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Mombaça - Pt. 1
Mombaça - Pt. 1
Jota
Mombaca I
Não vão nos
matar agora
(obogó
Sobre os livros da Encruzilhada
fundiria com €sse mundo. Aqui a pergunta não pode ser outra:
1. Na quebra. Juntas 21
lapso, enunciar o que este título enuncia. Não vão nos mataÍ
agoÍa, apesâÍ de que já nos matam. Não preciso retornar aos
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J
conosco, ouvindo esta conversa e nutrindo o apocalipse do continente europeu. De dentro do condomínio fechado onde
mundo de quem nos mata. me encontro, olhar o Brasil agora implica medir cada passo
lânáo temos tempo, mas sabemos bem que o tempo não dessa distância, e testemunhar de longe a dor do território en-
anda só paÍa a frente. Não vim aqripara cantar a esperança. quanto ela se materializano meu corpo."
Não temo a negatividade desta época, porque aprendi com os Hoje é 27 denovembro de 2020.Depois de dar um salto e
cálculos de Denise Ferreira da Silva que menos com menos dá voltar pra casa, perder a casa, cortar a base, ficar sem base de
mais e, portanto, nossas vidas negativadas se somam e se mul- rrovo, consegui enfim voltar à casa provisória onde comecei a
tiplicam à revelia. Então eu vim para cantar à revelia.
tudo enadamudou. Afíria
escrever esta carta. No intervalo,
À revelia do mundo, eu as convoco a viver apesar de tudo. Na
e aagoniacondensadas foram tornadas pedra,pedra quente,
radicalidade do impossível. Aqui, onde todas âs portas estão fe-
pedra de lava. Despedaçadapelagrande velocidade das idas e
chadas, e por isso mesmo somos levadas a conhecer o mapa das
vindas de dados e luzes na tela. Ainda ontem, desde a minha
brechas. Aqui, onde a noite infinita jânáo nos assusta, porque
distância, eu testemunhei a proliferação de conteúdos sobre
nossos olhares comungam com o escuro e com a indefinição
mais um assassinato a execução pública de ]oão Alberto
das formas. Aqui, onde apenas morremos quando precisamos
-
Silveira Freitas por um grupo de seguranças chancelados pela
recriar nossos corpos e vidas. Aqui, onde os cálculos da política
rede francesa de supermercados Carrefour em Porto Alegre.
I falham em atualizar suas totalizações. Aqui, onde não somos
Tudo transmitido e comunicado, nesta cidade infinita e infi-
a promessa, mas o milagre. Aqui, onde não nos cabe salvar o
nitamente vigiada que é a internet.
mundo, o Brasil ou o que quer que seja. Onde nossas vidas im-
Não estou exilada. Daposição onde me encontro, posso dizer:
possíveis se rnanifestam umas nas outras e manifestam, com
sua dissonância, dimensões e modalidades de mundo que nos
náohâexílio. Poucos meses atrás, Bruno Candé foi assassinado
recusamos a entregar ao poder. Aqui. Aqui ainda. em Lisboa por um velho ex-combatente da guerra colonial em
Em2l de junho de 2020, eu tentei começar a escrever esta Angola, Evaristo Marinho. E este não é um caso isolado, assim
I carta. Não frz mais do que rmparâgrafo, no qual dizia: como Portugal também não está isolado em relação à violência
"lnicio esta escrita numa casa provisória,na cidade de Lis- racial que opera por todos os cantos deste continente e além.
I
boa, onde estive retida ao longo dos últimos três meses em Tudo nos leva a crer que estamos cercadas, que onde hánaçáohâ
função das medidas de contenção da pandemia de covid-19 no brutalidade, e onde hábrutalidade nós somos o alvo.
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Mas nós também estamos onde a mira nâo alcança,porque Toda a belezae todo respiro que existem vieram a ser ape-
embora nã.ohaja exílio, hâ afuga.A fuga para onde estas pala- sar do Brasil. Então é para o apesar, para o terreno da força
vras..rumam. A fuga onde a gente se encontra. que contradiztodabtttalidade, gue estas palavras fogem. Elas
Sinto que comecei afugir do Brasil antes mesmo de migrar. fogem para abeleza, mesmo gle para isso tenham de passar
Sinto que isso é verdade para muitas de nós. O Brasil, em sua por campos em charlas. A meta não é tanto o outro lado, mas
autodescrição como promessa utópica de um mundo pós-ra- o aqui, esse aqui paraondeestamos indo e onde já estamos. O
cial, configura-se, mais bem, como uma distopia antinegra e aqui de onde viemos.
anti*indígena, em gue as figurações de uma liberdade carnava- Este livro foi feito como uma b aÍrícada, pata roubar tempo.
