Educagao a Distancia: tensdes entre expansao e qualidade Catarina de Almeida Santos Pensar a Educagao a Distancia (EAD) no Brasil requer que pensemos a propria educacao e a sua fungao na sociedade. Requer ainda lembrar a edu- cagéo como um direito humano fundamental e seu papel na formacao dos sujeitos € na construgao das relagées socais. Isso implica pensar a educagio como possibilidade de desenvolvimento das potencialidades humanas, da apro- priagao dos saberes sociais construidos historicamente e de aquisigao de co- nhecimentos que permitam conhecer, compreender e transformar a realidade. Em 1947, Anisio Teixeira defendia que, para além de ser a base da demo- cracia, a educacao é 0 processo que pode levar a justica social, tendo em vista que ela é o principal meio de se conquistar a igualdade de oportunidades. Mas, segundo 0 autor, esta nao seria uma educa¢4o qualquer, mas uma que “faz-nos livres pelo conhecimento ¢ pelo saber ¢ iguais pela capacidade de desenvolver a0 méximo os nossos poderes inatos”!. Uma educacio que no seja, segundo ' Anisio Teixeira, “Autonomia para a educago”, em Jodo Augusto de Lima Rocha (org,), Anisio em movimento: a vida ¢ as lutas de Anisio Teixeira pela escola piblica e pela cultura54 | Educagao contra a barbérie © autor, apenas para alguns, mas para todos. Que possibilite superar as dis- tancias fisicas, materiais, sociais, mentais, culturais, econdmicas ¢ raciais do Brasil. Que nao seja treino ou domesticacao, mas base da construcéo de uma sociedade democratica. A Constituigéo de 1988, ao definir que a educaco é direito de todos e dever do Estado e da familia, também define que ela tem trés finalidades: © desenvolvimento pleno do sujeito, a formagao para a cidadania e para o mundo do trabalho. Os preceitos ali estabelecidos coadunam com 0 que Anisio Teixeira defendia para uma sociedade democritica. Na busca pela garantia do direito 4 educagao, a utilizagio da EAD é apontada como forma de superacao das distdncias geograficas que, em algumas situagées, impedem o acesso fisico a instituicées de ensino. Assim, o uso da modalidade a distancia garantiria a expansio das oportunidades educacionais ¢ a democratizagao do acesso 4 educacao, com maior alcance, maior flexibilidade para professores e alunos e modernizagao dos processos educativos por meio do uso das tecnologias de informacao e comunicagio. A defesa da utilizagdo da EAD é permeada por um conjunto de argu- mentos que buscam legitimar a sua ampla expansio, nao apenas pela perspec- tiva do direito, mas também pela ampliagéo do mercado educacional. A néo presenga do aluno em sala de aula, o fato de este poder organizar seus hordrios de estudo, o respeito ao tempo do estudante, a flexibilidade dessa modalidade educativa e, principalmente, 0 fato de ela chegar a lugares onde a educacio presencial nao chega—¢ a custo menor —, sio argumentos basilares dos defen- sores da modalidade. A ampla utilizagao da EAD é defendida por diferentes atores, nao sé do campo educacional. Organismos multilaterais, como o Banco Mundial, apontam a utilizacéo das tecnologias educacionais para a implantagao de sistemas de ensino a distancia, com especial ateng4o “para programas que abordem as necessidades educativas dos grupos geograficamente isolados das instituigdes publicas convencionais de ensino”?. Nessa ética, nao h4 como analisar a expansdo da EAD sem levar em conta as contradigées que estao no Brasil (Brasilia, Senado Federal / Conselho Editorial, 2002, p. 33-49), p. 35; disponivel em: chetp://www2.setado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1060/619664.pdf>. = ® Banco Mundial, Educational Change in Latin America and the Caribbean / La educacién en Ambrica Latina y el Caribe (Washington/DC, World Bank, 1999), p. 1025 disponivel em: .Catarina de Almeida Santos | 55 nas bases de sua defesa. Se por um lado, a educagao € condigao para o de- senvolvimento das potencialidades humanas, por outro, serye para construir um idedrio que favorece a manuteng4o da hegemonia politica dos grupos que exercem © poder, visando, em tiltima instancia, 4 reproducao ampliada do capital. No documento “Construir sociedades de conocimiento: nuevos desafios para la educacién terciaria”, publicado em 2003, o Banco Mundial