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Livros do mesmo autor Sertilégio (Mistério Negro). Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro. 1960. Dramas para Negros e Prélogo para Brancos (antologia de teatro egro-brasilero), Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro. 1961. Teatro Experimental do Negro-Testemunhos. Rio de Janeiro: GRD. 1966. © Negro Revoltado, Rio de Janeiro: GRD. 1968. Racial Democracys in Brazil: Myth or Reality?, traduzido por Elisa Larkin Nascimento, Ibadan: Sketch Publishing Co. 197 0 Genocidio do Negro Brasileiro — Processo de um Racism Mascarado, Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1978. Sortilege (Black Mystery), traduzido por Peter Lownds. Chicago: Third World Press, 1978 Mixture or Massacre? Essays in the genocide of a Black People, tradu- Zido por Elisa Larkin Nascimento, Buffalo: Afrodiaspora. 1979. ABDIAS DO NASCIMENTO ABDIAS DO NASCIMEN'S O QUILOMBISMO Documentos de uma militancia. pan-africanista \w. Petropolis 1980 © 1980, Abdias do Nascimento Direitos de publicacdo: Editora Vozes Ltda Rua Frei Luis, 100 25600 Petropolis — RJ Brasil Diagramacao Beatriz Salgueiro Em meméria dos 300 mithées de africanos ‘assassinados por escravistas, invasores, opressores, racistas, estupradores, saqueadores, torturadores @ supremacistas brancos; Dedico este livro aos jovens negros do Brasil e do mundo, na esperanga de que continuem a luta por um tempo de justiga, liberdade e igualdade onde estes crimes néo possam jamais se repetir. Com 0 amor fraterno do Autor ss SUMARIO Documento nt 1: Introdugdo & mistura ou massacre? Ensaios desde dentro do genocidio de um povo negro (USA), 11 Bibliografia, 34 1 Congresso das Culturas Negras Grupo D — Etnla e Mestigagem (excerto das Conclusées e Recomendagées propostas pelo Grupo e aprovadas pela assembléia geral do Congreso), 35 Conelusdes, 35 Recomendagses, 36 Américas Documento n* 2: Revolugdo cultural e futuro do pan-africanismo (Dares-Saleam, Tanzania), 39 Cultura: uma unidade eriativa, 42 © exemplo de Palmares, 46 Lingua: um obstéculo para a unidade, 47 Brasil: de escravo a paria, 49 Quilombos, insurreigdes e guerrilhas, 51 de quem?, 63 © negro herdico, 66 © Teatro Experimental do Negro, 68 Auto-suficitrcia e cultura pan-africana, 70 A respeito de ciéncia e tecnologia, 73 Capitalismo versus comunalismo, 75 Pan-africanistas em acho, 77 Evocagao dos ausentes, dos silenciados e dos aprisionados, 78 Bibliografia, 79 Documento nt 3: Consideragdes nio-sistematizadas sobre arte, religiéo e caltura afro-brasileiras (Ile-lfe © UNESCO), 81 Primeira providéncia: apagar a meméria do africano, 84 ‘A luta antiga da persisténcia cultural, 89 Catolieismo e religides africanas, 94 A destruigio das linguas africanas, 101 Cristo Negro: atentado & religifo ‘catdlica, 105 ‘A imposigéo cultural ariana, 108 ‘© negro e 08 estudos lingiisticos, 112 ‘© negro no desafio nordestino e na cangéo de ninar, 114 Algumas vores negras recentes, 118 © negro no teatro brasileiro, 122 Misica e danca, 127 Artes plésticas,” 133, Um olhar sobre a nossa intelligentsia, 140 Para finaizar, 149 Bibliogratia, ist Documenta n* 4: Etnia afro-brasileira politica internacional (Washington D.C, Cali-Colombia e Estocolmo, Suécia), 155 De como o olho azul do Itamarati no vé, nfo enxerga o negro, 161 ‘Av raga negra e 08 marxistas, 169 ‘A agéo internacional do Brasil, 180 Os votos do Brasil nas NagSes’ Unidas, 185 © embranquecimento compulsério como politica oficial, 192 Anti-racisnio oficial: humor brancos brasileiro, 198 Tratado do Atlantico Sul: urdnio, supremacia branca, anticomunismo, 201 Bibliograia, 208, Documento n* 5: Reflexdes de um afro-brasliano (USA), 209 Bibtogralia, 225 Documento n* 6; Nota breve sobre a mulher negra (Dacar), 227 Escravidio © abuso sexual da mulher africana, 230 Imagem da molata na literatura ena cléncia’ socal Alguns.antecedentes histéricos, 240 Bibliogratia, 244 Documento n? 7: Quilombismo: um conceito cientifico emergente do processo histérico-cultural das massas afro-brasileiras, 245 Meméria: a antiguidade do saber negro-africano, 247 Consciéncia negra e sentimento quilombista, 253 Quilombismo: um conceite cientifico histrlo-social, 261 Estudos sobre 0 branco, 265 A.B C do quilombismo, 269 AAlguns prineipios e propésitos do quilombismo, 275 Semana da Meméria Afro-Brasileira, 278 Bibliogratia, 281 O escravo que mota o seu senhor pratica um legitimo ato de autodefesa. Luis Gama DOCUMENTO INTRODUGAO A MISTURA OU MASSACRE? rensalos desde dentro do genocidio de um povo negro Livro publicado por Afrodiaspera-Puerto Rican Studies and Research Center-State University of New York at Buffalo. 