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Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF RELACOES URBANO-RURAIS E ESPACIALIDADES PANDEMICAS': reflexdes preliminares a partir do caso fluminense URBAN-RURAL RELATIONS AND PANDEMIC SPACTALITIE! preliminary reflections on the case of Rio de Janeiro Joana Cruz de Simoni” PUC-Rio joana simoni@gmail.com Resumo artigo tem como objetivo sefletir sobre as primeiras evidéncias de tansformagdes nas relagdes urbano-rurais aceleradas e intensificadas pela mobilidade capital-interior que ocorre em decorréacia dos efeitos da pandemia de Covide19. Observa-se 0 estabelecimento de uma relacao da sociedade com o espago urbano marcada pelo distanciamento, isolamento e medo ~ produzindo novas espacialidades que enfatizam antigas assimetrias. Com foco no caso fluminense, reflete-se sobre 0s elementos que compéem uma “fuga para o campo" para aqueles com acesso a “hipermobilidade”, ao passo em que a fragil mobilidade (ou, ao reves: a obtigagio de mover-se sob 0 ‘isco de contigio) segue ainda como norma para muitos. Palavras-chave: Relagdes urbano-rurais; Pandemia de Covid-19: mobilidade urbano-rural Abstract This article aims to present some evidence and reflections on the accelerating and intensifying transformation of urban-rural relations in Rio de Janeiro by focusing on capital-interior mobility motivated by the effects of the Covid-19 pandemic. Another relationship with urban space can be seen — social distancing. isolation, and fear are producing new spatialities that emphasize old asymmetries. This article analyzes some elements that make up au “escape to the countryside” for those with access to “hypermobility.” while fragile mobility (or, in reverse: the obligation to move under the risk of contagion) is still the norm for most. Keywords: Urban-rural relations: Covid-19 pandemic; urban-rural mobility. Introdugio Em trabalho anterior, investigou-se as distintas representagdes da vida cotidiana atreladas aos espagos rurais e urbanos (SIMONI, 2019). Foi possivel observar, com foco nas localidades rurais de Nova Friburgo, na Regido Serrana do Rio de Janeiro, a intensifieagao de um proceso 1 O trabalho foi apreseatado originalmente no II SEMAGEO; Re-arranjos Geogrifices sob a influéncia da Pandemia da COVID-19 que ocorreu de forma remota em outubro de 2020. 2 Pesquisadora Pés-doc do Programa de Pés-Graduagao em Geografia da PUC-Rio, associada a0 Grupo de Pesquisa de Estudos Urbanos e Rurais (URAIS). AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERENCIA: SIMON, Joana Cru de. RelagSes urbane mua especslidades pndémicas:reflextes prliminares partir do caso Quminense Revista Enssios de Geografia Nien, vol. 7°13, pp. 57-68, jncro-bnl de 2021 Subenvedo at: 190012021. Aco en 1903 2021, ISSN: 2516-8544 37 Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF de metropolizagaio do espago (LENCIONI, 2013; 2015) a partir do qual se constréi uma dinimica contraditéria nas relagdes urbano-rurais: a busca pela diferenca (0 cotidiano do outro) produzindo a homogeneizacio, ainda que nunca sem entfentar resisténcias, e mantendo ~ ou produzindo novas ~ desigualdades. De fato, nota-se como 0 espago rural, enquanto commodity a ser consumida por uma elite urbana, conforme nos aponta MeCarthy (2008), “importa” as contradigdes © a segregagio espacial tipicas do espago urbano, além da “pressio sobre os recursos naturais e a busca de ‘qualidade de vida’ que territorializa a distingao social” |AITAN; RAINER, 2013, p. A presenga ¢ a relagio com as tecnologias de informagao e comunicagao (TICs) foram o 575, grifo dos autores)’, vetor a partir do qual se analisou essas transformagées. Com base em uma anélise da técnica e sua ago multiescalar, em uma perspectiva miltoniana (SANTOS, 1996), examinou-se 0 complexo processo que se desenvolve no contexto metropolitano, onde entrecruzam-se urbanidades e ruralidades. As técnicas de comunicagio e informagio intensificam e aceleram um processo de inser¢do do lugar rural na escala global, através da sua midiatizagfo, seu modelamento para 0 consumo (como uma representago de espago de lazer e turismo “antiurbano”, porém, permeado