Iizadaexpressam não a ruptura com todas as normas, mas seu Érmacompilação de críticas e de pistas. Críticas aos modos su-
excesso. O Brasil, essa ficção colonizadae recolonial, submissa tis e não tão sutis de aítalização da violência sistêmica da bran-
gualquer polícia, pública ou privada. O Brasil é o que asfixia e tradança tensa, contudo, eu pude testemunhar os limites daqui-
mata. O Brasil é a chacina. lo que a branquitude e o fundamentalismo cisgênero nomeiam
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"inclusão". Quando aprendi com Musa Michelle
Mattiuzzisobre ro de possibilidades impossíveis, a manifestação misteriosa da
a "inclusão pela exclusão",2 dediquei-me a estudar
as curvas e os existência do que não existe...
nós desse processo. Assim é que parte das críticas aqui
contidas Tais pistas, portanto, servem e não servem, assim como as
aponta na direção deste problema, que é abrutalidade da
apro_ críticas com que estâo misturadas. É tudo experimento na bor-
priaçào e do roubo na chave da benevolência; o problema
do uso da das coisas, lá onde estamos prestes a dissolver as ficções de
branco e cisgênero das categorias de justiça social para seguir
poder que nos matam e aprisionam;lâ, aqui, todas essas geo-
replicando as condições de reprodução da injustiça sistêmica.
grafias onde fomos saqueadas, e nos tornamos mais-do-que-
Mas a crítica é uma bússoraviciadaquando
se trata de aborir aquilo-que-levaram; onde fomos machucadas, nos tornamos
o mundo como o conhecemos rumo à possibilidade de :
viver mais do gue um efeito da dor; onde fomos aprisionadasi e nos
outramente.3 Por isso, espalhadas pelas palavras e forças deste
tornamos mais do que o cativeiro; onde fomos brutalizadas,
livro, estão pistas mais-do-que-críticasa para a travessia e paÍa e nos tornamos mais do que a brutalidade. Lá, aqui, onde fo-
a fuga. Não são receitas, fórmulas, chaves para abrir grandes
mos assassinadas, e nos tornamos mais velhas que a morte,
portões; são, antes, o rascunho de rotas provisórias, o sussur_
mais mortas que mortas,s e nesse fundo
- esse foraqtenão só
não está fora como está dentro de tudo
-, nesse cerne em que
2. Refiro-me às elaborações contidas no texta "merci fomos colocadas, fecundamos a vida mais - do - que-viva, a vida
beaucoup, blanco! escrr-
I to experimento fotograÍia performance,,, publicado por ela em
2016, como emaranhada nas coisas. Ou, para ativar o presente que Cíntia
um caderno da Oficina de lmaginação política (32ê Bienal de
São paulo).
Disponível em: https://issuu.com/amilc arpacker Guedes me ofereceu e está registrado tambémaqui, como pos-
/docs/merci_beaucoup_
blanco-michelle_mat.
fâcio: "a vida infinita."
3. A formulação "o mundo como o conhecemos,,, que se repete
ao iongo
desta carta e do livro como um todo, é uma referência Não vão nos matar agoral
ao modo como
Denise Ferreira da Silva nomeia o projeto Moderno em sua
relação com
o mundo social e com a vida pl anetária. Assim também
as articulações
do "fim" de tal mundo se relacionam com como Ferreira
da sirva apre-
senta "o fim do mundo" como uma práxis. Ver Ferreira
da Silva, Denise.
I "Para uma Poética Negra Feminista: A Busca/euestão
da Negrid adepara
o (Íim do) Mundo." Disponível em : https://casadopovo.org.br/wp-content/
I uplo ad s / 2020/ 0 1 / a- div ida- ímp agavel. p d f.
4. Fred Moten, a certa altura de seu livro Stoten
Life,articula a ideia de um
"criticismo mais-do-que-crítico,, que é como,,ver
coisas,,. 5. Referência ao título do trabalho de Ligia Lewís, deader than dead (2020).
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1. Na quebr3. Juntas
certamente, o que eu
I tampadas, um dos poucos que eu tenho e,
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sentido de quebra que desloca efetivamente as posições incon_ e reelaboração dos modos de ser vulnerável em grupo, tendo
formes àmatriz cisgênera? E se essa sujeição inconsistente, esse em vista o modo como gordofobia, supremaciabranca, hete-
modo de ser quebrado demais paratraduzir-se em uma coerên_ roterrorismo e transfobia interatuam na reprodução da morte
cia identitária e representativa, qualquer que seja, insinuasse como expectativa de vida de muitas pessoas como as que nos
também uma forma de presença efetivamente desobediente reunímos nesse contexto.
de gênero? E se, às margens do grande nós universal (huma_ Mas que tipo de coletividade se põe aoperar no encontro de
no, branco, cisgênero e heteronormativo) apartir do qual se histórias de injustiça contadas desde posições tão diferentes,
formula e engendra um certo projeto de sujeito e identid.ade, e sempre já assimétricas? O que significa, num contexto como
outros modos de criar coletividade e de estar juntas se precipi_ o dessa residência (e para alem dela), insinuar um arra:nio, rm
tassem na quebra e através dela? E as perguntas não param aí, encontro, uma espécie de nós cujo efeito não seja o aniquila-
se multiplicam: como habitar uma tal vulnerabilidade e como mento do caráter inassimilável de cada corpo e de suas feridas?
engendrar, nesse espaço tenso das vidas quebradas pela vio_ E como isso remonta à cena da quebra, à hipótese de que não
lênc ia nor maliz ador a I uma conexão af etiv a de outro tipo, uma plenitude ontológica, mas na multidão de estilhaços que
é na
conexão que não esteja baseada na integridade do sujeito, mas se produz a possibilidade de um outro modo de existência em
em sua incontornável quebra? conjunto?