1979. +. @ lula pela libertagéo é, antes de tudo, um ato cultural, Amilear Cabral La Cultura fundamento del movimiento de liberacién Varias raz6es me fizeram hesitar antes de decidir a publicagdo destes estudos em forma de livro, Uma razao pri- meira: terem eles sido escritos em situagdes diferentes, com diferentes intengdes e destinos, em tempo e espaco; conseqtiente- mente, sua reuniéo para formar um corpo iinico careceria tanto de unidade formal quanto de coeréacia expositiva. “Havia, tam- bém, problemas com a tradugGo dos textos. Entretanto, o fator basico das minhas dividas articulava-se na pergunta: — qual seria a utilidade efetiva de um livro como este? De uma coisa estava convencido: que uma coeréncia fundamental e uma unidade intima entrelagavam os ensaios entre si; e que essa esstncia unificadora se exprimia no objetivo comum de revelar a experitncia dos africanos no Brasil, assim como na tentativa de relacionar dita experiéncia aos esforcos das mulheres e dos homens negro-africanos de qualquer parte do mundo em luta para reconquistar sua liberdade e cignidade humana, assumindo por esse meio 0 protagonismo de sua propria hist6ria. Considerei 0 alcance da minha real contribuigio ao conhecimento recfproco na trajetéria hist6rica dos afto-brasileiros e a dos seus irmaos do mundo africano de modo geral; nessa espécie de balango, pesou na hora da decisio a clamorosa au- stncia de informagdo sobre o negro brasileiro, tanto aqui nos Estados Unidos como, sem excegdo, entre 08 africanos de idioma inglés. verdade que alguns scholars norte-americanos, quase todos brancos, tém publicado trabalhios em que focalizam 0 negro no Brasil; 0 mesmo pode ser dito de uns quantos bra- sileiros, literatos ou cientistas sociais, também brancos. Quando, porém, o negro do meu pais de origem alguma vez transmitiu para 0s leitores dos Estados Unidos, diretamente, sem interme- didrios ow intérpretes, a versio afro-brasileira da nossa-hist6ria, das nossas vicissitudes cotidianas, do nosso esforgo criador, ow 13 (rn gg SS SSS SSS das nossas permanentes batalhas econdmicas © s6cio-politicas? Que eu saiba, nenhum afzo-brasileiro jamais publicou um. livia, com tals finalidades, em ingles. Inversamente do que ocorre no Brasil, onde varios I'vros “de afro-norte-americanos tem side Publicados em tradusdo portuguesa. De meméria posso lembrar, or exemplo, a Autobiografia de Booker T. Washington, que i ansioso, la pela década dos 30... Também de hé muito tempo re vem & lembranga o comovente Imenso Mar, do poste Fangston Hughes, com quem mais tarde eu trocaria esparsa e fraterna correspondéncia. OutraIeiturainesquecivel:Filhe Nativo, de Richard Wright, e Negrinho, parte de sua autobion Srafia; recordo ainda A Rua, de Ann Petry, ¢, mais recente. Tague Giovani, Numa terra estranha e Da préxima vex, 0 ogo, {odos de James Baldwin; e O povo do blue, de Le Roy Jones, Alma encarcerada, de Eldridge Cleaver. Estou quase certo de que também O homem invisivel, de Ralph Ellison, tenha sido Publicado no Brasil, livro que li em tradugdo ao espanhol. Mas ceramente a iiltima dessas obras negro-norte-americanas ‘edita. das no Brasil terd sido Raizes Negras, de Alex Haley.” Obviamente nao estou citando todos os livros e autores Publicados, ou por ignoréncia ou por falha da membria, No tnianto, © que importa € assinalar que o livro e 0 escritor negro. brasileiro nao existe aqui nos Estados Unidos; melhor dito, do apenas aqui: em nosso préprio pais, o escritor afro-bravileiro ¢ um ser quase inexistente, 4 que umas raras excecées 6 con. firmam a regra. Os motivos? A resposta é simples: devide ao jacismo. Um racismo de tipo muito especial, exclusiva criagao luso-brasileira: sutil, difuso, evasive, camuflado, assimétrico, Fascarado, porém 12 implacdvel e persistente que esté liqui- dando definitivamente os homens © mulheres da raga negra que Conseguiram sobreviver ao massacre praticado no Brasil, Com efeito essa destruicao coletiva tem conseguido se ocultar da cbservagdo mundial pelo disfarce de uma ideologia ‘de utopia Taal Genominada eDemocracia racials, cuja técnica e estrategia tém jconseguido, em parte, confundir 0 povo afro-brasileiro, do- pando-o, entorpecendo-o interiormente; tal ideologia resulta’ para Sone dam fStado de frustracio, pois que Ihe barra qualquer Possibilidade de auto-afirmagao com integridade, identidade ¢ orgulho, jiesmo observadores treinados as vezes no escapam da armadilha da edemocracia racials. A informagdo distor 4 sim como a manipulagéo de fatos e dados concretos, na ploravel leséo que prejudica o conhecimento e 0 estudo da realidade afro-brasileira, Ao ponto de até um historiador com- chegado a afirmar por duas vezes que Na América do Sul e Indias Ocidentais (West Indies), os senhores de escravos no proibiam o tambor africano, as omamentagdes africanas, as religiSes africanas, ou outras coisas estimadas que os africanos se lembravam do seu antigo camino de vida. Nas reas portuguesas, nas Indias Ocidentais e freqlentemente na América do Sul, os fazendeiros compravam tum navio cheio’ ou meio navio de escravos. Esses escravos geralmente vinham das mesmas areas da Africa e, naturalmente, falavam a mesma lingua e tinham a mesma cultura basica. As familias, no geral, eram mantidas juntas. (1974:118 and 197:9) lecorrer da leitura destas paginas se verd que 0 cultural africana, especialmente a religio, tem sido posta margem dali fo a6 dante os tempos coloniais:| mesmo nos dizs presentes, as religides de origem africana sofrem toda so de restrigdes, ofensas, perseguigées e importunagées. AA historia’ do Brasil & uma versio’ concebida por brancos, para os brancos ¢ pelos brancs, exatamente como toda tua etrutura econdmica, sécio-cultural, politics ¢ militar tem Sido usurpada da maiora'da populagdo para o beneticio exclusivo de uma ite branca/brancbide, upostamente de oigem ari roplla. Temas