defende altera- g6es no modelo tradicional de controle estatal, sinalizando que os governos podem promover mudangas por meio do estabelecimento de linhas gerais de agao e estimulos as instituicdes de educacao superior em um contexto de po- liticas coerentes, um marco regulatério favoravel ¢ a existéncia de incentivos financeiros adequados.? a Para a organizacio, esse marco regulatério deve “respaldar ao invés de limitar a inovagao nas institui¢des puiblicas, assim como as iniciativas do sector privado de ampliar o acesso a uma educagio superior de boa qualidade”, sina- lizando que “as normas para o estabelecimento de novas instituigées, incluindo as privadas ¢ as virtuais, devem restringir-se a requisitos minimos de qualidade endo devem constituir barreiras para o acesso ao mercado”. Assim, a andlise da expansio da EAD nao pode deixar de levar em consideragao a forga do mercado educacional ¢ a incidéncia de empresdrios do ramo frente aos tomadores de decisdes em todas as esferas estatais, inclu- sive regulatérias. Nao é possivel ignorar que esses empresérios influenciam nas decisées, sobretudo nos votos parlamentares no Ambito da regulacao, © que pode ser medido pela magnitude dos negécios fechados nos ultimos anos, sempre apés intensos processos de negociag4o entre empresdrios ¢ ins- tancias reguladoras. No Brasil, a modalidade EAD surgiu sem qualquer regulamentacao ou parimetros de qualidade. Embora os seus primeiros passos ¢ a oferta de cursos tenham se dado nas institui¢des publicas, 0 boom expansionista se deu via oferta privada e sem qualquer controle por parte do Estado. Se a oferta da EAD comega tardiamente no Brasil, em comparacao a outros paises, os dados apontam que em nivel superior ela cresceu com tal velocidade, que hoje, em 3 Banco Mundial, Construir sociedades de conocimiento: nuevos desafios para la educacién terciaria (Washington/DC, World Bank, 2003), p. xxiv; disponivel em: . Ibidem, p. xxv.56 | Educagao contra a barbdrie cursos como pedagogia, o numero de matriculas a distancia j4 supera o nti- mero de matriculas na modalidade presencial. O Censo da Educag4o Superior de 2017 aponta que, na modalidade presencial, a oferta no setor privado detém cerca de 75%? das matriculas, Na modalidade a distancia, esse percentual sobe para 91% no sector privado, ¢ a EAD ja representa 21% do total de matriculas nesse nivel de ensino. Observando esse processo expansionista, o leitor desavisado pode ter a impresséo de que a EAD esté cumprindo a promessa de colaborar com 0 aumento das matriculas na educagao superior e com a democratizago do acesso, como apontou o governo brasileiro na ocasiao de criagdo do sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB)‘. A UAB foi criada, segundo seus idea- lizadores, com 0 objetivo de estimular a articulacao e a integragao de um sistema nacional de educacao superior a distancia, formado por instituig6es publicas de ensino superior que se comprometeram a levar ensino publico de qualidade a localidades que nao possuam universidades ou institutos federais, garantindo a democratizacao do acesso A educacao superior publica, gratuita e de qualidade. Analisando detidamente os dados de matricula, é possivel perceber que no setor piiblico a expansio nao foi significativa, e que o setor privado investiu no aumento da oferta de vagas a distancia em detrimento das presenciais. Os dados do Censo da Educag4o Superior (Inep) apontam que, entre os anos de 2006 ¢ 2017, houve um aumento de mais de 550% no nimero de matriculas na EAD, que passaram de 270 mil para pouco mais de 1,75 milhao. Em con- traposi¢4o, as matriculas na modalidade presencial expandiram em proporgées bem menores, pois em 2006 o pais possu‘a 4,67 milhées de alunos matricula- dos e, em 2017, esse ntimero era de pouco mais de 6,52 milhdes, 0 que signi- fica que o sistema presencial sofreu um incremento de apenas 1,85 milhao de matriculas (39,6%) em mais de uma década. grafico a seguir apresenta o crescimento da oferta de EAD no ensino superior no perfodo, apontando para uma queda e estagnacao na oferta publica € para uma acelerada expansdo das matriculas no setor privado. > Todos os dados de matriculas da educagao superior provém das sinopses estatisticas da edu- cacdo superior