Anaximandro - (Os Pensadores - Os Présocráticos)

You might also like

Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 7
ANAXIMANDRO DE MILETO (CERCA DE 610-547 A.C.) DADOS BIOGRAFICOS CONCIDADAO, DISCIPULO e sucessor de Tales. Gedgrafo, matematico, astrénomo e politico. De sua vida, praticamente nada se sabe. Em compensacao, os relatos doxogrificos nos dao conta de que escreveu um livro, intitulado Sobre a Natureza, tido pelos gregos como a primeira obra filosdfica no seu idioma, Infelizmente 0 livro se perdeu, restando-nos apenas um fragmento e noticias de filésofos e escritores posteriores. Atribui-se a Anaximandro a confecgdo de um mapa do mundo habitado, a introdugdo na Grécia do uso do gnémon e a medigdo das distancias entre as estrelas e 0 calculo de sua magnitude (é 0 iniciador da astronomia grega). Ampliando a viséo de Tales, foi 0 primeiro a formular 0 conceito de uma lei universal presidindo o processo césmico total. A - DOXOGRAFIA Trad. de Wilson Regis 1. SIMPLICIO, Fisica, 24, 13 (DK 12 A 9). DENTRE O$ QUE AFIRMAM que ha um s6 principio, mével ¢ ilimitado, Anaximandro, filho de Praxiades, de Mileto, sucessor e discipulo de Tales, disse que o dpeiron (ilimitado) era 0 principio ¢ 0 elemento das coisas existentes. Foi © primeiro a introduzir o termo principio. Diz que este ndo é a agua nem algum dos chamados elementos, mas alguma natureza diferente, ilimitada, e dela hascem os céus ¢ os mundos neles contidos: "Donde a geragao...do tempo". (Eo fragmento 1, p. 16.) Assim ele diz em termos acentuada-mente poéticos. E manifesto que, observando a transformagao reciproca dos quatro elementos, nao achou apropriado fixar um destes como substrato, mas algo diferente, fora estes. Nio atribui entio a geragGo ao elemento em mudanga, mas a separagio dos contrarios por causa do eterno movimento. E por isso que Aristoteles 0 associou aos da escola de Anaxagoras. 150,24. Contrarios sdio quente ¢ frio, seco e timido e outros. Cf, — Aristoteles, Fisica, 14.187 a 20. Segundo uns, da unidade que os contém, procedem, por divisio, os contrarios, como diz Anaximandro. Outros afirmam existir a unidade e multiplicidade dos seres, como Empédocles e¢ Anaxagoras. Estes fazem proceder tudo da mistura por divisao. 2. ARISTOTELES, Fisica, IIT, 4. 203 b 6 (DK 12 A 15). Pois tudo ou é principio ou procede de um principio, mas do ilimitado ndo ha principio: se houvesse, seria seu limite. E ainda: sendo principio, deve também ser nio-engendrado e o indestrutivel, porque 0 que foi gerado necessa io. Por isso, assim jamente tem fim e ha um término para toda destrui dizemos: ‘io tem principio, mas parece ser principio das demais coisas e a todas envolver e a todas governar, como afirmam os que nao postulam outras causas além do ilimitado, como seria Espirito (Anaxégoras) ou Amizade (Empédocles). E € isto que & 0 divino, pois & "imortal ¢ imperecivel" (Fragmento 3), como dizem Anaximandro ¢ a maior parte dos fisicos 3. ARISTOTE! Meteorologia, //,/.353 b 6 (DK 12 A 27). Era aida, no principio, toda a regidio em volta da terra. Ao ser ressecada pelo sol, a parte em evaporagio origina os ventos ¢ as revolugdes do sol ¢ da lua; © que sobra é mar. Pensam, portanto, que o mar se toma menor por estar secando e, finalmente, um dia secara de todo. — Alexandre de Afrodisias, para a passagem 67,3: Alguns deles afirmam ser 0 mar residuo da primeira umidade, pois, sendo timida a regido em volta da terra, depois uma parte da umidade por ago do sol evaporava-se ¢ disso se originavam ventos e érbitas do sol ¢ da lua, como se por essas evaporagées e exalagdes também aquelas (i, é, a umidade regio) fizessem as érbitas; donde a evolugao desta (i. é da umidade primeira) & diretriz para a deles (do sol c da lua), volvendo cles em tomo nesse sentido. Mas a outra parte dela, depositada nos lugares céncavos da terra, é mar: por isso ele se torna menor sempre que é ressecado pelo sol ¢ por fim um dia ele serd seco. Desta opiniao foram, segundo narra Teofrasto, Anaximandro e Didgenes. B - FRAGMENTOS Trad. de Cavalcante de Souza 1. SIMPLICIO, Fisica, 24,13. (Em p Principio dos seres... ele disse (que era) 0 ilimitado... Pois donde a geracdo é para os seres, é para onde também a corrupgao se gera segundo o necessério; pois concedem eles mesmos justiga deferéncia uns aos outros pela injustiga, segundo a ordenagao do tempo. 