Este texto também está informado pelo denso processo ex_ Parafalar sobre a quebra, é preciso imediatamente escapar
perimental, performativo e político que se deu durante a resi- de estruturas lógicas que oposicionam indivíduo e coletividade,
dência Politizar a Ferida, programad a por mim com o apoio independente de que tendência essas estruturas demonstrem.
institucional, afetivo e financeiro do Água Viva Concentrado Não é sobre quebrar a lógica neoliberal do individualismo rumo
Artístico, como parte de seu projeto TRANSBORDA. por uma se_ a um mergulho no comum que eu vim falar aqui. Tampouco
maÍta, um grupo de cerca de dez pessoas se encontrou numâ é sobre afirmar essa lógica. Trata-se, mais bem, do reconheci-
casa próxima ao centÍo de Curitiba para experimentar modos mento de uma posição sempre já aquém do individual - por-
I de pensar e fazer performance desde corporalidades inscritas que desmontada por efeito de violências sistêmicas desindi-
por feridas histórica e socialmente constitutivas do mundo co- vidualizantes e de uma coletividade sempre jâ aqtem do
I -
mo nos foi dado conhecer. Assim, mais do gue um espaço para comum porque inassimilável do ponto de vista das lógicas
-
formação artística, constituiu-se um espaço de exercício ético coletivas generalizantes. Nem eu nem nós como enticlades in-
22 az
LJ
ternamente coerentes. Falo aqui de uma presença gue escapa
que lá estava como programadorufproponente, foi sem dúvida
ao gesto mesmo de apreensão a gue este texto se gere; falo
de um exercício duro, arriscado, confuso e frequentemente exaus-
uma força que não é nem o sujeito e nem o mundo, mas atra_ tivo. Minha metodologia intuitiva experimental foi a de
vessa tudo.
- e
-
me apresentar em minha insegurança e vulnerabilidade, pon-
É provável, aliás, que este texto termine sem oferecer uma do minha propria posição e meus modos de chegar à.arte da
definição suficientemente bem articulada quanto ao que agui
performance em questão a todo tempo. lsso permitiu, por um
se apresenta como "a quebra,'. Esse talvez seja o modo
de a lado, criar uma situação em que todas as pessoas participantes
quebra menos como entidade autônoma do que como força
- da residência podiam, caso quisessem e se manifestassem nesse
incapturável definir-se em sua resistência
- à definição. Assim, sentido, assumir minha posição, propondo exercícios e dinâmi-
a quebra seria o que não se define, porémnão por heroísmo
cas, mas também gerou uma sensação permanente (pelo menos
pós-moderno, sim, por fracasso e insuficiência. A quebra não para mim) de pontas soltas, arestas mal-aparadas, movimentos
se define porgue não cabe em si mesma, porque qua.ndo
uma em aberto e exercícios inconclusivos.
. vidraça arrebenta, os estilhaços correm para longe, sem nenhu_ Descrita de tal modo pode parecer que a experiência foi,
ma ordenação plausível. Tendo como exemplo essa imagem,
e na verdade, um desastre, mas ocoÍre que, se foi um desastre,
finalmente me aproximando o mais possível de uma definição:
não é de um ponto de vista moral que eu agora a considero:
o gue agui chamo quebra não são os estilhaços, mas o movi_
não escrevo aquipara diagnosticar o bem ou o mal de uma
mento abrupto, errático e desordenado do estilhaçamento. experiência coletiva desastrosa, mas para perguntar que for-
Então se pensada como estilhaçamento, como é possível in_
ças, que densidades, que movimentos de vida, afinal, tal en-
sinuar na quebra um qualquer modo de estar junto? Se a que_ contro propicia? Pois em sua fragilidade e descompasso, essa
bra rompe com um sentido de integridade, como então pode
experiência trouxe à tona expressões tanto performativas
precipitar a reunião de forças, entidades e existências? Se ela
-
é propostas e performadas ao longo da residência quanto
o evento do desmantelamento, após o qual
-
um corpo jânão po_ afetivas excitadas e experimentadas nos momentos juntos,
de ser lido como um corpo próprio,que política da afinidade
-
dentro, fora e para além do espaço que ocupamos que se
pode ser engendrada aí, apesar e através da quebra?
-
precipitam sobre as dinâmicas políticas, éticas e estéticas da
A experiência em Curitiba, ao longo dos dias de residência,
coletividade contingente que engendramos ali como um modo
de alguma maneita, abriu a cena dessas questões. para mim,
de estar na quebra. luntas.
