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O único argumento possível em apoio à demonstração da

existência de Deus: Parte II

Der einzig mogliche Beweisgrnnd zu einer Demonstration des Daseins


Gottes (1763)

Por Immanuel Kant

Tradução de Geovane Campanher

3. É absolutamente impossível que o nada exista.

O nada, por meio do qual toda possibilidade é cancelada, é


absolutamente impossível, pois as duas expressões são sinônimas. Ora,
para começar, o elemento formal de toda possibilidade, a saber, a
concordância com a lei da contradição, é anulado pelo que se contradiz.
Portanto, o que é autocontraditório em si mesmo é absolutamente
impossível. Este, no entanto, não é o caso quando temos que considerar
a eliminação completa de toda a existência. Pois, como provamos
anteriormente, o cancelamento completo de toda existência não envolve
contradição interna. No entanto, se o elemento material, dado de tudo o
que é possível, é cancelado, também é negado o meio pelo qual toda
possibilidade é possível. Ora, isso é efetuado pelo cancelamento de toda
existência. Assim, quando toda existência é negada, então toda
possibilidade também é cancelada. Como consequência, é
absolutamente impossível que o nada exista.

4. Toda possibilidade se dá em algo atual, seja como uma


determinação existente ou como uma consequência decorrente.

O que deve ser demonstrado de toda possibilidade em geral e de cada


possibilidade em particular é que esta pressupõe algo real, seja uma
coisa ou muitas. Ora, essa relação de toda possibilidade com uma
existência ou outra pode ser de dois tipos. Ou o possível só pode ser
pensado na medida em que ele próprio é real, e então a possibilidade se
dá como uma determinação existente no real; ou é possível porque
outra coisa é real; em outras palavras, sua possibilidade interna se dá
como consequência por meio de outra existência. Exemplos elucidativos
ainda não podem ser adequadamente fornecidos aqui. A natureza do
único assunto que poderia servir de exemplo nesta reflexão deve ser
considerada em primeiro lugar. Enquanto isso, eu apenas acrescentaria
a seguinte observação, a atualidade: por meio da qual, como por meio
de um fundamento, a possibilidade interna de outras realidades é dada,
chamarei o primeiro fundamento real dessa possibilidade absoluta,
sendo a lei da contradição igualmente seu primeiro fundamento lógico,
pois o elemento formal da possibilidade consiste na concordância com
esta lei. Da mesma forma, o que é real fornece o dado ou o elemento
material do que pode ser pensado.

Estou plenamente ciente de que proposições do tipo apresentado nesta


reflexão precisam de uma elucidação consideravelmente maior para
adquirir a iluminação necessária para torná-las óbvias. No entanto, a
natureza tão abstrata do próprio objeto impede todo esforço de maior
esclarecimento, assim como o emprego de dispositivos microscópicos
aumentam a imagem do objeto para que suas partes diminutas possam
ser discernidas, mas também diminui proporcionalmente o brilho e a
vivacidade da impressão. No entanto, tentarei, na medida do possível,
aproximar um pouco a ideia de existência, que é sempre fundamental
até mesmo para a possibilidade interna dos conceitos mais comuns de
compreensão sadia.