2. HIPOLITO, Refiutagio, 1,6,1. Esta (a natureza do ilimitado, ele diz que) é sem idade e sem velhice. 3. ARISTOTELES, Fisica, 1/1, 4. 203 b. Imortal... ¢ imperecivel (0 ilimitado enquanto o divino). C - CRiTICA MODERNA 1. Friedrich Nietzsche Trad. de Rubens Rodrigues Torres Fitho TV. ENQUANTO O tipo universal do filésofo, na imagem de Tales, como que apenas se delineia de neblinas, j4 a imagem de seu grande sucessor nos fala muito mais claramente. Anaximandro de Mileto, o primeiro escritor filoséfico dos antigos, escreve como escreverd o filésofo tipico, enquanto solicitagdes alheias néo o despojaram de sua desenvoltura e de sua ingenuidade: em inscrigdes sobre pedra, estilo grandioso, frase por frase, cada uma testemunha de uma nova iluminagao e expressio do demorar-se em contemplagdes sublimes. O pensamento ¢ sua forma sio marcos de milha na senda que conduz aquela sabedoria altissima. Nessa concisdo lapidar, diz Anaximandro uma vez: "De onde as coisas tém seu nascimento, ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois tém de pagar peniténcia e de ser julgadas por suas injustigas, conforme a ordem do tempo".’ Enunciado enigmitico de um verdadeiro pessimista, inscrigdo oracular sobre a pedra limiar da filosofia grega, como te interpretaremos? © Gnico moralista seriamente intencionado de nosso século, nos Parerga (volume II, capitulo 12, suplemento & doutrina do softimento do mundo, apéndice aos textos conexos), depde sobre nosso coragdo uma consideragaio similar. "O verdadeiro critério para 0 julgamento de cada homem é ser ele propriamente um ser que absolutamente néio deveria existir, mas se penitencia de sua existéncia pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que se pode esperar de um tal ser? morte? Penitenciamo- somos todos pecadores condenados nos de nosso nascimento, em primeiro lugar, pelo viver e, em segundo lugar, pelo morrer." Quem 1é essa doutrina na fisionomia de nossa sorte humana universal e j4 reconhece a md indole fundamental da cada vida humana no simples fato de nenhuma delas suportar ser considerada atentamente e mais de perto — embora nosso tempo habituado a epidemia biografica parega pensar de outro modo, e mais favoravelmente, sobre a dignidade do homem — quem, como Schopenhauer, ouviu, "nas alturas dos ares hindus", a palavra sagrada do valor moral da existéncia, dificilmente podera ser impedido de fazer um metfora altamente antropomérfica e de tirar aquela doutrina melancélica de sua restrigdo 4 vida humana para aplicé-la, por transferéneia, ao carter universal de toda existéncia. Pode no ser légico, mas, em todo caso, é bem humano e, além disso, esté no estilo do salto filoséfico descrito antes, considerar agora, com Anaximandro, todo vir-a-ser como uma emancipagao do ser eterno, digna de castigo, como ‘uma injustiga que deve ser expiada pelo sucumbir, Tudo o que alguma vez. veio a ser, também perece outra vez, quer pensemos na vida humana, quer na 4gua, quer no quente e no frio: por toda parte, onde podem ser percebidas ‘Ascites dos poss tas mardi doled ners edn fetmene sade que Nec th dh pa compoer an propriedades, podemos profetizar 0 sucumbir dessas propriedades, de acordo com uma monstruosa prova experimental. Nunca, portanto, um ser que possui propriedades determinadas, e consiste nelas, pode ser origem e principio das coisas; o que é verdadeiramente, conclui Anaximandro, ndo pode possuir propriedades determinadas, sendo teria nascido, como todas as outras coisas, ¢ teria de ir ao fundo. Para que o vir-a-ser nao cesse, o ser originario tem de ser indeterminado. A imortalidade e eternidade do ser originario nado esta em sua infinitude ¢ inexauribilidade — como comumente admitem os comentadores de Anaximandro —, mas em ser destituido de qualidades determinadas, que levam a sucumbir: e € por isso, também, que ele traz 0 nome de "o indeterminado".