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E nada disso é fácir, nada disso é sem
dor e desconforto. Ao
0. O mundo é meu trauma
tatear a possibilidade de uma coletividade foladano
movimen_
I to improvável de um estilhaçamento, vai ser sempre necessário
abrir espaço para os fluxos de sangue, para as ondas
de calor e
para a pulsação da ferida. politizar a ferida,
afinal,é um modo
de estar juntas na quebra e de encontrar,
entre os cacos de uma
vidraçaestilhaçada, um liame impossível, o indício
de uma co_ Primeira Nota. Preciso não escrever um manual de ética, mas
letividade áspera e improvável. Tem a veÍ com habitarespaços rasgar todas as recomendações que me impedem de aderir à lin-
irrespiráveis, avançar sobre caminhos instáveis
e estar a sós guagem do meu desespero. Não é que este afeto rarefeito possa
com o desconforto de existir em bando, o desconforto
de, uma indicar a quem queÍ que seja a saída de algo, mas não é ao acaso
vez juntas, tocarmos a quebra umas das outrâs.
gue ele me toma e encontra em mim os buracos e flechas que
Enguanto me encaminho parao fim deste ensaio _ tão in- atravessam minha carne, esta carne política feita de especulação
conclusivo guanto pode ser um ensaio feito
em torno de per_ e memória, de força ematéria. Preciso não escrever sobre como
guntas para as quais não há resposta _, ffie pergunto sobre atravessar um processo perante o qual me sinto perdida. Preciso
como isso toca o comentário da amigaque
mencionei no pri_ não escrever sobre o quefazet quando estou paralisada. Se posso
I meiro parâgrafo deste texto. Isto é, quanto essa
reflexão adensa artancar da paralisia e da confusão um outro modo de escrita,
a ideia de que o sentido quebrado de si que
acompanha o meu preciso escreveÍ sem garantias de que escÍever mostrará as saí-
movimento de mundo como corpo monstruoso,
de presença das; escrever com o risco de mergulhar em espiral negativa e me
abertante e desobediente de gênero, marca,enfim,
um outro afogar no ar seco da dúvida. Preciso não escrever, mas insisto
modo de habitar e enfrentar o mundo. Então orho
a história do e escrevo. Uma promessa e uma dívida: de mesmo em face do
meu nomel deste corpo, dos gêneros que por
ele passam, e me máximo despojamento, preservar com a proptiavida esse risco.
perco no exercício poético e político de
dar conta da guebra que Segunda Nota. Àquelas de nós cuja existência social émati-
I me atravessa, de s monta e, p ar adoxalmente,
v iabiliza. zadapelo terÍoÍ; àquelas de nós para quem apazrru:ncafoi uma
t opção; àquelas de nós que fomos feitas entre apocalipses, filhas
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como Íios a esconder-se nateÍÍa; àquelas de nós que olhamos o pESStMtsMo É rÃo PorENClALMrNrp róxtco QUANTo
de perto arachadurado mundo, e nos recusamos a existir como A CRENçA NA VERDADE, NO FUTURO E NO BEM'
se ele não tivesse quebrado: eles virão para nos matat, porque
não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas sE A GENTE AO MENOS SOUBESSE ENFEITIçAR
os EFElros DA
impossíveis se manifestam umas nas outras. Sim, eles nos des- ANSIEDADE NOUTRAS »tnrçõrs, PARA APRENDER coM ELES'
pedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos pedaços, nós
nos espalhaÍemos. Não como povo, mas como peste: no cerne SENTE OESCANTÁVEL'
MAS A GENTE VAl FICANDO DOENTE E SE
mesmo do mundo, e contra ele.
ESTAMoSSEMPREÀpoRlaoUNAESQUINADEQUALQUERCoISA.
EU eurs euErMAR e líNcua euE ME HAVIA slDo ENSINADA.
A GENTE
EM HOMENAGEM A coNcElçÃo EVARlsro'
rssa lÍNcua NA euAL ToDA pALAVna ssrÁ MANCoMUNADA CoMBINAMOS »r NÃO MORRER' pnuctsÁvemos reNrsÉN1
soMos SIMULTANEAi\lENTE ToRNADAs rNcócNtras EU sEt QUE ELEs NÃo ssrÃo APENAS I-Á rou' NÃo vt
E LEVADAS A LUTAR PELA LINGUAGEM. EU OS SINTO MEXER BEM
QUANDO SE TNSTALARAM, MAS
ApENAS """"possulRMos"""" (rNrnu MUITAS asnas) a SÃO ELES QUE MORREM A GENTE,
E TENHO
ISSO ESTAVA ESCRITO NA PAREDE. COM A LINGUAGEM ENTRETANTO O TERAPEUTA, UMA BICHA PRETA -
euE RErRoDUZ NossA rNuxlstÊNcra. PRETA COMO
oRGULHO DE DtzER QUE PROCUREI UMA BICHA
EU TENHo UMA cENA NA cABEçA E ELA ME AssusrA. nÁ rnÊs quu NÃO DAVA MAIS, E QUE EU ESTAVA ME AFOGANDO -',
DIAS srNTo qur NÃo sAto DE UMA ESrIRAL NEGATIvA. POSTOU UM DIA DESSES: VOCÊ É MAIOR QUE
O SEU TRAUMA.