Você sabe que um corpo de fogo, uma pessoa astuta, e coisas assim, são
coisas possíveis. E se eu não pedir nada mais do que a possibilidade
interna, você não achará absolutamente necessário que um corpo, ou
um fogo, e assim por diante, devam existir como seus dados: eles
podem ser pensados, e isso é suficiente. Mas a concordância do
predicado, ígneo, com o sujeito corpo, segundo a lei da contradição, é
inerente aos próprios conceitos, independentemente de as próprias
coisas serem reais ou meramente possíveis. Admito também que nem
os corpos nem o fogo precisam ser coisas reais: e, no entanto, um corpo
ígneo é internamente possível. Mas passo a perguntar: então um corpo
é possível em si mesmo? Não sendo permitido aqui apelar à
experiência, você enumerará os dados de sua possibilidade,
nomeadamente pela extensão, impenetrabilidade, força, e não sei o que
mais; e você acrescentará que não há contradição interna aqui. Eu
ainda admito tudo. Você deve, no entanto, dar-me uma explicação do
que lhe dá o direito de aceitar tão prontamente o conceito de extensão
como um dado. Pois suponha que não significasse nada: sua alegada
explicação da possibilidade do corpo seria então uma ilusão. Também
seria altamente impróprio apelar à experiência em conexão com esse
dado, pois o que está em questão é precisamente se uma possibilidade
interna do corpo ígneo ocorreria mesmo que nada existisse. Suponha
que agora você não possa mais dividir o conceito de extensão em dados
mais simples para mostrar que não há nada de autocontraditório — e
você deve eventualmente chegar a algo cuja possibilidade não possa ser
analisada — então a questão será se o espaço e a extensão são palavras
vazias, ou se significam alguma coisa. A falta de contradição não decide
a presente questão; uma palavra vazia nunca significa algo
autocontraditório. Se o espaço não existisse, ou se o espaço não fosse ao
menos dado como consequência de algo existente, a palavra “espaço”
não significaria absolutamente nada. Enquanto você provar as
possibilidades por meio da lei da contradição, você estará dependendo
daquilo que é pensável na coisa e que lhe é dado nela, e você estará
apenas considerando a relação de acordo com essa regra lógica. Mas, no
final, quando você considera como isso é dado, a única coisa a que você
pode apelar é uma existência.

Mas devemos aguardar o desenvolvimento desta reflexão. Um conceito


que dificilmente se pode explicar a si mesmo sem se ultrapassar, pois
trata dos primeiros fundamentos do que pode ser pensado, pode tornar-
se mais inteligível aplicando-o.

Terceira Reflexão: Da existência absolutamente necessária

I. O conceito de existência absolutamente necessária em geral

Aquilo de que o oposto é impossível em si mesmo é absolutamente


necessário. Esta é uma definição nominal certamente correta. Mas se
perguntarmos: de que depende a impossibilidade absoluta do não ser
de uma coisa? Então o que estou procurando é a definição real; só isso
pode servir ao nosso propósito. Todos os nossos conceitos de
necessidade interna nas propriedades de coisas possíveis, sejam elas de
qualquer tipo, equivalem a isso: o oposto é autocontraditório. Se, no
entanto, é a existência absolutamente necessária que está em questão,
não teríamos muito sucesso se tentássemos chegar a alguma
compreensão dela por meio da caracterização acima. A existência não é
um predicado, nem o cancelamento da existência é a negação de um
predicado, por meio do qual algo em uma coisa é cancelado e por meio
do qual uma contradição interna pode surgir. O cancelamento de uma
coisa existente é uma negação completa de tudo o que é posto
incondicional ou absolutamente por sua existência. Não obstante,
permanecem as relações lógicas entre a coisa, como algo possível, e seus
predicados. Mas essas relações são bem diferentes da posição absoluta
de uma coisa com seus predicados, que é a definição de existência.
Assim, o que é cancelado pelo não ser não é o mesmo que é posto na
coisa, mas outra coisa; como resultado, não há contradição alguma
nesta formulação. A reflexão final deste trabalho tornará tudo isso mais
plausível; o farei explicando claramente a insustentabilidade do ponto
de vista que está sendo examinado no caso em que se pensou
genuinamente, embora erradamente, que a existência absolutamente
necessária pudesse ser explicada por meio da lei da contradição. Apesar
disso, a necessidade de conceitos meramente possíveis nos predicados
pode ser chamada de necessidade lógica. Mas a necessidade, para a qual
procuro o fundamento último, a saber, a necessidade da existência, é a
necessidade real absoluta. Penso que devemos começar por esta
consideração: aquilo que eu deveria considerar como absolutamente
nada e impossível deve eliminar tudo o que pode ser pensado. Pois se
ainda restasse algo a ser pensado, então não seria completamente
impensável ou absolutamente impossível.

Se considerarmos agora por um momento por que aquilo que se


contradiz deve ser absolutamente nada e impossível, acredito que, pela
anulação da lei da contradição, fundamento lógico último de tudo o que
pode ser pensado, toda possibilidade desaparecerá e não restará mais
nada a se pensar. Segue-se imediatamente a conclusão de que, quando
cancelo toda existência, e o fundamento real último de tudo o que pode
ser pensado, toda possibilidade também desaparece, e nada mais resta
a ser pensado. Assim, algo pode ser absolutamente necessário quando o
elemento formal de tudo o que pode ser pensado é cancelado por meio
de seu oposto, isto é, quando é autocontraditório; ou, alternativamente,
quando sua inexistência elimina o elemento material e todos os dados
de tudo o que pode ser pensado. O primeiro, como já foi dito, nunca
ocorre no caso da existência. Segue-se que, como não há terceira
possibilidade, ou o conceito de existência absolutamente necessária é
um conceito enganoso e falso, ou deve repousar no fato de que o não ser
de uma coisa é ao mesmo tempo a negação de todos os dados de tudo o
que pode ser pensado. Que esse conceito, no entanto, não é imaginário,
mas algo verdadeiro é evidente a partir da seguinte consideração.

