A criança para Freud não é uma etapa superada nem um momento
do desenvolvimento cronológico para sempre esquecido. A novidade que a psicanálise introduz é que a infância retorna, volta, irrompe, impõe-se, e que nossos desejos bebem nela. Nenhuma insígnia ligada à idade adulta – casamento, trabalho, profissão, paternidade etc. – evitará que, ao falar de nós, invariavelmente remetamos a esses primeiros passos e finalizemos fazendo referência a termos sido filhos de… Lacan indicará como a criança se constitui a partir do desejo do Outro, e Freud descobrirá a sexualidade infantil como situada a destempo. As marcas desse desejo e dessa sexualidade – que é traumática, visto que o infante não tem um psiquismo que a possa tramitar – perduram durante toda a vida. Em 1925, Freud pensou que uma das causas das neuroses era o longo período de dependência do infante em relação ao adulto. O desvalimento infantil, que não se encontra em crias animais e sim no homem, faz com que a criança fique exposta às vicissitudes do desejo dos pais e a seus caprichos. Até mesmo a criança mais amada e certa de causar satisfação começa a sentir esse amor como asfixiante. Seja por excesso de cuidados ou por abandono, pela pluralidade daqueles que reivindicam a parentalidade ou pela redução ao monoparental, seja pelo referente ao casal heterossexual ou homossexual, a criança se apresenta como remetida à opacidade de um desejo que desconhece. Ela construirá teorias sobre sua origem, sobre a reprodução, sobre a sexualidade, sobre os grandes enigmas do universo e, por uma estranha satisfação, repetirá jogos e gostará que lhe leiam as mesmas histórias, como se essa repetição garantisse uma permanência. O espaço será configurado com lugares conhecidos e seguros; outros objetos de angústias e fobias marcarão uma cartografia, que delineará um território. O “empuxo a ter um filho” nos fala de um olhar posto no infante que parece assegurar perdurabilidade em tempos de “amores líquidos”: frágeis e inconstantes. Tais pais tomam o filho como propriedade e não aceitam o limite necessário gerado pelo outro pai. A falta de limites, tão comum na infância, costuma remeter a tal presunção; assim, a criança de nossos dias parece nascida de um, e não de dois. Você sabia que… Freud descobre a sexualidade infantil em sua análise? Cabe pensar no lugar da criança na atualidade. Abundam inúmeros exemplos associados ao crime, à pedofilia, à prostituição, ao trabalho infantil etc. Todos têm em comum excessos sem medida dirigidos ao menor. É importante destacar que esses maus-tratos registraram um grave aumento nos últimos anos. Assim, a utilização da criança como objeto de gozo do adulto está, infelizmente, na ordem do dia, causando estupor e revolta. No outro extremo, aparece a criança estimada, figura adorada e buscada a qualquer preço; o anseio por tê-la exerce uma força de atração irresistível. As crianças se mostram tal qual ouropéis, peças de valor inestimável; as atrizes os exibem em fotos caras ou cobrem seu rosto temendo sequestros; a roupa infantil é a mais vendida e cada vez imita mais a do adulto. Mulheres e homens querem ser pais incondicionalmente: com parceiros heterossexuais, homossexuais ou sem parceiro algum. O “empuxo a ter um filho” é poderosíssimo; em nenhum momento da história, seu sitial foi assunto de tantos olhares como na atualidade. Tanta atenção se reveste de diversos ribetes: na arena, no trono, como vítima do gozo pervertido e como o bem mais estimado, sua figura é central em nossa contemporaneidade. A criança atual torna-se independente da união parental, assim como da família, hoje em crise – pelo menos em suas figuras tradicionais. Éric Laurent destaca seu lugar como objeto, desvinculado do discurso familiar. O nascimento de uma criança se libera da existência da família de tal maneira que – afirma esse mesmo autor – é a própria criança que cria a família, longe de ser criada por ela. Ele se refere, com isso, aos inúmeros casos em que o nascimento precede o casamento, não o inverso. O eixo comum que governa as novas maneiras pelas quais o infante vem ao mundo é o de não ficar dependente das estruturas de outrora, e tal desvinculação o identifica com o que Lacan denomina “o objeto a liberado”. Os casais parecem não resistir ao passar do tempo. Cada vez a convivência é mais difícil, cada vez dura menos, cada vez a relação amorosa se desfaz mais rapidamente. Sempre se soube que a proximidade excessiva era inimiga do amor, mas talvez o novo seja a fugacidade com que tal proximidade afeta o vínculo, a ponto de rompê-lo prematuramente. E, mesmo sem chegar à convivência, as uniões estão – na maioria das vezes – marcadas pelo efêmero. Assim, o filho parece dar uma ideia de permanência quando os amores são tão fugazes. A criança leva como herança os ideais e as misérias da maneira como veio ao mundo. É um ímã que atrai e condensa os ditos que precederam seu nascimento e configuram sua existência. Em 1914, Freud vê no amor parental, tão comovente e infantil no fundo, o deslocamento do antigo narcisismo perdido e depositado agora no infante. Nessa idealização da qual a criança é objeto nega- se sua sexualidade, como se faltasse em tal apreciação: A superestimação, marca inequívoca que apreciamos como estigma narcisista já no caso da escolha de objeto, governa, como todos sabem, esse vínculo afetivo. Assim, prevalece uma compulsão a atribuir à criança todo tipo de perfeições (para a qual um observador desapaixonado não descobriria motivo nenhum) e a encobrir e esquecer todos os seus defeitos (o que mantém estreita relação com o desmentido da sexualidade infantil). Freud descobre essa sexualidade negada pelos pais e expulsa da economia narcisista. Certamente eles, diz Lacan, “farão reflexões como ‘Meu filho é muito bem-dotado’. Ou ‘Terá muitos filhos’. Em resumo, a apreciação que aqui se dirige ao objeto – claramente parcial – contrasta também com a rejeição do desejo, no momento do encontro com o que urge o sujeito no mistério do desejo… É apreciado como objeto, é desprezado como desejo”. Claro que convém esclarecer que o objeto a que Lacan se refere é o adorno que, tal qual ornamento precioso, se articula com o ego ideal freudiano. Embora tais observações continuem tendo vigência na atualidade, vemos aparecer também outra figura: a criança como objeto antes que como ideal. O empuxo a ter uma criança parece não conhecer barreiras nem de sexo, nem de idade, nem de estado civil, nem de orientação sexual. Em diversos casos, e de maneira bastante destacada, chama a atenção em si mesmo o lugar que tem o infante, e não como fruto ou consequência da união entre seus pais. Ouvem-se alguns homens dizendo que se não encontrarem a mulher certa, alugarão um ventre, e para as mulheres a alternativa do sêmen anônimo está no horizonte. Já em ausência de parceiro, ou com parceiro do mesmo sexo, a ciência superará o impedimento. Não é um fato menor que pelas novas tecnologias a reprodução tenha se desligado da relação sexual. Sêmen anônimo, barriga de aluguel e outros tantos procedimentos fazem com que a gestação prescinda do contato entre os corpos.