. As princesas, com nove ¢ dez anos, de Petrépolis, mandavam recados para sua mie: “Mame faca o favor de me trazer quatro bonecas pequeninas de porcelana [...] Mamie faga o favor de comprar as bonecas nuas para eu as vestir ao meu gosto [...] Mamie me traga papeldo para fazer uma casa de bonecas”~. Desde 1845, a Corte j4 contava com 12 casas de brinquedos, localizadas nas ruas centrais da cidade, sendo a mais famosa a chamada Ao Paraiso das Criangas, cujo anincio publicado na se¢io de notabilidades do Almanaque Laemmert, evidenciava que a crianga ainda estava surgindo como consumidor efetivo, pois entre bringuedos, carrinhos para eriangas velocipedes, vendia-se também objetos de fantasia, perfumaria finas e, surpreendentemente, charutos e fumos de todas as qualidades. Portanto, j4 era possivel no comércio da Corte comprar presentes de qualidade para criangas de diferentes idades: ‘ senhor Caras dew a Aracy [sete unos], um vestido de merind branco ¢ a Benjamim [18 anos), duas gravatas de seda branca. Li estivemos vendo andar © ‘rem que 0 senhor Carlos mandou ve para as eriangas [entre ume ts anos) Havia tambi especialidade: anincios de esta licos especializados em moléstias infantis, um deles inclusive concedia destaque Moléstas de creangas ¢ estomago — Dr, Moncorvo Figueiredo — Professor de elnca de ereangas da polctnica Geral do Rio de Janeizo Gabinete de letricidade médica ~ const da um As trés horas — Rua Uruguaiana, 57, ‘Nas livrarias, um ou outro livro poderia ser de interesse. 0 homem da barba azul ¢ O gato com botas, para as ctiangas, ou Os trés mosqueteiros, de Alexandre Dumas ¢ Cinco semanas em um baldo, de Silio Verne eram os mais procurados na livraria Martins, localizada de fronte a igreja do Parto, Além dos autores nacionais, Machado de Assis e José de Alencar vendidos na Garnier, cujo espectro de piblico era mais amplo, PRINCIPIOS DA EDUCAGAO E INSTRUGAO OITOCENTISTA Paralelamente a esta literatura de cardter mais universal ¢ até mesmo atemporal, existia uma literatura moralista, tipica do século x1x, voltada para as ctiangas ¢ adolescentes. Dois livros em especial sio exemplos tipicos dessa tendéncia. Os titulos ja indicam a intengo dos autores: Modelos para os meninos ou rasgos de humanidade, piedade filial e de amor fraterno. Obra divertida moral, publicado em Recife em 1869 e vendido na Corte, ¢ As manhs da ava: leitura para a infancia. Dedicada ds mais de familia, de autoria de Victora Colonna, publicado pela Garnier em 1877. 986 ct ©) “Muitos anos depos, a treigo se mantént:pompa e elegineia pars o retrato de familia, A primeira publicagdo, uma coletinea de historietas, inicia a sua apresentagdo com a deserigdo de uma situagdo exemplar. Um dia, 0 pequeno Marcellino, muito contente de ter preenchido os seus deveres, pediu a seu pai que lhe contasse uma estéria bonita, e ao mesmo tempo chamou a sua irmi Rosinha para que juntos ouvissem uma das preferidas. Ao que 0 pai responde: Para que quereis wis que cu vos conte histérias gue no tem o minima de bom senso? Com effeto sera hers curso ver um rapa i de dez amnos,¢ uma menina de nove, a ouvir com a boca aberta, as aventuras dum lnbisomem que come os menines, e as de um pequeno rapaz que and sete Kguas por pessada! Eu perdoaria isso a uma crianga que a ama esti embalando, mas a ws! Depois de deixar claro que no os esté proibindo de ouvir contos de fadas, o pai estabelece claramente a diferenga entre 08 contos e as fibulas, estas sim, verdadeiras formadoras de carter, por conter uma moral claramente identificdvel O restante do livro & composto por cerca de 16 historietas cujos titulos j indicam o eédigo moral vigente na mentalidade itocentista, dentre os quais vale a citaglio de alguns exemplos: “Um menino que se despio para cobrir 0 irmo”; “O filho sensivel”; “O menino que adoptou um orphio”; “Um menino pedindo esmola para sua mii””; “Uma menina que quis morrer com seu pai”; “Docilidade d’um menino maltratado pela madrasta”, entre outros!2. A autora do segundo livro, Vict6ria Colonna, foi assidua colaboradora do Jornal das Familias desde 1875. O livro é composto de um preficio, no qual a autora estabelece os principios que nortearam suas escolhas temiticas: “imaginamos [escreve ela] apresentar 4 infincia um quadro da vida intima, segundo os usos ¢ costumes de nossa terra, intercalando-lhe varias historias moraes [...]”; seguindo-Ihe uma introdugdo onde so apresentados os personagens das estorias, escritas de forma dialogada para prender a atengdo e criar um clima doméstico e intimo. © tempo & indefinido