2. Existe um ser absolutamente necessário.

Toda possibilidade pressupõe algo real em e através do qual tudo o que


pode ser pensado é dado. Assim, há certa realidade, cujo cancelamento
por si mesmo cancelaria toda possibilidade interna. Mas isso, cujo
cancelamento elimina todas as possibilidades, é absolutamente
necessário. Portanto, algo existe absoluta e necessariamente. Até agora,
é evidente que a existência de uma ou mais coisas está no fundamento
de toda possibilidade, e que essa existência é necessária em si mesma.
Disto também é fácil derivar o conceito de contingência. Aquilo de que
o contrário é possível é, de acordo com a definição nominal,
contingente. No entanto, para encontrar o real na definição do
contingente, é necessário fazer a seguinte distinção. No sentido lógico,
aquilo que, como predicado, é contingente em um sujeito é aquilo cujo
oposto não contradiz o sujeito. Por exemplo: é contingente no triângulo
em geral que seja de ângulo reto. Essa contingência só ocorre quando os
predicados estão relacionados ao seu sujeito; e como a existência não é
um predicado, a contingência não pode ser aplicada de forma alguma à
existência. Em contraste, o que é contingente no sentido real é aquilo de
que o não ser pode ser pensado; isto é, o que é contingente no sentido
real é aquilo de que o cancelamento não é o cancelamento de tudo o que
pode ser. Se, portanto, a possibilidade interna das coisas não pressupõe
uma existência particular, esta é contingente, pois seu oposto não anula
a possibilidade no sentido real; e nesse mesmo sentido real também é
contingente.

3. O ser necessário é único.

Como o ser necessário contém o fundamento real último de todas as


outras possibilidades, segue-se que qualquer outra coisa só é possível
na medida em que é dado pelo ser necessário como seu fundamento.
Assim, todas as outras coisas só podem ocorrer como consequência
desse ser necessário. Portanto, a possibilidade e a existência de todas as
outras coisas dependem dele. Mas algo, que é ele próprio dependente,
não contém o fundamento real último de toda possibilidade; não é,
portanto, absolutamente necessário. Como consequência, não é possível
que várias coisas sejam absolutamente necessárias.

Suponha que A seja um ser necessário e que B seja outro. Segue-se de


nossa definição que B só é possível na medida em que é dado por outro
fundamento, a saber, A como consequência de A. Mas como ex
hipothesy, B é ele mesmo necessário, segue-se que sua possibilidade
está nele como predicado e não como consequência de outra coisa; e, no
entanto, de acordo com o que acaba de ser dito, sua possibilidade está
nele apenas como consequência, e isso é autocontraditório.