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MEU EX.NAMORADO, PANELEIRO
(rU T,ORTUCAI É ASSINT
MINHA rRoFECTA Drz euE, ASSIM coMo Nós, os Nossos
QUE SE Dtz "BtcHr',) B SnaNCO
- QUE Na coNrnaorçÃo FANTASMAS vrnÃo coBRAR. qur yÁ psrÃo A cAMtNHo.
DocE E DENsA, naÁcrca E TENSA DAS INT.TMIDADES,
pRoprcrou coMlco
AFETos cúuplrcrs ENeuANTo po paÍs NÃo ceRaNrE
ESCREVER A FRASE NA IELE QUE cESSE
os FANTASMas or »ÍvroAs
E DoRES tRRECoNCTLtÁvprs
pERCoRRIAM A LUTA coNTRA a seNsaçÃo DE euE sou EU QUE DEVo.
os côlrooos DA cASA E sE pENDURAVAM
NA
ttrosÍLte posTOU A MESMA
-, COISA NO DtA EM
QUE FUt rsso NÃo pAssA DE UMA FoRMA DE coRTAR o
ACOSSADA POR UMA SENHORINHA
LUSITANA NA RUA.
MUNDO. E O MUNDO É MSU TRAUMA.
EU SOTJ MAIOR DO
QUE AS FLUTUAçõES ECONôUICAS
EU ACHEI euE vrNDo Aeur EU rA poDER rEGAR o qua É
E DO QUE o TRABALHO CoLAPSADO.
MEU, MAS uu NÃO ME VEJO EM ABSOLUTAMENTE NADA.
EU ESCREVI A SANGUE
NA CALçADA DOS
EU TIVE A OPORTUNIDADE DE TRADUZIR COTSAS DA DENISE,
tNVAsoREs: vocÊs Nos
DEVEM.
MAS FALHET srsrEMATICAMENTE. UMA vEZ arnÁs DA ourRA.
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E MESMO ATÉ CHEGAR NESTE TEXTO EU PERDI EU SOU MAIOR QUE O SERV1çO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS'
TANTOS PRAZOS QUANTO ME FORAM DADOS.
DE ACATAR PRAZOS E FAZER PROMESSAS, ISTO EU NÃO uMA vEZ ELE ME DtssE QUE EU PoDrA ENTRAR lÁ covto uu
PARO. ASSIM, QUANDO PARO DE TRABALHAR, TENHO TOURO NUMA LO]A DE PORCELANA. A BICHA ONTEM QUANDO
O TRABALHO DE FRACASSAR PARA DAR CABO. vru euE EU ESTAVA TRtsrE ME DISsE QUE A TRlsrnztÉ o
FUNDAMENTO DA BICHA-BOLBA: O PREÇO DE DESTRUIR A
E SOU MAIOR QUE ESSE TRABALHO E QUE OS PRAZOS E MERDA TODA QUE NOS CONSTRENCT É DEMORAR TEMPO DEMAIS
QUE O
MEDO DE NÃO TER DINHEIRO E DE NÃO FECHAR A CONTA. arÉ Noren euE A ExplosÃo rannsÉM TE DEIXA »rsrnuÍoa.
EU SOU MAIOR QUE A AMPULHETA ENTORNANDO. FUr TRAMADA EM EXTREMOS DE FORçA. E COMO A BICHA
ME coNsoME Do MEto-Dra arÉ o FIM DA raR»r É SE POR DOIS SEGUNDOS EU PONHO A CABEçA FORA
TNVERSAMENTE pRopoRCtoNAL À celtre cRUEL E DA ESPIRAL EM QUE ESTOU AFOGANDO, CHEGO A UMA
ASSASSTNA DO SERVTçO DE ESTRANGETROS E FRONTETRAS. coNcr-usÃo IMEDIATA: ou EU PARo ou lsso PARA coMlco.
EU sou MAtoR euE ESSA uerrmÁrrca MAS QUANDO UM CORPO NEGRO PARA DE FUNCIONAR,
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E QUANDO A GENTE QUEBRA, QUE INFRAESTRUTURAS -1. A coisa tá branca!
SE PRECIPITAM, AS DO CUIDADO OU DO DESCARTE?