por volta da década de 1860 e a moradia da familia situava-se no caminho que conduz. ao Jardim Botinico, um arrabalde distante na época. A mie, vitiva de um capitio do exército, cuida dos trés filhos com dificuldade, sem poder envié-los ao colégio, por “no ter dinheiro sequer para comprar um enxoval”, aceita de bom grado a vinda, para 0 convivio do seu lar, de sua sogra que, a0 se tornar paralitica, nfo pode mais cuidar-se sozinha. Em troca dos cuidados fisicos, a avé lhe educara os filhos, inspirando-lhes “o amor do bello, do verdadeiro e do bom”, por meio de historietas sobre situagdes exemplares inscritas no cotidiano, Para cada dia do més, uma histéria distinta, valorizando ora a verdade, ora a virtude, ora a caridade”” Sin DT 0s bringuedasteitos fora de casase tomam abetodos deseos infantis Este exemplar As manhas da avé: leitura para a infiincia. Dedicada as mais de familia pertenceu a Aracy, filha mais nova de Benjamim Constant que, no ano de sua publicagio, tinha somente um ano. Aracy e seus irmios cresceram sendo guiados pelos preceitos que nortearam esta, como tantas outras publicagées da época, fornecendo aos Pais de familia. Algumas indicagées sobre o desempenho de sua missiio, como indicava o titulo de uma outra publicagdo de 1878. A especificidade da inffincia cra motivo para polémicas © controvérsias cuja temitica central eta a oposigdo entre educagdo e instrugdo. As escolas ofereciam um ensino enciclopédico, desde os sete anos de idade, enaltecendo os alunos que, bem cedo, conseguiam passar por sabatinas ¢ arguigdes das mais dificeis. Com os bons resultados obtidos em seu exame do final do ano de 1857, 0 Colégio Kopke de Petrépolis publicou uma nota comemorativa no principal jornal da regido, 0 Parahyba: “foi summamente satisfat6rio o resultado desses exames, em que mais de um alunno excedeu mesmo que se deveria esperar de sua pouca edade ¢ curto espago de aprendizagem” 2! No entanto, a escola sé poderia cumprir o seu papel se a educagdo doméstica cumprisse @ sua finalidade: 0 estabelecimento dos principios morais. “Se for preciso escolher”, escrevia o articulista da Revista Popular, na edigao do dia 20 de janeiro de 1859, “antes educago do que instrugio, antes moralidade do que sciencia, antes fazermos homens de bem do que sabichdes”. Complementava a sua prelegdo condenando os mimos initeis, rejeitando a convivéncia com os escravos domésticos, proibindo radicalmente o incentivo dado as futilidades fernininas, a soberba ¢ ao orgulho senhoriais, nos meninos meniinas, Para uma educagdo doméstica com retidao, ensinava a preceptora dos filhos de Dom Pedro I: 4 experitncin me tem mostrado q desde o bergo se deve prinipiar este trababo [pratcar a vite], porque bafals mas nunca destnals, Este methodo bem que tio necessario he mui di ‘educando. fits de carater adquiios, pode a razio de J exceusdo, pois quem o pratica precisa morrer para sic viver para seu Portanto era no lar que a base moral deveria ser plantada, sem confimdir educago com instrusio. No caso da educago dos principes imperiais, a instrusio ministrada pelos professores de diferentes disciplinas coordenados por um diretor de estudos era alicergada em prineipios educacionais claramente definidos pelo preceptor das realezas, Em 1838, 0 marqués de Itanhem, “instrui os mestres para ministrarem uma educagao de acordo com o genio natural dos filhos do paiz”.2 Com um documento composto por 12 artigos que versavam sobre: Autoconhecimento como regra primeira; Ensinar a relagdo entre natureza fisica e natureza social, baseado nos principios de bondade e justica; Condenar a tirania e valorizar 0 amor fraternal; Harmonia entre religido e politica; Uma educasiio eminentemente masculina, sem palavrdes de erudigao estéril: “Lembrem-se pois os mestres que 0 imperador he homem...”; 6. Priorizar 0 conhecimento em detrimento da memorizagiio: “saber por meio das letras”; 7. Nada de grandes devaneios abstratos: “que o imperador, sem abragar nunca a nuvem por Juno, comprhenda bem que po he pio ¢ 0 queijo he queijo; 8, O professor de fisica deverd apresentar suas leis cuja origem é divina; 9. Ensinar 0 monarca a incentivar o trabalho produtivo; 10. Trabalho como principio e virtude maior; 11. Encaminhar o imperador “com seu genio docil e cordial para a compreenso da verdade e do bem”; 12. Inculear na cabega do imperador que ele & 0 soberano e que ndo pode ficar a mereé dos ministros, portanto deve-se inleirar do que ocorre na Corte tanto por periddicos, quanto por audiéneias. peer Além de todos os aspectos préprios a