de considerar que a fnformapio,dlspanie! nos Estadon Unidos e, alii, em quase todo 0 mundo, out 7 ipo de confusdo. Citarei rapidamente, para ilustrar, Bras, de Donald Pierson, «Casa Orande ¢ Seasaia, de Oibero Feeyre, Ambos foraecem una visto suive, aquearaca, das relae es entre negros e brancos no pais. Referente ao Caribe q 15 evocar o llr Festival Mundial de Arte e Cultura Negras, em Lagos, 1977, quando os executantes da steel band, salvo engano, Procedentes de Trinidad, em sua introdugdo ao pilblico do teatro em que se apresentavam, afirmaram que sua orquestra, a mais original criagéo da rmisica do caribe negro, tivera origem na Proibigéo, nos tempos coloniais, de os africanos tocarem seus fambores e outros instrumentos trazidos da Africa, A partit dessa proibiglo, 08 africanos passaram a batucar sobre qualquer lata vazia, caneco ou vasilhame initil que podiam encontrar, a fim de néo se submeterem ou deixar sucumbir sua miisica, incri- minada de atividade delituosa. Em qualquer caso, a falsa imagem de uma escravidao humanizada, benemérita, com certa «liberdade>, fem sido atribuida ao Brasil como também a América Latina, de modo geral. E isto ocorre principalmente sob a justificagio freqiiente da mistura ide sangue, de racas, como se idéntica miscigenagao nao tivesse ocorrido na prépria escravidao norte americana, A mistura bioldgica e de culturas, da Africa e da Europa, aconteceu em todos os paises do novo mundo onde houve escravidao, Assim, a tenaz persisténcia da cultura africana no Brasil ¢ em outras partes da América do Sul nio pode ra- Zoavelmente ser atribuida a uma suposta beneyoléncia dos ario- latinos, nem ao cardter e cultura dos mesmos.!/Nao foram menos racistas nem menos cruéis do que sua contraparte Ario-anglo- Saxdnica, Da mesma forma que nos Estados Unidos, também na América Latina ou do Sul, e no Brasil, nao permitiam aos africanos a pratica livre de seus costumes ¢ tradigées, Esics, sim, € que forgaram os brancos a sucumbirem ao fato irreversivel de sua integridade cultural através de sua propria inventividade © perseveranga. E, naturalmente, foram auxiliados por deter- minadas circunstancias histéricas que diferenciavam América La- tina e América do Norte, tais como o baixo preco do escravo que permitia ao Brasil enormes concentragées de africanos, tudo facilitado pela proximidade das costas brasileiras e afticanas. Contava ainda, naquelas diferencas, as estratégias de dividir os africans por meio do estimulo as inimizades tribais, alm de outros expedientes empregados, especificos de cada pais opressor, os quais variavam segundo necessidades locais, condigdes de vida rural ow urbana, etc. A luta comum dos povos negros e africanos requer 0 conhecimento mituo e uma compreensio reciproca que nos {ém sido negados, além de outros motivos, pelas diferentes linguas 16 ue © opressor branco-europeu impOs sobre nds, através do Fronopdlio dos meios de comunt ago, do seu contol exclusvo dos. recursos econémicos, das instituigdes educativas e culturais Tudo lato tem permanecido a servo da manutengio da supre- macia racial branca. A publicagao deste livro teria como alvo fender esse bloqueio que, nos itola, contibuindo, ‘ainda que limitadamen‘e, para iluminar e compreender 0 processo e as di- versaa eatralégias utllandas plas foreas que os exploram, oprimem ¢ alenam. Para o restabelecimento da laegridade_ de nossa familia — a familia africana, no continente e fora dele — 6 imprescindivel 0 reforgo dos nossos vinculos ideolégicos € culturais, como condigio prévia de nosso sucesso. Estamos conscientes de que nossa Iuta transcende os limites dos nossos respecivos palses: 0 sofrimento da crianga, da mulher © do tomer egios € um fenfmeno intemacional: © Presidente da Tanzania, Julius Nyerere, colocou a questio em seus devidos termos quando disse: « «08 homens e as mulheres da Africa, e de descendéncia africana, :ém tido uma coisa em comum — uma experiencia de discriminagio e humilhaggo imposta sobre eles por causa de sua origem africana. Sua cor foi transformada tanto na marca como na causa de sua pobreza, sua humilhagio e sua opressao. (1974:18-19) Um férreo e rigid monopélio do poder rermanece, no Brasil, nas mos da camada minoritéria, desde os tempos coloniais até os dias de hoje, como se tratasse de um fendmeno de ordem «natural» ou de um perene direito «demo- crétcon. 0 mito da edemocracia racial» ext fondado sobre tals premissas dogmaticas. Dai resulta o fato surpreendente de todas as mudancas s6cio-econdmicas e politicas verificadas no pais, desde 1500 a 1978, nao terem exercido a menor influéncia na estruture de supremacia racial branca, que continua impavida intocada e inalterével. O fator raga permanece, irredutivel- mente, como a fundamental contradigfo dentoo da socedade brasileira. Aqui cabe lembrar as oportunas observagdes do Dr. Maulana Ron Karenga: 17 TO + + + 880 as contradigdes sociais, as quais So basicas A vida e 4 Iuta, que devemos e necessitamos estudar e compreender, 7... / Elas sio particulares em seu movimento e esséncia, particulares a uma respectiva sociedade. diferentes solugées e cometeriamos.sériox enganos nao compreendendo isto © ndo atuando de acordo. (1975:28) A concentragio racial da renda e do poder exclu: mente em