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e escuta da supremacia branca e do eurocentrismo; por outro, habilite corpos historicamente privilegiados pela racializaçâo
hâtambem uma crítica tendencialmente branca que insiste e pela colonialidade anáo reencenarem o teatro de sua- domi-
cisgêneros, heterossexuais etc.) a falar. parece-me bastante condições de possibilidade dessa dominância e protagonismo
evidente que essas críticas, na realidade, ressentem nos usos foramforjadas. A reciclagem "pós-colonial" dessa personagem,
políticos do conceito de lugar de fala o desmonte da possibilida- amparada pelo imaginârio amplamente difundido da coloni-
de de uma enunciação universal, namedidaem que essa ferra- zaçâo portuguesa como branda e,patticularmente, do referido
menta atinge de frente o regime de verdade que historicamente padre como tendo sido uma frgurasensível à humanidade das
configurou essa posição (o universal) como sendo acessível tão gentes que viviam nas terras do que hoje chamamos Brasil,
somente desde lugares de fala muito específicos (a branquitude, atesta de maneira contundente a hegemonia do lugar de fala
a europeidade, a cisgeneridade etc.). branco-colonial como infraestrutura dos regimes de verdade
Entretanto meu interesse aqui nâo é voltar a esse tema, o que até hoje determinam as condições ontoepistemológicas de
qu.al)á,foitrabalhado por mim em textos como',pode um cu enunciação. Assim, no limite, as críticas brancas à instauração
I mestiço falar?" e "Notas estratégicas quanto aos usos políti- da estátua podem, quando deslocadas de uma ética efetiva-
cos do conceito de lugar de fala" (cap. -4), ambos acessíveis mente disruptiva da colonialidade e do racismo, ser inscritas
online, assim como em falas públicas como "Lugar de Escuta,, pela mesma lógica de atribuição de valor às vozes brancas gue
(cujo vídeo está também disponível online), na conferência oferece o solo subjetivo no qual amemôria heroica de Vieira
Vozes do Sul do Festival do Silêncio e na entrevista "Lugar de está assentada.
Falae Relações de Poder" concedida aCarla Fernandes para Essa é a contradição fundamental que acompanhaas alian-
a Rádio Afrolis. O que este texto enseja é, mais precisamen- ças brancas: a continuidade entre suas posições e o
sistema
I te, interrogar os limites da apropriaçáobrancados discursos simbólico contra o qual supostamente se articulam. Embora
e práticas antirracistas e descoloniais evidenciando o modo não impossibilite o necessário trabalho de colaboração das pes-
I
como certas dinâmicas dessa apropriaçã.o tendem aoperar soas brancas e historicamente privilegiadas pela colonialidade
em descontinuidade com uma necessária ética situada, que com as lutas que apontam pata o desmonte desses sistemas de
3ó 37
reprodução social, ta1 contradição preenche o espaço intersub- Num contexto como o lisboeta, em que os circuitos intelec-
jetivo entre alianças brancas e as lutas antirracista e anticolo- tuais e artísticos parecem opeÍar ainda com base num progra-
nial com armadilhas cujos efeitos são sempre mais destrutivos ma relacional mais ou menos progtamâtíco, no gual as possibi-
para aquelas pessoas não amparadas pela infraestrutura da lidades de acesso a ceÍtas instâncias de visibilidade e circulação
branquitude. lsso evidencia não só a tenacidade do capitalismo parecem muito mais evidentemente associadas à capacidade
de cumprir com uma certa expectativa social
(com frequên-
racial como regime de distribuição desigual da violência, mas
cia matizada por privilégios de raça, classe e gênero) do
que
também o caráter imprescindível de uma autocrítica radical da
propriamente com os tipos de trabalho artístico e intelectual
branquitude que tenha como finalidade o desmonte do racis-
mo e da colonialidade não apenas como índice estruturante do realizados; um contexto em que as pÍesenças não hegemônicas
mundo, mas como espinha dorsal do projeto global de subjeti- (de pessoas negras, migrantes e trans, especialmente) parecem
ex-
vidade branca e europeia que lhe é condicionante. estar inscritas por dinâmicas extrativistas de tokenização'
clusão, trabalho não reconhecido e exploração, não basta
às
l
I
Nesse sentido é que o trabalho político desses artistas e
"aliadas"
cessariamente ir além da crítica à estátua, cuja inscrição maciça aprend.er afalar a linguagem dos antirracismos, da descolonia-
na paisagem lisboeta pode tanto hiperevidenciar a densidade lidade e, adicionalmente, dos movimentos trans' O trabalho
da mentalidade colonial no presente quanto carnufl.ar os modos político dessas pessoas deve, necessariamente, operar confor-
muito mais discretos como esta se afirmano tecido relacional me Llm certo programa negativo, em que desaprender, desfazer'
davida entre o mundo dos brancos e as pessoas sistematicamen- calar boicotar deixam de ser mecanismos acionados contÍa
e
te marginalizadaspor ele. É na própria dinâmica existencial da pessoas negras e dissidentes em geral para converter-se numa
branquitude, onde a infraestrutura de seus privilégios se afirma, espécie de ética autodestrutiva da qual o trabalho de aliança
que o trabalho deve ser feito. São as relações íntimas, os princí- branca depende.