formagao de um governante, tais como a inteligéncia, a virtude ¢ a magnanimidade e também, de uma certa dose de desconfianga, no artigo quinto, 0 marqués ressalta a masculinidade como um atributo importante a ser respeitado ja na infiincia. De fato, tanto em termos de educag&o como de instrugo, meninos e meninas eram tratados de forma distinta. Um documento da realeza portuguesa, escrito para a educagdo do futuro D. Jodo V, fornece a exata medida da imagem de masculinidade que devia ser, desde cedo, associada aos principes [La] s fis machos dos prinipes, passados os sete annos, e ainda antes [..] devem Iago ser retrados do trato da caza e educago das meres, © se ddevem encarreyar a varoens vituosos [.] Ihe devem dar mesies, que os doutrnem confessores, camarisias © todos os mas eriados deste gener {..] Fazem se effeminados os Prineipes com a criagdo das mulheres ¢ perdsm o vigor varonl, porg'de continua commanicagio com delks ¢ famibaridade se cembebem facilmente os affets ¢ as premonijoins do animo as quais he mais inclnado aquelle sexo [..] be um certo genero de encantamento em que os animos dos mancebes, ji naturalmenteinclinados aes vicios, se faem propengos aos depravados e entenpestivas affectas de animo prejudcias a idade era ‘que se acho Apesar da misoginia do documento, ele revela a origem da distingdo de uma educagZo para meninos, ministrada por homens ¢ uma para meninas, ministrada por mulheres. Distingdo esta presente nos colégios da Corte imperial, como também ha educagio das princesas imperiais. Dona Francisca, em carta de 1863, elogiava a educagio da princesa Isabel: “acho que fazes bem em dar uma educagdo de homem a sua filha mais velha, sobretudo que & provavel que venha a governar o pais, [.P%, Onde residiria a diferenga nas duas formas de educar? Basicamente na valorizagao dos atributos manuais e intelectuais, sendo os primeiros concenentes ao universo feminino e © segundo ao masculino, mas também no tempo de duragdo da instrugo. Os meninos da elite iam para a escola aos sete anos s6 terminavam sua instrugdo, dentro ou fora do Brasil, com um diploma de doutor, geralmente de advogado. Num colégio coneeituado como o Externato Pedro Tl, frequentado por quase todos os filhos da aristocracia cafeicultora imperial ¢ pela elite urbana, havia um rol exaustivo de diseiplinas que englobava: filosofia, retorica, poética, religiio, matemitica, geografia, astrologia, cronologia, histéria natural, geologia, ciéncias fisicas, histéria, geografia descritiva, latinidade, lingua alema, lingua inglesa, lingua francesa, gramitica geral e nacional, latim, desenho caligréfico, linear e figurado e miisica vocal, distribuidas ao longo de sete anos. Os meninos tinham uma op¢do alternativa aos colégios particulares, podendo optar por uma formagio militar: o Colégio Naval. O médico Augusto José Pereira das Neves recorda em suas memérias a mudanga no destino do filho: “A 15 de margo de 1879, entrou José Maria para o Collégio Naval, sua espontinea vocagao, pois elle mesmo pedio-me para deixar o Collégio Pedro II e seguir os estudos da Marinha.”2 A partir da segunda metade do século xix, também nas fazendas, os pais poderiam instruir seus filhos nos colégios, em vez de manté-los em casa, com uma preceptora; mas tal escolha sé era feita a partir dos sete anos de idade. A viscondessa do Arcorelo, dona de trés fazendas no municipio de Vassouras, anota em seu didrio, no dia 3 de outubro, o aniversario de oito anos de seu filho Raul, que desde agosto frequentava 0 colégio do doutor Telles, localizado na cidade de Vassouras. Raul, juntamente com seu irmio Mario, passou a frequentar 0 colégio por determinagZo do pai, escolha devidamente registrada no diario da viscondessa: (© Castro falou hoje com D. Sarah que nio queria continuar com os meninos estudando em casa que ido para o cago, Ela disse que neste caso se retirva para o Rio [sete dias depoit se fia professora:partio D, Sarah as $ 1/2 Give rita pena del. 2? Bonecas de pano ou poreelanafierama alegria das meninas do Primero e Segundo Reinsdo, Da mesma forma, a instrustio das meninas variou ao longo do século xix € apesar de manter a valorizagao das habilidades manuais e dos dotes sociais, j4 se encontrava no curriculo das escolas, desde meados da década de 1870, um conjunto de disciplinas tais como “linguas nacional, franceza e ingleza, arithmética, historia antiga e moderna, mithologia, além € claro, de obras de agulha de todas as qualidades”%, No entanto, ainda em 1820, como constatou um observador estrangeiro, ‘no Brasil a moga de