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MEIA, MEIA, MEIA 1

Sayuri Ikeda da Costa Silva2

Resumo: O presente artigo propõe uma obra de arte que


discuta as violências silenciosas da religião no corpo e na
sexualidade. Procura denunciar e sensibilizar o espectador
sobre o peso dos discursos religiosos nas relações do eu com
o próprio corpo e entendendo a sexualidade. A direção de arte
e inspiração tem como referência o documentário Lesbian
Mother de Rita Moreira e o filme Triolets de Dora Maurer. Já as
relações entre corpo e vídeo, seguem a base teórica o artigo
“Videoperformance: corpo em trânsito” de Luciano Vinhosa e
para as relações entre corpo e religião o artigo “Religião,
sexualidades e gênero” de Valéria Melki Busin e o livro “O
Sagrado e o Profano” de Mircea Eliade.

Palavras-Chave: Corpo; Religião; Sexualidade.

Introdução

A obra tem como principal objetivo denunciar as violências silenciosas que


pessoas LGBT’s passam ao se assumir e o peso dos discursos religiosos na
sexualidade utilizando-se de alguns símbolos e rituais da Igreja Católica para
reforçar subjetivamente o discurso.
O Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil denuncia que
durante o ano de 2022 ocorreram 273 mortes LGBT de forma violenta no país.
Dessas mortes 228 foram assassinatos, 30 suicídios e 15 outras causas. (Dossiê de
mortes e violência contra LGBTI+ no Brasil, 2021).
Os dados acima revelam que nos últimos anos, há uma crescente de mortes
por preconceito e intolerância, evidenciando a falta de políticas públicas que

1
Trabalho final da disciplina Atêlie de Projeto Integrado: Corpo e Vídeo do curso de Artes Visuais da Faculdade
Belas Artes no 7º semestre do ano de 2023, com orientação da Professora Dra Carolina Lara Kallas.
2
Sayuri Ikeda da Costa Silva, RM: 20100189, estudante de Bacharelado em Artes Visuais da Faculdade Belas
Artes de São Paulo; e-mail: sayuri.ikeda@outlook.com

1
protejam essas vidas e clareia-nos de que a intolerância está ligada de forma
indireta à religião, a heteronormatividade e os enraizamentos dos padrões, tanto
ligados ao gênero, quanto os ligados à sexualidade. O Brasil está entre os países
que mais matam LGBT’s, sendo a maior parte mulheres trans, em seguida gays,
lésbicas e por último, homens trans; as principais causas dessas mortes são:
assassinato (83,52%), suicídio (10,99%) e outras causas (5,49%). Ser LGBT+ no
Brasil, é estar fadado ao preconceito e a moralismos cristãos, por isso, é importante
o apoio familiar ou alguma rede de apoio que ofereça segurança e proteção.
A ligação do preconceito, assim como exercer certos papéis, o conceito de
família, vem do Catolicismo, historicamente, a primeira religião que temos como
herança da colonização portuguesa.
A dificuldade do presente artigo, é como sensibilizar o espectador sobre
como os discursos religiosos podem violentar o corpo, violências essas que muitas
vezes são silenciosas e que geralmente atingem o psicológico e a autoimagem.
Pensando nisso, a obra pretende de forma subjetiva e silenciosa, construir de forma
a não narrativa os pesos das palavras e das ações, no caso da obra, colocados
como rituais básicos da Igreja Católica
O seguinte artigo segue a concepção da obra e direção de arte inspirada no
documentário de mesma temática Lesbian Mother de Rita Moreira e o filme Triolets
de Dora Maurer para a estrutura com quebra de narrativa e edição.
Quanto às relações entre corpo e vídeo, VINHOSA (2020, p.298) define que
“o corpo performado em vídeo, entre dois estados de representação e de
contaminação mútua, seria residual e instável – a performance propriamente dita e
sua imagem desdobrada em vídeo: videoperformance”;3 criando o elo entre
performance e o estado de vídeo, ou seja, a performance documentada e o que dela
é presente ou ausente nesse estado.
Para as relações entre corpo e religião, BUSIN (2011, p.115) “a principal
estratégia utilizada pelo Catolicismo para impor seus valores morais para a

3
VINHOSA, L. Videoperformance: corpo em trânsito. Revista Estado da Arte, [S. l.], v. 1, n.
2, p. 298, 2020. DOI: 10.14393/EdA-v1-n2-2020-57782. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/revistaestadodaarte/article/view/57782. Acesso em: 11 jun.
2023.

