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ORIGEM E EVOLUCAQ DO PENSAMENTO ESTRATEGICO Palestra proferida na Escola Superior de Guerra no dia 11 de margo de 1986 Alte Esq José Maria do Amaral Oliveira Compete-nos, nesta manha, transmitir-thes algumas impres- sées sobre o tema Estratégia no contexto do objetivo preconizado pela Escola, qual seja: . ORIGEM E EVOLUCAO DO PENSAMENTO ESTRATEGICO “Proporcionar, de forma obje- tiva e integrada, conhecimentos histéricos e culturais que levem os estagidrios ao entendimento conceitual da estratégia, nos as- pectos bdsicos de desenvolvi- mento através do tempo, habili- tando-os ao aprofundamento dos estudos da estratégia nacional e do planejamento estratégico na- cional.” A Escola estabelece, também, quais os tépicos a serem exami- nados no decorrer desta palestra: — Conceito de Estratégia; — A Estratégia Classica e Mo- derna, suas teorias e esco- las através do tempo; Ministro Chefe do EMFA — Elementos fundamentais da Estratégia; ~— Bases da concep¢io e do planejamento estratégico. N&o seria possivel, a nosso ver, falarmos de Estratégia, entender- mos o seu verdadeiro significado, sem que admitissemos a existén- cia de um relacionamento intimo e permanente do conceito de Es- tratégia com outros conceitos ba- sicos que influenciam o pro- cedimento humano como, por exemplo, Poder, Forga e Fra- queza, Vontade, Politica, Con- flito, Guerra, Cultura, Estadismo, Lideranca e Tecnologia. Também, nao nos parece cor- reto pensarmos em Estratégia, em um contexte estritamente mi- litar, como advogam muitos ilus- tres estudiosos e pesquisadores do assunto. Sinto, inclusive — e esta 6 uma impressio de cunho pessoal —, que a aplicacdo do termo Estra- 25 tégia a uma imensa gama, de ati- vidddes da sociedade humana as quais no estao, mnecessaria- mente, relacionadas 4 guerra, gera, como conseqiiéncia, uma espécie de citime. A nosso ver, para um perfeito entendimento do significado da palavra Estratégia teremos de nos’ aproximar muito mais do campo das ciéncias sociais, do ¢s- tudo do comportamento humano e dos ensinamentos histéricos, do que procurarmos enquadrd-la ex- plicitamente naquilo que é con- siderado ser a arte da guerra. Estamos acostumados a ouvir, quase que sistematicamente, aqui e no exterior, em qualquer apre- Sentagio sobre o assunto, a in- tredugio tradicional de que a palavra Estratégia é oriunda do termo grego strategos (general) e dai considera-la a arte do ge- neral etc,, etc. Em sentido literal, esta afirma- cio é correta, mas, e isto é im- portante, na antiga Grécia, fre- qiientemente, a palavra strategos possuia um significado bem mais abrangente, qualificando um membro do governo com atri- buigdes bastante amplas, muito além daquelas referentes 4 con- duc&o de operacées militares. A Histéria nos conta que os resultados das guerras levaram Clistenes a estabelecer reformas profundas na estrutura ateniense nos anos 500 a.C. As informacgées mais antigas que possuimos da sociedade gre- ga indicam que sua organizagéo, na época, plasmava-se inteira- mente em termos da estrutura familiar, até certo ponto, em 26 muito semelhante ao que sabe- mos hoje quanto as tribos indi- genas de nosso continente. Na base do sistema social grego estava o lar, centro da existéncia religiosa, econémica, social e cultural. O parentesco estabelecia, basi~ eamente, a hierarquia da ordem social dentro de um sistema bas- tante rigido, Ndo havia um Esta- do Politico nos Termos de sua atual conceituagiio. Se Atenas tivesse conseguido, de qualquer forma, conservar-se imune aos efeitos de seu proprio progresso €, conseqiientemente, da sua expansfo através do co- mércio por outras partes do mun- do, da exploragiio de novas. areas e, até mesmo, dos resultados das guerras, nao existiriam motives para supor que aquela estrutura familiar nfo pudesse sobreviver, permanecendo, talvez, intacta e imutavel. Tensdes e pressdes, todavia, acumularam-se no comego do sé- culo VI a.C. Este foi um século marcado pela difuso da, filosofia do racionalismo e pela incidén- cia continuada de guerras, fatos que, necessariamente, obrigaram a uma sucessio de esforgos. para alterar ou, até mesmo, corrigir, quer a estrutura de governo, quer a estrutura militar vigentes, le- vando-se em conta as préprias necessidades naturais de sobrevi- véncia. Surgiu a exigéncia de uma nova Ssistematica de adaptagio em que, embora preservando-se os valores basicos até entio pra- ticados, procurou-se, por outro lado, criar compensagies para neutralizar as presses dos gru- pos: domésticos descontentes — especialmente aqueles que ti- nham sofrido graves conseqiién- cias econdmicas devido aos efeitos das’ guerras. Solon, antes de Clistenes, ten- tou resolver os problemas ate- nienses por meio da “criagéio” de classes horizontais que neutrali- zariam os antigos lagos familia- res. Assim, 0 servico militar pas- saria a ser uma obrigacio da classe a que pertencesse a pessoa, sende, ‘por exemplo, os soldados de: infantaria. orlundos de uma das classes; os de cavalaria de ou- tra; os: marinheiros de uma ter- ceira classe (sem que haja, nes- ta minha explicagéo, qualquer tipo de hierarquizagao!); e assim por diante, Procurou-se, também, adotar profimdas alteragdes no sistema econémico, visando, principai- mente, uma melhor distribuicao de encargos para atender as necessidades das guerras. Clistenes, porém, apds Solon, revelou-se como o grande esta- dista,, representando — na opi- nigo de importantes historiado- res — um dos mais brilhantes reformadores da Histéria do Ocidente. Diz, por exemplo, o Professor Robert Nisbet que, “na verdade nao encontraremos nada igual - até chegarmos & Revolug&o Fran- cesa no fim do século. XVIII”, Em sua reorganizagio politica € social de Atenas, Clistenes criou dez tribos, cada uma chefiada por um estratego, isto 6, um general (no idioma grego), aquele que exercia o comando superior. Cada tribo contribufa, obriga- toriamente, para o esforgo de guerra com um “taxi” (regi- mento), o qual, inicialmente, era comandado pelo estratego. Posteriormente, ainda no mes- mo século, esse comando passou a ser exercido por “taxiarcas”, os quais eram subordinados. aos estrategos. Os estrategos, normalmente, exerciam em conjunto 0 comando de determinada 4rea de ope- rag6es. Em situagées graves, to- davia, um dos dez estrategos assuniia o comando total. Bo caso, por exemplo, de Péricles ao inicio da..Guerra do Peloponeso, ou de Alcibiades em 407 a.C. De inficio, o estratego era eleito por cada tribo, gracas a seus do- tes de lideranca e conhecimentos da ent&o arte da guerra. Ja no final do quarto século a.C., os estrategos eram eleitos por toda a populacio sem levar em conta as divisées tribais, e sim pelos seus conhecimentos e sua expe- riéncia na direcéio dos assuntos publicos. Os poderes politicos do estra- tegos ampliaram-se progressiva- mente, especialmente quanto ao trato das relagdes exteriores. Se- gundo as regras do regime poli- tico adotado na época, um estra- tego poderia ser recleito indefini- damente. Um homem que mere- cesse a confianga popular, como por exemplo, Péricles, poderia, como foi o caso, retornar repeti- das vezes ao consclho dos estra- tegos, para tal levando-se em conta a sua experiéncia acumu- lada_€ os sucessos anteriormente obtidos na conquista ou manu- tengZo dos interesses de Atenas, 27 Alexandre, o Grande, através da sua influéncia. no mundo grego da época, estabeleceu uma, prevaléncia nitida do poder mi- litar sobre o poder civil, e os estrategos tornaram-se os magis- trados supremos na maioria das ligas e das federagdes que se iam estabelecendo. Na liga aetoliana — que reunia os povos localizados ao norte do Golfo do Corinto, por exemplo — o estratego acumulava as fun- gées de Chefe de