boa forma fazer croch® tuna moga pre ‘conhece a dif arte de descascar com gosto uma lan © mesmo observador apontava para o fato de que a educago feminina, iniciada aos sete anos e terminada na porta da igreja, aos 14 anos, supervalorizava o desempenho feminino na vida social. Na Corte imperial, das meninas da alta sociedade, exigia-se perfeicdo no piano, destreza em lingua inglesa e francesa, ¢ habilidade no desenho, além de bordar e tricotar. Os colégios, frequentados pelos fithos da elite rural e urbana, eram todos pagos e para os internos variavam entre cem e 150 mil réis por trimestre, além das aulas extras de piano, canto e desenho ou qualquer outro idioma além do inglés e francés. ‘Também para os internos, havia a exigéncia de um enxoval completo. © Colégio da Imaculada Conceigdo exigia para suas internas ‘um vestid pret; seis vestidos brancos seis sais; seis calgas, ses eamisas, dave lengoes de milo; seis pares de mei; seis lengoes de cama; dois dios para Dbanho; duas camisolas de chila para bunho; és dias brancas para dommnf; és colehas com coberter; irés Eonbas; ts toelbus; seis guardanapos, um ‘chapeo enfeitado; uma fa verde; um par de vas; uma talher de prota; uma caa para roupasintimas; pentes escovase obetos para tolete © doutor Augusto José Pereira das Neves, médico, residente na Freguesia de Santa Rita, com salario mensal de 850 mil réis, escolheu o Colégio da Imaculada Conceigao para colocar as duas filhas Alice, Maria Angélica foi interna no colégin da Imaculide Conceijdo, drgido pelas imies de caridade, nt Prats de Botafogo no 30, Feta a sua ‘educagio veo para casa onde terminou estudando ing, pian e ajudando os servos da casa, Alice, a filha mais velha, havia entrado nesta escola com oito anos, evento que ¢ lembrado pelo pai, com alegria e detalhamento de gastos: “nio chorou nem demonstrou a menor repugnancia, ¢ ld ficou contente e satisfeita. Paguei quarenta mil réis pelo més de junho e 35 mil réis de joia como aluna pensionista.”“L Gradualmente, as escolas mais conceituadas da Corte foram abandonando a regido do centro da cidade, instalando-se nos arrabaldes, junto ao mar. Tal mudanga acompanhava tanto uma tendéncia da medicina que passava a valorizar o ar puro, exercicios fisicos ¢ os banhos de mar, como fatores importantes para a satide infantil. Desde meados dos anos de 1830, tal tendéncia ja se encontrava evidenciada nos aniincios dos colégios, publicados no Jornal do Comércio. O colégio de meninas de Mme. Geslin, situado na Gléria, ammciava-se oferecendo “salubridade, facilidade para as meninas tomarem banhos de mar, ar fresco e puro” (4/1/1838). E interessante notar como o discurso dos pais preestabelecia os espagos das futuras vivéncias dos filhos. O que a educagdo ¢ a escolha de um certo tipo de instrugdo arbitravam era a forma de acesso da crianga ao mundo adulto, definindo-se 6s papéis sociais do homem e da mulher desde a meninice. Aos meninos, uma educagao voltada para o desenvolvimento de uma postura virile poderosa, aliada a uma instrugdo, civil ou militar, que the permitisse adquirir conhecimentos amplos e variados, garantindo-lhe o desenvolvimento pleno da capacidade intelectual. Os filhos da elite rural e urbana foram advogados destacados, médicos distinguidos, engenheiros desbravadores do Império ou ainda politicos republicanos. F claro que, uma vez. ou outra ocorria dos filhos de fazendeiros, estudando na Corte ou no exterior, extrapolar os gastos com farras, sendo chamados de volta ao lar, para aprender “com quem sabe” gerir os negécios da familia, Por outro lado, a educago das meninas, padecia de ambiguidade, pois a0 mesmo tempo que as circunscrevia no universo doméstico, incentivando-lhes a maternidade e estabelecendo o lar como seu dominio, as habilitava para a vida mundana, fornecendo-Ihes elementos para brilhar em sociedade. Muitas vezes a mensagem era decodificada de forma inesperada, retendo somente a parte da educagdo que valorizava a exposi¢Go das damas nos salées do Segundo Império. Temendo tal perigo, levantava-se a literatura moralista, presente nas bibliotecas das mes de familia: [Lal daes a vossas filbas mundanos omaros, um mest de canto, ouvo de danga, e prohibistes o baile © as reuaides brithanes; por um lado o desprez0 do ‘mundo; pelo outro Byes para o encantar. Ommaes sua meméria com todas as obras prinas de scena, e fechues-Ies os espeticulos,¢ dizehes que todas 0s ‘comics sio desmoralizadas; gabacs 2 sorte das viagens e ordenaes-he que se casem [J Vede qbe separa o cathecismo, do theatro lembrac-vos que em