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EDUARDO GRANJA COUTINHO foi meu aluno Pere reat ee et Coed StL Petre en cece eR PerrOe ent eur cn nt creme on ecu en ca © contra-hegemonia: processos culturais e comunicacio- ais de contestagio, pressao e resistencia, percebo que a een ee eee Coe Ceo nce) ere eee cern aOR Peete an a ccc Cn ones cn Re econ nr Ome cr cSt Peete rent oete once mcremnnuneiog Ore eC CMCC Lm eg BN 978-85:7108-3166 JN Pen G eT Ot CAC) VINOW393H-VaYLNOD 3 OVIVIINNWOD COMUNICACAO E CONTRA-HEGEMONIA Rad Sag POTD YOM he OTT) CLL MY PROCESSOS CONTRA-HEGEMONICOS NA IMPRENSA CARIOCA, 1889/1930 Eduardo Granja Coutinho O proletariado agita-se. Jornal do Brasil, 1° mar. 1917 (HERTS compris or historiadores da imprensa (pense-se, particularmente, em Nelson ‘Werneck Sodré) como um perfodo de transi¢io do jornalismo bra- artesanal je feigio industrial Observa-se, no entanto, um contraste entre 0 jornal que esté se cor- nando empresa capitalista e sua posicéo como servidor de um poder oligrquico com caracteristicas pré-capitalistas (ver Sodré, N. W., 1983, p. 276). Como tantas outras instituigdes modernas no Brasil, ‘empresa jornalisticainicia seu caminho sem ruptura com o passado. E esta serd, em nossa histéria republicana, sua marca de origem. 0 objetivo deste ensaio, contudo, ¢ demonstrar que, a des- peito do caréter conservador do jornalismo brasileiro durante a Re- publica Velha, havia, no interior da imprensa burguesa carioca, uma ciety ‘endéncia que, em sua critica as oli- garquias, a0 poder Turaf, ao voto de cabresto, 2 inexisténcia de ci- dadania no Pals, propugnava por um outro modelo de Republica, fazendo-se herdeita dos ideais de liberdade que efetivamente nio se realizaram na Reptiblica dos Coronéis. Apesar de st , linguagens e géneros pelos quis se manifestava (crOnicas, reportagens, caricaturas, textos humoristicos, crfticas literrias, n unificava na expresso de oo EDUARDO GRANIA COUTINNG Pretende-se analisar o significado desse jomalismo marginal na hist6ria da cultura brasileira ¢ delimitar sua extensio, sua forga e sua influéhcia intelectual e moral sobre 0 conjunto da sociedade. Trata-se de assunto pouco estudado. Apenas tangenciado pela histo- riografia da imprensa, o tema ganha alguma visibilidade nos ensaios dedicados obra de jornalistas deplacés como Lima Barreto, Vagalume, Raul Pederneiras, J. Carlos ¢ Orestes Barbosa. Nao se tem, no en- tanto, nesses ensaios, a perspectiva de conjunto de uma tendéncia jornaltstica altemativa. Até onde sabemos, a andlise sistematica dos processos contra-hegeménicos na imprensa carioca nas primeiras décadas do periodo republicano ainda nio foi realizada. © presente trabalho tem a pretensio de contribuir para esta andlise. “0 fumaréu de incenso turibulando 0 ato do governo” Um dos tragos mais enfatizados do perfil histérico das rela- ges entre cultura e politica nos anos que se situam entre a Pro- clamagio da Repiiblica ¢ a Revolugao de 1930 tem sido a caréncia de uma produgio intelectual, literdria e artistica identificada 20 universo popular, caréncia associada a um rigido modelo de exclusio social, Nas primeiras décadas do século XX, 0 povo no apenas permaneceu ausente das decisies politicas, mas também foi mar- ginalizado da produgio intelectual do Pais. Raros — porém no despreziveis ~ sio os escritores, artistas, jornalistas que, colocando- se contra a corrente i _| De um modo geral, 0s homens de letras veicularam em suas obras um contetido de idéias fundamentalmente elitista, Na raiz dessa produgao — ota intimisca, ora abertamente conservadora ~ est GD: SS ‘posta e reposta por condicionamentos obje- tivos de nossa formagio histérica e social, observa Carlos Nelson Coutinho (1990, p. 42-43). processos cowrma-nacemOnicos... Vivemos no Brasil a experiéncia de uma modemnidade con- traditéria, No campo das transformagées econdmicas € sociais, delineiam-se os tragos de um processo conceituado como “moder nizaco conservadora” (Plorestan Fernandes, Luiz Werneck Vianna, Barrington Moore Jr. etc.). As transformagées ocorridas em nossa histéria no resultaram de auténticas revolugoes, de movimentos provenientes de baixo para cima, mas se processaram sempre por meio de uma conciliaggo entre representantes