dispoMiveis no portal do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira (Inep). § sistema Universidade Aberta do Brasil foi criado por meio do Decreto n. 5.800/2006, cuja finalidade era expandir e interiorizar a oferta de cursos ¢ programas de educacio superior no pais.Catarina de Almeida Santos | 57 2.000.000 si 800.000 i 1,800. —<= N° de matriculados 1.600.000 ~~~ Privado 1.400.000 1.200.000 1.000.000 800.000 600.000 — Piblico 400.000 200.000 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 Numero de matriculas na modalidade a distancia na educagao superior por esfera administrativa— Brasil, 2006-2017. Fonte: Censo da Educagéo Superior (Inep). A partir desse cendrio, é possivel apontar alguns dilemas para a educa- ¢4o a distancia, sobretudo em relacao a garantia de qualidade. Em que pese 0 Decreto n. 5.622/2005 estabelecer normas e procedimentos para o creden- ciamento, recredenciamento, condigées de oferta, supervisio ¢ avaliagio das instituigdes, os parametros de qualidade utilizados entre 2003 ¢ 2016 para a organizacao dos sistemas da EAD estavam assentados em “referenciais de qua- lidade”. Ou seja, em parimetros indutores, mas sem forga legal. Com o intuito de conter a expansao desordenada da EAD, o Conselho Nacional de Educagao instituiu uma comissao, em 2012, para discutir e pro- por normas nacionais para a oferta de programas e cursos de educa¢do supe- rior na modalidade a distancia. Apés um conturbado processo de debate em reunides ¢ audiéncias publicas com atores do campo, foi aprovada a Resolucao CNEICES n, 1/2016. O documento traz um conceito mais amplo de EAD do que o presente no Decreto n. 5.622/2005, relacionando elementos e insu- mos importantes para a sua implementagao. O artigo 2° define a educacao a distancia como uma modalidade educacional na qual a mediagéo didatico-pedagégica, nos proces- sos de ensino e aprendizagem, ocorre com a utilizagéo de meios ¢ tecnologias de informagao ¢ comunica¢ao, com pessoal qualificado, politicas de acesso, acom- panhamento e avaliacdo compativeis [..., de modo que se propicie, ainda, maior articulagao e efetiva interagdo ¢ complementariedade entre a presencialidade e | | |58 | Educacdo contra a barbatie a virtualidade “teal”, 0 local e 0 global, a subjetividade ea partis cratica nos processos de ensino e aprendizagem em rede, envolvendo estudantes ¢ profissionais da educagio (professores, tutores gestores), que desenvolvem atividades educativas em lugares e/ou tempos diversos? A resolugao também aborda aspectos como material didético; avaliag4o e acompanhamento da aprendizagem; metodologias ¢ estratégias pedagégicas; organizacdo da oferta em sedes e polos; profissionais da educacio, definindo as fungées de docente ¢ tutor, sendo este tiltimo um profissional de nivel superior com formagao na area de conhecimento do curso. Essas medidas, no entanto, foram abortadas a partir de 2017, quando 0 governo Temer publicou decretos e portarias que, ao fim e ao cabo, des- regulamentaram a modalidade na perspectiva da qualidade, escancarando as portas para a expansdo sem controle ¢ sem qualidade*. Nessa esteira, a reforma do ensino médio de Michel Temer admite que até 20% da carga horéria total no diurno e até 30% no noturno podem ser contempladas com atividades a distancia. O atual presidente também vé na EAD uma forma de baratear a oferta da educacao publica, com a vantagem de combater aquilo que chama de “marxismo” na sala de aula. Bolsonaro defendia, j4 em seu programa de governo, a oferta educacional na modalidade a distancia desde © ensino fundamental. ‘Anisio Teixeira afirmou que o Brasil é um pais com uma geografia que espanta e que nos separa em suas imensas distancias. Mas a educacao ofertada, especialmente na modalidade a distancia, ajuda a superar as distancias mate- tiais, sociais, culturais, econdmicas ¢ raciais existentes no pais ou simplesmente contribui para a sua ampliacao? a 7 Ministério da Educacio, “Resolugdo CNE/CES n. 1, de 11 de margo de 2016”; disponivel em: chttp://portal.mec.gov.br/index.php2option=com_docman&view=download&alias-35541- res-cne-ces-001-14032016-pdf8ccategory_slug=marco-2016-pdf&cltemid=30192>. § © Decreto n. 9.057/2017 assinado por Temer, por exemplo, revogou o Decreto n, 5.622/2005.