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O LIBERALISMO É UMA FALÁCIA

Ricardo Holmer Hodara

Lá por 1979, eu havia começado a trabalhar na faculdade de Filosofia, ministrando aulas na


cadeira de Lógica do curso de Direito.
Eu me considerava um professor perfeito. Lógico, frio, sério e exato nos argumentos, recorria
ao dicionário sempre que possível e meu discurso era imbatível.
Eu era tudo isso e muito mais: ambicioso, no bom sentido - eu sabia que a Universidade, mais
cedo ou mais tarde, ainda teria que se curvar diante de meus triunfos.
Afinal, era muito raro, naquela época, o surgimento de um intelecto tão poderoso, capaz de ser
tão penetrante quanto um raio, capaz de voar tão alto quanto uma águia.
E por que era tão difícil surgir uma mente tão poderosa assim? Ora, a universidade, naqueles
tempos, estava coalhada de estudantes esquerdistas de intelecto inferior que usavam chinelos de dedo
e ridículas boinas pretas com estrelinhas vermelhas. E isso tudo funcionava como uma espécie de
moda invisível, quase um rito de passagem, entre aqueles que não aceitavam certos hábitos e
modismos "burgueses" e "alienadores".
Refiro-me àquela enorme quantidade de maníacos da libertação sexual e àqueles analfabetos
culturais que zanzavam pelo campus discursando em nome da liberdade, do marxismo e da sociedade
alternativa.
Formavam um exército de uma espécie híbrida rara, uma espécie hippy-trotskista que entraria
em processo de extinção rapidamente. Aquela gente me causava enjôo. Acima de tudo pelo fato de que
eu era um liberal autêntico, um defensor da verdadeira filosofia do individualismo.
Até parece que foi ontem! Lá estava eu, em minha primeira aula de Lógica para estudantes do
curso de Direito.
- Queridos alunos, fui logo dizendo, meu nome é Júlio Poppeira, mas podem me chamar de
Poppi. Sim, eu disse “Poppi” – não estranhem o apelido infantil – afinal, eu também desejava ser
popular entre os estudantes mais retardados.
- Sou o professor de Lógica, proclamei para a turma em alto e bom som ... mas antes que eu
conseguisse terminar, alguém bateu na porta:
- Professor, somos do Diretório Acadêmico e gostaríamos de falar um pouquinho com a turma
(“oi turma!”) disse o gordinho cabeludo, juntando, de forma ilógica, o ato de entrar na sala ao pedido
de entrar na sala!
- Permissão negada e retire-se já, exclamei.
Não adiantou.
- Estamos aqui, disse o gordinho, para oferecer essas boinas pretas que nos foram enviadas pelo
Movimento Trotskista Grego em Favor das Minorias OprimidaS (MOTOGREFAMO), e todo o
dinheiro arrecadado será utilizado na campanha brasileira em favor das minorias discriminadas
localmente ...
Era demais.
- Já chega, interrompi, ninguém aqui deseja comprar essas boinas pretas ridículas desse tal,
como é mesmo (???), desse tal Movimento Curdo pela Independência ou sei lá o quê.
- Por favor, retire-se, tenho que dar aula, determinei com a devida circunstância.
Finalmente, o gordinho cabeludo desistiu. Voltei à turma:
- Bem, vamos continuar sem mais interrupções. Como eu ia dizendo, quando Poppi fala, os
estudantes ignorantes escutam.
- E sabem por que isto sempre acontece?...
Um deles tirou os chinelos de dedo e arrotou, um outro parou de assobiar o hino da
Internacional Comunista ou coisa do gênero e um ou dois idiotas emitiram grunhidos ininteligíveis.
Então, aconteceu. Uma estudante, do sexo feminino (e que sexo feminino!), levantou-se, no
fundo da sala e disse, simplesmente e com uma voz maravilhosa, a seguinte frase mágica e de grande
profundidade:
- Isso tudo que você disse é mesmo verdade, professor Popíííí?

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A partir daquele momento, Raquel surgiu em minha vida. Era uma jovem de cabelos
encaracolados, quase negros. Raquel não era apenas uma escultura da natureza. Ela era "algo" sensual.
Passei a observá-la nos bares e pelos corredores do campus. Eu me escondia em posições estratégicas,
atrás dos pilares do prédio cinco, para conseguir observar com clareza aquela jovem.
E sabem de uma coisa? Ela mordia os sanduíches mais gordurosos do planeta e jamais
(jamais!) se lambuzava. Suas maneiras eram excelentes, sua utilização do idioma português era
perfeita.