Vinte © quato horas uma mena, que se ease, passa de um estado para 0 auto sem adverténia, © o que & mas triste, sem preservatives [..F2 Portanto, estabelecidos os devidos papéis sociais, caberia a familia, educar e a escola, instruir. Com isso estavam supostamente garantidas a manutengdo e reprodugdo dos ideais propostos para a constitui¢do do mundo adulto. Dentro desta perspectiva, a crianga era uma potencialidade, que deveria ser responsavelmente desenvolvida. Mas até chegar a ser uma potencialidade, a crianga era uma expectativa que, devido is condigdes de satide da época, geralmente se frustrava. SENTIMENTOS EM RELAGAO AO NASCIMENTOE A MORTE DE CRIANCAS NO SECULO XIX Fotografias de pessoas mortas, inclusive de criangas, nfo cram raras nos albuns familiares. Apresentavam-se, geralmente, em formato carte-de-visite,trazendo algumas inscrig6es aludindo, no verso da imagem, a morte do ente querido. Na colegio de fotografias da familia Furquim-Werneck, uma dessas imagens destaca-se pela impressdo de dor que transmite. No iinico carte-de-visite colado em papel negro, encontra-se a serena imagem de um menino, com uns dois anos, no colo de sua mie, e que parece estar dormindo, Mas nio esta. Por detrés, vislumbra-se uma mio apoiando a cabega da crianga, que pende para a esquerda. No verso da foto, a identificasio da morte de Arthur ainda em tenra idade. Nascimento e morte sio eventos opostos ¢ tdo ligados a infincia oitocentista. ‘No século x:x, a crianga passa a ser considerada, tanto pela perenizaciio da linhagem quanto pelo reconhecimento de uma certa especialidade dessa etapa da vida. Por tudo isso, ela inspira carinho e cuidados. Desde 0 momento em que uma mulher se descobre gravida até os sete anos, quando se considera que a crianga superou as crises das diferentes doengas, ditas “da Infancia”, tudo é incerteza e expectativa ‘A descoberta da gravidez deixou Maria Isabel, filha de Carlota Joaquina, simplesmente comovida: [1 se veriicoua suspeita que havia, em q- faltva a VM na nt antevedente, por so conto es mezes, de forma «ogo aos dez das de estar em Madd centreia voriar,o meu homem (sic) esti muito contente posso confimar a VM que cada vez.nosestimamos mais 2 Desde a descoberta da gravidez, em janeiro, até o nascimento em agosto de 1817, Maria Isabel escreve regularmente & sua mie relatando o desenvolvimento da gravidez. O nascimento ¢ 0 parto foram tema de uma carta repleta de satisfagao ansiedade: [Na dima carta que escrevia VM, ava por todo aquell: més fer 0 meu bom sucesso porem como era a la vez enganebme, no tive até ‘odin 21 de agosto, em q’nasces a ering, muito boa, e muito fore © hum rapariga a quem meu homem por obséquo ami ghz q'se pusesse © meu nome sou eu quem a ctio¢ tenho muito ete; Agora vou eontar a VM os meus tabathos nesta ocasto que fara ter Femando nomeado um pareiro que tnka 3 melhor opinigo e de quem houve as mebores informagSes, pois este homem foi io ignorant, q'depois de me Ter feo estar de parto dows dias, ¢ em ‘astante perigo,csse que estava marta a crianga, quis fazer operago, e chegou a trazer os fers, porbm ni se the éeixou fazer e chamou-se o 10 ciurgito de Careva [?] D. Agostinho Punteus [7] q'he também parteo q'ogo que chegou disse que nfo era nada sengo huma membrana que tapava parte da ‘eaboga e que em se rompendo essa q/nascia imeditamente, e assim foi pora'depois dele vino taréou mais de duas horas e hum quart, e eu fiquai mito ‘boa, de mancca q'uem aceideate tenho a quazi dous mezes. No entanto, o fato de ter superado uma etapa de grande risco, no garantia, nem aos filhos da nobreza, uma vida longa. Em janeiro de 1818, com apenas seis meses de vida faleceu a infanta, filha de Maria Isabel. Em carta a sua irma Carlota Joaquina, Fernando VII da Espanha, casado com a propria sobrinha, relata a angistia e impoténeia diante da morte de uma crianga: nosostos estamos buenos [.J pero mui ages por In imprevista muerte de nuestra amada hi [..] no abiendo durado su enfermedad mas que vinte horas, no se sabe de que he mucrto, aunque se cree haya si de no haber pode remper una erupeio que se present en todo el cuerpo, habiendose lenado de pinta, se la hi hecho anatomia,y no se la hi encontrado nada, pues estaba perfectamente organizada*S A intensidade dos sentimentos do pai, expostos na intimidade de uma carta familiar, revela a dimenso que o afeto por uma crianga havia tomado, jé nos primeiros anos do século x0x ‘ree Termana mia que no se sabe Toque se quiere los hos, hasta gue se Gene la desgracia de perdelos; la echamos mucho de menos, pues