maos dos braneos fi ¢ contin sendo km taint considerado s 2 minha experiéncia biografica, e ainda acrescidos com 0 meu testemunho da existéncia levada pelo povo afro-brasileiro, ndo tenho base nem razdes pata acetar a versio mitigads, rostiada da escra~ vidio no Brasil. E sem qualquer propésito de elevar a glritt cago a idéia do auto-sacrificio, considero, contudo, indispensével evocar sempre, lembrar conimamente, 0 procesto de massacre coletivo dos negros que ainda se encontra em plena vigencia. Shawna Maglangbayan é uma das poucas mulheres negras nfo brasileiras consciente do fato que No Brasil, é a minoria branca que reina; isto €, do ponto de vista histérico, cultural, racial, e de classe, sio 0s brancos 0 elemento dominante e explorador. (1972:87; grifo no original) Nés, os negros, temos sido forgados a esquecer nossa historia e nossa eondigio por um tempo demasiadamente longo. Por que ficarmos quietos, silenciogos, e perdoarmos ou esquece mos 0 holocausto de milhdes sem conta — cem, duzentos, tre- zentos milhées? — de africanos (homens, mulheres, criangas) friamente assasinados, torturados, estuprados ¢ raptados por criminosos europeus durante a escravidio e depois dela? Ou seré gue nfo devenos lamar nem reclamar, cooperando com os es cravocratas de ontem e de hoje, ja que para os europeus a es- 21 craviddo constituiu «passo necessario» A fundagdo e desenvol- vimento do capitalismo, e sendo este a etapa obrigatéria rumto a0 «paraiso» socialista? Podemos ler as paginas da historia de hu- manidade abertas diante de nds, e a ligdo fundamental que nos transmitem 6 de uma enorme fraude tedrica e ideolégica ar- ficwlada para permitir que a supremacia drio-euro-norte-ameri- cana pudesse consumar sua imposicZo sobre nds; e seu dictate econdmico, sécio-cultural, ideolégico e politico nos modelasse qual uma camisa-de-forga_inevitavel Sob a légica desse processo, as massas negras do Brasil s6 tm uma op¢do: desaparecer. Seja aniquiladas pela forca compulséria da miscigenacdo/assimilacéo, ou através da agdo direta da morte pura e simples. £ assombroso comprovar gue uma dindmica fatal de erradicacio vem ceifando vidas negras, ininterruptamente, ha quatro séculos. E que, apesar dessa espada sinistra suspensa sobre sua cabega, 0 negro jamais desfaleceu, nusca perdeu a esperanga e a energia, sempre esteve alerta & menor chance de recapturar os fios rompidos de sua Propria histér'a: comecar e recomecar o esforgo de dignificar seu ser, enriquecer sua cultura original, elevando-a a um nivel de verdadeira instituigio nacional. Nesse contexto sobressai a plena consciéneia do negro de que somente poderé ter um fu- furo quando ‘aouver a transformagio de toda a estrutura do pais, em todos seus niveis: na economia, na sociedade, na cultura, na politica. O povo afro-brasileiro também sabe’ que sua participag£o em todos os degraus do poder é um imperativo de sua sobrevivencia coletiva — como um povo, uma nado, De nossa perspectiva, no que se refere a certos objetivos, a luta do negro brasileiro difere da uta de seus irmaos afro-norte- americanos, Aqui nos Estados Unidos ele € uma minoria ro- deada pela sociedade majoritéria branca racista. No Brasil, debaixo das variadas gradacdes de cor epidérmica, as massas de descendéncia africana — os negros — somam a maioria abso- Iuta do povo brasileiro. Se abandonarmos os estilos de racio- cinio inerentes a cada um dos grupos dominantes, verificarerios que o Brasil pratica na América do Sul, uma politica racial de contetido e conseqtiéncia racistas — discriminatéria e segrega- cionista — baseada no exclusivismo branco-minoritério exata~ mente nos moldes daquela praticada pelos aparteistas da Unido Sul-Africana, 22 Nao temos, no Brasil, de enfrentar o problema da terra, que surge como uma questo basica na lute do negro nos Estados Unidos. Semelhantemente a situago dos irméos negros da Unido Sul-Africana, 0 que nos resta fazer € tomar posse controle daquilo que nos pertence — ou seja, do pais que edi- ficamos; e isto deveré ser realizado em fraterna igualdade © ‘comunhdo com os poucos indios brasileiros que sobreviveram a idéntico massacre e espoliagdo racista sofridos pelos africanos. Nao esquecamos que enquanto os jesuftas tentavam domesticar e cculturar os indigenas para, em seguida, serem sistematica- mente dizimados, os africanos e seus descendentes construiam as fundagdes sécio-econdmicas do pais. Construiamos, enquanto a escéria portuguesa que para aqui veio como formagio psicodindmica e sécio-dinamica reativa, por meio da qual o branco invade a personalidade profunda do negro e debilita seu equilibrio psiquico, © seu cardter e a sua vontade. (1972:273) ais poderiam set as consqitacias do fenbmeno e- tevido? Uma dtoas conseiencas pone ser observada em Slo Paulo, no eoragdo do cent industial do. pais LA se encon- tam as tanas mais has de desemprogo ¢ de sucdio entre 08 negros; o maior nimero de. desequlibrados metas etd dento 25 da _comunidade negra; assim como furto, prostitui¢g0, roubo, enfim, delingiléncia ou crime de natureza _sécio-econdmica, mostram alta porcentagem de negros. Mas hd ainda a morta. lidade infantil, a crianga abandonada, a delingiincia infantil, setores onde os negros figuram em nimero desproporcional a sua porcentagem