Estado, Coman- dante do Exército, Presidente das Assembléias e Ministro das Rela- gées Exteriores. O cargo era ele- tivo, néo sendo admissivel a re- elei¢éo. Vamos encontrar no Egito, estrategos como governadores ci- vis, 0 mesmo ocorrendo em Car- tagena, no norte da Africa, ou, ainda, na regiao tebaica. Poder-se-ia dizer que, embora a guerra tivesse representado 0 principal estimulo para a trans- formacéio da sociedade grega, dai decorreu que, quer pelos efeitos da guerra, quer numa tentativa de preparagao para enfrentar fu- turos conflitos, as atribuigdes dos estrategos extravasaram 0 campo estritamente militar, passando a incluir uma gama de atividades vitais em outros campos, espe- cialmente no politico e no eco- némico. De um ponto de vista geogra- fico e histérico nada ha, a nosso ver, de anormal, quanto a inci- déncia, a intensidade e aos efeitos generalizados da guerra naquela regido de nosso globo terrestre. Afinal de contas, a Europa Ocidental nada mais é do 28 que um pequeno promontério do imenso continente eurasiano e, como conseqiiéncia, sempre esteve sujeita & influéncia de diversos povos. Isso era possivel gragas ao seu facil acesso, primeiro por terra e depois pelo mar, como também pelos fortes incentivos erlados pela qualidade do solo e pelo clima, especialmente nas areas vizinhas ao Mediterraneo. O contacto entre os povos era permanente, e, em um cendrio t&o pequeno, haveria de ocor- rer, naturalmente, freqiientes di- vergéncias entre os diversos agru- pamentos humanos. Tais con- tactos. implicavam possibilidades néio s6 de um choque entre cultu- ras, ocasionande niveis marean- tes de mudangas, como também o choque de armas. A guerra tor- nou-se, desde logo, parte inte- grante da vida em toda a regifio. Nao seria possivel desta forma que a evoluc&o do pensamento humano, Aquela época,’ ficasse isolada da realidade das guerras, do mesmo modo que seria impos- sivel deixar de levar-se em conta os efeitos interativos da politica, da economia, da tecnologia e da religiaio. Uma funcio tao permanente e vital como a guerra, inevitavel- mente se tornou, desde os pri- mérdios da Europa Ocidental, em um elemento basico na estrutu- ragéo dag sociedades, definindo fungdes e finalidades, — Eo que era o estratego? Um homem reconhecido por seus dotes de inteligéncia e lide- ranca, capaz de planejar, coorde- nar e dirigir as forgas militares sob seu comando para impor uma vontade (a qual representava os interesses vitais do agrupamento thumano ao qual ele pertencia). Isto implicava o uso de estrata- gemas, do logro, das fintas, da coragem pessoal e, especialmente, de uma capacidade de organiza- fo. Seria, ent&éo, sob esse as- pecto, o praticante da arte do general. A guerra, contudo, nio sendo permanente, implicava a ocorrén- cia de periodos de relativa calma em que se tornava imprescindi- vel reorganizar, usufruir das van- tagens de uma vitéria ou recu- perar-se ‘das conseqiiéncias de uma derrota. Tudo isso visando sempre 0 préximo evento bélico, para a defesa de um patriménio ou, até mesmo, para sua amplia- cho. Ninguém melhor que o estra- tego para essa tarefa, pois que, em sua visio, todas as agdes po- liticas, econdmicas — e, diria, até mesmo no campo do que hoje entendemos como mobilizagiio — deveriam proporcionar sempre uma-methor condigéo de preparo dos elementos humanos assim como. da Area sob sua responsa- bilidade, com a intengéo de en- frentar: os problemas futuros. Nesta .condigao, ele era um pra~ ticante da arte politica, ele era um estadista, na estrita concep- ao atual do termo. & fato admitido por muitos autores’ que a estruturagio da filosofia. social do mundo ociden- tal a. que pertencemos teve inicio com o desaparecimento da comu- nidade: familiar da antiga Ate- nas. Clistenes nfo apenas alterou uma cultura de muitos séculos de existéncia, como, também, esta- beleceu. as bases para a cidade- -Estado, origem remota dos Esta- dos-Nagdes com que convivemos em nossos dias. Por outro lado, parece valido reconhecer que, no tocante ao gue entendemos como filoso- fia social ocidental, seus prin- cipais pensadores e orientadores sempre se ocuparam, direta ou indiretamente, com a guerra e com a comunidade militar por ela criada. E, também, com os aspectos primordiais intrinsecos da arte da guerra, quais sejam: autoridade,. hierarquia, organiza- cao e, por via de conseqiiéncia, mudangas, desordem e recons- truciio. Existem autores — e com eles concorde — que advogam a idéia de que a civilizag&o ocidental tem sido em toda a historia da ‘huma- nidade a tnica orientada para a guerra, ou dominada pela guerra. Isto nao quer dizer que a guerra e 0 militarismo representem a esséncia da cultura ocidental. Nem se pretende alegar que os ideais bdsicos, nossos conceitos de moral, arte, literatura-e a propria cultura ocidental te- nham sido caleados em valores militares, ou impregnados defini- tivamente por eles. A existéncia, todavia, de uma influéncia mar- eante parece nfo merecer di- vidas. Légica, ética, racionalismo, ideais de justica, vis&o nitida de interesses vitais sempre estive- ram presentes na analise de. si- tuac&o exercitada por nossos an- tepassados quando dos conflitos 29 em que estiveram envolvidos. A tomada de decisio implicava uma avaliagio, a mais correta possi- vel, em seu entendimento de pos- sibilidades e limitagdes, quer no tocante as acdes militares, quer quanto As agées politicas, Um dos melhores exemplos desta assertiva. poderé ser encontrado na leitura de Tucidides, em sua obra a Histéria da Guerra do Peloponeso. Submeto, pois, as senhoras e aos senhores, que o significado do termo estratégia, como apli- eado ainda na época de Clis- tenes, dizia respeito a algo muito mais complexo do que a arte do general, como mais tarde vieram alguns a interpretar, isto 6, a conducéo militar de uma guerra, © que, logicamente, implicava uma acio inserida em determi- nada dimensio de espaco geo- grafico e um perfodo de tempo limitado. Na verdade, o signi- ficado do termo estratégia j4 pos- sufa, no perfodo histérico consi- derado, um acentuado contetido politico, representando a arte de administrar conflitos, visando a consecugéo de objetivos bem mais abrangentes do que os da pré- pria guerra. Fato curioso, a merecer. nossa atencdo, é 0 de que, apenas quase dezoito séculos mais tarde, vol- tamos a utilizar o termo es- twatégia. — Qual a causa, ou causas desse imenso vazio? ® evidente que Roma exerceu profunda influéncia na evolugio da arte militar e da ciéncia politica. 30 Em seu apogeu, o Império Ro- mano abrangia o que hoje co- nhecemos como a Europa Oci- dental, grande parte da Europa Oriental, da Africa Setentrional e do Oriente Médio, até a india. Este Império estruturou-se, também, gracas a profundas mudangas politicas e reformula- gées da arte militar. A andlise dos documentos existentes nos mostra que as motivagdes mili- tares, os valores militares e os objetivos militares sempre foram primordiais em Roma. As guerras externas eram pa- ralelas as guerras civis que ocor- rian dentro da propria Roma, no primeiro século da idade crista. Otaviano, homem cuja habilidade militar havia triunfado sobre a de todos os outros generais em Roma, tornou-se a suprema fi- gura politica. Ele assumiu a autoridade de Comandante-em-Chefe das le- gides romanas e de administrador dos negécios piiblicos. A meu ver, muito mais pela sua capacidade como politico (ou, melhor dizendo, como esta- dista) do que como praticante da arte militar, foi possivel ga- rantir a estruturacéo e posterior consolidagio e ampliacio da pax romana. O Estado era absolutamente supremo em todos os aspectos e, na base de toda: a estruturacao, estavam as legides romanas. Dai por diante, a sucessdo dos Imperadores,. comegando por Ti- vério, dependia