era muy boil y ya se habia puesto muy gorda con a kebe dela amma; nos hacia ya compandna, y siempre dormia al lado de suestra cama #4 Seu tinico consolo era o fato de a mulher estar novamente grivida, O sentimento de perda era compensado por um novo nascimento. Tal situago perdurou ao longo do século xix, em familias de diferentes procedéncias sociais. Dom Pedro I, dos sete filhos que teve com D. Leopoldina, perdeu trés ainda na infincia; seu filho, Dom Pedro Il, dos quatro filhos que teve com D. Maria Teresa Cristina, conservou somente duas meninas, morrendo todos os herdeiros do sexo masculino ao trono brasileiro. ‘A auséneia de vacinagdo regular, o limitado conhecimento de doengas contagiosas e as condigdes de higiene pouco favordveis, deixavam as eriangas a mereé de doengas variadas. Segundo 0 Boletim Mensal da Inspetoria Geral de Higiene, morreram na cidade do Rio de Janeiro, num certo més do ano de 1872, 41 eriangas de zero a trés meses, 45 criangas de um a trés anos, 25 criangas de um a dois anos, 35 ctiangas de um a cinco anos ¢ 53 criangas de cinco a 15 anos, de doengas que incluiam, num rol de mais de duzentos diagndsticos, entre as mais letais: a tuberculose, a febre amarela, a febre palustre, a meningite, a congestio pulmonar, a pneumonia. O acesso a conhecimentos médicos nio era garantia para evitar a morte dos filhos. Dr. Augusto José Pereira das Neves, a quem nos referimos anteriormente, teve dez filhos. Destes uma menina nasceu morta e dois outros morreram sem completar cinco anos. Os sentimentos relacionados @ crianga natimorta e os demais, que chegaram a gozar 0 convivio familiar sio distintos, caracterizando que o afeto pela crianga nao se dava a priori, mas era um sentimento pautado numa relagdo de convivio e troca, Em suas memérias, o nascimento e morte da quinta filha que, sequer re expresso de dor: “A 17 de janeiro de 1872, deu Joana a luz a uma menina de tempo (50 filho), porém ja morta [.. da menina foi no mesmo dia com despesa de 62S"5!, Na perda da filha com trés anos, chamada carinhosamente de Annita, 0 pesar fica evidenciado pelos atributos da personalidade da menina: ‘beu um nome, foi relatado sem a minima |. O entero falleceu Ania ineigente e bonita erinnga com a febee tide na casa do Livramento, oode nasceu, as seis horas da mish Ge II de setembro Ge 1876 [..] (© padrinho Ihe fez entero com tods a erenga. Deus Ihe dé o ceo pobre filha ~ tio espera e engragadinha © Ultimo do doutor Augusto a falecer crianga foi Manoel, com cinco anos de idade, Esta morte descrita com significativos detalhes, esclarece a natureza da relagdo que os adultos passam a estabelecer com a morte de uma crianga na soviedade oitocentista brasileira: Faleceu as ato e meia da manhi de 1° de outubro de 1882, 0 meu filo Mance!, depois de 17 dns de longa © penosa meningte ~ muito me custou ti duro ‘pole — com cinco annos, ido gordo, vivo © espero! Foi sepukado no cemitério S. JoRo Batista no mesmo da, Fm 20 de novembro de 185, fer-se @ ‘exumagio de seus restos mortais,« que assist, of qutis colocados, em uma caixa de zinc foram deposiadas no carmeiro(?] perpétuo n° SO (hoje 65) da rina Sopra, onde jé se achavlo os oss0s de Amita ..] Despesa 10S pel exumago, 8 pols eaixa de zinco e 38 aos coveios do cemitro, Deus 0 tenha ‘em sua Santa Gra — meigo Manoel Nos eolégos privados, as menisas aprendiam mitolgi, ings ¢ flanets, str antiga © moderna, Salam dali aos 14 anos para a ize Conforme o sentimento de pesar pela perda de uma crianga se desenvolvia, crescia também a preocupagdo em cuidar para a sua sobrevivéncia. Desta tendéncia surgiu uma série de procedimentos para as diferentes etapas da infancia, com énfase especial nos recém-nascidos € criangas até sete anos, No entanto, diante de tantos personagens que povoavam o universo infantil, durante o século xix, numa sociedade como a brasileira, fica a pergunta: de quem era a responsabilidade de cuidar das criangas? PRATICAS, CUIDADOS E COMPORTAMENTOS EM RELACAO A CRIANGA E O ADOLESCENTE NO SECULO XIX A resposta da sociedade para a pergunta era unissona: a mie. Um personagem que, em geral, mal havia saido da meninice, trocando as bonecas de brinquedo por uma de carne e osso. Além da mie, habitavam o mundo da crianga outros personagens principais: o pai, a avé e as tias; e uma variedade de coadjuvantes: preceptoras, aias, amas, damas, agafatas, retretas, fimulas, pajens etc. Quanto mais ricos e nobres, na escala social, tanto mais distante dos pais estavamas criangas. No periodo de incertezas e expectativas que envolvia a crianga do nascimento aos sete anos, a mie tinha um érduo trabalho a cumprir. Trabalho este agravado pelo pequeno intervalo entre um nascimento e outro. Enire 1864 e 1884, a esposa do mencionado doutor Augusto José Pereira das Neves teve dez filhos, sendo que o maior intervalo entre um filho e outro foi de trés anos. Como relembra seu marido: ‘Todos estes fibos foram amummentados por Joanna © que mui « debiliow, nunca engordando e ficando sempre de saide fraca, mas ella sempre fez ‘queso de criar seus fos [..]