de urbanidades) e sua apropriagio por empresas globais (destaca-se, no ambito de tal pesquisa, a andlise da presenga do Airbnb como ator na produgao do espaco). Assim, 0 espago se integra e, 20 mesmo tempo em que se eliminam dicotomias anteriormente existentes, reafirmam-se assimetrias entre os espagos. Neste sentido, a abordagem das urbanidades no rural (RUA, 2006; 2011) colabora para a compreensio deste processo, ao analisar esse entrecruzamento sob uma perspectiva multiescalar e assimétrica, A hipétese sob a qual refletiremos no presente artigo gira em torno de uma dinamiea de aceleragio, intensificagdo e transformac3o nas relagdes urbano-rurais que se desenvolvem a partir de uma migragio capital-interior motivada pelos efeitos da pandemia de Covid-19, a qual atravessamos. O ritmo e caraeteristicas de disseminagfo da doenga, que levaram 4 imposigio de um distanciamento e/ou isolamento social, modificaram, ainda que temporariamente, a relagdo com o espaco urbano. A perspectiva deste enquanto espago do encontro e da festa den 3 Tradugdo livre, do original: “(..) aumento de edificaciones que trasladan al espacio rural las contradicciones ¥ segregacion social del espacio urbano, presiéa sobre los recursos naturales, busqueda de “calidad de vida” que rerritorializa la distinci6n social” (GATTAN; RAINER, 2013, p. 575). ‘AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERENCIA SIMON, Joana Cru de. RelagSes urbane mua especslidades pndémicas:reflextes prliminares partir do caso Quminense Revista Enssios de Geografia Nien, vol. 7°13, pp. 57-68, jncro-bnl de 2021 Subenvedo at: 190012021. Aco en 1903 2021, ISSN: 2516-8544 38 Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF lugar a uma geografia do medo — este tiltimo visto enquanto elemento geogréfico, uma vez que produz (ou induz a produgdo de) espacialidades. Ora, importa destacar que as possibilidades de evitar, enfrentar ou superar aquilo que se teme sfo bastante diferentes e iro mudar de acordo com “o grau de emaneipagio pessoal, 0 poder aquisitivo, o contexto familiar e as redes de apoio que configuram 0 entorno [de determinada populagiio}, as quais permitem a adogio de mais ou menos estratégicas para enfrentar suas emogdes” (OLIVER-FRAUCA, 2006, p. 377). As espacialidades fruto do momento da pandemia sio reflexos cristalinos desta afirmacio: o medo do contagio e a sensacao de incerteza transformam 0 espago urbano num espaco inimigo', numa “paisagem do medo” (TUAN, 2005). Se o isolamento e a exclusio da vida comunitaria representam a “negagao da cidade” (OLIVER-FRAUCA, 2006) ese, por outro lado, estes mecanismos parecem ser a maneira mais eficaz de (sobreviver a estes tempos pandémicos; coloca-se a questio tio bem sintetizada por Haesbaert (2020, p. 3): “que tipo de dindmicas de contengio territorial so plausiveis em realidades ‘periférieo-coloniais’ como as do continente mais desigual do planeta, a América Latina?” Contengao territorial, a casa percebida e vivenciada como espaco de seguranga, ou, ainda de conforto, nio sto possibilidades ao aleance de todos, muito menos de forma equitativa. A nogao de “qualidade de vida”, intimamente ligada as condigdes do lugar onde se vive, passa a receber novos contomos. Para aqueles com acesso 4 “hipermobilidade”, facilitada pelas tecnologias da conmunicagao e do transporte, so possiveis adaptagdes — mesmo que em um contexto de mobilidade restringida. Para outros, a imobilidade, a frigil mobilidade (ou, ao revés: a obrigagdio de mover-se sob o risco constante de contigio) segue como norma em um cotidiano marcado pela precariedade e vulnerabilidade. Neste contexto, a mobilidade urbano-rural — a ocupagdo da segunda residéncia (rural ou periurbana), 0 aluguel por temporada ou em longa durago ou a aquisigio de uma nova residéncia rural — apresenta-se como uma saida, ou uma fuga, da “cidade quarentenada”, Para alguns, a circunstincia especifica que a pandemia impde — sobretudo, pela instalagio do teletrabalho e do tele-ensino, combinados com uma cidade cujos atrativos (a alta oferta de servigos) estio em suspensio — traz consigo um impulso a vida (idealizada) rural. Iss0, é claro, * Conforme