Caminhava com absoluta discrição, era simples sem ser vulgar. Jamais levantava a voz, como
convém a qualquer mulher digna, e se comportava como uma princesa. E falava pouco.
Ela tinha cabelos lindos. Ela tinha um corpo lindo, ela tinha um nariz levemente arrebitado
lindo. Ela era linda. Ela usava as roupas mais requintadas. Ela pertencia a uma família tradicional. Ela
era a mulher perfeita!
Meu interesse, é bom salientar, era apenas racional. Tratava-se de uma mulher jovem, bem
educada e de uma família de estirpe. Raquel era o par ideal para um casamento ideal. Ela seria a mais
adequada das esposas, especialmente para um professor como eu, desejoso de crescer e ser
reconhecido. Um professor que não poderia continuar solteiro.
É verdade que havia um ou dois problemas. Raquel parecia não ser muito inteligente nem
esforçada, e também era verdade que não freqüentava bons ambientes, sempre envolvida com aqueles
barbudos comunistas e trotskistas do Diretório Central dos Estudantes. Mas, enfim, nada nesse mundo
é exatamente como se quer. E esse pequeno defeito de conduta, afinal, não importava muito. Sabem
por quê? Porque eu iria treiná-la! Sim, talvez eu não fosse capaz de transformá-la num Einstein de
saias, mas, por Deus, eu a ensinaria a pensar.
E mataria dois coelhos com uma só cajadada. Eu a tornaria capaz de freqüentar lugares
decentes e de meu interesse, como o Rotary clube e, além disso, no momento em que ela começasse a
pensar de forma lógica, certamente abandonaria aquela tropa de idiotas esquerdistas.
Por esse motivo, dei início a meu plano maquiavélico de conquista.
Logo após uma de nossas aulas, aproximei-me de Raquel e disse:
- Raquel, minha querida, as notas não vão muito bem.
- É mesmooooo, Poppíííííí, ela respondeu, franzindo a testa e fazendo beicinho.
- É exato, minha cara. Você precisa se esforçar mais. No entanto, (tive um curto acesso
de tosse nervosa), no entanto, minha cara, eu tenho a solução para esse grave problema: vamos estudar
as falácias.
- Vamos ... o quê?!! exclamou ela, arregalando seus lindos olhos azuis.
- Estudar Lógica a partir das falácias, acrescentei. Vamos estudar as leis do pensamento.
Isto é, eu vou te ensinar como fazer para pensar da forma correta.
- Que legal, “da massa”! Eu nem sabia que isso existia, Poppi! E deu umas puxadinhas
na manga do meu casaco. E quando vamos começar, professor?
- Agora mesmo, respondi, meio agoniado com tanta deficiência mental.
Fomos até uma salinha do campus, bem isolada, próxima da biblioteca de periódicos. Um
lugar neutro. Eu comecei.
- Muito bem, minha querida ... E antes que eu conseguisse terminar ela interrompeu:
- Vamos ao cinema, Poppi?
- Hoje não, respondi. Vamos estudar as falácias. Você sabe o que são falácias, Raquel?
E antes que ela pudesse responder eu disse:
- Falácias são erros de raciocínio, erros lógicos que, não importando o conteúdo daquilo que é
dito, são sempre afirmações erradas, inválidas, na medida em que são argumentos mal formulados.
Entendeu?
- Não, mas estou começando a gostar disso, ela respondeu.
Meu sangue começou a esquentar. Eu juro que jamais gostei desse tipo de resposta boba e
autocontraditória, mas tive que engolir em seco e dar um sorrisinho amarelo.
- Muito bem. Existem vários tipos de falácias, e se soubermos descobri-las, estaremos
aprendendo a não acreditar em tudo que ouvimos.
- “Da massa”, legal, ela disse. - Sabe, Poppi, nós realmente não podemos acreditar em
tudo que ouvimos por aí.

2
- Pois muito bem, suspirei. Se aprendermos o uso das falácias, estaremos aprendendo a
pensar melhor. Vamos começar com a falácia da Pergunta Complexa.
- Que legal, gostei do nome, me lembra uma amiga...
- Que bom que você gostou, interrompi, para não perder tempo. - Como eu ia dizendo, a
Pergunta Complexa não é de fato uma pergunta, é um argumento falacioso. Se não, vejamos. Eu
pergunto a um suspeito de furto, por exemplo, onde ele gastou o dinheiro roubado. Esta é uma
Pergunta Complexa. Eu estou pressupondo, dentro da "pergunta", que só existem determinadas
respostas possíveis de serem dadas e que são de meu interesse prévio. Parto do pressuposto indevido
de que o suspeito realmente roubou. Entendeu, minha querida Raquel?