. Deus amparee prota esses meus fos ¢ a sua bea dedicada mie 2 No entanto, esta no era a regra na sociedade brasileira, Como a amamentagdo estava associada 2 um trabalho bastante exaustivo, geralmente acompanhado dos cuidados para com outros filhos pequenos, esse foi rapidamente associado & mio de obra escrava. O aniincio de aluguel de amas de leite era comum nos jornais da Corte, especificando 0 periodo da lactago para o qual a ama serviria, e estabelecendo um valor entre cinquenta e setenta mil réis mensais para o oficio. Nas fazendas de café da regiao fluminense o recurso 4 ama de leite era praticamente tido como uma necessidade. Ao nascer sua netinha, no Rio de Janeiro, a viscondessa do Arcozelo dispde-se a arrumar uma ama, em condigdes saudaveis, para criar a pequena gulosa: fuia Freguesia ver uma ama para ir erar minha netinha, eso satisteita, Dei gorjeta de 42.000: 4 Agostnhs e pareeeme que ade servi [.] Hoje san o Josquim com & Agostina, ela foi As princesas e principes imperiais foram também criados por amas, seguindo um costume herdado da tradigo Tusitana em que, algumas mulheres de elevada condi¢o social, podiam no querer amamentar seus filhos. Dom Pedro II foi amamentado pela mesma ama que sua irma, a princesa Maria Paula, A ama de leite da princesa Isabel foi uma colona ale, habitante da regio de Petrpolis, contratada com um ordenado de quarenta mil réis por més. Essa também recebeu uma pensio de vinte mil réis e teve seu filho admitido no Kopke, um tradicional colégio de Petrépolis, com o imperador pagando- The todas as despesas, inclusive o enxoval® Contrapondo este arraigado costume da sociedade oitocentista, havia desde fins do século xvi, uma literatura médica que incentivava as mies a criar seus filhos com o leite materno, e afirmava a amamentago como precondigao para um crescimento saudavel. Fundamentados nas teses de fildsofos como Rousseau e Bouffon, os chamados Tratados de educagao fisica dos meninos foram os precursores das nogdes mais atuais de puericultura, preconizando a vida ao ar livre, a liberdade nos brinquedos e cuidados com higiene infantil. Ensinavam desde a forma como 0 cordio umbilical deveria ser cortado até as vestimentas adequadas e a forma correta de colocar a crianga no berco, passando pela temperatura do banho, pelos banhos de sol e pela forma correta de embalar — levemente sem deixar o bebé tonto!2 Tudo muito atual e moderno, no entanto, completamente alheio das praticas oitocentistas em relago as criangas. O que de fato regia os comportamentos era a tradigZo das avés que, por sua vez, aprenderam de suas avés: criangas no interior da casa, bem enroladinhas, protegidas do ar fio € mamando de uma negra saudavel e bem alimentada Os cuidados com a higiene infantil, no decorrer do século xix, foi uma gradual adaptagdo de preceitos médicos 4: condigdes de vida no Brasil. O banho frio, por exemplo, era um capitulo a parte nas praticas cotidianas de higiene ¢ satide infantis, Pela literatura médica, 0 banho frio era recomendado desde o primeiro ano de vida, no entanto, a pritica cotidiana associava o banho frio a uma outra faixa etaria, ‘A condessa de Barral, em carta de 6 de novembro de 1859, dava noticias a imperatriz sobre a satide das princesas Isabel € Leopoldina, com respectivamente 13 e 12 anos, associando o banho frio a uma forma de tratamento de satide: ‘me permia de a trangiizar sobre o estado santirio de Suas Auustas Pihas: no tem havido totces nem calafros, nem teimas e tem bastado lembrar que mame recomendou que fossem boas para hever @ melhor harmonia entre els [..] S.A. a Prine. Leopoklina deve prncpiar seus banhos fis, para 0 que if feza primeira fregio de dgua pelo corpo. As costes esti boas. A Prine. D. Isabel ainda se queiou uma note da gerganta, porém coita ligcira, © melborando deste orgio piorou medatamente dos begs.) Em outra carta informa: A prin. Isabel jf tomou onze banhos Gries [..] est muito gorda ¢ sus inlerivel bondade e angélica candura cada vez mais a metem deniro do mew coragao. Outro objeto que