nos lembra Souza (2020, p. 96): “[..] alguns espagos tém despertado nossa topofobia nesses tempos ‘pandémicos” — sobrenudo no contexto urbano, . AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERENCTA SIMONT, Joana Cruz de RelagSes urteno-uris expeialades pendmcas reflexes pretiminaes partido caso Quminense Revista Enstios de Geografa Seo, 7 13. pp.5-48, janes = 2021 Sbmisado em 1901/2021 Aceo em’ 1903 3021 ISSN 2516-8544 59 Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF para aqueles que podem “coneretizar” tal impulso ou “fuga”. Para estes 0 “sonho de ‘casa no campo” vira real com home office”, como apontam Almeida e Batista (2020). Assim, 0 artigo tem como objetivo apresentar uma discussao acerca dessa dindmica contraditéria que se delineia a partir das transformagées nas relagdes urbano-rurais em decorréncia da pandemia do novo coronavirus, que acarreta na produgio de outras espacialidades. Para isso, apresenta, em um momento inicial, as primeiras evidéncias & reflexdes sobre a aceleragio e intensificagio da mobilidade capital-interior motivada pelos efeitos da pandemia, com foco no caso do estado do Rio de Janeiro, a partir de matérias jomnalisticas e dados do setor imobilidrio. Em seguida, traga um debate acerca das assimetrias que maream as relagdes urbano-rurais, fortalecidas em decorréncia da referida mobilidade. Fugere urbem em uma metrépole quarentenada: primeiras evidéncias a partir do caso fluminense As afirmacdes apresentadas na introduglo deste artigo vao ao encontro das novas tendéncias de consumo apontadas por alguns economistas. No ramo imobilirio aponta-se que © nicho de consumidores que se consolidava no mercado mundial de iméveis no periodo anterior pandemia “era de um perfil jovem, [...] buscando iméveis compactos, bem localizados (proximos a estagdes do metré e centros de emprego e com boa infiaestrutura urbana), com uma tendéneia a aproveitar o espaco urbano de maneira bastante intensa” (DATAZAP, 2020, p. 41). Os primeiros relatérios indicam, no entanto, que o cenirio da pandemia e 0 distanciamento social por ela imposto trardo, necessariamente, mudangas nesse perfil de consumo (DATAZAP, 2020). Dados preliminares evidenciam que, dentre os possiveis desdobramentos, a mudanga para espagos rurais ou periurbanos é um processo que esta em curso (MARTINS, 2020; ALMEIDA e BATISTA, 2020; ZANATTA, 2020). Ainda nio é possivel afirmar, porém, se ¢ uma ocoréneia definitiva ou se corresponde, exclusivamente, a um fendmeno de nicho (como apontam as tendéncias)’, Alguns desses dados, veiculados em jomais de alta circulagao, 5 “Mesmo rennidas as primeiras evidéncias, Ana Maria Castelo, coordenadora de projetos da constructo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundagao Getillio Vargas (Ibre/FGV), diz que € cedo para falar em tendéncias efinitivas. ‘Um dos motivos que impulsionou a oferta de iméveis menores foi a renda, entio a movimentagio & ‘um fendmeno de nicho", diz a economista™” (MARTINS, 2020). AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERENCIA SIMON, Joana Cru de. RelagSes urbane mua especslidades pndémicas:reflextes prliminares partir do caso Quminense Revista Enssios de Geografia Nien, vol. 7°13, pp. 57-68, jncro-bnl de 2021 Subenvedo at: 190012021. Aco en 1903 2021, ISSN: 2516-8544 60, Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF chamam a atengao para: i) uma ampliagéo de 300% na procura, durante a quarentena, de aluguéis de longa duragio em imoveis na Regio Serrana do Rio; ii) um aumento de cinco vezes na média de venda de iméveis de alto padrio em Iaipava, reduto turistico da mesma regio (ALMEIDA; BATISTA, 2020) Uma pandemia como a de Covid-19 incorre em transformacdes na nossa relagio com 0 espago, das mais diversas maneiras. Entre as “paisagens do medo” (TUAN, 2005), 0 isolamento ‘voluntirio” (para aqueles cuja dindmica de vida permite), o fechamento de fronteiras e a queda brusca na mobilidade e fluidez das cidades ~ uma interrupeao na geografia da hipermobilidade, conforme destaca Dumont (2020) ~ os padrdes de concentracio e valorizacio de diferentes areas das cidades, ¢ fora delas, também sera transformado. Como