- Ainda não, ela disse, meio envergonhada.
- Não tem problema. Vamos a outra falácia. Chama-se Falácia de Autoridade. Essa
falácia é muito usada por filósofos ignorantes ou pouco dotados. Imagine que estamos discutindo se a
pena de morte realmente reduz a criminalidade. Então, eu respondo que não, porque o grande doutor
Altemar Baleeiro, em sua grande obra, "Os Prolegômenos do Carrasco", disse que não, juntamente
com quatro outros famosos autores em diversas obras sobre o mesmo tema (obras que farei questão de
citar). - É uma falácia, porque ao invés de se atacar o mérito da questão em foco, simplesmente
invocamos citações ou nomes de autoridades sem raciocinar, sem realmente argumentar sobre o tema.
- Compreende o que quero dizer? perguntei. Ela me olhou seriamente e encostou, de leve, a
ponta de seu indicador na ponta do meu nariz, como quem diz "como você é inteligente" e sorriu para
mim. Deduzi que talvez isso significasse que ela havia compreendido a lição. Segui em frente. Agora
vamos analisar o Post Hoc.
- Que bonitinho! ela exclamou.
- Certo, é bonitinho, reconheci. O Post Hoc, ou falsa causa, procura associar uma
pessoa ou fato à determinada ocorrência subseqüente com a qual não possui qualquer ligação de causa
e efeito. Por exemplo: Toda vez que fulano vai acampar, chove.
- Tenho um amigo que é exatamente assim, ela interrompeu. É um verdadeiro pé frio. E,
Poppi, sabe que há muitas pessoas assim?
- Sei, Raquel, mas entenda, não é seu amigo que causa a chuva. Foram apenas
coincidências. Trata-se de uma falácia.
Devo lembrar que, depois dessa última manifestação de autêntico retardo mental, eu passei a
me sentir cansado, preocupado com a viabilidade de meus planos, mas não desanimei.
- Vamos agora a falácia do Ad Baculum, eu disse. Trata-se do recurso à força. Um certo
membro do clero afirma que aqueles que não admitem a virgindade de Maria serão excomungados,
perdendo suas almas imortais. - O que isso significa? Significa que ele está tentando convencer seus
colegas pela argumento da força e não pela força do argumento, como deveria ser, caso não se tratasse
de uma falácia. Ela me interrompeu de novo:
- Tive um professor de religião que era bem assim, comentou, e era um padre bem
velhinho ...
- Que ótimo, depois você me conta, atalhei. Bem, resumi, ainda temos, por hoje, a
falácia do Dicto Simpliciter, ou argumento não-qualificado.
- Veja, minha querida: Todos devem se exercitar e reduzir as calorias na alimentação, você não
concorda? Ela sacudiu a cabeça, concordando.
- É isso mesmo, ela disse. Eu faço ginástica três vezes por semana. Acho que todo
mundo deveria se preocupar com isso, inclusive você, Poppi.
Fiz de conta que não percebi a indireta e continuei:
- Hahá, exclamei, você cometeu um Dicto Simpliciter, minha cara. - O exercício é
muito bom para você ou para mim, mas certas pessoas não podem se exercitar e nem devem modificar
suas dietas. Pessoas doentes ou com algum tipo de problema físico grave. O erro é que nossos
argumentos devem ser qualificados, isto é, devemos especificar em que tipo de casos a palavra "todo"
deve apresentar exceção. E essa falácia, é bom que se diga, é parente da falácia da Generalização
Apressada.
- Imagine, minha gatinha, que nossos colegas não são hippies, eu não sou hippie, você não é
hippie e daí concluímos que não há nenhum hippie aqui no Campus. - Você concordaria com isso?
- Não há nenhum, mesmoooo? Então eu ando tendo alucinações. Você tem certeza,
Poppíííí?

3
Eu já estava ficando nervoso. O caso era mais grave do que eu havia suposto. Respondi, com
firmeza:
- O conteúdo existencial não importa, Raquel. Nós simplesmente não podemos afirmar
que não há hippies no campus sem antes esgotar o universo das possibilidades. Se afirmarmos isso,
sem esgotar as evidências, estaremos incorrendo na falácia da Generalização Apressada.