na populacdo geral de Séo Paulo. Em face de uma realidade tio chocante, como poderemos esquecer ou perdoar? No Brasil, a minoria branca dominante jamais hesitow em demonstrar ¢ praticar sa leal solidariedade, de forma ativa, 4 sua origem étnica, cultural e politico-militar, a Europa, Seus Jagos com Portugal, depois da independéncia do pais, com graves implicagdes_com o sangrento governo colonialista de Salazar, testifica enfaticamente a permanéncia dese conluio o qual, seja dito, tem mais de subservitncia e colonizagéo mental do que Propriamente de honesta e dignificante lealdade, Adiante iremos examinar algumas das amostras daquela solidariedade entre sarianos» daquém e dalém mar, no capitulo final do volume Em tempo algum a autodenominada «consciéncia nacional brasileira questionou seriamente o comportamento dessa classe dirigente, seus espiirios compromissos. A solidariedade européia © coesio racial, com sua contraparte branca nas Américas, tem Produzido enormes beneficios (para eles) e consolidado o poder em ambos os lados. Se a reciproca & verdadeira, ainda que em potencial, chegou o instante histérico de a maioria negra do Brasil, sem mesmo necessitar de justificagdo, reatar seus liames com a Africa original, solidarizando-se com os irm&os africanos do continente e da diéspora, em todos os lances de sua luta por independéncia, liberdade dignidade. Precisa ir além o negro brasileiro: deve ele sustentar sua africanidade em nivel de poder, assim ‘irmando um lugar préprio no concerto das nagées afri- canas ¢ negras. Institucionalizar o Brasil Negro — eis ae géncia que grita sua urgéncia na encruzilhada de nossa historia, Um Brasil Negro que substitua o poder ora vigente, destituido de legitimidade, ficc&o do poder ariocapitalista e servo mimé- fico do Euro-Estados-Unidos, Para a institucionalizaggo do poder com base na au- todeterminagdo das massas_afro-brasileiras, temos 0 exemplo inspiracor do Quilombo dos Palmares: isto significaria a adogio sda estratura progressista do comunalismo tradicional da Africa, 26 ja longa experitncia demonstrou que em seu seio nao ha lugar a exploradores e exploados. Actilar 0 cominaliano aricano, situé-lo no contexto das exigéncias conceituais, funcionais, ¢ praticas da atualidade, significaria nada mais do que tornar a histétia a favor de nds mesmos. Valeria como optar por uma qualidade de socialismo cujo funcionamento na Africa tem a sangio de varios séculos, muito antes que os tedricos europeus formulassem a sua definigdo ecientificas de socialismo, Convém lembrar 2s palavras de um verdadeiro lider africano, Amilear Cabral, ao se referir aos positives valores culturais da Africa: «a luta de libertagdo é, acima de tudo, uma luta tanto para a preservacdo sobrevivencia dos valores culturais do povo, quanto para a harmonizacao e desenvolvimento desses valores dentro da estrutura nacional. (1973:48) Considerando 0 ser humano como a auténtica base do poder, a maioria de descendéncia africana teré condigdes de elimina, no Brasil, apolada esse cominalismo devidamente liza rivilégios econémicos, politicos, culturais ¢ so- Sins stualwente“instecionlzam as esratiras do poder Para aqueles reacionarios decrépitos, paladinos de nosso perma- nente atraso, assumir nossa propria identidade, proclamar nosso direito legitimo ao poder, é 0 mesmo que praticar um racismo as avessas, Estes recusam qualquer raz4o ou o esclarecimento mais légico e justo. So dogmaticos neste ponto. Entretanto, Haki Madhubuti tem uma frase clara, simples e definitiva £ necessério esclarecer que ninguém estd contra os brancos porque eles sido brancos — estamos contra 08 brancos por causa da irrefutdvel documentagdo de sua guerra continua contra os negros. Nés estamos a favor dos negros (1977:242; grifo no original). Todos os ensaios foram revistos, corrigidos, cortados ou acrescentados, fato que pode ter alterado a dimensao ou a forma original, mas que n&o modificou o sentido do seu res- 27 Pectivo conteiido. © Capitulo 1 trarscreve o paper que preparei Para o VI Congresso Pan-Africano, a pedido do Ministro do Exterior da Tanzania Mr. John Malecela, Chairman do Steering Committee do Congreso, realizady em junho de 1974 em Dar-es-Salaam. Ja me encontrava em Nova York, procedente de Buffalo, a fim de participar da reunigo na qualidade de dele- gado brasileiro e nico sul-americano, quando recebi telegrama de Mr. Malecela, simultaneamente, mas independentes entre si, com a informagao de que a delegacio da Guiana e o coordenador da regio Caribe-América do Sul, 0 irmo Eusi Kwayama, nham sido impedidos de viajar para a Tanzania e excluidos do Congreso. Apés momentos de perplexidade, vacilando entre nao comparecer a Dar-es-Salaam em solidariedade & delegacdo da Guiana — a opedo do lider pan-afcicanista C. L. R. James — € estar presente ao Congreso e protestar contra a inaceitavel discriminagao, decidi pelo iiltimo caminho, comparecendo. En- Quanto lia mew discurso para a assembléia, recebi cerca de tres ‘ou quatro avisos escritos do presiderte do Congresso Mr. Aboud Jumbe, Primeiro Vice-Presidente da Tanzania, para que no me alongasse em meu pronunciamento; eu deveria terminar no ato, supostamente por caréncia de tempe. Todavia eu tinha ouvido varios delegados de outros paises