apontado, essas mudangas ja so percebidas no mercado imobilidrio, onde “[..] se vive uma nova movimentagio em decorréneia da pandemia do novo coronavirus. Com as seguidas prorrogagées da quarentena, cada vez mais pessoas procuram comprar ou alugar iméveis em regides afastadas dos grandes centros urbanos” (ZANATTA, 2020). Neste sentido, assinala-se que “chécaras e condominios longe de metropoles sio buscados para passar temporada na quarentena ¢ também em definitivo, ja que home office pode ser tendéncia pés- covid-19” (ZANATTA, 2020). A mesma autora destaca que, entre os principais atributos desses iméveis, estio o tamanho (iméveis maiores), a proximidade de dreas verdes e 0 bom acesso a internet. Alguns especialistas na drea de bens iméveis avaliam que, com o fim da quarentena, a tendéneia é que haja um retorno moradia na metrépole, ainda que se busque manter um imével com os referidos atributos como uma segunda residéncia. De uma forma ou de outra, é inegavel que houve um processo de “migragdio da capital”, que se espelha, inclusive, na “interiorizagiio” da disseminago do novo coronavirus. Dados do Ministério da Satide que apontam um =A interrupeio da hipermobilidade e, mesmo, da mobilidade em geral, engendra um incremento inédito do teletrbalho como se, sob a coergdo do vinis, a preferéncia pela proximidade prevalecesse sobre a mobilidade. A geografia da mobilidade encontra-se reduzida 20 seu minimo vital, tal como podemos atestar pelos milhares de hhotés ¢ restaurantes fechados. Mais ainda, pela disposicdo de milhares de quartos de hotéis desocupados aos profissionais da saide cujos domicilios sto dstantes de seus trabalhos” (DUMONT, 2020, p. 5). * Para nos focarmos no caso da Regido Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ}, destacamos a afirmacio de Rodrigo Mello, dono da imobiliéria Morabilidade, na Regio Serrana do Rio, que“[...] diz que a procura aumentou 300% na quarentena, principalmente por contrates de aluguel mais longos, como um teste para firura moradia™ (ALMEIDA; BATISTA, 2020) . AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERENCIA: SIMON Joana Cruz de. RalagSe shen rcs orpecidads pendiica: elextes preliminars pir do caso Guminense Revista Enstios de Geografa Seo, 7 13. pp.5-48, janes = 2021 Sued ann 18002021. Ace em 19°08 2021 ISSN 25168544 61 Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF percentual de infectados de 42% nas capitais € 58% no interior do pais — conforme nos indica Menezes (2020)° — ajudam a confirmar essa hipétese. No estado do Rio de Janeiro, o processo parece refletir o da escala nacional. O diretor da Santa Casa do municipio de Bom Jardim, na regio serrana do Rio, “atesta que, como indicam os mimeros gerais, os casos no municipio aumentaram, Para ele, 0 fato de muitos moradores da capital terem optado por periodos temporarios ou mesmo pela mudanga para cidades pequenas explica o aumento” (MENEZES. 2020). Segundo Almeida e Batista (2020), a tecnologia é um fator essencial na decisio de mudar para o interior, uma vez que hé a necessidade de infraestrutura para o trabalho via internet. Nesse contexto, é importante destacar o crescimento de cerea de 600% na quantidade de pessoas trabalhando em regime de home office em decorréneia das medidas de combate a disseminagao do novo coronavirus (ALMEIDA: BATISTA, 2020)*. Assim, a possibilidade de manter 0 emprego sem precisar enfientar © trénsito dos grandes centros e com maior proximidade a espacos ambientalmente saudaveis coloca-se como um novo fator motivacional na escolhia do lugar de moradia. Todos esses aspectos (relacionados & possibilidade de mobilidade em meio a um contexto de pandemia, onde as normas do “jogo” mudam subitamente) colocam a questio, ja anteriormente levantada por Bauman (1999) ou Lanquar (2007): mover-se ¢ somente mudar de lugar, ou indica também mudanga (ou afirmasao) de diferentes posigdes sociais? Ao movermo- nos (no espaco, pelo espaco), que transformagdes causamos, seja no lugar de origem, no caminho, no lugar de chegada? Essas_indagagdes colocam-se quando analisamos as especificidades relativas as mobilidades urbano-rurais. Neste sentido, se apontamos