Ela se ergueu da cadeira de braço e disse, choramingando:
- Nunca mais faço isso, Poppi, eu prometo!
Ergueu dois dedinhos até a linda boquinha e os beijou duas vezes, selando a promessa. Que lindinho!
Deus, aquilo me causava dores cerebrais, aquilo estava me matando, mas prossegui a explanação. O
que mais eu podia fazer?
- Muito bem e sem mais embargo, vamos continuar. Existe, também, o Ad
Misericordiam . - Imagine, minha doce aluna, que um advogado, no afã de salvar seu cliente da prisão
por roubo, começa dizendo que "meu cliente é um pai de família pobre. Seus filh os estão passando
fome, sua mãe era prostituta e alcoólatra. Esse pobre infeliz nunca teve a menor chance na vida..." e
etc.
Nesse momento, notei que Raquel estava soluçando de compaixão e que se agarrara em meu
braço. Murmurou alguma coisa sobre a infelicidade do povo brasileiro ou qualquer outra bobagem
sobre o lumpem proletariat . Exigi mais compostura, pedi que sentasse e que se comportasse e só então
continuei.
- Esse advogado, minha querida, não está analisando o mérito da questão, nem está
tentando realmente provar que seu cliente não é ladrão. Incorre na falácia do Ad Misericordiam. E
também há outra falácia, muito usada, chamada de Envenenar o Poço.
Digamos que um colega seu, aquele delinqüente esquerdista do Carlos Marashuk, lá do
Diretório Central dos Estudantes que nunca pára de citar Karl Marx, resolvesse discutir com você
sobre a validade da obra de Popper e que dissesse, de saída, que Popper era membro das “cortes”
reacionárias da burguesia, um representante do continuísmo oficial, um velho "reaça", um porco
chauvinista; que era um filósofo que vendia a pena, um ególatra, um alienado da realidade social, ou
que vivia fazendo citações de seus próprios livros e mais não sei o quê. - Onde está a falácia, Raquel?
Ela parou, pensou um pouco, salt ou da cadeira e gritou:
- Já sei! Não é nada justo! Ele está massacrando seu interlocutor antes que o mesmo
tenha chance de argumentar; está fazendo pressupostos a seu respeito, sobre sua capacidade
intelectual, que de fato desconhece e que nada tem a ver com o mérito da discussão. E tudo apenas
para enfraquecer seus futuros argumentos de forma logicamente ilícita, e não para tentar chegar à
verdade através da própria argumentação.
Senti uma leve tontura e, reconheço, pela primeira vez em minha vida fiquei realmente
espantado com alguma coisa.
- É, disse eu, o caso não está perdido. Muito bem! Você acertou, é isso mesmo. E ainda
existe a Falsa Analogia. Eu penso que devemos peticionar ao nosso reitor católico, exigindo que os
banheiros do campus passem a ser mistos, porque a Sociedade Liberta, uma entidade feminista radical,
lá em sua sede, optou pelo fim da discriminação e separação sexual nos banheiros (e nas camas...). -
Não seria uma boa?
Raquel olhou fundo nos meus olhos, virou-se para mim e respondeu, lentamente e com um
tom maternal:
- Você ainda se preocupa com essas questões, meu querido Poppi, eu jamais poderia
imaginar. Logo você! Pode desabafar. Talvez, conversando sobre esse seu dilema, quem sabe as coisas
melhorem para você.
Eu não consegui mais me segurar e tive um acesso.
- É uma falácia! Apenas uma "merda" de uma falácia! Comparar o campus inteiro com
a sede da Sociedade Feminista Liberta é uma Falsa Analogia! As moças daqui não pensam como as
moças de lá, pelo menos não todas. Que diabo!
Fez-se um silêncio ao redor. Um ou dois estudantes fofoqueiros apareceram na porta para ver
o que estava acontecendo. Enquanto isso, minha pressão arterial ia se regularizando. Raquel levantou-
se e exclamou:
- Poppi, se você continuar gritando eu vou embora. Acho que gritar e dizer palavrões
também deve ser algum tipo de falácia.

4
- Muito bem, respondi, já estávamos mesmo no fim da aula. Amanhã, decretei, espero
encontrar a minha aluna predileta na exposição pública sobre as vantagens do liberalismo. Eu serei o
palestrante. Posso te aguardar na palestra? perguntei em tom marcial.
- Poooode, Poppi, ela respondeu quase dengosa.