2
sociedade pressupõe um forte investimento na família de origem e na manutenção
do modelo nuclear de família.”4 Sendo assim, é possível traçar no presente artigo,
as conexões entre a religião e a construção social da definição de família e como
ela afeta a individualidade e em especial, a sexualidade.
Por fim, conectar corpo, religião e sexualidade para a construção da obra
para a representação entre o sagrado e o profano, ELIADE (p.98) define que "o
sagrado é o obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem só se tornará ele
próprio quando estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre
quando tiver matado o último Deus.” 5 Entendendo assim, que para que a liberdade,
ou seja, estar livre das amarras religiosas é necessário a desmistificação do
sagrado.

1. A Obra

A obra meia, meia, meia é uma vídeo performance que pretende denunciar as
violências silenciosas dos discursos religiosos na sexualidade. Através do vídeo, o
corpo da artista sofre, de forma passiva, com as ações de um outro corpo ativo que
o condena com a utilização de alguns movimentos comuns no Catolicismo como o
sinal da cruz e de benzimento.

Meia, meia, meia traz as relações subjetivas com o sagrado e profano, ao


mesmo tempo que temos uma caixa polida e delicada, quando olhamos para dentro
dela, nos deparamos com o profano que está ausente, mas, se faz presente no
título. A apresentação em um celular, um objeto que atualmente é tão pessoal,
revela que estamos diante de um olhar invasivo de algo que estava escondido mas
por uma força, ou por um acaso, agora nos é revelado.

4
BUSIN, V. M. Religião, sexualidades e gênero. REVER: Revista de Estudos da Religião,
v. 11, n. 1, p. 105–124, 25 jun. 2011. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/6032/4378. Acesso em: 11 jun. 2023.
5
ELIADE, Mircea, 1907 1986. O sagrado e o profano / Mircea Eliade ; [tradução Rogério
Fernandes]. – São Paulo: Martins Fontes, 1992. Disponível em:
https://gepai.yolasite.com/resources/O%20Sagrado%20E%20O%20Profano%20-%20Mirce
a%20Eliade.pdf. Acesso em: 11 jun. 2023.

3
O ato de esconder e revelar, é interpretado como o antes citado “estar no
armário” e “sair do armário”, esse é o segredo a ser revelado e que só é acessado
com a presença do espectador e seu olhar atento para o vídeo.
A personagem principal da obra é a própria artista, Sayuri Ikeda que estará
passiva das ações dos seguintes personagens que estarão executando as ações,
são eles, Marjorie Ikeda e Evandro da Silva (mãe e pai da artista). Para a gravação,
o celular estará em um tripé e será colocado para gravar com timer e os atos serão
cronometrados, sendo no final, um vídeo apenas com os 3 atos contínuos
cronologicamente. Depois, com o vídeo pronto, ele passará pela edição no Capcut
para separar cada ato em 6 segundos como programado até completar o tempo
total estimado, sem alteração alguma de velocidade, deixando o vídeo fluindo
naturalmente.
A obra deve ser apresentada em uma caixa baú de madeira, sem pintura e
um buraco central na parte superior para que o espectador tenha acesso ao celular
que estará dentro da caixa passando a videoperformance. A escolha da caixa e a
intencionalidade de deixar apenas um buraco para quem a observa vêm das
relações entre “estar dentro do armário” e “sair do armário” expressões usadas para
aqueles da comunidade LGBT+ que não se assumiram e os que já se assumiram,
consequentemente. A proposta do modo de apresentação da obra, segue a ideia de
dar luz, de revelar aquilo que estava escondido, o que era um segredo, um tabu
guardado que agora é revelado para aqueles que sintam a curiosidade de vê-la.

4
Figura 1: Exibição da obra
Fonte: Imagem autoral

A obra está disponibilizada online no Vimeo e pode ser encontrada no


seguinte link: https://vimeo.com/831989593 .

2. Relações entre corpo e vídeo

O corpo humano não é apenas isso que carregamos, nosso corpo é


também, um reflexo de estruturas, é uma visão de mundo; uma construção cultural
e social. O corpo sempre esteve presente nas artes, antes como representação e

5
ao longo da história o corpo vai cedendo a experiência, ou seja, o corpo vai se
tornando o próprio suporte.

A performance é uma das linguagens que explora esse corpo no espaço em


que se insere, sua relação com o outro e tudo o que o cerca. O Happening e o
Body Art são exemplos de movimentos que trouxeram o corpo à tona, fazendo com
que esse se tornasse um ponto de reflexão, ele traz sentido e ele é sentido.

As relações entre vídeo e corpo, no presente trabalho, se encontram no


estado de videoperformance; o corpo atua e ao mesmo tempo é gravado, ele se
relaciona com o outro e primeiramente, com a lente da câmera.