usarem a tribuna freqiiente- mente, e seus longos discursos ndo eram perturbados. Houve luma linha ideolégica imposta rigidamente sobre 0 Congresso Por certas faccées, a qual ser discutida mais adiante; a tenta- a de me fazer calar serve como amostra do clima predominante. Insisti, no abandonei a tribuna, e ao microfone continuei a leitura até 0 final do paper. Era irénico, naqueles instantes, lembrar que a forga inspiradora do VI Congresso Pan-Africano © seu original organizador, C. L. R. James, na etapa prepara- t6ria em Washington D. C., teve um encontro comigo articulado pelo nosso velo’ companheiro de Iutas Roosevelt Brown, Na- guela ocasiio Mr. James expressou sua intengao de dedicar um ia inteiro da sesso plendria do Ccngresso para discutir a si- tuagdo brasileira; com toda a razo, Mr. James considerava o despertar da consciéncia do afro-brasileiro um fato de decisiva importancia & causa pan-africana, Somos a maior nagao negra fora do continente africano, com mais de 70 milhdes de des- cendentes dos ex-escravos. E naquele Congreso eu represen- tava nao apenas 0 Brasil, mas todo o continenle da América do Sul, além de que apresentava um estudo que me fora solicitado, 28 No entanto, tentavam silenciar-me! Embora estivesse limitado pelas regras do regimento interno, ao finalizar meu discurso deixei registrado meu desacordo com a politica de exclusao ou de intimidagio patrocinadas por governos reacionarios de qualquer coloracdo ideolégica. Durante uma conferéncia preparatéria do Congresso, realizada em Kingston, Jamaica, em 1973, tive oportunidade de conhecer pessoalmente a Sra. Amy Jacques Garvey, viva de Marcus Garvey e autora de dois importantes livros sobre 0 Garveysmo, Em sua agradavel casa rodeada_de um pomar, passamos uma tarde trocando idéias e informagdes sobre a luta negra; pequenos desacordos e muitos acordos com aquela ines- quecivel mulher negra que doou toda sua energia, inteligéncia e coragio nas muitas batalhas de libertac4o da raga. Pouco tempo depois desse encontro Mrs. Garvey faleceu, mas a fortaleza do seul espirito continua nos inspirando e transmitindo energias. Na manha seguinte ao ato inaugural do Congreso em Dar-es-Salaam, fui recebido na State House para uma audiéncia privada com o Presidente Julius Nyerere que durou duas horas. Durante os poucos minutos que estive na sala de espera, revi na meméria a imagem daquele Presidente que conheci no dia anterior, primeiro de longe, no saldo cheio do Congresso, quando’ ele pronuncion o discurso inaugural; depois, na’ noite desse mesmo dia, quando o Presidente deu uma recepgio aos congressistas no jardim da State House, quando comparamos nossos cabelos brancos e rimos. Entéo vi aquele riso tao puro e seu rosto mostrava uma alegria resplandecente de crianca; verdadeiramente eu estava diante da face radiante da Africa, livre e plena de esperangas. .. Mantive com o Presidente Nyerere uma conversa franca sobre a situago racial no Brasil, € deixei seu agradavel e simples gabinete com meu espirito en- riquecido pela comunicabilidade inteligente e humana daquele lider africano, Um problema sério que defronta qualquer participagéo afro-brasileira em evento internacional dessa natureza esté no exclusivismo lingdistico que exige dos africanos que falam por- tugués — o grande contingente que inclui Brasil, Angola, Mo- gambique e Guiné-Bissau — 0 uso obrigatério do inglés ou do francés, exigéncia que significa para nés uma dupla colonizagio fem termos de linguagem. A necessidade de tradugio especial para meu discurso, j4 que o servigo normal de tradugfio do 29 Congreso nao incluia 0 portugues, impunha um tempo dobrado para minha intervengdo. Nesse dificil transe fui assistido pelo corajoso esforgo de uma mulher francesa, membro do corpo oficial de tradutores fornecido pela OAU, que, embora nao fosse tradutora de portugues, fez o melhor que péde, com 0 por. ftugués restrito que conhecia, e forneceu uma tradugdo simulta. nea do meu discurso para o frances; isto permitiu que o que eu disse pudesse também transitar pelos canais das linguas inglesa € drabe. Quero apresentar minhas sinceras desculpas por nao ter guardado o nome dessa mulher da Franca, porém, mesmo assim, expresso a ela meu especial agradecimento por sua inesquecivel dedicacao e gentileza, © Capitulo 2 6 0 meu discurso ao Encounter: African World Alternatives, promovido em Dacar, Senegal, e organizado pelo esforgo enérgico de Wole Soyinka, manejando as armas forjadas por Ogun em seu nunca acabado salto transit6rio através do abismo existencial, rumo a liberdade africana. Ao contrario do encontro de Dar-es-Salaam, cujo documento final ressoa como © proprio atestado de ébito da idéia pan-africana, a reunigo de Dacar, sem a interferéncia de poderes governamentais ou de delegagdes oficiais tocando suas proprias fanfarras, decorreu em clima construtivo. No final dos trabalhos votou-se uma mogéo de solidariedade 4 luta armada do MPLA em Angola; criou-se uma Associagdo de Pesquisadores do Mundo Africano, sob a presidéncia de Cheikh Anta Diop; estes foram fatos positives para nossa organizacio internacional, comprometida na libertaglo total do continente. A Unigo dos Escritores dos Povos Africanos, patrocinadora da conferéncia, aprovou sua constituigZo