Raquel, então, despediu-se de mim com dois daqueles beijinhos no rosto, beijinhos clássicos
de apaixonados, e eu senti que a parada estava ganha. Ela havia caído na rede. Certamente percebera
minha potência intelectual superior e, é claro, havia se apaixonado por mim. Ela seria minha.
O dia da palestra havia amanhecido frio e chuvoso na UFRGS. O auditório do prédio das
Humanas estava lotado. Cento e cinqüenta estudantes fumando e bebendo cerveja, desocupados e
sorridentes, com suas ridículas estrelinhas vermelhas e chinelos de dedo (apesar do frio) ocupavam a
totalidade da sala.
Essa presença maciça não deixava de ser um pouco estranha. Por que a palestra estava sendo
tão concorrida? Resolvi não me preocupar muito com aquilo. Afinal, naquela época, era bastante
comum encontrar jovens estudantes, na maioria esquerdistas barulhentos, participando de eventos e
palestras que a rigor só interessariam a especialistas e professores de grande capacidade intelectual e
renome acadêmico (como eu mesmo).
O que mais se poderia fazer? Aquela garotada lunática e ambiciosa achava que podia mudar o
mundo. E seus pais, ahá, coitados, estes sustentavam a corja toda e não eram operários, vejam bem,
eram gente de classe média ou alta.
Seus filhos não passavam de revolucionários de carnaval, comunistas de araque. Esquerda de bar.
Mesmo assim, eu achava bom ter platéia.
Faltavam dez minutos para o ni icio e nada de Raquel. Eu estava impaciente. O vice-reitor e o
coordenador da comissão de carreira da Filosofia já estavam devidamente sentados ao meu lado, com
seus microfones ligados à parafernália eletrônica, a qual estava conectada a um enorme gravador de
rolo destinado a ser o instrumento necessário a criação de um futuro livro, uma coletânea de minhas
palestras contrárias ao socialismo.
Eu contava publicar esse livro com a ajuda da Liga dos Jovens Empresários Gaúchos, a
chamada Ala Moça da ARENA e, com isso, dar ao mundo inculto e preso às tolices do discurso
marxista, aquilo que o mundo mais necessitava: tomar conhecimento da minha existência. E, além
disso, das vantagens do liberalismo.
O tempo passava, muita impaciência e nada de Raquel. Talvez, quem sabe, houvesse
adoecido. Talvez chegasse atrasada. Eu rezava para que ela não perdesse aquele meu momento de
triunfo. Meu sucesso faria bem ao nosso relacionamento, a deixaria mais impressionada, mais
apaixonada e próxima de um eventual casamento.
Bem, teríamos que começar sem ela. Nosso coordenador tomou o microfone:
- O professor Poppeira, foi logo me apresentando, está aqui para nos falar sobre as
vantagens do liberalismo. E, ato contínuo, comecei minha palestra.
- Platéia, eu disse, talvez vocês, que aqui estão reunidos, em sua maioria estudantes, já
tenham ouvido a palavra "liberalismo". Apesar dessa minha presunção, tentarei definir a coisa toda
através de uma pergunta.
- Que tipo de regime político vocês prefeririam? Um regime liberal que garantisse amplas
liberdades individuais e crescimento econômico, ou um outro regime, socialista, que somente fosse
capaz de garantir a ditadura de um Estado gigante?
Percebi uma agitação no fundo da sala. De repente, uma escultura em forma de mulher se ergue e diz:
- Pergunta Complexa. E ainda acrescenta: - Que feio, Poppi! Você não deveria usar falácias com a
turma.
Era Raquel, Raquel estava lá! E voltou a sentar. Por um segundo eu me senti paralisado, mas
ainda consegui dizer:
- Alguém ... alguém, balbuciei, alguém disse alguma coisa? (risos)
Raquel, na última fila, estava escondida em meio a uma súcia de barbudos comunistas. Ela
levantou-se.
- Eu, aqui, Poppíííí, ela gritou, dando uns pulinhos.
- Falácias, ela foi dizendo, falácias nunca devem ser usadas quando desejamos
esclarecer as coisas. São sempre falsos argumentos, não importando o conteúdo daquilo que é
afirmado. Foi você mesmo que ensinou. Por que nós seríamos obrigados a escolher entre um regime

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liberal maravilhoso e um regime socialista miserável? Você limitou nossas respostas a um leque de
respostas que era de seu prévio interesse. Esta é a falácia da Pergunta Complexa.
E, com a mesma tranqüilidade da primeira aparição, Raquel voltou a sentar-se.