inteiramente da popularidade pessoal do Impera- dor junto aos militares. Roma triunfou gragas a sua organizagéio burocratica, a cen- tralizago do poder e a uma hie- rarquizacao rigida de suas forgas militares. # evidente que a Estratégia, no sentido lato do planejamento e execugdo de campanhas e do po- sicionamento de forgas para ga~ tantir a predominancia romana, sofreu um continuo aperfeicoa- mento, Se analisarmos as campa- nhas de Anibal e a resposta de Roma, veremos, nitidamente, a aplicagéo ampla de uma Estra- tégia Militar. Por outro lado, o deslocamento na diregiio oeste das tribos oriun- das da Asia Central, bem. de- monstram a visio estratégica dos governantes romanos no sentido de utilizar, como resposta, a bar- reira natural oferecida pelo Da- nibio e pelo Reno, quer para im~ pedir invasdes em sua area vital, quer, também, para, através des- ses rios, neutralizar militarmente seus adversérios. Neste processo, Roma trans- formou-se em um império cal- eado em bases militares, com pos- tos avangados que alcancavam até a Inglaterra, ao norte, e com uma longa linha de fortes e ou- tras instalagdes de defesa nas margens do Dantbio e do Reno. E se Roma se transformou no Unico centro de poder, por mui- tos séculos, isto decorreu da exis- téncia de uma visdo politica de seus dirigentes, estabelecendo, nitidamente, seus objetivos vitais. Como, também, da aplicagio de uma Estratégia ampla, capaz de atender aos interesses da Poli- tica, a nivel de governo, a qual ditava os requisites para o pre- paro e aplicacSo de seu compo- nente armado, as legides, quer na fase do conflito violento, quer na fase da vigilancia e da afirma- cao da pax romana. Roma, finalmente, suecumbiu devido 4 deterioracao de suas préprias bases culturais e poli- ticas, Assim sendo, os anglos, os saxdes, os borgonheses, os godos, os visigodos, os lombardos e mui- tos outros povos (em conjunto chamados de povos germéanicos), progressivamente, provocaram o retraimento das fronteiras roma- nas e, finalmente, a queda da propria Roma, A invaséo germanica do Impé- Tio Romano implicou a substitui- gio das instituigdes imperiais politico-militares por estruturas e valores familiares semelhan- tes Aqueles climinados anterior mente por Clistenes, 0 grego; e, novamente, ivemos defrontar-nos com a mesma crise enfrentada por Atenas no século VI a.C. Em todos os povos germanicos, Jado a lado com a autoridade fa- miliar decorrente das tradigdes do ci& e da tribo, irfamos encon- trar a autoridade da lideranga, militar desenvolvida e amalga- mada nos embates da guerra e expressando os interesses vitais de uma comunidade. O conflito entre esses dois che- fes representou o condimento basico para a estruturacgio da- quilo que conhecemos como feu- dalismo, O chefe militar finalmente pre- dominou, transformando-se na autoridade maxima, Criou-se um elo de protegiio e servicos de na- 31 tureza militar, o qual se proli- ferou na Europa Ocidental a par- tir do século EX. A respeito, cabe mencionar o Professor Edward Jenks em seu livro Lei e Politica na Idade Média: “As relacdes de dependéncia pessoal tinham feito o seu apare- cimento na Historia como uma espécie de substitute, ou comple- mento, para a solidariedade fa- miliar que havia deixado de ser totalmente eficaz,” Assim, o chefe guerreiro trans- formou-se no aristocrata, no su- premo mandatario, e que tam- bém era o dono das terras, pro- prictario do castelo, ou da forta- jeza, nas quais as classes inferio- res da sociedade encontravam proteg&o e abrigo durante os con- flitos armados. Do mesmo modo come era exigido do parente o dever pri- mordial da ajuda mtitua, da pro- tecdéo e da vinganga, a obrigaciio principal de cada vassalo para com seu senhor feudal era-a de prestar servicos. Prédominaram, entéo, na Ida- de Média, o regionalismo, a des- centralizagio e o pluralismo, Surgiu, ent&éo, uma nova classe militar, com caracteristicas es- peciais: a cavalarla, Sua tecno- jogia era simples: sabre, adaga, Janca, armadura, escudo e, prin- cipalmente, o. cavalo, Esta cavalaria, uma cavalaria pesada, tornou obsoleta a orga- nizagio por falanges e. legides. O soldado a pé passou a ter um valor secundario, representando, apenas, um-elemento auxiliar. 32 Na realidade, o cavaleiro era um profissional instrufdo e ades- trado, desde seus primeiros anos de mocidade, para, enfrentar sa- crificios, demonstrar bravura e obedecer a um cédigo de honra extremamente rigido. Os custos desta organizagdo, todavia, eram bastante elevados e a Europa Ocidental nfo dispu- nha de recursos para atender a essas necessidades. Carlos Magno, por exemplo, como uma tentativa de solucio, organizou seus siiditos em peque- nos grupos, cada grupo devendo, quando necessério, apresentar um soldado bem armado, Assim, o servigo militar estava relacio- nado @ posse de terras, e cada proprietario deveria dispor de recursos suficientes para equi- par os seus guerreiros. Paréce nfo haver dividas de que o sistema feudal preservou a ordem politica e social na Eu- ropa durante varios séculos. O sistema, todavia, possufa defi- ciéncias intrinsecas: o cavaleiro somente era obrigado a prestar servico durante quarenta dias por ano ao seu senhor; apés esse periodo retornava a sua proprie- dade para tratar de suas tetras, A unidade de comando era impos- sivel porque a prestacdo de ser- vico militar se relacionava ape- nas 4& autoridade superior de quem o cavaleiro recebera suas terras. As batalhas, as cam- panhas, rapidamente, transfor- mavam-se em combates indivi- duais em que a demonstracio das virtudes e da perfcia dos com- batentes representava o objetivo maior, Nao havia, praticamente, @ aplicagao de uma estratégia. O desprezo pela infantaria estabe- lecia, como conseqiiéncia, que a cavalaria se ligava ao castelo ou & fortaleza, Ali, o nobre poderia resistir a um sitio e, de quando em vez, de acordo com as circuns- tancias,.travar pequenos comba- tes com o inimigo, uma situacZo também valida para quando ele se rebelava contra o seu rei. Entéo, a guerra feudal era pri- mordialmente defensiva e depen- dia, em tiltima andlise, de que a tecnologia da fortificac&io esti- vesse mais aperfeicoada do que a tecnologia do sitio, Uma organizacio, todavia, exerceu naquele periodo uma, in- fluéncia decisiva em termos es- tratégicos, quanto aquele algo mais que proponho ser o real significado do termo estratégia, E esta organizac&io foi a Igreja Catélica Apostélica Romana. A Igreja era, antes de tudo, uma grande proprietéria de terras, Para ela, 0 cavaleiro ideal incorporava todas as virtudes preconizadas pela religido crista: ter nobreza de carater, ser ho- nesto, leal e piedoso. O combate representava, entéo, um teste real da afirmagio desses princi- pios. Assim sendo, a influéncia de papas poderosos consagrou a existéncia da cavalaria e orientou a conduta das relacées externas da maioria dos paises, pratica- mente determinando os objetivos a serem alcangados através das guerras. Mais ainda, como um exemplo dessa influéncia, poderiamos ima- ginar, & similitude do que ocorre em nossos dias, que o primeiro SALT (Strategic Arms Limitation Talks) ocorreu por influéncia da Igreja, ao tentar banir, nas guer- ras entre as nacées cristas, o em- prego da besta, tendo em vista que ela representava uma pode- rosa arma anticavalaria. As senhoras e os senhores esta- gidrios conhecem os resultados da batalha de Crecy, em 26 de agosto de 1346, O Rei Eduardo da Inglaterra invadiu a Franca e, nao conse- guindo conquistar Paris, retirou- -se pra Crecy, onde aguardou os franceses, que dispunham de me- Thor cavalaria e de uma superio- dade de tropas de 3 para i. Combinando sua cavalaria com os arqueiros, foi possivel aos in- gleses infligir uma terrivel der- rota a Filipe de Franca. O interessante, ainda, a