dos grupos opositores economicamente dominantes. Entre as varias conseqiiéncias desse proceso de “transforma- ges pelo alto”, sem a participagio do conjunto da populacio, Carlos Nelson Coutinho destaca uma de particular relevaneia no plano da cultura Dado que 0 insteumento € 0 local de coneili- acio de classes foi sempre 0 Estado, verifico tum fortlecimento do que Gramsci chama de @@ arelhos burocriticos ¢ mil tares que exercem & dominacio por meio do Exe- cutivo) em detrimento da “sociedade civil” (0 con- junto de aparelhos ideolégicos pelos quais uma classe, ou bloco de classes, luta pela hegemonia ou pela capacidade de dirigir 0 conjunto da socieda- de). (Coutinho, C. N., 1990, p. 44) A cultura brasileira tornou-se, assim, em grande medida, uma cultura omnamental, dado que 0 Estado era tudo e praticamente no existia © medium proprio da vida cultural: a sociedade civil. A inexisténcia ou fragilidade dos “aparclhos privados de hegemoni (imprensa, sindicatos, partidos etc.), por meio dos quais os inte- lectuais pudessem articular-se organicamente com as massas, soma- das a outros fatores, como a cooptagio das camadas médias pelas lites e a repressio politica direta, implicaram o atrelamento dos incelectuais as classes dirigentes ¢ o seu distanciamento em relagio 0 universo popular. Esta debilidade da sociedade civil se revela com clareza no campo jornalistico egundo 0 memorialisca Luts Edmundo, no inicio do século XX, 0 jomnalismo nada mais € do que no qual os ideais defendidos sio, apenas, os de “uma grei que calculadamente 0 agambarcou € que .gbes ¢ dos interesses do Pais’. Uma grei o dirige & revelia das a constituida dle negociantes portugueses iletrados, todos comenda- ores, semideuses na América. [A maioria dos jormais, a bem dizer, € deles, os nababos da teira. Nada percebem de jornalismo, porém conhecem muito bem a fore que © mesmo representa para os seus interesseslidimos ou escusos. Deles sao as oficinas de impressio ¢ ainda os imé- vis onde as mesmas se instalam ¢ funcionam, as cats de fianga ou ourras gatantias para instala~ fo ¢ fancionamento das empresas, deles o crédito para a compra da tinta e do pape, finalmente deles 6 anunciozinho, embora muito mal pago, porém, representando a vida © a prosperidade da gueta. (Edmundo, 2003, p. 643-644) Em sua quase cotalidade, continua Luis Edmundo, a impren- sa da capital da Republica, “é um aparelho modelar de subserviéncia € ternura para homens da politicagem”. ‘Afora umas discussBezinhas ténues sobre cris ingénuas de partido, umas inocentes ou pélidas dis- ‘cussées sobre matéria de administragio, uns ata- {ques covardes € restrtamente pessoais a pobres Fun ionitios subaltemos, sem protecio ou responsi bilidade na vida administrativa do Pals, 0 que se sempre, por eses provectos Srgfos que se apre- sentam como genuinos representantes da opiniio nacional, & 0 fiumaréu de incenso turibulando o aro do governo. (Ibid. p. 645) Em suas crénicas jornalisticas, o poeta Olavo Bilac sublinha a relasio de dependéncia que se estabeleceu entre > GEER :2g5021 0 que seriam dos governos se todos os jomnais thes fechassem as colunas... ¢ as gavetas dos seus balcées! E imaginai também, e principalmente, 0 que seria dos jornais!” (Bilac, 1996, p. 174). O tema também é abordado por Lima Barreto em seu livro de estréia, Recordagées do escrivito Isaias Caminha, de 1909, espécie de romance a clé em que representa de forma efustica aspectos da vida da redagio de um grande jornal ntficado como 0 Correio da Manhé). Excegio entre 0s intelectuais de sua época, 0 autor no deixard de crticar, a0 longo de toda sua trajetéria literétia e jor- nalistica, a venalidade da imprensa e o seu comprometimento com as oligarquias e © Estado brasileiro ~ a “rede de malhas estreitas” Ja em 1922, na revista Careta, Lima Barreto satirizou a Lei de Imprensa, de autoria de Adolfo Gordo, sugerindo alguns adendos capazes de aperfeigoar a legislacio “torquemadesca” que regulava 0 dircito de escrever nos jornais: 1°) Todo artigo deve ser acompanhado com 0 retrato do autor; 2°) O autor do artigo deve declarar que sabe ler e escrever e tem os preparatérios de Portugués, Ariemética, Geografia e estudow para padre: [.] 