- Muito bem, eu disse, respirando fundo. Muito bem, você já mostrou que aprendeu
alguma coisa. Estou satisfeito. - Por favor, eu disse, alguém pode trazer um copo d’água? Veio a água.
Bem, vamos continuar nossa palestra (mais risinhos).
- Como vocês sabem, retomei, o mundo se divide entre aqueles que são partidários de
um Estado reduzido, de um governo liberal. Nós chamamos a estas pessoas sensatas de liberais. Nesse
tipo de governo, todas as principais tarefas são deixadas a cargo de quem realmente entende de
administração: os empresários. - Os outros, continuei, os outros indivíduos são partidários do
socialismo. Defendem um Estado gigante e burro, autoritário. Um estado inchado, incapaz de oferecer
boa educação, saúde pública, ineficiente em tudo. Um Estado enorme, semelhante ao que existe hoje
no Brasil. E fui interrompido por uma voz que começava a se tornar conhecida.
- Poppíííí, querido Poppíííí, disse Raquel, cantarolando os "ás": Falsa Analogia!
- O que disse, o que disse? eu retruquei (risos). Ela respondeu:
- Eu disse "Falsa Analogia", outra falácia. Você está dizendo que meus amigos de
Esquerda, essa gente que foi torturada, exilada e que lutou na guerrilha, gente que hoje está
construindo um partido de trabalhadores, gente que odeia o Estado militar poderoso que aí está, você
está dizendo que essa gente defende esse mesmo tipo de Estado só porque defendem um Estado
grande?! - Como pode, Poppi, lançar falácias tão, tão ... feias e cruéis? (assobios).
Eu precisava conter a situação. Dei dois tapinhas no microfone e pedi silêncio com aquele meu
merecido ar de superioridade.
- Calma, minha gente, calma. Eu estava me referindo apenas ao tamanho do Estado ...
- E dando ênfase a isso, atalhou Raquel, você foi logo se esquecendo do mais
importante, da natureza do Estado. Esqueceu de dizer a quem o Estado realmente serve, de onde vêm
as ordens, quem realmente manda e em favor de quem. - E pior ainda. você, Poppi, tentou confundir o
público através de uma falsa analogia, dizendo que os socialistas são a favor de um Estado que de
fato odeiam, simplesmente porque este Estado também é grande.
Houve uma chuva de aplausos. E um monte de caras feias barbudas na minha direção.
Reconheço que comecei a sentir uma certa aflição. O coordenador me olhou duas ou três vezes com o
canto dos olhos, enquanto o vice-reitor olhava para cima, para baixo, para os lados. Raquel havia sido
muito bem doutrinada, não havia a menor dúvida. Eu senti que poderia passar por ridículo diante do
reitor, e resolvi me defender:
- Apesar da senhora Raquel, não estou aqui para lançar falácias. Entendam como
quiserem. Eu sou um professor, um letrado, um poderoso cérebro pensante liberal! (vaias) E pretendo
continuar a palestra, se me permitirem. E continuei minha fala.
- O que vocês, meus queridos alunos, pensam que está dando certo no Mundo? Olhem
ao redor de vocês! Países capitalistas, sim, países capitalistas dando certo! Olhem a prosperidade dos
Estados Unidos, Japão, Alemanha Federal. Vocês não desejam isso para o Brasil? Pois bem, basta que
sejamos realmente capitalistas!
- Generalização Apressada, disse uma voz sedutora e conhecida. Era Raquel. Raquel de
novo!
- O fato, Poppi, é que não podemos dizer que o capitalismo é bom a partir de três ou
quatro exemplos. O mundo possui mais de cento e cinqüenta países, a maior par te deles em estado de
pobreza absoluta e fazendo parte do chamado capitalismo periférico. Outros, desenvolvidos e
capitalistas, como a Inglaterra, estão passando por violentas crises econômicas. Para não falar da
injustiça social e racial em meio à abundância, como nos Estados Unidos.
Alguém interrompeu Raquel e gritou, de uma das cadeiras da terceira fila:
- Não é possível que esse professorzinho reaça continue tentando nos iludir com falácias!
Alguns estudantes se levantaram. A coisa não estava nada boa. O reitor virou-se para mim e
sugeriu que eu fosse ao banheiro. Nada disso, meu caro amigo, eu disse. E nada tema, com Poppeira
não há problema! Vou domesticar essa turba de selvagens. Gritei:
- Silêncio, tropa! Não vou admitir mais desrespeito por parte da senhora Raquel ou
desse rapaz da terceira fila. Todos que aqui estão, afinal de contas, vieram a este recinto ouvir minha

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palestra. Estão aqui para me prestigiar e ao senhor vice-reitor e demais autoridades. E antes que eu
terminasse, uma voz suave, feminina e terrível completou: - Post Hoc, falsa causa.