obser- var quanto a este episédio, é a resposta tipica que se vem obser- vando historicamente quanto ao desenvolvimento dos armamen- tos: surgindo uma arma mais poderosa e de maior alcance, busca-se, antes de tudo, melhorar a defesa. Assim sendo, através dos aperfeigoamentos da meta- Jurgia na Franga, a cota de ma- thas foi substituida por uma ar- maduta mais pesada. As lancas tornaram-se mais longas e com maior peso, E, com isso, foi sacri- ficada a mobilidade, que, talvez, tivesse sido a melhor e mais efi- caz resposta ao maior poder das novas armas utilizadas. Enquanto o feudalismo e sua express&o militar, a cavalaria pe- sada, predominavam na Europa Ocidental, na parte leste da Eu- 33 ropa florescia o Império Bizan- tino come o tnico sobrevivente do extinto mundo classico greco- -romano. Enquanto o Oeste vivia da agricultura de subsisténcia, com:um pequeno comércio, o Leste beneficiava-se do’ comércio maritimo, cujo centro principal e pélo irradiador era a cidade de Constantinopla. BizAancio possufa uma, organi- zacio politica altamente desen- volvida; um corpo diplomatico de elevado nivel; e uma estrutura militar perfeitamente adequada as suas necessidades. Uma pode- rosa forga naval no apenas pro- tegia o seu trafego maritimo, como também estabelecia uma acdo de presenca marcante nas areas maritimas de interesse do seu Império. A estratégia basica do Império Bizantino era a de defesa, A guerra era aceita como uma con- digio normal e estudada como uma arte e nfio como a simples e pura aplicagéo da forga. Dois trabalhos publicados a época, A Arte Militar, de Mauricio, em 595, e Tética, de Leo, em 900, tém como tema central o principio da economia de meios. Entendiam os bizantinos que o combate era o Ultimo recurso quando falhassem outras inicia- tivas. ; Os métodos de guerra utiliza- dos peios possiveis oponentes eram cuidadosamente estudados, Por exemplo, no caso de uma guerra contra os ocidentais de- ver-se-ia procurar explorar aque- las caracteristicas do cavaleiro (o impeto, a bravura, a falta de disciplina e de organizagfo, assim 34 como. a logistica deficiente). Contra os experimentados .per- Sas, a Manobra e a. aproximagio indireta eram os métodos preco- nizados. Por outro lado, quanto aos povos balcanicos, dever-se-ia buscar o exterminio. No oitavo século de nossa cra, o Império estava dividido em dis- tritos militares, cada distrito pos- suindo tropas permanentes e uma milicia auxiliar, O Coman- dante do Distrito agia, também, como governador civil, sendo que as instituicdes politicas refle- tiam as necessidades militares. O deciinio de Bizancio come- gou.com o seu declinio naval, Veneza e outras cidades italianas ampliaram sua competicio pelo trafego maritimo e o Império Bi- zantino, j4 em deteriorag&o, foi aos poucos perdendo o controle e a hegemonia desse trafego. O enfragquecimento da marinha mereante acarretou o descaso pelas forgas navais e o virtual de- saparecimento dos interesses ma- ritimos, O advento do emprego da arti- Iharia, j& razoavelmente desen- yolvida, tornou obsoletas as mu- ralhas de pedra dos castelos e fortalezas, item basico do sistema feudal. Assim, em 1453, os turcos levaram quarenta dias para des- truir as ent&o inexpugnaveis mu- ralhas de Constantinopla e en- cerrar o milénio da existéncia de Bizancio. A Renascenga, a influéncia de novas tecnologias e o préprio fortalecimento do reinado na Franga estabelecem as bases para uma nova era da histéria da hu- manidade, A Talia florescia nas artes, na ciéncia e na filosofia, gragas aos lucros proporcionades pelo co- mércio maritimo com 0 Oriente, Politicamente, porém, era uma nac&o fragmentada em intimeros Estados de pequenas dimensdes, os quais eram dominados pelos comerciantes. Assim sendo, @ pro- tego militar era contratada. Os mercendrios, de todas as origens, cavaleiros de fortuna, os condot- tieri, faziam guerras de acordo com os interesses de seus contra- tantes. Eram guerras sem obje- tivos definidos, ditadas por inte- resses comerciais sempre em mu- tacdo,.onde a condi¢ao de amigo ou inimigo atendia as convenién- cias do momento. Assim, quando Carlos VIII da Franga invadiu a Italia em 1494, os italiancs foram surpreendidos pelos seus firmes objetivos de aicancar uma vitéria completa e nao seguir as regras preconizadas nos conflitos entre as cidades italianas. As ligdes militares decorrentes da invasfio francesa impressiona- ram profundamente a Niccolo Machiavelli, o grande escritor italiano. Em suas obras, O Principe, Discorsi e A Arte da Guerra, ele sintetiza as alteracdes que esta- vam ocorrendo na Politica e prevé o advento da guerra mo- derna, Ele defende a idéia do exército profissional e nega a va- lidade das tropas contratadas. Talvez o aspecto mais impor- tante de suas obras seja 0 do res- surgimento do estudo da guerra, que estava abandonado desde Mauricio e Leo no Império Bi- zantino, cinco séculos atras. Maquiavelli aspirava ver uma Italia reunificada sob a direcio de um grande principe. Reconhe- cia, claramente, que a existéncia do Estado moderno dependia da guerra e néo da moralidade poli- tica irrealista — ditada pela Igreja — e que fora praticada na Idade Média. Cabe mencionar duas conse- qiiéncias desse fato: 1,° — O sentido pejorative que ficou ligado a seu nome; ser ma~- quiavélico significa, em nosso entendimento comum, ser astu- cioso, velhaco, traigoeiro, pérfido. Suas idéias concernentes 4 Poli- tica foram consideradas amorais, uma vez que se caracterizavam pelo principio de que os fins jus- tificam os meios; e 2.0 —. A idéia de guerra limi- tada, em termos dos interesses de um pequeno grupo, era por ele abominada. A guerra deveria ser total, no sentido de envolver todos os segmentos e atividades de uma sociedade, Para sua época, e em uma vis&o prospec- tiva, ele antevia a necessidade da. dipiomacia armada em que a estrutura organizacional de um Estado moderno, sua politica e a inevitabilidade dos conflitos deveriam interagir de maneira harménica, visando, precipua- mente, atender a interesses vi- tais. Assim sendo, ele preconizava uma norma geral, valida para todas as organizacgées militares de todos os Estados e em qual- quer época, 35 evidente que o pensamento militar moderno enfatiza o fato de que, sob diferentes condigdes historicas, tal norma poderd va- viax, ficando sua validade depen- dendo do aspecto particular de cada conflito e da ambiéncia de um determinado Estado. Por outro lado, Maquiavelli preconizava que a estrutura da expressdo militar e a onducdo da guerra deveriam obedecer a prin- cipios racionais e geralmente validos. © conceito de que a guerra possa ser planejada e conduzida por processos racionais perdeu em muito sua validade, & medida que o comportamento humano passou a ter um peso considerd- vel na analise histérica das guerras, e em uma possivel pre- visio do futuro, A Guerra como Ciéncia e, por via de conseqiiéncia, a Estra- tégia como Ciéncia deixaram de ser consideradas como verdades indiscutiveis desde o final do sé- culo XVUEI, Admitia-se, jA nas tltimas dé- cadas daquele século, que outros fatores ndo-racionais exerciam uma influéncia preponderante. N&o a massa, a Nacho armada, mas o individuo, em sua partici- pacéio, poderia exercer uma in- fluéncia fundamental; os fatores imponderaveis passariam a ter tanta importancia quanto aque- les fatores racionais e possiveis de definicio matematica. Nao existe uma opiniao undni- me quanto A Arte da Guerra, de Maquiavelli, representar a pri- meira obra, na idade moderna, tratando da teoria militar. 