4. O ser necessário é simples.

Que um ser absolutamente necessário não possa ser composto de


muitas substâncias é evidente a partir da seguinte consideração.
Suponha que apenas uma de suas partes seja absolutamente necessária;
segue-se que as outras partes só seriam possíveis como consequências
dela; não pertencendo à parte absolutamente necessária como partes
coordenadas. Se você supor que existem várias partes necessárias, ou
que todas as partes são necessárias, isso contradiz o número anterior.
Há, portanto, apenas uma outra possibilidade: cada parte
individualmente deve existir contingentemente, enquanto todas as
outras partes devem existir absoluta e necessariamente. Mas isso é
impossível, pois um agregado de substâncias não pode possuir mais
necessidade na existência do que pertence às partes; e como nenhuma
necessidade pertence às partes, sendo sua existência contingente,
segue-se que a existência do todo também será contingente. Suponha
que alguém pensasse que poderia apelar para a definição do ser
necessário, de modo que se dissesse que os dados últimos de algumas
possibilidades internas foram dados em cada uma das partes
individualmente, e que todas as possibilidades foram dadas em todas as
ouras partes. Se alguém pensasse que tal apelo poderia ser feito, teria
representado algo totalmente incoerente, embora veladamente. Pois, se
concebermos então a possibilidade interna de tal maneira que algumas
partes pudessem ser canceladas, mas de tal modo canceladas que ainda
restasse algo que pudesse ser pensado e que fosse dado por meio de
outras partes, seria preciso supor que é em si mesmo possível que a
possibilidade interna seja negada ou cancelada. Mas é inteiramente
inconcebível e autocontraditório que algo não seja nada. Mas isso
equivale a dizer que anular uma possibilidade interna é o mesmo que
eliminar tudo o que se pode pensar. Daí resulta que os dados para que
qualquer coisa seja pensada devem ser dados na coisa cuja anulação é
também o oposto de toda possibilidade; e que, portanto, aquilo que
contém o fundamento último de uma possibilidade interna também
contém o fundamento último de toda possibilidade; e que, como
consequência, esse fundamento último de toda possibilidade não pode
ser dividido entre diferentes substâncias.

5. O ser necessário é imutável e eterno.

Como mesmo sua própria possibilidade e todas as outras possibilidades


pressupõem essa existência, segue-se que nenhum outro modo de sua
existência é possível. Ou seja: o ser necessário não pode existir de várias
maneiras. De fato, tudo o que existe é completamente determinado.
Ora, como esse ser é possível simplesmente porque existe, segue-se que
nenhuma possibilidade ocorre para ele, exceto na medida em que de
fato existe. Portanto, não é possível de outra maneira senão como
realmente é. Consequentemente, não pode ser determinado ou alterado
de outra forma. Seu não ser é absolutamente impossível, também,
portanto, seu vir-a-ser e seu falecimento. É, portanto, eterno.

6. O ser necessário contém a realidade suprema.

Os dados de toda possibilidade devem ser encontrados no ser


necessário, seja como determinações dele, seja como consequências que
se dão pelo ser necessário como fundamento real último. É assim
evidente que toda a realidade é, de uma forma ou de outra, abrangida
pelo fundamento real último. Mas precisamente essas determinações,
em virtude das quais esse ser é o fundamento último de toda realidade
possível, conferem a esse ser o mais alto grau de propriedade real que
poderia ser inerente a uma coisa. Tal ser é, portanto, o mais real de
todos os seres possíveis, pois todos os outros seres só são possíveis por
meio dele. Mas isso não deve ser entendido no sentido de que toda a
realidade possível esteja incluída entre suas determinações. Esta é uma
confusão conceitual que tem sido incomumente prevalente até agora.
Todas as realidades são atribuídas indiscriminadamente como
predicados a Deus ou ao ser necessário. Não se percebe que todos esses
predicados não podem de modo algum coexistir como determinações
em um único sujeito. A impenetrabilidade dos corpos, extensão e afins
não podem ser atributos daquilo que tem entendimento e vontade.
Também não ajuda se alguém procura fugir da questão sustentando que
a qualidade em questão não é considerada como a verdadeira realidade.
O impulso de um corpo ou a força de coesão são, sem dúvida, algo
verdadeiramente positivo. Da mesma forma, nas sensações da mente, a
dor nunca é meramente uma privação. Uma confusão aparentemente
justificou tal ideia. Diz-se: realidade e realidade nunca se contradizem,
pois ambas são afirmações verdadeiras; como consequência, também
não entram em conflito entre si no sujeito. Ora, embora eu conceda que
não haja contradição lógica aqui, a real repugnância não é anulada. Tal
repugnância real sempre ocorre quando algo, como fundamento,
aniquila por meio de uma oposição real a consequência de outra coisa.
A força motriz de um corpo em uma direção e uma tendência
igualmente forte na direção oposta não se contradizem. Estas também
são realmente possíveis em um corpo ao mesmo tempo. No entanto,
uma força motriz aniquila as consequências reais da outra força motriz;
e como as consequências de cada força motriz por si só seriam de outra
forma um movimento real, a consequência de ambos em um sujeito não
é nada. Ou seja, a consequência dessas forças motrizes opostas é o
repouso. Mas o repouso é, indubitavelmente, possível. A partir disso,
também é evidente que a oposição real é algo bem diferente da oposição
ou contradição lógica, pois o resultado desta última é absolutamente
impossível. Ora, no ser mais real de todos não pode haver nenhuma
oposição real ou conflito positiva entre suas próprias determinações,
pois a consequência seria uma privação ou uma carência, e isso
contrariaria sua realidade suprema. Como um conflito assim ocorreria
se todas as realidades existissem como determinações no ser mais real,
segue-se que não podem nele enquanto determinações.
Consequentemente, uma vez que todas são dados por ele, ou
pertencerão às suas determinações ou às suas consequências.