I pios de seguridade social e subjetiva, as dinâmicas de interação O fator condicionante desse trabalho é, precisamente' o
uns com os outros e com o mundo, enfim, todaasérie de gestos, reconhecimento de que as assimetrias entre posicionalidacles
t
circuitos e pÍocessos que dão textllra à vida branca como norma não consiste numa falha dasociedade instituída, mas' mais
social que devem ser postas em xeque pelas alianças brancas. precisamen te, na matéria mesma de que tal sociedad e é feita'
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lsso significa que o problema da subalternidade não se resolve valorizaçáo do regime branco de distribuição das vozes. lsso
por meio de ajustes localizados na economia estruturalmente se deve ao fato de que, segundo a economia política das alian-
desigual do mundo como o conhecemos, mas, isto sim, pela ças brancas, "dividir privilégio" é sempre, contraditoriamente,
abolição global do binário subalternidade-dominância. Em uma fórmula que visa à "multiplicação dos privilégios" e não
outras palavras, reposicionar os corpos, subjetividades e vidas à sua abolição como estrutura fundamental da reprodução
subalternizadas fora da subalternidade é um projeto que só de desigualdades.
pode ser levado a cabo na medida em que reposicionamos tam- No mundo da arte, essa lógica se manifesta objetivamen-
bém os coÍpos, subjetividades e vidas privilegiados fora da do- te por meio da abertura de espaços, articulação de programas
minância. Dessa fotma, as narrativas benevolentes da aliança de performance e debate, financiados a partir do trabalho so-
branca
- fórmulas como "dar espaço", "dar visibilidade", "dar cial das alianças brancas, mas com ênfase na produção Írcgra.
voz",todas elas predicadas no desejo normativo de ajustar o Trata-se de um movimento ambíguo, simultaneamente gera-
mundo social
- têm como limite mais evidente a incapacidade dor de novos espaços de visibilidade e plataformas de escuta;
dessas mesmas narrativas em incorporar a dimensão negati- e apropriador do trabalho e das potências especulativas ne-
va desse trabalho, ou seja: "perder espaço", "perder visibilida- gras como tema e matétia para a atualizaçào do sistema de
de", "perdeÍ voz" . arte cujos modos de gestão estrutural e micropolítica seguem
A hipótese de "perder o mundo" é indutora de uma an- a inscrever-nos desigualmente. Todas que atravessamos esses
sie dade profundam ente enr aizada nas subj etividades bran- circuitos, como artistas, curadoras, críticas, escritoras e agita-
cas, na medida em que o mundo como nos foi dado conhecer doras negras somos desmembradas por essa contradição, e em
é, precisamente, a infraestrutura da vida branca. Lidar com alguma medida nosso trabalho tem sido o de ocupar e demolir,
essa ansiedade é, portanto, parte fundamental do trabalho num só movimento, habitando os escuros do mundo da supre-
das alianças brancas, sendo que isso frequentemente resulta macia branca para então estudá-los e adivinhar suas brechas,
em exploração do trabalho afetivo, poIítico e intelectual de bordas, gatilhos, campos de explosão e implosão,linhas de fuga
pessoas negras. Assim, quando uma pessoa branca diz "usaÍ e moonlights paÍa outras terras. Mas não quero que essa forma
I
seu privilégio" para" dar voz" aumapessoa negra, ela o diz na de narcar faça o processo parecer menos denso, porque mate-
t condição de que essa "voz dada" possa ser posteriormente me- rialmente o que esse trabalho engendra, como efeito de sujeição
tabolizada como valor sem com isso desmantelar alógica de negra, tem também custos somaticopolíticos brutais.
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Falo por mim, que, ao longo dos últimos anos, tenho cir- ria me limitar à problemática dos nomes, tanto do programâ
culado por cada vez mais espaços de arte hegemônicos sem quanto do coletivo, que por si só já evidenciam, tendo em vista
que isso coincida efetivamente com quase nenhuma forma de os contextos em que foram gerados, um certo recurso à autopa-
acesso às infraestruturas que gaÍarrtem, do ponto de vista ma- rodizaçâo das posições hegemônicas que só pode mesmo adqui-
terial, emocional e simbólico , a vida das pessoas para quem rir significado na medida em que produz continuidade, e não
esses espaços foram feitos pessoas cis, brancas, hetero-e-ho-
- ruptura, com os efeitos e modos de perpetuação dessas posições.