* O ser origindrio a ser e, justamente por isso, garante a eternidade e © curso ininterrupto do vir-a-ser. Essa unidade iiltima naquele “indeterminado", matriz de todas as coisas, por certo sé pode ser designada negativamente pelo homem, como algo a que nao pode ser dado nenhum predicado do mundo do vir-a-ser que ai estd, e poderia, por isso, ser tomada como equivalente 4 "coisa-em-si" kantiana. E certo que quem é capaz de se pér a discutir com outros sobre 0 que tenha sido propriamente essa proto-matéria, se € porventura uma coisa intermediaria entre ar ¢ agua, ou talvez entre ar e fogo, nao entendeu nosso filésofo: 0 mesmo se pode dizer dos que perguntam seriamente se Anaximandro Ppensou sua proto-matéria como mistura de todas as matérias existentes. Temos, antes, de dirigir nosso olhar ao ponto de onde podemos aprender que Anaximandro ja nao mais tratou a pergunta pela origem deste mundo de maneira puramente fisica, e de orienté-lo segundo aquela proposigao lapidar apresentada no inicio. Se ele preferiu ver, na pluralidade das coisas nascidas, uma soma de injustigas a ser expiadas, foi o primeiro grego que ousou tomar nas mos o novelo do mais profundo dos problemas éticos. Como pode perecer algo que tem direito de ser! De onde vem aquele incansdvel vir-a-ser e engendrar, de onde vem aquela contorgao de dor na face da natureza, de onde vem o infindavel lamento mortuério em todo o reino do existit? Desse mundo do injusto, do insolente declinio da unidade originéria das coisas, Anaximandro refugiou-se em um abrigo metafisico, do qual se debruga agora, deixa o olhar rolar ao longe, para enfim, depois de um siléncio meditativo, dirigir a todos os seres a pergunta: "O que vale vosso existir? E, se nada vale, para que estais ai? Por vossa culpa, observo eu, demorais-vos nessa existéncia. Com a morte tereis de expié-la. Vede como murcha vossa Terra; os mares se retraem e secam; a concha sobre a montanha vos mostra © quanto ja secaram; o fogo, desde ja, destrdi vosso mundo, que, no fim, se esvaird em vapor e fumo. Mas sempre, de novo, voltara a edificar-se um tal mundo de inconstanci: quem seria capaz de livrar-vos da maldigdo do vir-a-ser?". Para um homem que faz tais perguntas, cujo pensar arrebatado rompe constantemente as malhas empiricas para logo langar-se no mais alto véo supralunar, nem todo modo de viver pode ter sido bem-vindo, De bom grado accitamos a tradigdo de que cle se apresentava em indumentaria particularmente cerimoniosa ¢ mostrava um orgulho verdadciramente trégico cm scus gestos ¢ habitos de vida. Vivia como escrevia; falava tdo solenemente quanto se vestia; clevava a mio ¢ pousava o pé como se esse estar-ai fosse uma tragédia em que ele teria nascido para tomar parte como herdi, Em tudo ele foi o grande modelo de Empédocles. Seus concidadios elegeram-no para conduzir uma colénia emigrante — talvez se alegrassem de poder ao mesmo tempo venerélo e desvencilhar-se dele. Também seu pensamento emigrou, ¢ fundou colénias: em Efeso ¢ Eléia nfo se desvencilharam dele e, se nao puderam decidir-se a permanecer onde ele estava, sabiam, contudo, que foram guiados por ele ao lugar de onde agora, sem ele, se dispunham a prosseguir, Tales mostra a necessidade de simplificar o reino da pluralidade e reduzi- lo a um mero desdobramento ou disfarce da tinica qualidade existente, a agua. Anaximandro 0 ultrapassa em dois passos. Pergunta-se, da primeira vez: "Mas, se ha em geral uma unidade etema, como é possivel aquela pluralidade?", deduz a resposta do cardter contraditério dessa pluralidade, que consome e nega a si mesmo. Sua existéncia se torna para ele um fenémeno moral, que nao se legitima, mas se penitencia, perpetuamente, pelo sucumbir. Mas, em seguida, ocorre-the a pergunta: "Por que, entdo, tudo o que veio a ser j4 nao foi ao fundo ha muito tempo, uma vez que jé transcorreu toda uma eternidade de tempo? De onde vem o fluxo sempre renovado do vir-a-ser?" Ele s6 sabe salvar-se dessa pergunta por possibilidades misticas: o vir-a-ser etemo s6 pode ter sua origem no ser eterno, as condigées para o declinio daquele ser em um vira-ser na injustiga so sempre as mesmas, a constelagiio das coisas tem desde sempre uma indole tal que ndo se pode prever nenhum término para aquele sair dos seres isolados do seio do "indeterminado". Aqui ficou Anaximandro: isto é, ficou nas sombras profundas que, como gigantescos fantasmas, deitam-se sobre a montanha de uma tal contemplago do mundo. Quanto mais se procurava aproximar-se do problema — como, em geral, pode nascer, por declinio, do indcterminado © determinado, do eterno © temporal, do justo a injustiga —, maior se tornava a noite. (A Filosofia na Epoca Tragica dos Gregos, § 4)

You might also like