36 % possivel comprovar, todavia, que durante séculos ela exerceu significativa influéncia naqueles dedicados a0 estudo do conflito armado, Maquiavelli nos prope, de ma- neira sébria e detalhada, a tese de que os romanos eram supe- riores aos poyos de sua época quanto & organizacio de suas forgas armadas. Seu estilo de condueao da guerra deveria, pois, ser imitado em todos os detalhes pelos modernos comandantes. Ele explica, minuciosamente, como os generais romanos posiciona- vam suas tropas para a batalha, Ao-tratar, porém, da batalha propriamente dita, altera-se o estilo de Maquiavelli. Desaparece a sobriedade, a serenidade, a lin- gulagem fria, e o que encontra- mos em suas obras é uma, descri- cho excitada daquele evento. Maquiavel desejava enfatizar a importancia excepcional da ba- talha; ele a considerava como o momento culminante da guerra, Para, ele, o maior triunfo que um homem poderia obter seria a vi- téria na batalha, Na verdade, Maquivelli apenas repetia, talvez com um pouco mais de énfase, os ensinamentos dos historiadores do passado. Para ele, era considerado funda- mental que a politica externa de uma cidade-Estado tivesse como objetivo a expansio, e que esse objetivo apenas poderia ser alcangado pela guerra; as guer- ras, afirmavam eles, sao decidi- das nas batalhas. Existe, porém, um outro mo- tivo para essa mudanca de estilo, Os problemas relativos 4 preparagéo para a guerra, 4 mo- vimentacao que precede a bata- Tha, todos podem ser equaciona- dos racionalmente — diriamos, usando a inteligéncia, Quando comega o combate, todavia, ou- tras qualidades — qualidades de natureza moral — necessitam ser demonstradas. E elas sao re- conhecidas pelos efeitos que irdo causar nos adversarios, Como identificar essas quali- dades e o que elas proporcio- nam n&o seria possivel demons- trar, simplesmente, pelo racioci- nio: s&o melhor definidas pelos exemplos. Maquiavelli, ao elaborar a sua obra A Arte da Guerra, foi na maior parte do texto um tedrico mitar. Na descrigéo da batalha, ele se revestia das qualidades de um _historiador, Essa caracteristica da obra de Maquiavelli representa, talvez, 0 marco inicial de uma divisdo que se constatou nos séculos seguintes. Os textos histéricos est&o re- pletos da descrigiio de batalhas, mas existe muito pouco regis- trado quanto a estratégia que ditara a necessidade de uma guerra, de uma campanha e, por- tanto, daquela batalha. Os historiadores preocupavam- -se em descrever, nos minimos detalhes, as batalhas, os ntimeros . de homens e de canhées, as mar- chas e contramarchas, as perdas @ os gestos histéricos. Seria pos- sivel afirmar que os historiadores “viam” as batalhas sob o ponto de vista das emocées daqueles que lutaram e sofreram, portan- to, no mesmo nivel do campo de batalha. Faltaya-nos, no entanto, alguém que examinasse aquela batalha a partir de um nivel su- perior, entendendo-a como uma pega de um mosaico a ser montado, ou que havia sido planejado. Foi Carl von Clausewitz. que, ao desenvolver suas teorias sobre @ guerra, proporcionou uma nova avaliac&o do significado da bata- tha nas operagées. militares, Poderé parecer absurdo atri- buir a Clausewitz uma possivel “desvalorizacio” da batalha, uma vez que ele, mais do que nin- guém, enfatizou a importancia da batalha como o “centro de gravidade” de toda a campanha, definindo-a como “a guerra con- centrada”; de acordo com o seu ponto de vista, por exem- plo, “apenas uma grande ba- talha pode produzir uma decisio capital”, O que realmente propunha Clausewitz, todavia, 6 que. a ba- talha e os seus resultados deve- riam ser analisados no contexto da guerra como um todo. O que significava uma batalha e quais as suas conseqtiéncias iriam depender do tipo de guerra que estava sendo travada — seria uma guerra de defesa; uma guerra de conquista; uma guerra de exterminio, ou finalmente, uma guerra para neutralizar um adversario? A batalha representava para aquele autor, apenas um evento em um cenaério mais amplo; a campanha que conduziu aquela batalha deveria ser avaliada no contexto da guerra como um 37 todo; e a propria guerra deveria ser considerada como um instru- mento que atendesse & politica ampla do Estado. “A batalha e a campanha estio subordinadas ao propésito da guerra e a guerra 6 apenas a continuagfio da politica por ou- tros meios”, nos diz Clausewitz. Devemos reconhecer que ele viveu e participou de um evento significativo da histéria da hu- manidade: a Revolucéo Fran- cesa e suas conseqiiéncias ime- diatas. Seria absurdo, a meu ver, que, suas idéias se limitassem & estreita visio do pensamento mi- litar. A prépria natureza de suas interpretacdes sobre a guerra €le- va-se imediatamente a uma po- sigio de teoria politica e social. Seu tema principal sio as guerras napoleénicas e, direta ou indiretamente, ele analisa o lider militar, o administrador e o es- tadista, Na minha opiniao, sao qualidades que se incorporavam, com especial realce, em Napoledo. Assim, a Estratégia a que se referia Clausewitz, nfo poderia ser apenas a Estratégia Militar em uma ambiéncia eminente- mente terrestre. A interpretacdo literal de suas palavras, em uma obra incompleta, sem revisio, pois que Clausewitz faleceu antes da publicacaio de seus trabalhos, permitiu a adaptacio de suas idéias 4s condicionantes da época que, para muitos, parecia indicar uma possivel diminuic&c de im- portancia da comunidade militar que, aos poucos, ia sendo substi- tuida por uma nova comu- nidade: a comunidade politica, 38 E, assim, interromper esse pro- vavel declinio. Lembremo-nos de que a vitéria das tribos germanicas sobre a Roma Imperial havia estabelecido uma primazia do chefe militar sobre o chefe do cl& ou da fa- milia. E de que Clausewitz era alemao, A Revolucao Francesa, a0 aba- lar profundamente a estrutura da, sociedade, provocara, também, como reacaéo, um fortalecimento das estruturas aristocraticas nos paises que se opunham 4 Franca. Neste cendrio, a comunidade mi- litar, parecia perder substancia, a menos que houvesse uma profis- sionalizagio mais acentuada — especialmente no contexto inte- lectual — e uma visao atualizada do significado da guerra. A guerra, no periodo imediata- mente anterior, ajustara-se ao espirito cientifico prevalente, Vi- viamos, evidentemente, em uma época em que razdes econémicas e filosdficas limitavam a ampli- tude das guerras e, para muitos pensadores militares, tal con- dicéo enobrecia a pratica da guerra, Observava-se uma énfase especial quanto a um sistema de manobras complicadas que talvez reduzisse o proprio combate em si. Falava-se de relagdes geomé- tricas ¢ de angulos de ataque so- bre determinadas posicies geo- graficas — cuja ocupacéo tor- maria a vitoria praticamente certa. A matematica e a topo- grafia seriam os requisites fun- damentais do lider militar. Se- gundo William Loyd, um autor inglés, “o general que conhece esses assuntos pode dirigir as atividades bélicas com uma pre- cisio geométrica em travar uma guerra sem, até mesmo, a neces- sidade’ de engajar-se em ha- talhas”, Clausewitz rejeitava, quer o otimismo, quer o dogmatismo das teorias propostas no decorrer do século XVIII. Para ele, 0 componente cien- tifico da guerra, isto 6, aquele que poderia ser dimensionado e racionalizado, teria uma impor- tancia secundaria. Ele néo me- nosprezava a logistica, as con- dicionantes geograficas, ou até a area de operacdes. Ele admitia que os fatores geograficos e ma- tematicos eram importantes no eampo da tatica, sendo sua im- portancia certamente de menor valor no que se refere & Estratégia, Clausewitz considerava a guer- ra como sendo “um ato de vio- Jéncia visando obrigar o oponente @ submeter-se a nossa yontade”, Em outro contexto, ele conside- fava a guerra como -pertencente ao campo da vida social, A guerra é um conilito de grandes interes- ses. que s6 poderia ser resolvido pelo derramamento de sangue, e apenas sob esse aspecto é que ela diferia de outros métodos para a solugéo de conflitos. A forca