49) Nos artigos nunca se deve aludir a prorro- gagbes de contratos e outras traquibérnias parla- mentares: 52) O sujeito que néo provar ter tido vultosas transagdes com companhias de estradas de ferro 70 EDUARDO GRANIA COUTINNS nfo pode esctever nos jornais, nem mesmo nos "a pedidos”. * Creio que assim estaré salva a moralidade da “im- prensa” © a seguranca do Estado. (Barreto, 2001, p. 870) ‘Sio significativas as aspas na palavra “imprensa”, como que a denunciar que Sobre a “oposigio jornalistica”, uma oposicio condicionada por interesses financeiros ~ verbas publicitrias, subsfdios, negé- cios ~ 0 erpnista escrevet, afirmando que a viruléncia dos ataques dessa oposigo pouco ou nada tinha a ver com convicgdes politicas Na mesma perspectiva, Nelson Werneck Sodré assinala que a preo- cupacio fundamental dos jornais na Repiiblica Velha no era a po- lisica, mas 0 fato politico. Nessa dimensio reduzida, as quest6es sio pessoais, giram em tomo de atos, pensamentos ou decisées de in- dividuos, os individuos que protagonizam o fato politico. “Nao se trata de condenar a orientagio, ou a decisio, ou os principios ~ a politica, em suma ~ desta ou daquela petsonalidade; trata-se de destruir a pessoa ou o individuo” (Sodré, N. W., 1983, p. 277). Voltada para interesses imediatos, pessoais ou empresarias, fa grande empresa jornalistica realiza aquilo que Muniz Sodré, baseando-se na distingio gramsciana entre grande e pequena po- Iitica, designou no a E. ' jornalismo, ditt ‘mos, que nfo consegue fazer a passagem do momento meramente econémico, ou egoistico-passional, para o momento ético-politico, transformando-se em meio de liberdade, em instrumento de luta pela hegemonia poltico-cultural, isto é por uma outra correlagio de forgas no interior da sociedade. ‘Aceseruturagio da empresa jomnalistica em moldes industriais refletiu, portanto, aquele processo de “moderato comer” da sociedade, oscilando entre a aspiragdes do moderno e a fortissima oa presenga Reece Entretanto, trata-se de observar que, a des- peito do conservadorismo dominance nas flhas da Primeira Rept bilica, da fragilidade dos aparelhos de hegemonia, a imprensa foi capaz de expressar, ainda que marginalmente, os anseios populares frustrados pela STEAD 0 projeto hegeménico da imprensa Sob diversos aspectos - econdmico, politico, cultural — a Repiiblica Velha pode ser compreendida como um perfodo de transigio. Periodo que sc inicia logo apés a Abolicio da Escravarura, quando a relagio das elites com as classes populares era fundamen- talmente coercitiva, € termina com a Revolugéo de 1930, quando o Estado burgués, necessitando ampliar sua base de consenso, conduz um projeto de hegemonia, ainda que limitado. Nessa nova cxapa do desenvolvimento das relagbes capitalists no Brasil, a velha politica de marginalizagio das classes trabalhadoras, sintetizada na frase rantas vezes citada “a questio social é uma questio de policia”, deveria ser substituida por um outro padrio de dominagio social {que implicasse a busca do consenso ativo do dominado (ver Fausto, 1991). De acordo com o lider do movimento que daria fim & Republica dos Coronéis, o melhor meio para garantit os dircitos sociais do proletariado era transformé-lo numa “forsa orginica de cooperagio com 0 Estado ¢ nfo 0 deixar, pelo abandono da lei, entregue A agio dissolvente de elementos perturbadores, destituidos de sentimento de Patria e Familia” (Carone, 1982, p. 143). Podemos nos perguntar: 0 que aconteceu, nesse {nterim, entre a coergio escravocrata ¢ a hegemonizagéo das massas pés- 1930? Com a efetiva urbanizago ¢ industrializagéo da capital, verificou-se um relative fortalecimento da sociedade civil e uma timida, ainda que significativa, modificagfo nos padrdes de relacio- namento das elites com o povo. A velha estratégia de repressio fisica as manifestagbes politicas e culturais do “populacho” foi cedendo 72 lugar a um projeco que tinha como objetivo integré-las & visio de mundo oficial, rinterpretando suas priticas e signos e descartando toda a tendéncia rebelde, explosiva, incontrolével. Do ponto de vista politico-ideolégico, esse momento de transigao pode ser compreendido como um perfodo de gestagio do projeco hegemdnico burgués. Nossa hipétese envolve a consideragio de gus, desde as primeiras décadas do século