até aqui as primeiras evidéneias de ‘uma intensificagao na referida mobilidade, devemos destacar algumas reflexdes que giram em tomo das transformagdes nas relagdes urbano-rurais, em geral, e dos lugares rurais, em especifico. * Dados de juibo de 2020 *°0s autores afirmam que: “[..] segundo 0 IBGE, a tecnologia permitiu que, com o distanciamento social, 8.9 ilies de pessoas no pais permanecessem trabalhando em casa. Hi um ano, havia 1,2 milhito nessa condigdo (ALMEIDA; BATISTA, 2020), . AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERENCTA SIMONT, Joana Cruz de RelagSes urteno-uris expeialades pendmcas reflexes pretiminaes partido caso Quminense Revista Enstios de Geografa Seo, 7 13. pp.5-48, janes = 2021 Sbmisado em 1901/2021 Aceo em’ 1903 3021 ISSN 2516-8544 Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF As —assimétricas — relagdes urbano-rurais: uma reflexio necessaria Deve-se destacar, em primeiro lugar, a clara relagio entre especulacao imobiliria (¢ reestruturagio imobiliaria), a comodificagio da natureza (HARVEY, 2005) e a transformagio do espaco rural. A ocorréncia do turismo em areas rurais — em busea do idilico, da “natureza intocada” — e da migragdo por amenidades, seja temporaria (muito aludida nos estudos tedricos como segunda residéncia e vilegiatura) ou fixa (primeira ou principal residéneia), nao é produto da contemporaneidade”, No entanto, esses processos estio se transformando no que tange & intensidade, velocidade e condi¢ao, quando consideramos as mudangas materiais e imateriais que acompanham o “novo clico do urbano”. As primeiras reagdes as novas condigées impostas pelo novo coronavirus parecem acelerar ¢ incluir novas varidveis neste proceso. ‘Ao avaliar esta dinimica (a neorruralidade, a “volta & terra”, ou uma intensificagdo das migragdes urbano-rurais, a depender da perspectiva de anilise), alguns autores advogam que se trataria de um revigorar da ruralidade. Por outro lado, argumenta-se, na verdade, que estes processos sio indicativos de uma expansio da vida urbano-metropolitana (dos discursos, Prioridades e c6digos) nos espagos ditos rurais. De fato, observa-se um espraiamento (nao linear) dos modos urbano-metropolitanos de (re)produgdo do espago, nas suas formas- contetido, levando a transformagdes nos espagos rurais, sem que isso enseje no desaparecimento de algumas de suas especificidades. Rural e urbano sio compreendidos, portanto, em suas dindmicas complexas ¢ relacionais, concordando com a perspectiva trazida por muitos autores (FERREIRA et ai, 2014; RUA, 2006; 2014; SORBAZO, 1006) em que © urbano se estenderia para além das cidades. Demonstrar-se-ia, assim, a emergéncia de urbanidades no rural, ao passo em que ruralidades sio também ressignificadas no espago urbano. Assim, trataremos aqui desta complexa questio a partir de duas prineipais reflexdes. A primeira trata do mereado imobilidrio metropolitano, da geragio de riquezas através da terra que, portanto, exige que “novas terras” sejam valorizadas. Essa discussio muito se faz no Ambito da cidade dispersa, Os espagos ditos ruais, no entanto, também precisam ser ressignificados, de modo que possam ser reservas para o capital; afinal, como propée Harvey * Veja-se, por exemplo, os trabalhos realizados por Arrais (2013); Hidalgo; Arenas, Santana (2016); Gaitén; Rainer (2013), AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERENCIA: SIMON, Joana Cru de. RelagSes urbane mua especslidades pndémicas:reflextes prliminares partir do caso Quminense Revista Enssios de Geografia Nien, vol. 7°13, pp. 57-68, jncro-bnl de 2021 Subenvedo at: 190012021. Aco en 1903 2021, ISSN: 2516-8544 Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF (2011, p. 137): “a produgao do espago em geral ¢ da urbanizagéo em particular tornou-se um grande negocio no capitalismo. E um dos principais meios de absorver os excessos de capital”. Neste sentido, Rua (2014) ao tratar da relagio rural-urbana na contemporaneidade, lembra-nos que 0 prego da terra (a especulagio imobilidria e 0 aumento do prego da terra em espacos ditos rurais) é uma das maiores expressdes de urbanidades no rural. Se levarmos em consideragao