À primeira vista, também pode parecer que se segue que, uma vez que o
ser necessário contém o fundamento real último de todas as outras
possibilidades, deva conter também o fundamento das deficiências e
das negações das essências das coisas. Se isso fosse admitido, seria
preciso levar à conclusão de que o ser necessário deve ter entre seus
predicados as próprias negações e não exclusivamente a realidade. Mas
considere o conceito do ser necessário que agora estabelecemos. Sua
própria possibilidade é originalmente dada em sua existência. É de
outras possibilidades que o ser necessário contém o fundamento real.
Segue-se disso, de acordo com a lei da contradição, que ele não pode ser
o fundamento real da possibilidade do ser mais real, nem, por
conseguinte, o fundamento real das possibilidades que contêm
negações e defeitos.

Assim, a possibilidade de todas as outras coisas, em relação ao que é


real nelas, depende do ser necessário como fundamento real. Mas as
deficiências, na medida em que são outras coisas e não o próprio ser
original, dependem do ser necessário como um fundamento lógico. Na
medida em que o corpo possui extensão, força etc., a possibilidade do
corpo está fundamentada no Ser Supremo. Mas na medida em que o
corpo carece do poder do pensamento, essa negação é inerente ao
próprio corpo de acordo com a lei da contradição.

As negações em si não são, de fato, nada, nem podem ser pensadas em


si mesmas. Isso pode ser facilmente explicado da seguinte maneira. Se
nada é posto à parte das negações, então nada é dado, nem há nada a
ser pensado. Assim, as negações só podem ser pensadas por meio de
posições opostas, ou melhor, há posições possíveis que não são as
maiores. E é aqui, segundo a lei da identidade, que as próprias negações
já se encontram. Também é óbvio que todas as negações inerentes às
possibilidades de outras coisas não pressupõem um fundamento real
(pois não são nada de positivo). Consequentemente, elas apenas
pressupõem um fundamento lógico.

Quarta Reflexão: O argumento em apoio a uma


demonstração da existência de Deu

1. O ser necessário é uma mente.

Foi provado acima que o ser necessário é uma substância simples. Da


mesma forma, estabeleceu-se que não apenas toda outra realidade é
dada pelo ser necessário como seu fundamento, mas também que a
maior realidade possível capaz de ser contida em um ser como uma
determinação é inerente ao ser necessário. Ora, existem várias maneiras
de provar que as propriedades da compreensão também pertencem ao
ser necessário. Pois, em primeiro lugar, entendimento e vontade são,
ambos, verdadeiras realidades, e ambos podem coexistir juntos com a
maior realidade possível em uma coisa. Um juízo imediato do
entendimento obriga a admitir a verdade desta afirmação, ainda que
não lhe possa ser dada propriamente a distinção exigida por uma prova
logicamente completa.

Em segundo lugar, as propriedades da mente, entendimento e vontade


são de tal tipo que não podemos pensar em qualquer realidade que
possa, na sua ausência, servir como um substituto adequado para elas
em um ser. Uma vez que o entendimento e a vontade são propriedades
capazes do mais alto grau de realidade, mas, no entanto, devem ser
atribuídas apenas entre as propriedades possíveis, seguiria que o
entendimento e a vontade, e toda realidade da natureza da mente,
deveriam ser possíveis em outros seres tomando o ser necessário como
fundamento, ainda que não se encontrem como determinações no
próprio ser necessário. O consequente seria, portanto, maior do que o
próprio fundamento. Pois é certo que se o Ser Supremo não possuísse
entendimento e vontade, qualquer outro ser que tenha sido posto pelo
Ser Supremo com essas propriedades do tipo mais elevado e
independentemente de sua dependência e suas muitas outras
deficiências de poder, deveriam ter precedência sobre o Ser Supremo.
Ora, como a consequência não pode ultrapassar o fundamento, o
entendimento e a vontade devem ser inerentes à substância simples
necessária como propriedades. Ou seja: a substância simples necessária
é uma mente.