Segundo Luciano Vinhosa (apud Delpeux, 2018, p. 297) “A ‘instância


fotográfica’, interiorizada pela performance, é um operador de remimetização desta
forma de arte, no ‘circuito de uma mimesis ampliada". 6

Considerando o corpo do performer como imagem que produz imagem, a


câmera se torna como um totem, um falso corpo que é a visão de uma
representação de uma ação.

Na obra, as relações entre corpo e vídeo estão presentificadas nesta


‘instância fotográfica’, a câmera como o citado anteriormente, falso corpo, que
reproduz a representação da ação passiva que a artista sofre em cena.

3. Processo criativo de Direção de arte

Uma das principais referências sobre o mesmo assunto é o documentário


Lesbian Mother (FIG.1), produzido em 1972 por Rita Moreira, cineasta e jornalista
pioneira na abordagem lésbica e feminista durante a década de 70 e 80.

6
VINHOSA, L. Videoperformance: corpo em trânsito. Revista Estado da Arte, [S. l.], v. 1,
n. 2, p. 298, 2020. DOI: 10.14393/EdA-v1-n2-2020-57782. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/revistaestadodaarte/article/view/57782. Acesso em: 11 jun.
2023.

6
Figura 2: Lesbian Mother
Fonte: Medium. Disponível
em:
<https://medium.com/guiamariafirmina/os-v%C3%ADdeos-documentais-e-mi
litantes-de-rita-moreira-313ccba0b337> . Acesso em: 07 de abril de 2023

O documentário registra depoimentos de mães que fogem do padrão


heteronormativo em uma época em que era muito difícil as mulheres conseguirem
a guarda dos filhos por estar fora do casamento, e principalmente, mulheres
lésbicas. O vídeo também conta com a entrevista de Jill Johnston, autora do
Lesbian Nation, primeiro manifesto lésbico separatista.

Quanto a referência visual do trabalho, principalmente pela quebra narrativa


e a ideia de “quebra-cabeça”, Triolets de Dora Maurer.

7
Figura 3: Triolets
Fonte: Tate. Disponível em:
< https://www.tate.org.uk/art/artworks/maurer-triolets-t14286> . Acesso em: 07 de
abril de 2023

É um filme 35mm preto e branco com doze minutos de duração. O quadro


do filme é uma colagem de quadros divididos horizontalmente em que três
vistas podem ser vistas. Cada uma dessas três seções da imagem mostra
uma panorâmica de câmera de um segundo gravada separadamente no
estúdio do artista. As panorâmicas da câmera foram filmadas com uma
câmera de filme de 16 mm equipada com três tipos diferentes de lentes
(grande angular, normal e telefoto). A filmagem resultante foi dividida
horizontalmente em três tiras e reorganizadas em novas composições de
colagem, cada uma com duração de 32 segundos, que foram impressas
mecanicamente juntas em um único filme de 35 mm (TATE).

O vídeo, assim como a obra de Maurer, será dividido em 3 atos principais,


sendo eles: arrependimento, condenação e remição. Sobre a estrutura do vídeo, ele
terá ao total 6 minutos e cada ato, terá 2 minutos que serão cortados em pequenos
vídeos de 6 segundos colocados em sequência fora da cronologia (6 segundos –
arrependimento / 6 segundos - condenação / 6 segundos – remição / 6 segundos –

8
arrependimento / 6 segundos - condenação / 6 segundos – remição) até que finalize
os 6 minutos com os recortes.
Para todos os atos a artista estará vestida de branco e em fundo branco, uma
referência ligada à paz, espiritualidade e inocência, muito utilizada pela Igreja
Católica e será usada para que nada esteja em destaque além da ação, além de
criar um ambiente que remete a toda pureza da cor mas que ao olhar atentamente
as ações, perceba a tensão subjetiva.

Figura 4: Paleta de cores Meia, Meia, Meia


Fonte: Gerada por Color Adobe.

O corpo da artista durante todos os atos, agirá de forma passiva a ação, ou


seja, há uma outra pessoa que irá realizar cada ação nesse corpo. O vídeo não
contará com nenhuma trilha sonora, apenas o silêncio do momento do ato.
Descrevendo cada ato separadamente, o primeiro, o arrependimento, uma
mão fará o sinal da cruz, um movimento ritualístico executado dentro do
Cristianismo, na cabeça da artista. O arrependimento, ao se utilizar do sinal da cruz,
se utiliza também da ideia de “livrar-se da tentação”, “a expulsão do erro”, como se
o corpo assumisse uma posição de condenação do outro que irá praticar a ação
sobre a artista, ou seja, quando essa mão está sobre a artista fazendo esse sinal, é
como se a julgasse culpada, amaldiçoada e precisasse desse “livramento”.  