- Você está enganado, Poppi, disse Raquel. Dentro de meia hora vai haver a
apresentação de um grupo de teatro anarquista, aqui mesmo, nesse salão. É por isso que tem tanta
gente aqui.
Eu senti uma vertigem. A sala inteira estava rindo. Havia comunistas, anarquistas, socialistas,
esquerdistas de todo gênero e estavam juntos, todos, e rindo. Rindo, rindo! Rindo e debochando de
mim! Ridicularizando o liberalismo. Pensei comigo mesmo: chega, vou atacar essa alcatéia vermelha e
é prá já.
- Muito bem, eu disse, vocês são todos paquidermes vermelhos, soldados do
comunismo, uma súcia de seguidores de Trotsky. Muito bem, eu vou dizer uma coisa para vocês ... E
antes que terminassem minhas reticências, fui interrompido por uma voz feminina, quase dengosa
porém terrível, terrível:
- Dicto Simpliciter, argumento não-qualificado.
Era a voz dela, ela, ela de novo...
- Poppi, Poppi ... você só poderia ter a certeza de que TODOS aqui são paquidermes
vermelhos comunistas depois de esgotar as evidências. Você não conhece todos os estudantes que
estão aqui. Além disso, não creio que nosso querido vice-reitor seja um paquiderme ou outro animal
do gênero.
Meu sangue subiu à cabeça. Eu mordi os lábios. E disse:
- Eu sou um professor universitário! Eu estou aqui em cima, vocês, do auditório, estão
aí embaixo! (vaias intensas, barbudos de pé). - Eu sei mais que vocês, eu sou mais que vocês, eu sou
graduado e até já escrevi um manual que pode ser usado como livro-texto!
- Falácia de Autoridade, gritou uma voz inesquecível, mas eu continuei falando: - Sou eu que
dou as notas, sou eu quem determina quais estudantes vão passar ou rodar no fim do semestre.
- Ad Baculum, gritou uma voz conhecida, quase abafada pela balbúrdia, no fundo da sala -
Argumento da Força.
- Chega de mentiras! gritavam alguns. Imediatamente, fez-se um silêncio quase total. Assim, de
súbito. Podíamos ouvir uma folha cair.
O gordo enorme que estava ao lado de Raquel, sentou-se. E Raquel, que estava ao seu lado
cochichando sobre falácias, creio, levantou-se, toda prosa e com o dedinho em riste.
- Sim, Poppi, chega de falácias, disse ela com a voz embargada. Falácia de Argumento
de Autoridade seguida por um nojento Ad Baculum , ameaçando, de forma nada sutil, rodar os alunos
mais desafiadores. Poppíííí, nós não merecemos isso. E começou a soluçar que dava dó! Raquel
sentou-se. Os risos e vaias cessaram por um minuto. Muito bem, eu pensei, vou começar a tripudiar.
Então, comecei meu ataque final:
- Vocês, estudantes idealistas, são todos comedores de hamburguers, ouvem rock todo
dia e adoram coca-cola. A TV ama o capitalismo americano e a sociedade de consumo. Vocês
também. A maioria, incluindo os pobres que não consomem, gosta disso, desse "consumismo podre",
ou não gosta? Logo, o capitalismo selvagem deve ser uma boa.
Alguém, com voz feminina, ainda soluçante, levantou-se e disse:
- Ad Populum. O que diz a maioria não é, necessariamente, a verdade. Isso que você
disse é mais uma falácia, não é argumento. Amaioria dos alemães apoiava o nazismo, mas o nazismo
quase liquidou com todos os alemães. Outra falácia do professor Poppi, disse Raquel. Resmungou
alguma outra coisa baixinho e permaneceu sentada, chorosa.
Como essa falácia não estava no repertório que eu havia ensinado, perguntei, então, depois de
pedir silêncio ao público:
- Raquel, minha queridíssima aluna, onde foi que você aprendeu essa nova falácia?
- Poppi, ela respondeu, você pensa que você é a única pessoa que lê livros de lógica? Eu
acho, Poppi, disse ela, voltando-se para a turma, que existe aqui, neste exato momento, uma falsa
analogia muito sutil.
- Nós, Poppi, não somos esquerdistas inconseqüentes e você não é um verdadeiro professor.