a afirmagao trazida por Harvey (2011) e as avaliagdes propostas por Rua em seu trabalho, nfo podemos negar que se produz novos espagos (novas possibilidades de reprodugao do capital), através da consolidagao de representacdes de uma “utopia urbana da anticidade” (HIDALGO; ARENAS: SANTANA, 2016, p. 30). Tal utopia, embora se construa através de uma visio negativa da cidade (a antinatureza, o espago caético, violento e poluido e, agora, Idcus de contaminagio), somente consolida-se carregando consigo “as comodidades que derivam da vida urbana” (HIDALGO; ARENAS; SANTANA, 2016, p. 30). Ocorre que essa “invengdo” — ou seja, esta representagao do espaco rural transformado em utopia — tem consequéncias que podem levar 4 sua distopia, conforme evidenciam os autores citados. Ao estudar o caso do litoral chileno, os gedgrafos demonstram como, através deste proceso de difustio da logica metropolitana a espagos rurais, pelo meio da valorizagio da residéncia ou turismo em ditos locais, criam-se também, fendmenos de “elitizagao, exclusio, segregacao e degradacao ambiental” (HIDALGO: ARENAS; SANTANA, 2016, p. 28). Assim, os autores argumentam que a criagdo de uma representagdo do rural como utopia (fazendo emergir um imaginério de utopolis) cria, em verdade, sua antinomia: uma dist6polis — dispersio dde novas (¢ velhas) formas de segregagao e elitizagdo dos espagos. Ao se debrugar sobre 0 caso do litoral cearense, Assis (2012, p. 42) analisa que hé uma “elite mével” para quem “morar e viajar sfo termos relativos que remetem a priticas cotidianas multilocalizadas e redefinem os sentidos de migrante-turista e morador-migrante”. Assim, gestada nas cidades, a demanda pelo espaco rural (transformado em utopia) acaba por imprimir nele caracteristicas cada vez mais “metropolizadas”, seja do ponto de vista da morfologia e organizacao do territério, seja do ponto de vista das priticas sociais. Resta, no entanto, nao observar estas transformagées de forma também dicotémica (como costumamos fazé-lo no que tange ao par urbano e rural), ou seja, de forma em que haja, “unicamente, uma AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERENCIA, SIMON Joana Cruz de. RalagSe shen rcs orpecidads pendiica: elextes preliminars pir do caso Guminense Revista Ensaion de Geogr. Nir vl 7, 13 pp 57-48 jeri de 2021 Subenvedo at: 190012021. Aco en 1903 2021, ISSN: 2516-8544 64 Ensaios de Geografia Essays of Geography | POSGEO-UFF valoragao (positiva ou negativa) sobre as influéncias do “global” sobre o ‘rural’, como propdem Gaitén e Rainer (2013, p. 575). Consideragies finais Se observamos um processo de mobilidade do urbano para o rural (ou periurbano), motivado pelas condigdes (socioespaciais) impostas pela pandemia, devemos nos perguntar: que transformagdes este movimento aportara para as relagdes urbano-rurais? Por outro lado, quais io as representagdes (de urbano, de rural; das relagdes entre espaco e bem viver) que determinam tais movimentos? Como estes atuam como desigualizadores do espago geogritico (por exemplo, a partir da vivéncia desigual das escalas)? Quais diferengas reafirmam e quais anulam? Estas questdes apontam para um “espago pés-pandémico” transformado do ponto de vista de sua materialidade, sua organizagao; mas também de suas dimensdes simbilicas e subjetivas — todas estas co-determinadas e intrinsecamente relacionadas. Se nfio podemos negar que atravessamos um momento de crise, de mudangas, de incertezas e também de novidades, a cidneia geogrifica tem papel irrefutavel na compreensio e anzlise de tais processos. O espago — concebido, percebido, vivido, conforme nos aponta Lefebvre (2006) ~ se transforma e, portanto, transforma-se a vida cotidiana. O inverso, certamente, também é verdadeiro: porque a vida cotidiana se transforma (alguns iro falar em um cotidiano em suspensio), concebem-se, pervebem-se e vivem-se outro(s) espago(s)— e, portanto, outras relagdes entre rural e urban. Referéncias ALMEIDA, C; BATISTA, H. Possibilidade de manter home office apos pandemia valoriza iméveis fora dos grandes centros. O Globo, 28 de julho de 2020. Disponivel em: . 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