fi- sica, portanto, representava um instrumento especifico da guerra € seria absurdo, segundo ele, con- siderar a existéncia, na filosofia da guerra, de.um “principio de moderagao”. A énfase atribuida, por Clau- sewiiz quanto ao propésito da Estratégia — e, no meu entendi- mento, o da Estratégia Militar — ser o da destruig&io das forcas inimigas no campo de batalha, exerceu profunda influéncia no pensamento politico e militar das décadas seguintes e, ainda hoje, deixa suas marcas. Mais ainda, a nosso ver, tornou menos identificdvel aquela con- cepgio do verdadeiro significado da guerra como uma forma de conflito cujo objetivo politico fi- nal esté muito além, e é bem mais abrangente do que poderiam ser os objetivos militares da “ba- talha decisiva”, cujos resultados representam muito mais do que a vitéria ou a derrota no campo de batalha. Por outro lado, permitindo interpretagdes ambiguas, Clau- sewitz contribuiu para restringir o verdadeiro significado do termo estratégia, limitando-o & aplica- cao puramente militar, o que, talvez, esteja refletido no citime que muitos estudiosos do assunto expressam ao reagir contra a aplicagio ampla desse termo. Uma das primeiras manifesta- ges de que algo estava errado quanto aos objetivos da guerra seria, talvez, a de Georges Cle- menceau, anos mais tarde, ao de- clarar que “a guerra é algo de- masiadamente importante para ser deixado a cargo dos generais”. Referia-se ele, evidentemente, a esse encurtamento de visio quanto ao significado da guerra e seus objetivos finais. Conse- qiientemente, as Estratégias. co- mo praticadas pelos chefes mi- litares. Um outro aspecto a considerar é de. que a obra de Clausewitz representou um ténico muito po- 39 deroso para o fortalecimento da comunidade militar, proporcio- nando-lhe um destino a seguir em novas bases filoséficas, esta- belecendo-Ihe uma posic&o firme e bem definida na estrutura das sociedades desenvolvidas que se projetaram no cendrio interna- cional, a partir da segunda me- tade do século passado, Ao analisarmos Clausewitz es- tamos, evidentemente, tratando da visio germanica do problema, Foram as guerras napolednicas observadas pelo representante de uma cultura que, progressiva- mente, se estratificava com ca- racteristicas proprias em todas as reas do conhecimento hu- mano, Ao examinarmos Antoine Hen- ri Jomini, assumimos a viséo francesa do problema, ainda que ele fosse suico de nascimento. Também um participante das campanhas de Napoleio, como oficiat de Estado-Maior, Jomini, estabelece um evidente con- traste em relagio a Clausewitz quanto As suas idéias. Sem possuir o contetido filo- s6fico do autor alem&o, Jomini orientava seu ento no sentido daquilo que ele denomi- nava os aspectos praticos da guerra, em vez de analisd-la como um todo, Como resultado de seus estudos, ele propunha uma dife- rente teoria da Estratégia, Em sua opinido, existiriam regras e principios gerais — permanente- mente validos —- que iriam, sem- pre, orientar os chefes militares. A-campanha e o teatro de ope- racées constituiam o seu tema principal. Basicamente, ele pre- 40 conizava, a ocupagae do territério inimigo em vez da aniquilacdo de seu exército. Esta ocupagao de- veria ser alcangada através do progressivo dominio de areas da- quele territério. © Comando es- colheria linhas de mancbra e as adaptaria a configuragdes geo- métricas da zona de operagées. As campanhas deveriam ser pla- nejadas com bastante antece- déncia, A fungio bésica da Estratégia seria a do estabelecimento de planos preliminares visando de- terminar as chamadas “linhas de manobra”, assim como de dis- por 0s meios militares de confor- midade com as realidades geogré- ficas da zona de operacGes esco- Thida. Ele prescrevia dois princi- pios estratégicos bdsicos: a con- centracio de tropas contra par- celas de forga inimiga, através de rapidos deslocamentos ¢, tam- bém, o ataque seguindo o eixo mais decisivo, Jomini imaginava a zona de operacées como sendo uma figura geométrica com quatro lados, Dois desses lados estariam ocupados pelas forcas em oposi- cao. A tarefa de urn comandante seria a de — levando em conside- racéo plena as condicdes natu- rais do terreno .— escolher uma. “linha de manobra” que possibi- litasse — da maneira mais efe- tiva — dominar trés lados dessa zona de operacio. Caso conse- guisse esse feito, o inimigo seria derrotado ou forgado a abando- nar a zona de operacées. Assim, ivia concretizar-se um dos propé- sitos bdsicos da campanha: a conquista do territério. Em. uma anélise de sua obra, os Professores Crane Brinton e Gordon Graig sugerem que Jo- mini estaria correto em sua con- siderac&io da existéncia de varios tipos de guerra distintas entre si, de. acordo com os seus propésitos politicos. Ele, porém, n&o conse- guiu identificar a caracteristica dindmica da guerra no sentido de que ela pode (e a Historia prova essa condicéo) evoluir além de seus propésitos e limites ini- ciais. Por outro lado, parece que Jomini nao visualizou, nitida- mente, o3 efeitos da Revolugao Francesa quanto 4 abrangéncia da guerra e 4 influéncia decisiva das demais expressdes do Poder Nacional: a politica, a econémica e a psicossocial. Ainda assim, Jomini exerceu consideravel influéncia na his- téria da evolucao do pensamento estratégico. B verdade que a di- namica da guerra moderna e sua abrangéncia, ditada pela sofisti- cacéo tecnolégica, anularam a validade das campanhas pura- mente geograéficas. Sua contri- buigd0, todavia, foi valiosa quan- to ao estabelecimento dos con- ceitos basicos de ciéncia militar e sua visualizacio da Estratégia, no contexto da arte da guerra. Sua énfase, no tocante ao pla- nejarmento de operacdes e & im- portancia das informacées, tra- duziu-se no estabelecimento for- mal de estados-maiores e das escolas de guerra de nivel su- perior, instituicdes estas que até hoje continuamos adotando. Atingimos neste retrospecto histérico, através do qual procu- ramos analisar o entendimento € a aplicacio do conceito de Estra- tégia, a um ponto de ruptura em que as realidades da ambiéncia internacional passaram a exigir a formulagao de novos conceitos ou, ainda, a adaptag&o das idéias vigentes 4s realidades de uma nova época, na histéria da hu- manidade, O cenario a que me refiro si- tua-se entre a segunda metade do século dezenove e o inicio de nosso século atual. Consolidam-se os Estados-Na- g6es, Penetramos na era do impe- rialismo, Adaptaram-se os con- ceitos de Clausewitz e Jomini a uma predominancia militar que é refletida-no esplendor e na im- portancia simbélica dos unifor- mes, como também na rigida organizagio militar dos impérios, em que os “mais” favorecidos in- gressavam no Oficialato e as po- pulagdes “menos” favorecidas re- presentavam o imenso reservaté- rio de onde seriam extraidos os combatentes, A primeira, revolugéo indus- trial gera um quadro de situagiio em que nenhuma grande potén- cia poderia esperar obter uma vantagem qualitativa sobre seus possiveis adversarios. Passam, entio, a ter vali- dade considerada indiscutivel, na época, certos principios admiti- dos ou deduzidos do conceito preconizado da Estratégia. Por exemplo, o da massa, isto 6, o da concentragio crescente de. meios humanes para, decidir, em uma tnica batalha — a bataiha decisiva — a sorte das guerras. Clausewitz e Jomini s&o os dois nomes principais relacionados ao tema que alguns autores classifi- 41 cariam como a Teoria Estraté- gica Terrestre, ou Teoria Conti- nental, e que deu origem a uma Escola de Pensamento que pre- dominou por muitas décadas na ambiéncia das grandes nagées, De outro lado, sem que possa- mos encontrar, no decorrer do mesmo periodo, figuras de ex- pressio voliadas para a estrutu- ragio e defesa de uma teoria compreensivel quanto ao signifi- cado dos oceanos, uma pequena ilha, debrugada sobre a Europa Continental, sobrepujou seus ad- versarios, através do emprego de meios navais, e espraiou-se sobre a imensa massa liquida que co- bre trés quartas partes da super- ficie do globo terrestre, trans- formando-se, como conseqiiéncia, na “Rainha dos Mares” e assu- mindo, de fato e de direito, a res- ponsabilidade de garantir uma pax vritdnica em substituigéio & pax romana, desaparecida muitos séculos atras. Foi Mahan, um oficial da Marinha norte-americana, que, através de uma andalise histérica dessa evolugao, e a partir da wlti- ma década do século XIX, desen- volveu uma Teoria Estratégica Naval, ou Teoria Maritima, a outra Escola de Pensamento, de excepcional importancia no to- cante ao pensamento estratégico. Através de Mahan, e de sua andlise, a qual, a meu ver, de- veria ser mais adequadamente intitulada de Principios de Ocea- no — Politica, criaram-se as se- mentes de uma nova teoria, por muitos consagrada, e que se de- nomina Geopolitica. 