e tomou. Grasticas decisies para a adogdo de uma lingua africana — o Swahili — como lingua franca pela qual todos os africanos pudessem finalmente comunicar-se entre si, Mas enquanto a lingua comum para o continente e a diéspora no for realidade, as dificuldades prosseguem; e eu teria de enfrentar novamente © problema da traducio, e, conseqiientemente, pressionado sob as implacaveis limitages de tempo. Dividido em duas partes, 0 Capitulo 3 & constituido de dois semindrios ministrados no Departamento de Linguas e Li- feraturas Africanas, Universidade de Ife, na Nigéria, Aquela €poca dirigido pelo professor Wande Abimbola, esse departa- mento cumpria ism papel extremamente relevante na erradagao dos males produzidos pela colonizacZo mental e cultural dos 30 Nessa linha de orientagdo, os valores africanos de cultura, religi&o, lingua, filosufia, ‘artes, historia, costumes — sistematicamente negados, distorcidos ou subestimados durante o colonialismo inglés’ — estéo sendo reafirmados, recuperados da marginalizagao, da degradacdo e da vergonha, reconhecidos e restaurados em suas inerentes e relevantes fungdes s6cio-cultu- rais, numa sociedade nigeriana que progressivamente assegura africanos, sua originalidade e soberania. A Universidade de Iie mantém ainda um Projeto das Culturas Africanas na Diéspora — sob a responsabilidade dos professores Abimbola, Soremekun e Akin- toye — © qual, por seus objetivos basicos, implicitamente esta envolvido em todos os movimentos, esforcos ou iniciativas referentes as culturas de origem africana nas Américas. Seria um ato de grande visdéo e sabedoria, no ambito da politica cultural pan-africana, se aquela universidade enfatizasse esse projeto dentro de sua estrutura académica, com recursos finan- ceiros e todos os meios necessdrios, a fim de que 0 Projeto pudesse expandir e estabilizar as atividades que tio auspiciosa- mente iniciou, com aprecidveis trabalhos de pesquisa, estudos intercambios entre Africa: o continente e a didspora. Aquele Seminirio do Corpo Docente, mantido pelo Departamento de Lisguas e Literaturas Africanas, foi para mim um forum alta- mente informativo e estimulante. Oportunidade de contato hu- mano e intercambio académico — embora fique consignado 0 cardter confessadamente nao-académico e nio-scholar de minha contribuigao. Minhas calorosas congratulagdes a0 Departamento por ter criado veiculo tao efetivo de aprendizado e ensino, Encerrando 9 volume, 0 Capitulo 4 transcreve minha contribuigo ao 1 Congresso das Culturas Negras nas Américas, acontecido em Cali, Colombia, em agosto de 1977, no qual apresentei, na qualidade de delegado do Brasil, o Projeto das Culturas Africanas na Diaspora, da Universidade’ de fz, Nigéria. Fui eleito pres'dente do Grupo de Trabaiho D — Etnia e Miscigenagdo; no fim desta Introdugfo transcrevo excertos das Conclusdes e Recomendagdes votadas por esse Grupo. Infeliz~ mente, 2s recomendagdes completas do Congresso nfo se achavam disponiveis quando organizava o presente livro, Entretanto estas que publicarei no final, votadas pelo Grupo D, foram aprovadas pela Assembléia Geral do Congreso, e originalmente redigidas em espanhol. Como assessora do grupo elegeu-se a antrupdluga colombiana Nina S, de Friedmann. 31 Sem diivida 0 congresso de Céli_marcou um passo adiante na historia africana da diaspora; pela primeira vez em 400 anos, os negros das trés Américas se reuniram, depois que seus ascendentes africanos, trazidos 4 forga para a escravizacao no Nove Mundo, foram divididos e isolados. © leitor dos Es- tados Unidos deve ter notado que evitei 0 uso do termo «afro- americanos ou enegro-americano» para qualificar os negros desse pais. Uma tentativa para estabelecer e afirmar o fato de que os Estados Unidos ndo esgotam as Américas: afro-amei canos negro-americanos podem ser encontrados desde o norte do Canada ao extremo sul da Argentina. O monopélio no uso dessa expresso pelos negros norte-americanos tende a obscure- cer neles a lembranga dos negros das outras partes do continente, © Congreso das Culturas Negras das Américas reforcou os liames de nossa unidade como povos negros de todas as Américas, Em Cali atuamos num ritmo e numa atmosfera bastante favord~ veis; nem as discussdes, nem as votagdes censura de cardter ideolégico ou repressao politico-partidéria. O ‘inico epis6dio negativo registrou-se nas tipicas manipulagoes burocrdticas, tradicionais no comportamento do racismo brasileiro € da ditadura militar que nos «governay, impedindo o compareci- mento da delegacgo brasileira ao Congreso, encabegada pelo historiador Clovis Moura, Teria sido a mais numerosa dele- aco no congresso, na correta proporcdo da presenga majoritaria afro-brasileira_ na respectiva populacéo do pais, bem como relativamente & populago negra especifica de cada pais ame- ricano, Entre as recomendagdes adotadas pelo Congresso, houve uma que apresentei apoiando e dando continuidade a decisio votada pela Unido wos Escritores Africanos, em Dacar: a re= comendagéo do ensino de uma lingua africana em todas as universidades de paises americanos com populaydo negra; assim, a longo prazo, em esforgo coordenado com a agio semelhante no continente, todos os africanos poderao um dia dispensar em sua comunicagio recfproca os