Em terceiro lugar, a ordem, a beleza e a perfeição em tudo o que é


possível pressupõem ou um ser, em cujas propriedades essas relações se
fundamentem, ou, pelo menos, um ser pelo qual, a partir de um
fundamento principal, são possíveis as coisas de acordo com essas
relações. Ora, o ser necessário é o fundamento real suficiente de tudo o
mais que é possível, além de si mesmo. Segue-se que o ser necessário
possuirá essa propriedade, em virtude da qual tudo o mais, exceto ele
mesmo, pode tornar-se real de acordo com essas relações. No entanto,
parece que o fundamento da possibilidade externa da ordem, beleza e
perfeição não é suficiente, a menos que se pressuponha uma vontade de
acordo com o entendimento. Essas propriedades devem, portanto, ser
atribuídas ao Ser Supremo.

Deixando de lado todas as causas que são responsáveis pela geração de


plantas e árvores, todos sabem que canteiros regulares, avenidas e
afins, só são possíveis enquanto resultados de um entendimento que
concebe um plano e uma vontade que o execute. Na ausência do
entendimento, nenhum poder ou força geradora, nem quaisquer outros
dados de possibilidade, são adequados para tornar completa a
possibilidade de tal ordem.

A prova de que o ser necessário deve ter vontade e entendimento e,


portanto, deve ser uma mente, pode ser derivada de um dos
argumentos aqui apresentados ou de todos eles juntos. Eu me
contentarei em meramente completar o argumento. Não é minha
intenção fornecer uma demonstração formal.

2. É um Deus.

Existe algo absolutamente necessário que é uno em sua essência;


simples em sua substância; uma mente de acordo com sua natureza;
eterno em sua duração; imutável em sua constituição; e autossuficiente
em relação a tudo o que é possível e real. É um deus. Não estou
oferecendo aqui uma definição determinada do conceito de Deus. Se
fosse meu propósito tratar o assunto sistematicamente, eu forneceria tal
definição. Mas o que estou apresentando aqui pretende ser uma análise
que pode servir de fundamento para a doutrina formal propriamente
dita. Entretanto, a definição do conceito de Deus pode ser instituída da
forma que se considere adequada. Mas estou certo de que o ser, cuja
existência acabamos de provar, é precisamente o Ser Divino, cujas
características diferenciadoras serão reduzidas de uma forma ou de
outra, à fórmula mais concisa.

3. Observação

A terceira reflexão estabelece apenas que toda realidade deve ser dada
como uma determinação no ser necessário, ou deve ser dada pelo ser
necessário como por um fundamento. Isso deixa indecisa a questão de
saber se as propriedades do entendimento e da vontade devem ser
encontradas no Ser Supremo como determinações inerentes a ele, ou se
devem ser consideradas apenas como consequências produzidas por ele
em outras coisas. Se a última alternativa fosse o caso, seguir-se-ia que,
apesar de todas as excelências manifestas no ser originário que
decorrem da suficiência, unidade e independência de sua existência,
como de um grande fundamento, sua natureza estaria longe de ser
inferior ao que se deve pensar quando se pensa em um deus. Não
possuindo nem cognição nem escolha, seria um fundamento cegamente
necessário de outras coisas e mesmo de outras mentes, e não diferiria
do destino eterno postulado por alguns filósofos antigos, exceto pelo
fato de ter sido descrito de forma mais inteligente. Esta é a razão pela
qual deve ser dada especial atenção em cada sistema a esta
circunstância, e é por isso que não podemos exclui-la da consideração.

Em nenhum dos argumentos apresentados até agora foi feita menção à


expressão “perfeição”. A razão dessa omissão não é que eu pensei que
toda realidade é o mesmo que toda perfeição, ou que a perfeição
consista no mais alto grau de harmonia unificada. Tenho fortes razões
para discordar dessa opinião amplamente difundida. Passei muito
tempo investigando cuidadosamente o conceito de perfeição, tanto em
geral quanto em particular. Aprendi que um conhecimento mais preciso
da perfeição contém escondido em si muito do que é capaz de esclarecer
a natureza da mente, nosso próprio sentimento e até os conceitos
fundamentais da filosofia prática.