42 N&o me cabe tecer comenta- rios sobre estas escolas, pois que, no decorrer deste periodo doutri+ nario, o assunto ira merecer uma. palestra. especifica. Apenas, como um comentario ilustrativo da importancia des- sas teorias e escolas, bastaria re- cordar que, em todas as foto- grafias que registram os lideres das grandes nagées ao inicio de nosso século, encontraremos os uniformes, naval e dos exércitos, envergados pelos lideres repre- sentatives das nacdes “mariti- mas” e das nag6es “terrestres”. Curioso, como possa parecer, a nacio brasileira, no periodo im- perial, envergava, através de seu representante de maior impor- tancia, o uniforme naval. A Primeira Guerra Mundial de- monstrou aos estrategistas; sem @ menor sombra de dividas, que @ enorme capacidade de destrui- Gao & disposigéo dos Estades mo- dernos nao iria produzir os resul- tados preconizados, © tempo necessério para mobi- lizar essas energias e a, dificul- dade de orienta-las sobre objeti- vos militares selecionados nao contribuia para o atendimento dos fins especificos que determi- naram o deflagar do conflito. O advento dos blindados e, es- pecialmente, da arma aérea in- duziu muitos pensadores milita- res a concluir que o estrategista, gragas ao progresso tecnoldgico, passaria a ter a sua disposicfio um bisturi em vez de uma clava. Deixariamos de nos preocupar com a perda de milhédes de com- batentes na frente de batatha, pois seria possivel. destruir, ou enfraquecer, suficientemente, a vontade nacional do adversario pelo ataque a pontos sensiveis de seu territério e, assim sendo, através de uma guerra de curta durac&o, obter. os resultados es- perados, Surge, ent&o, uma nova teoria, essenciaimente calcada em uma visio prospectiva, mas que obteve o reconhecimento internacional, uma vez que jé estavamos vi- vendo em uma ambiéncia im- pregnada pelo reconhecimento das realidades e das possibili- dades do desenvolvimento tec- nolégico. A Teoria Estratégica Aérea, preconizada por Douhet, ser, também, assunto da palestra que anteriormente mencionei, ainda que,,4.meu ver, ela ndo se enqua- dre.corretamente no contexto das teorias estratégicas classicas. Vivemos o perfodo entre os dois grandes conflitos mundiais em uma ambiéncia confusa. De um lado, a tentativa deses- perada de manter o status quo pelos Estados-Nagdes que conti- nuavam a defender o condiciona- mento imperialista. Sob certo as- pecto, e até subjtivamente, para afirmar uma superioridade — pelo menos de idéias — quanto a0 significado e 4 importancia da Estratégia na conducao das ope- racdes militares. Tudo isto, bus- cando neutralizar o que preconi- zava, Clemenceau quanto a prio- ridade do fator politico sobre o fator ‘militar, De outra parte, enfrentava- mos a influéncia de novas idéias, da, ‘livre iniciativa e do capi- talismo, orjundo de uma nagdo cuja origem, formagio e com- posigio representavam, basica- mente, a reac&o contra as pra- ticas e a estrutura entdo vigentes no continente europeu. De outro lado, também, sofria- mos as influéncias de uma nova ideologia, caicada em premissas incorretas, no espago e no tempo, mas que, ainda assim, com novas roupagens, empenhava-se em ga- rantir o prosseguimento da expansio do pequeno Ducado de Moscou em busca do ideal preco- nizado por Pedro, “o Grande”: a hegemonia mundial. A Segunda Guerra Mundial re- presentou, em Ultima andlise, um novo ponto de ruptura. Desapareceram as grandes po- téncias detentoras de imensas reservas coloniais. A Europa. repentinamente, transformou-se em uma pequena drea geogra- fica, semidestruida pelos efei- tos do conflito e sem uma capa- cidade propria para recuperar sua predominancia econdmica. O mundo tornou-se politica- mente bipolar. A sofisticagao tec- nolégica alterou a natureza da Estratégia e, também, do pensa- mento estratégico em, pelo me- nos, um aspecto critico; tornou- -se possivel mobilizar, para qual- quer intencfo, ou propésito, e de maneira imediata, forcas incal- culaveis. A disponibilidade de armas nu- cleares com idéntico poder de destruic&io, quer na Uniao Sovié- tica, quer nos Estados Unidos, transformou a guerra generaliza- zada em um instrumento menos vital da Politica, mas, ao mes- AB mo tempo, fez com que a ameaca da guerra adquirisse, como ins- trumento, um valor excepcional. Neste instante, considero que a Hetratégia se desligou, definiti- vamente, de suas origens histé- ricas e orientou-se no sentido das ciéncias do procedimento huma- no, buscando novas fundamenta- gdes a fim de cumprir o que se- Tia agora sua principal tarefa: @ estimativa de valor de uma vasta gama, de atitudes, acdes e reagdes, que se posicionam nao apenas naquela area cinzenta que imaginamos existir entre a paz e a guerra, como também no. definir do “como fazer” para a Yealizacio de quaisquer ativi- dades em que se empenham os diferentes segmentos de uma so- ciedade. Até mesmo a propria sociedade como um todo na con- quista ou preservagio de seus objetivos vitais, Ao procurarmos estabelecer uma comparacéo entre o pro- gresso cientifico e tecnolégico das Ultimas décadas e a capaci- dade de organizagio dos grupos ou entidades sociais para o trato dos problemas com que se defron- tam, poderemos constatar a existéncia de um gap gerencial. Torneu-se necessatio adotar vegras e principios, até entao so- mente praticados nos ambientes eastrenses, visando eliminar ou diminuir esse gap. Assim sendo, n&o seria de es- tranhar, por exemplo, que em uma pequena publicag&o elabo- rada recentemente pela FUNCEP (Fundagio Centro de Formagio 44 do Servidor Ptiblico) encontre- mos consideragdes como as que passo a citar: “Os Objetivos a serem atingi- dos, bem como as Estratégias. para alcancé-los devem ser o ponto de partida para o delinea- mento de qualquer estrutura or- ganizacional.” Citando Eduardo Vasconcellos, em. artigo publicado na Revista: de Administragéo da Universi- dade de SGo Paulo, é apresentado: um exemplo: “Suponhamos que uma em- presa ptiblica de pesquisa, além. de suas atividades de pesquisa, decida prestar servigos de assis- téncia tecnolégica especializada e, como estratégia para atingir esse objetivo, decida associar-se a empresas de engenharia. A essa, decisio devem corresponder.mu- dangas estruturais que permitam se atinja o objetivo através da estratégia escolhida,” & evidente que, apés o tér- mino da Segunda Guerra Mun- dial, procurou-se analisar as. es- tratégias adotadas no decorrer daguele conflito, assim como de- duzir ensinamentos que pudes- sem contribuir para o aprimora- mento da arte da guerra. Ativi- dade que se revestiu de um ele- vado grau de prioridade, tendo em vista a sofisticag&o tecnolé- gica e a rapidez com que evolui- ram os sistemas de armas, Assim, por exemplo, 0 Almi- rante Wylie, da Marinha norte- -americana, em