9
Figura 5: Arrependimento - Meia, Meia, Meia
Fonte: Print do vídeo - Autoria própria

Em seguida, a condenação, essa mão irá enfiar na boca da artista papéis


com frases que, infelizmente, foram normalizadas quando um LGBTQIA+ se
assume para a sua família. Esse ato demonstra um corpo que é obrigado a engolir
"verdades" ditas para si e calar-se, como se não merecesse existir. Condenação,
vêm de sentir-se culpado por se assumir, como se precisasse viver as escondidas,
“se guardar dentro do armário”, pois LGBTQIA+ dentro de uma sociedade
heteronormativa e religiosa, pode ser julgado como um errado e pecado.

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Figura 6: Condenação - Meia, Meia, Meia
Fonte: Print do vídeo - Autoria própria

O ato de forçar um papel dentro da boca de outra pessoa, vêm desse


estabelecimento de aturar essas frases que condenam, manter-se quieto diante do
caos para sobreviver. Entrando em questões religiosas, em missas católicas, o
padre coloca na boca dos seus fiéis a hóstia, o corpo de Cristo, o que é uma
sugestão em relação a referência visual desse ato e o realizado dentro da obra.
Por fim, o último ato é a remição. Essa mão jogará água aos poucos na
cabeça da artista, uma referência visual ao rito de aspersão da água benta na missa
católica, que é realizada em memória do batismo, e é um sinal visível da graça de
Deus.

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Figura 7: Remição - Meia, Meia, Meia
Fonte: Print do vídeo - Autoria própria
Remição faz uma brincadeira gramatical entre “remissão” e “remição”,
palavras homófonas; remissão vêm do verbo remitir e transmite a ideia de perdão e
libertação, já remição, vêm do verbo remir, que transmite a noção de desobrigação
do cumprimento de algo. Na obra, essas duas noções da palavra criam um jogo
entre obrigação ou desobrigação de seguir um padrão heteronormativo, ou seja,
essa mão continua atacando o corpo, mesmo que de forma subjetiva, mas não
sabemos se ele é livre ou não, se ele acata ou não esses padrões, se ele está se
libertando de si ou mostra que seguirá sendo quem é, independente dos atos
violentos e silenciosos que sofre durante esses minutos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A religião acaba sendo para muitos, o primeiro contato social com um grande
grupo de pessoas que são guiados por dogmas; assim como as formas de agir, a
sexualidade está dentro dessa experiência religiosa que é, de certa forma,
modeladora que anula qualquer adversidade, aquilo que não é homogêneo.

12
A experiência religiosa é pensada como parte de um processo de construção
de si, em conexão com outros domínios da vida social, como: percurso sexual
amoroso, história familiar e etapa da vida. (NATIVIDADE apud BUSIN, 2011, p.116).
7

Essa construção social de si, citada por NATIVIDADE, é a forma como


absorvemos e como a forma como agimos são reflexos de uma série de outras
experiências que, em algum momento, invadem a religião. Outras experiências,
podemos dizer quando começamos a nos conhecer e começamos a questionar o
que nos foi ensinado, questionamos nossos padrões sociais, nossas vontades e
começamos a saga do autoconhecimento, e é nesse momento, que a religião entra
em conflito com a individualidade. A individualidade, é muitas vezes, quando
entendemos também a sexualidade, nos libertando de alguns tabus e nos
permitindo conhecer.
Portanto, quando se assume uma pessoa LGBT+, sabemos que está
suscetível a julgamentos, xingamentos e até mesmo reações violentas (muitas
vezes psicológicas) em um momento que espera-se na verdade, uma rede de apoio.
A escolha de fazer da obra uma denúncia silenciosa vem de fazer com que o
espectador esteja atento a cada momento do vídeo para que a relação entre o título
(meia, meia, meia) e vídeo crie essa tensão em procurar onde está a ideia de
pecado que o título sugere. Esse contraste pode ser entendido entre as ideias de
sagrado e profano.
Em suma, a obra cumpre seu papel de expor, mesmo que de forma sutil,
essas violências silenciosas que só são percebidas com a observação atenta do
vídeo. As escolhas em deixar com que o título apenas sugerisse a ideia do
“profano”, fazendo com que a estética do vídeo trouxesse a ideia de sagrado, sendo
uma denuncia muito discreta.

7
BUSIN, V. M. Religião, sexualidades e gênero. REVER: Revista de Estudos da Religião,
v. 11, n. 1, p. 116, 25 jun. 2011. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/6032/4378. Acesso em: 11 jun. 2023.

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