evidencia cuidados com a higiene cotidiana era a presenga do pente fino no enxoval de nobres & meninos da elite ‘A utilizagao do pente fino aponta para um mal que afligia niio somente as cabecinhas dos filhos de escravos ou das criangas pobres. © piolho era uma verdadeira praga democritica, tanto que em 1854, 0 Jornal das Senhoras, voltado para as mulheres da elite, ensinava uma receita para “destruir os bichos da cabega”. O remédio é apresentado, pela revista, como uma solugdo répida e infalivel para exterminar piolhos e léndeas da cabeca das criangas, evitando a impaciéncia tio caracteristica esta fase da vida. A receita proposta era a seguinte: [Lo] Pise-se © misture-se ber ums ppomada. Passedas 24 horas lve-seb na de ovo com ume pouca de mantciga fresea © uma colher de azete dace, esfregue-se bem a cabega com esta ‘com gua moa e vnagre, e pentea-se cam pent fino ocabello, No sb os bchos, mas também as lendeas Feardo iniramente destridos Pelo procedimento apresentado, até que as criangas ndio deviam ser tio impacientes a Em relagdo aos cuidados, eram as avés o bastido da tranguilidade da jovem mée. Sua experiéneia acumulada garantiria 0 traquejo necessério para discernir um choro de dor de um choro de fone. A sabedoria das avés é lembrada no livro Educagao das maes de familia Hi por ventura abi alguma mulher gue, em roda do beryo do seu fiho, dete de softer inuictagSes incessantes?[..] Nao sucede assim com a avi esta assusta-se menos, porgue tem mais experignea,conhecs os syntomas,e tom segredos para os fazer desaparccer,e & Tato dig de ateneo, queer todos 0s makes da inflncia 2 nature pede mais a nossa pacitnci, do que nossos remedies: 0 verdadeto midico da infbneia& a pacitneiae @ knganimidade ‘© Maria Joaquina, dona do livro acima referido, foi sem davida uma avé dedicada. Logo ao nascer 0 quarto filho de uma de suas filhas, muda-se para a casa dela para ajuda-la com o rebento. Dias depois, retorna para a casa, cujos habitantes ja se ressentiam da sua falta, mas continuava indo todos os dias a dar banho na crianga até esta completar um més. Nestas visitas nio se esquecia dos outros netinhos: Depois do almogo, mane foi com Ehiza © eu 8 casa de Adovinds para lavar pela si Alvaro e ums bonequina para Adozindaha #2 ra ver 0 menino, Mane fevou bolas de borracha para Adozindo e Foi para a avé de suas filhas que Dom Pedro II recorreu quando necessitou escolher uma preceptora. Sua primeira opco inclusive foi D. Amélia que declinou o convite, por se achar muito velha para tais atribuigdes. Em resposta sugeriu a propria mile das princesas, como a mais indicada para o controle da educago das filhas. Opinido compartilhada por Maria Graham, que nos dias iniciais do Império havia sido convidada para ser preceptora da princesa Maria da Gléria, ¢ em carta & imperatriz Leopoldina afirmava: “uma princesa tio perfeita deve ser a verdadeira diretora dos pontos principais da educago das filhas”. No entanto, a princesa Leopoldina no concordava com tal atributo, lamentando-se muito quando Maria Graham foi afastada: ‘uma amiga que me era duplamente cara, educando-me as fihas adoradas e dessa manera aliviando meu corag © meu esprit de um far para sustntar, ‘0 qual no sinto nem forgas nem intrugo para cumpri eu mesma este doce dever $2 No caso da imperatriz Maria Tereza Cristina ¢ bem improvivel que tenha ocorrido o mesmo. O fato era que Dom Pedro queria ele mesmo assumir este encargo, que em nada condizia coma fimgo de imperador. Dom Pedro Il assumiu a paternidade com um gosto incomum aos homens do século xix. Em seu didrio revelou: “o estudo, a leitura e a educago de minhas filhas, que amo extremosamente, so meus principais divertimentos”. De fato, desde a escotha da condessa de Barral para preceptora das filhas até o estabelecimento do “Regulamento que hi de ser observado no quarto de minhas filhas, tanto por ellas, como pelas creadas”, assinado do préprio punho, tudo relativo & educagdo das princesas passava pelo crivo do imperador. Neste regulamento, composto por 36 artigos, eram abordados desde os cuidados de higiene pessoal, a alimentagio, passeios, hordrios de dormir, acordar e brincar até os valores morais ¢ ensinamentos que deveriam ser aplicados: |Ant7 ~ goveranta[..], da-she-& bons consethos exempls, exphcar-the-i a razio porque he noga certs coisas, ou hes a probe, no consent, que se Ihe meta medos com coisa slgumna sé sim the infundiratemor de Deus, respeito, & amor @ seu pat, e mile, © humaniade para com seu proxi, no The

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