seu livro Estraté- gia Militar; Uma Teoria Geral do Controle do Poder nos diz que: “A guerra nunca foi realmente estudada dentro de uma objeti- vidade fundamental e de uma sistemdtica que conduzisse 0 es- tudante (e o praticante) a reco- nhecer e melhor compreender um processo bdsico de raciocinio, uma teoria que influisse ou pu- desse influenciar a condug3o da guerra, considerando-se a ques- téo basica da sobrevivéncia de uma nagio.” Assim sendo, propée-nos Wy- lie uma definigio para Estraté- gia, a qual seria: “Um plano de agiio idealizado a fim de atingir algun fim; um propésito juntamente com um eonjunto de medidas para sua realizagdo.” Sugere o Almirante Wylie que tal definic&o teria dois aspectos releyantes: . — O primeiro, em que esta se- ria uma definiciio n&o limitada & situagéo de guerra, nem mesmo limitada & plicac&o militar. Essa condigéio seria imprescin- divel para entendermos a Estra- tégia como uma disciplina inte- lectual. — O segundo aspecto impor- tante da definic&io proposta é que ela obriga a um raciocinio dicotémico — quer o propésito, quer o conjunto de medidas para sua consecugéio, devem estar incluidos no raciocfnio do estra- tegista, © General André Beaufre, um dos mais ilustres estudiosos do assunto, propde que: “A esséncia da Estratégia & uma, ag&o reciproca abstrata que nasce do choque entre duas von- tades antagOnicas. E a arte que possibilita ao homem, indepen- dentemente das técnicas usadas, dominar os problemas criados por qualquer choque de vontades e, como uma conseqiiéncia, em- pregar as técnicas e os meios dis- poniveis com o maximo de efi- ciéncia.” Uma outra interpretagdo so- bre o conceito de Estratégia nos é oferecida pelo Professor Char-. nay, 0 qual, nos idos de 1970, era o Diretor de Pesquisas do Centro Nacional de Pesquisas Cientificas da Franca, Para ele, Estra- tégia é: “A faculdade racional de orga- nizar e dirigir a totalidade das forgas das entidades sociais em suas negacdes reciprocas.” “A& realidade”, conforme men- ciona Charnay, “6 que ocorreu uma inversio da relagio guerra- -estratégia. Até recentemente (e este “recentemente” seriam os primeires anos apés.a Segunda Guerra Mundial), a Estratégia posicionaya-se (talvez, em sen- tido figurado) como um compo- nente dentro do conjunto que entendemos como guerra.” “Hoje o conceito de Estratégia engloba a guerra, a qual nada mais é do que um fenémeno limi- tado dentro da estrutura social.” 45 Este é, a meu ver, um enten- dimento ampiamente aceito na sociedade ocidental e que resulta da andlise dos eventos da Segun- da Guerra Mundial, N&o tenho diividas de que esse conflito demonstrou, nitida- mente, a existéncia de um gap gerencial em termos das opera- goes militares e de que hoje esta- mos: sofrendo as conseqtiéncias dessa realidade. Por outro lado, o rapido desen- volvimento tecnolégico, e a sofis- ticac&o a ele associada, introdu- ziu novas exigéncias na pratica da arte da guerra, obrigando a que a Estratégia, inerente as ope- ragées militares, passe a ser ba- seada em consideragées mais am- plas que permitam a anialise do conflito em todas as suas impli- cagées. Mais ainda, como conse- qiiéncia da indefinic¢io com que convivemos quanto ao significado da condigdo de paz e da condi¢éo de guerra, a prépria Nagio terd de possuir uma Estratégia ample, que indique, claramente, 0 que devera ser feito para a conquista e/ou manutengao de seus objeti- vos, quer em situacées de uma paz aparente, quer na condicio de conflito, Quer para promover 0 desenvolvimento em busca do bem-estar social, quer para pre- servar os valores representativos da sociedade, Liddell Hart nos propée a existéncia de uma “Grande Es- tratégia” (se admitirmos como correta a tradugiio de grand por grande) O propésito dessa Grande Es- tratégia seria a de coordenar e orientar todos os recursos de uma. 46 nagio — ou conjunto de nacdes — na diregéo do objetivo’ po-. lftico da guerra, a meta definida pela Politica em seu mais alto nivel. Considera Liddell Hart que, en- quanto o horizonte da Estratégia (implicitamente, da Estratégia Militar) é limitado pelas agdes militares, a Grande Estratégia vé além da guerra e, como conse- qiiéncia, tem que analisar o pe- riodo de paz subseqiiente. A Grande Estratégia deveria nao apenas combinar os varios instrumentos do Poder, mas re- gular, de tal forma, o seu em- prego, que evitasse prejudicar a paz futura — em beneficio da seguranca e da prosperidade da propria nacéo. Raymond Aron, em seu livro. Paz e Guerra, ao comentar os resultados da Segunda Guerra Mundial, considera que: “Nio 6 suficiente determinar © objetivo, o aliado, o inimigo, a fim de lucrar com a vitéria.” “Se o Estado, em seu exame de situagio, néo fixar clara- mente os seus propésifos e dis- cernir fanto o mau inimigo quanto o verdadeiro aliado, o triunfo das armas viré a se cons- tituir — apenas por acaso — em uma vitéria auténtica, isto 6 uma vitéria politica.” Beaufre, em seu livro A Intro- dugdo a Estratégia, oferece-nos 0 seu entendimento. Diz ele: “Nés nos defrontamos com uma, real pirdmide de formas de estratégias distintas ainda que interdependentes; e elas devem ser claramente definidas caso de- sejemos reuni-las no melhor con- junto de agdes coordenadas, to- das visando o mesmo objetivo global.” - “No topo da pirdmide, e sob o controle direto do Governo — isto é, da autoridade politica —, esta a estratégia total, cuja tarefa é de definir como a guerra total sera conduzida.” Beaufre comenta, logo em se- guiday “A expressio estratégia total, conforme’ aplicada 4 ‘guerra total’, parece-me mais clara do que a expresséo ‘Grande Estra- tégia’, algumas vezes usada pelos ingleses (particularmente Liddell Hart), ou ‘Estratégia Nacional? conforme preconizada pelos nor- te-americanos.” Parece-nos ser necessério iden- tificar o que para Beaufre é “guerra total’, Em suas conclu- s6es, no mesmo livro, diz ele: “Ao tentar definir o que é estratégia, decidiu comegar com a estratégia total, por que 6 ela que deve administrar o conflito, seja ele violento ou insidioso; seja conduzido no campo politico, no econémico, no diplomatico, no militar ou ainda em todos eles — porque, na realidade, ela é total.” Esta Escola vem dedicando es- pecial atenc&o ao assunto e, atra- vés da participagdo de seus esta- gidrios, atingiu aquele nivel de entendimento segundo o qual o conceito de Estratégia niio. po- deria estar relacionado apenas. as operagdes. militares ou, em sen- tido mais amplo, ao campo da Seguranga. Pelo contrario, 0 ra- ciocinio estratégico adquiriu no- vas abrangéncias, sendo de apli- cacao imprescindivel, também, as tarefas do Desenvolvimento. Para nés, ¢ Estratégia é a arte da imposigdo de uma vontade para & consecugéo de determina- dos propdsitos, Existe, assim, o sentido de Juta; ou esforgo continuado, para su- perar obstéculos com o emprego de meios do Poder Nacional, ge- rando, desta forma, a Estratégia Nacional, Sera a partir dessa Estratégia Nacional e de seus desdobramen- tos nos campos do Desenvolvi- mento e da Seguranga que iremos definir as estratégias governa- mentais. No caso especifico da ambiéncia de conflito neste final de sécula, deveremos considerar a Estratégia Nacional de Segu- ranca Externa, a Estratégia de Guerra e, finalmente, a Estraté- gia Militar. O tiltimo tépico de nossa Fi- cha Didatica menciona o Plane- jamento Estratégico, Existem, certamente, muifas definigdes para Planejamento Es- tratégico, Sugeriria que se trata de uma metodologia légica, com- preendendo varias etapas essen- ciais, as quais, em conjunto, pos- sibilitam um tratamento racio- nal do probiema considerado. As seis etapas basicas seriam: 1%—o0 estabelecimento da miss&o, ou do objetivo, ou, ainda, 47

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