intermedidrios linguisticos alienigenas, E oportuno mencionar aqui outro fato de relagio lingiistica: entre os eventos de Dacar e de Cali, teve lugar o Il Festival Mundial de Artes © Culturas Negras e Africanas, em Lagos Nigéria, em janciro-fevereito de 1977. Nessa ocasigo foi apro- vada pelo Coléquio daquele Festival uma proposta de minha autoria incluindo 0 portugués como uma das linguas off 32 odo futuro encontro internacional do mundo africano, Durante a discussfo € votagdo dessa proposta contei com o apoio decisivo do eminente te6rico e lutador negro norte-americano Dr. Ron Karenga. O relato completo de minha polémica participagio no Coléquio de Lagos, perturbada pelo constante esforco da dele- gacdo oficial do governo brasileiro em tentar me silenciar, esta fas paginas do meu tivo O Genocidio do Negro Brasileiro, edigdo Paz e Terra, 1978. Ao encerramento de seus trabalhos, 0 plendrio do Congreso de Cali tomou a deciséo de promover o II Congresso das Culturas Negras nas Américas, em 1979, no Panamé, assegurando a continuidade desse lago vital ao futuro dos povos negros no Novo Mundo. Esperemos que nessa préxima reunigo 0s negros brasileiros possam comparecer e participar plenamente, sem perturbagdes, restrigdes on ameacas. Quero por fim tornar piiblicos mens sentimentos de gratidao ao Centro de Pesquisas e Estudos Porto-riquenhos (Puerto Rican Studies and Research Center) da Universidade do Estado de Nova York em Buffalo (State University of New York at Buffalo), pelo apoio que tem dispensado a mim durante mais de sete anos. Meus colegas e hermanos Francisco Pab6n € Alfreclo Matilla, assim como os estudantes porto-riquenhos, tém sido fonte de inspirago, coragem e esperanca, em nossa Iuta comum pela descolonizacao, liberdade, igualdade e dignidade dos povos negros de Porto Rico e Brasil.’ Meus agradecimentos ao Departamento de Linguas e Literaturas Africanas, Universi- dade de Ife, pelo estimulo que me ofereceu durante 0 ano que lé passei como Professor Visitante, em Ilé-Ifé. Meu reconheci- mento estende-se ainda a todos aqueles que de uma forma ou de outra contribuiram para a existéncia deste livro, seja discutindo com 0 autor os temas e idéias nele contidos, seja colaborando na tradugo ou datilografando os textos. Entre estes se encon- tram Clévis Brigagéo, Nanci Valadares, Vera Beato, Kathryn Taverna, Maximo Soriano, Erica Fritz, e minha mulher Elisa, a quem este livro muito deve ALN. Universidade do Estado de Nova York Centro de Pesquisas e Estudos Porto-riquenhos Buffalo, 13 de maio de 1978 33 Asante, Molefi Kete (1978) Sys- tematic Nationalism and Lan- guage Liberation. Buffalo, New Horizons (Impublicado), Cabral, Amilear (1973) Return to the Source: Selected Spee- ches of Amilcar Cabral (ed. por Africa Information Service). New York and London: Monthly Review and. Africa Information Service Clarke, John Henrik (1974) Mar- cus ‘Garvey and the Vision of Africa. Nova York: Random House — (1977) eThe Development of Pan-Africanist Ideas in the Americas and Africa before 1900s. Lagos: Festac 77 Col- loguium, 1977 (Impublicado) Fernandes, Florestan (1972) 0 ‘Negro no Mundo dos Brancos. Sao Paulo: Difusio Européia 0 Livro. Karenga, Maulana Ron (1975) ‘ldeology and Struggle: “Some Preliminary Notes», Black Scho- BIBLIOGRAFIA lar, Sausalito, janezo-fevereiro (Vel, Vi, nt 8) p. 23-30, Madhubuti, Haki (1977) Enemies The Clash of Races, Chicago: Thied World Press Maglangbayan, Shawna (1972) Garvey, Lumumba, — Malcolm: Black "Nationalists" Separatiss, Chicago: © Third World Press Moure, Clévis (1977) . Devemos rejeitar tais julgamentos que em geral se revestem ou de uma perspectiva critica equivocada, de um apriorismo dog- matico, de um primarismo ingénuo, ou de uma distorcao ideo- légica maliciosa. Em verdade, a din&mica intrinseca as culturas tradicionais africanas & um dado que nao pode ser subestimado. Todo o conhecimento que se tem dessas culturas demonstra o oposto desse imobitismo que the querem impingir, como a propria razo de ser da produc&o cultural africana: sempre foi plastica, de extraordindria riqueza criativa, sem qualquer nogdo do que fosse xenofobia. Este & um fato’ irredutivel que ninguém pode deixar de reconhecer. Se houve uma quebra de sew ritmo ou algo como uma parada estética e ndo-progressiva em seu de- senvolvimento histérico, isto se deve a submissio pelas armas e por todo um aparato'ideolégico imposto pelo colonialismo as culturas africanas; ndo constitui, portanto, um fendmeno de imo- bilismo inerente a elas. Em face de tais criticas, sou levado a participar do sentimento expresso por Cheikh Anta Diop de que um sistema de citncia humana ou histérica para Africa, «. . .nfo parte de um terreno estritamente cientifico. Isto € 0 mais importante: nunca partir do caminho cientifico» (1977:31). As razdes desse acientificismo so Shvias, jA que grande parte da «citncias tem-se 45 provado apenas como instrumento de distorgéo, de opresso € de alienagao, De fato as culturas atricanas sio aquilo que as massas criam e produzem: por isso elas sto flexiveis ¢ criativas, assim como bastante seguras de si mesmas, a ponto de interagir ‘espontaneamente com outras culturas, aceitando e incorporando valores

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