monormativas. Se meu acesso ao mundo da arte está sempre já Concordo com o que disse Grada Kilomba (na fala qrue fez
condicionado à retórica das alianças brancas, em cuja matriz no espaço Hangar a 3 de novembro de 2017) sobte a relação da
de valor minha posição de "bicha preta" está codificada como ferida colonial com a subjetividade portuguesa contemporânea
sendo portadora de um certo potencial ontoepistemológico e ser de uma profunda negação. Se monumentos como o Padrão
político, é justamente na medida em que eu reencârno amatca dos Descobrimentos e a estátua de Vieira são evidências ma-
racial e seus efeitos radicalmente alienantes que meu trabalho ciças dessa adesão coletiva a uma memorialização da colonia-
se torna viável. lsso tem como efeito mais evidente a reinscri- lidade absolutamente desconectada da tradição de violência e
I ção de toda minha produção simbólica, conceitual e política no crueldade que forma o núcleo desse processo, a ironia de um
marco de uma tradição de trabalho negro cuja relação com o coletivo chamado Pipi Colonial não deixa de sê-lo também. A
articulada aqui. Trata-se de um programa curatorial intitulado o pensamento feminista descolonial. Entretanto, aopatodizar o
t
A Coisa Está Preta, assinado por um coletivo pretensamente colonial num contexto cuja branquitude tende a ser profunda-
feminista e pós-colonial português, o Pipi Colonial. Eu pode- mente autoindulgente quanto à sua responsabilidade paÍacom
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a produção e reprodução daferida colonial, esse coletivo não só nós. A aparição dessa formulação no texto de apresentação não
ocupa de forma desleixada o privilégio daprópriaposição, como deixa de ser a passagem de um fantasma colonial, que monta
cutuca umaferída cuja extensão não está sequer evidente do a cena paÍa:uma nova ordem de procedimentos extrativistas,
ponto de vista dapropria eurobranquitude de sua plataforma. estes de matriz cognitiva, ontoepistemológica, conceitual e
Também o recurso ao "Pipi", termo usado no contexto local simbólica: a produtividade conceitual do preto torna-se, aqui,
como eufemismo de vagina, para inscrever um certo tipo de matériaparaaattalizaçáo deste mundo, do mesmo modo que
projeto feminista que depende da coincidência normativa entre o café, imposto como monocultura nos campos de plantação,
vagínae feminilidade, o que por si só iá defi,ne um escopo cis- serviu à atualizaçào do mundo de que as autoras deste texto e
gênero fundamentalista (por reproduzir de forma descuidada desse projeto são herdeiras.
o princípio de inexistência de masculinidades e feminilidades Afinal, isso é também sobre economia, e sobre o modo como
com anatomias diversas), evidencia desse coletivo um autocen- a política das alianças brancas no mundo daartetem implicado a
tramento tão radical que não pode coincidir com nenhuma for- manutenção de um sistema desigual de distribuição de recur-
ma de implicação afetiva e efetiva para com a complexidade e sos, que permite gue pessoas brancas "esclarecidas" controlem
interseccionalidade das lutas que pretendem endereçar. Con- as agendas do debate racial nesses campos, irrigando os imagi-
tudo o gue me interessa destacar mais veementemente agui nários coletivamente produzidos por meio do sistema de arte
como forma de marcar uma norma e, concomitantemente, com base na sua ótica e na sua ética estreitadas pela adesão
-
contra-atac â-la é a relação desse coletivo com a produção sempre parcial, e algo oportunista, ao projeto de abolição do
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intelectual descolonial ertegra, tendo como emblema o texto mundo como o conhecemos. E isso fica especialmente evidente
de apresentação do projeto A Coisa Está Preta. quando se trata de um programacuratorial em que não há se-
Cito apenas uma frase: 'A produtividade conceptual do pre- quer uma pessoa negra; e, adicionalmente, em que uma das ati-
to surge aqui como signo." vidades tem como subtítulo "caÍtabranca para falar do preto".
A produtividade conceitual do pÍeto surge como signo da Num certo sentido, o programa em questão é a caticatua
vida após a morte da escravidão, e isso significa a reprodução de um processo difundido de formas muito mais discretas e ca-
historicamente carÍegada de uma lógica anacrônica de valor pilares no mundo da arte contemporânea hoje. Talvez por isso
que, entretanto, configura o presente e o futuro das políticas ele apareça aqui como caso a ser estudado, pelo modo cÍu como
especulativas brancas valor como aquilo que é roubado de evidencia umaprâticae lógica que o excedem, como emblema
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de um processo que está difundido e cuja direção precisa ser da desconfiança gue não deve se confundir com a naturaliza-
desafiada por todos os lados, desde as bordas e desde dentro; ção de uma separabilidade hiperdeterminada entre as posições.
do mesmo modo, parece-me que o exemplo desse coletivo, pelo Assumo, por isso, o risco de tensionar muitas das bases materiais
fato de pretender-se uma plataforma de aliançacom as lutas do e emocionais da minha própríavida, como pessoa negra inscrita
feminismo negro e pós-coloniaf descolonial desde a posição de de formacontraditória nos circuitos de produção e reprodução
mulheres cis brancas, oferece também condições paraponsar' do privilégio branco, pois, no limite, o que preten-di aqui não foi
mos com mais cuidado sobre os limites das alianças e também enrijecer cisões fundamentais, mas habitar o dilema incontor-
sobre os limites da apropriação do que as autoras chamam "pro- nável de lidar com as desigualdades e assimetrias como princí-
dutividade conceitual do preto" por agrupamentos, instituições, pios de constituição do mundo, e não como falhas situadas na
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