Você, "professor" Poppeira, parece que está sempre mais preocupado em convencer alguém, ao invés
de ensinar. Mais preocupado em vencer algum inimigo, ao invés de investigar a realidade. - Olha,
Poppi, vou dizer uma coisa que aprendi com o pessoal “italiano” do MEP. Eles dizem que a maior

7
parte da filosofia é ideologia disfarçada. Eu penso que eles tem razão e, nesse caso, você, Poppi, não
passa de um ideólogo mascarado (soluços, voz embargada). E eu agora acho isso tudo muito feio e
vulgar.
Ela havia parado de soluçar. A turma estava em silêncio. E a minha paciência havia se
esgotado.
- Está certo, eu respondi. Você, Raquel, e talvez parte desse bando de eurocomunistas
que está com você, os tais membros do MOP...
- “MEP”, gritaram.
- Sei lá o nome, respondi. - Talvez vocês sejam lógicos (dei uma risadinha). Assumi um tom
profético e acrescentei: - Até pode ser verdade que vocês sejam capazes, mas vou contar a vocês um
segredo. O maior inimigo da "Causa Operária" está, nesse exato momento, na casa de cada um de
vocês e é movido à eletricidade e bancos, dólares e ambição pessoal. Trata-se da competição
individual na busca da solução de problemas que serão, tão acidentalmente quanto intencionalmente,
um dia compartilhados por todos.
- E para o bem de todos, incidentalmente. É o único método eficaz possível. E também é o
futuro de vocês mesmos! - Em breve, creiam, em poucos anos, gente como vocês, estudantes
vermelhos inteligentes como vocês, não mais existirão, não mais se formarão. Ou, caso existam,
estarão convertidos em seitas místicas, culturalmente isoladas, constituídas por pessoas de mentalidade
esquerdista conservadora ou de inteligência reduzida.
As risadinhas pararam, aos poucos. Depois de uma fração de segundo em silêncio, observei
alguém, na quinta fila, abaixar-se para pegar alguma coisa no chão.
Essa “coisa”, então, voou na minha direção e senti uma ardência na orelha direita. Um chinelo de
dedos velho, de um hippie, havia me atingido. Os barbudos e cabeludos estavam furiosos. Levantei-me
apressado e derrubei dois copos de água mineral nas costas do vice-reitor que já estava em franca
retirada.
A debandada foi geral. Corri na direção da porta e me refugiei na agência bancária do campus,
atrás de um sentinela armado.
Algumas horas depois do tumulto, encontrei Raquel no balcão de um barzinho. Puxei-a para
um canto e fui dizendo, furioso:
- Como você me fez passar por tudo aquilo??!! Como pode preferir conviver com
aqueles barbudos fedorentos? Com aqueles “esquerdinhas” decadentes? Como você pode preferir sair
com um idiota como aquele seu colega, como ele se chama mesmo?
- Carlos, respondeu Raquel, mas por favor, Poppi, você ainda não aprendeu, depois de
tudo que houve? Pare de envenenar o poço, senhor Poppi.
Eu engoli em seco e procurei me controlar.
- Você, Raquel, é uma mulher ambiciosa e de boa família. O que um pobretão idiota
como o Carlos poderia te oferecer? O que ele pode te oferecer que eu não possa? E ela respondeu:
- Você quer saber mesmo, não é?? Ele me presenteou, alguns dias atrás, com a coisa
mais linda e fina do mundo: um presente finíssimo, raríssimo, todo feito à mão. - Uma imponente
boina preta com estrela e tudo, enviada pelo Movimento ... (ela hesitou por um segundo), pelo
Movimento Turco de Libertação das Maiorias Oprimidas. É esse o nome. E só havia dez boinas à
venda em todo o campus, e não se trata de dicto simpliciter. Só dez boinas!
Eu não podia ser derrotado, dessa forma ridícula. Voltei à carga e argumentei:
- Raquel, até pode ser que eu não seja o par ideal para você. Afinal, você provou que é
inteligente e aprende rápido. Quanto a mim, sou apenas um pobre pretendente, um homem simples que
deseja ficar ao seu lado. Alguém que não se importa em ser ofuscado pela beleza de uma grande
mulher. Sou apenas um humilde professor solitário e triste. Então, minha querida, o que você me
responde?
- Ad Misericordiam, ela disse. E saiu do bar em direção ao Diretório Central dos
Estudantes.

Esse conto foi inspirado no conto norte-americano de Max Shuman, “O Amor é uma falácia”

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