Percebi que a expressão “perfeição” em alguns casos se desviava muito


do sentido próprio do termo por causa da incerteza inerente a todas as
línguas. No entanto, no significado do termo ao qual todos prestam
atenção, mesmo no caso das confusões mencionadas, a expressão
“perfeição” sempre pressupõe relação com um ser dotado de cognição e
desejo. Ora, teria me afastado muito se traçasse o argumento de Deus e
a realidade inerente a Ele a partir desta relação, mesmo que tal
argumento pudesse ter sido construído sobre este fundamento. Por
isso, julguei a introdução do conceito de perfeição, e a ampla discussão
que ele teria suscitado, incompatível com o propósito destas páginas.

4. Conclusão

Ninguém terá qualquer dificuldade em tirar outras conclusões óbvias da


prova que forneci. Por exemplo: eu que penso não sou um ser tão
absolutamente necessário, pois não sou o fundamento de toda a
realidade e estou sujeito a mudanças; nenhum outro ser do qual o não
ser seja impossível, isto é, nenhum outro ser cujo cancelamento não
seja ao mesmo tempo o cancelamento de toda possibilidade, é um ser
absolutamente necessário; nenhuma coisa que esteja sujeita a
mudanças ou em que existam limites, incluindo, portanto, o mundo, é
um ser absolutamente necessário; o mundo não é um acidente de Deus,
pois há dentro do mundo conflito, deficiência, mutabilidade, todos os
quais são os opostos das determinações encontradas em uma
divindade; Deus não é a única substância que existe; todas as outras
substâncias só existem na dependência de Deus; e assim por diante.

Neste momento, eu apenas acrescentaria o seguinte ponto. O


argumento para a existência de Deus que estamos apresentando baseia-
se simplesmente no fato de que algo é possível. Trata-se, portanto, de
uma prova que pode ser realizada inteiramente a priori. Não pressupõe
nem a minha própria existência, nem a de outras mentes, nem a do
mundo físico. Trata-se, de fato, de um argumento derivado da marca
característica interna da necessidade absoluta. Assim, nosso
conhecimento da existência desse ser é derivado do que realmente
constitui a necessidade absoluta desse mesmo ser. Este conhecimento é
assim adquirido de uma forma genuinamente genética.

Nenhuma das provas que partem dos efeitos desse ser para sua
existência como causa pode jamais — mesmo admitindo que sejam de
caráter mais estrito, o que de fato não são — tornar compreensível a
natureza dessa necessidade. Do mero fato de que algo existe absoluta e
necessariamente é possível inferir que algo é a causa primeira de outra
coisa. Mas do fato de algo ser uma causa primeira, isto é, uma causa
independente, segue-se apenas que, se os efeitos existem, a causa
também deve existir, não que a causa exista absoluta e
necessariamente.

Ora, fica ainda mais evidente a partir do argumento que todas as


essências de outras coisas e o elemento real de todas as possibilidades
estão fundamentados nesse ser único; nele se encontra o mais alto grau
de compreensão e vontade; e esse é o maior fundamento possível.

Por causa disso e porque tudo neste ser deve se harmonizar no mais
alto grau possível, a seguinte conclusão pode ser tirada imediatamente.
Como uma vontade sempre pressupõe a possibilidade interna da
própria coisa, segue-se que o fundamento da possibilidade, isto é, a
essência de Deus, estará na mais alta harmonia com sua própria
vontade. A razão para isso não é que Deus seja o fundamento da
possibilidade interna em virtude de sua própria vontade. A razão é
antes esta: a mesma natureza infinita está relacionada a todas as
essências das coisas como seu fundamento; ao mesmo tempo, tem
também [Deus] a relação de desejo supremo pelas maiores
consequências que assim são dadas, e estas só podem ser frutíferas se as
primeiras forem pressupostas. Assim, as possibilidades das próprias
coisas, que são dadas pela natureza divina, se harmonizam com seu
grande desejo. Bondade e perfeição, no entanto, consistem nessa
harmonia. E como a bondade e a perfeição se harmonizam em um único
princípio, segue-se que a unidade, a harmonia e a ordem se encontram
nas possibilidades das coisas.

Nosso julgamento maduro das propriedades essenciais das coisas que


conhecemos pela experiência nos permite, mesmo nas determinações
necessárias de sua possibilidade interna, perceber a unidade no
múltiplo e a harmonia no separado. Segue-se que o modo de cognição a
posteriori nos permitirá argumentar regressivamente a um único
princípio de todas as possibilidades. Chegaremos assim, finalmente, ao
mesmo conceito fundamental de existência absolutamente necessária, a
partir do qual partiu inicialmente o modo de cognição a priori. Nosso
propósito a partir de agora será ver se a própria possibilidade interna
das coisas está necessariamente relacionada à ordem e à harmonia, e se
a unidade deve ser encontrada nessa multiplicidade sem medida, de
modo que, com base nisso, possamos estabelecer se as essências das
próprias coisas indicam um fundamento final comum.

Fim da segunda parte

***

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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em


Immanuel Kant

Comentário: Kant nunca foi um filósofo bem compreendido e, até


onde se sabe, continuará assim para sempre. Sua filosofia possui muitos
pressupostos que poucos estão dispostos a cumprir e, assim, desde a
primeira edição da Crítica da Razão Pura, é possível encontramos um
espantalho por esquina. Boa parte desses problemas de interpretação
advém de problemas simples; listemos alguns deles: a) leitura não
da Crítica da Razão Pura inteira mas apenas de sua primeira
metade b) redução do pensamento kantiano apenas à primeira
crítica c) tentativas de entendimento do autor apenas segundo
comentários d) desconsideração do sistema das 3 críticas e de suas
obras adjacentes, sendo uma delas a da presente tradução, o Princípios
Metafísicos da Ciência da Natureza, em que Kant fala do aspecto
metafísico que condiciona os objetos no espaço e no tempo empíricos,
abordagem diversa da encontrada na primeira parte da CRP onde se
fala do espaço e do tempo como formas puras. Forneço aqui uma
pequena bibliografia que, espero, ajude o interessado em Kant a
percorrer seu caminho.
Will Dudley & Kristina Engelhard — Immanuel Kant: Conceitos
fundamentais
Immanuel Kant — Manual dos Cursos de Lógica Geral
Paul Guyer (Org.) — Kant

Comentário: Recomenda-se a leitura do  Manual dos Cursos de


Lógica Geral como primeira obra do autor por este conter extensas e
valiosíssimas explicações acerca da teoria do juízo de Kant que é
praticamente o estopim para a principal pergunta da Crítica da Razão
Pura: como são possíveis os juízos sintéticos puros a priori?
Recomenda-se ainda a leitura da Introdução e do capítulo 1
do Cambridge Companion do Kant para que o leitos esteja ciente do
percurso intelectual do autor, suas leituras pressupostas e dos
problemas que ele deseja resolver. Caso interesse, é possível ler ainda
os Escritos Pré-Críticos a título de curiosidade.

Immanuel Kant — Crítica da Razão Pura


Immanuel Kant — Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza
Immanuel Kant — Fundamentação da Metafísica dos Costumes
Immanuel Kant — Crítica da Razão Prática
Immanuel Kant — Crítica da Faculdade do Juízo

Comentário: Após a leitura do “grande monólito” das três críticas e


“seus dois filhotes”, a saber, os dois pequenos livros sobre os princípios
da natureza e os princípios dos costumes, o estudante já tem uma boa
idéia de como funciona o sistema kantiano. Organizei-os desta forma
pois o Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza “completa”
exposições da Crítica da Razão Pura e a Fundamentação da
Metafísica dos Costumes “prepara” o caminho para a Crítica da Razão
Prática; em verdade seria convenientíssimo se houvesse uma edição
que contivesse os dois livros. A partir daqui o estudante não precisa
mais de ajuda para ler Kant — na verdade o correto seria que o
estudante já fosse capaz de pesquisar sozinho muito antes de chegar
nele — então tudo o que resta é recomendar meu comentador favorito, a
saber, Ottfried Hoffe.

Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua


minoridade, pela qual ele próprio é responsável. A minoridade é a
incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de
um outro. É a si próprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez
que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução
e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento sem a tutela de
outro. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu próprio
entendimento, tal é portanto a divisa do Esclarecimento.

Immanuel Kant — Resposta à pergunta: O que é o


Esclarecimento? (tradução de Luis Paulo Rouanet)

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