XX, antes mesmo das leis trabalhistas de Vargas, setores das elites representados na imprensa contemplavam e incorporavam anseios e reivindicagées das massas, nhecentdo a classe trabalhadora como sujeito politico e cultural. E nesse contexto que surgem nas folhas cariocas segbes que de alguma forma davam vox a classe trabalhadora, seges como *Queixas dé povo”, “O operatiado”, “Subsirbios” (Jornal do Brasil), “Correio operirio” (Correio da Manha), “Operariado” (A Rua), “Queixas ¢ reclamagies” (O Pais, “Aye , Noticia), Havia nessa atitude da imprensa, além de uma intenciona- lidade politica, uma clara motivagio mercadol6gica. Influenciados por jornais norte-americanos que, desde as tiltimas décadas do sécu- lo XIX, expandiam-se, conciliando sensacionalismo e defesa de in- teresses das classes trabalhadoras ~ jornais como 0 The World, de Pulitzer ~, periédicos brasileiros como o Jornal do Brasil empenha- tam-se na construgio de uma imagem de jornal popular e politi- camente independente, Vendendo tal imagem, os jornais estabe- leciam uma espécie det |” (Eliseo Vern) com “os pobres trabalhadores”, abordando temas de seus inceresse e colo- cando-se muitas vezes a0 seu lado contra o abuso e as arbitrarieda- des da policia, do governo e dos patrbes. (Lembre-se que, naquela Epoca, 0 orgamento da empresa jornalistica dependia em grande parte da reccita proveniente da venda avulsa do jornal, mais do que da publicidade.) Pnocessos conrRA-MeaemOnicos... 73 Tronicamente chamado pelos concorrences de “o popular simo”, 0 Jomnal do Brasil se apresentava como defensor dos pequenos ¢ des eprimidos, sendo reconhecido inclusive por liderangas ope- tfrias como‘a folha que gozava de melhor conceito” (O Brasil Operirio, 16 jun. 1903 apud Silva, E., 1988, p. 51). Esse espirito de paladino das eausas da raia mitida foi expresso com feicidade por Bambino numa charge de 1900, na qual “um tipo popular ten- ta registrar queixa junto a0 delegado de polici, que o manda quei- xat-se.. a0 Jornal do Brasl”.' Nos anos seguinte, essa imagem de “61gio dos interesses do povo” 36 faria consolidar-se Segundo Eduardo Silva, acoluna “QUGUORORBD, dedicada 20 registro dos problemas do homem comum, fo, durante décadas, uum dos carros-chefes da folha. Publicando gratuitamente as recla- mages do “zé-povinho”, inclusive dos analfabetos, que podiam ucixar-se pessoalmente na redagio, jornal se colocava na posigéo de mediador entre operitios, patrées ¢ Estado. Posiclo privlegiada, como veremos adiante, para enquadrat 0 proletariado nas regras de convivio da moderna sociedade burguesa. Por ora, observemos inegivel empatia do jornal com os trabalhadores: © st. Gemuino Veiga, operitio gasista da Es- trada de Ferro Central do Brasil, ignorando que 08 funcionérios dessa ferrovia nfo podiam mais transitar pelas linhas, passava ontem préximo a pla: taforma dos trens de subiirbios, quando um solda- do de policia ali de servigo agarrou-o ¢ levou-o a0s socos para a agéncia respectiva. Como em caminho 0 operivio Veiga prorestase, © soldido puxou o seu sabre e pretendia acutilé-o; © operirio segurou a arma, ferindo-se em um dos ddedos da mio direita, vibrando-the ainda o soldado violento um forte soco no ouvido esquerdo. Apresentado Veiga 20 agente, este o suspendeu logo do servico e disse-the que ele estava demitido. 74 EDUARDO GRANIA COUTINNG Depois de medicado no Posto Central de Assis- téncia, o st. Veiga veio trazer a presente queixa 20 Jornal do Brasil, a qual regitramos para o st. dire- tor ler. (Jornal do Brasil, 4 maio 1919, p. 8) Desde 0 inicio do século, como ficou dito, percebe-se nos joni orcs in 5 TT GEER) fica parcicularmente nitido durante 0 cielo de greves nos anos 1917-1920, quando o movimento operirio ganha 2 primeira pigina dos jotnais. Enquanco alguns stores das elites continuavam propugnando pela coergio aos movimentos sociais, outros, liberais, propunham claramente a hegemonizagio das ca- madas populares. Era preciso mudar para salvar 0 satus gua, sentin a intelligehisia, menos cega pelos interesses fechados de classe. Essa intelligentsia ~ que comegava a se tornar orginica, nos termos de Gramsci ~ conhecia a situagéo explosiva em que vivia a classe trabalhadora e sabia da necessidade de transformar suas con- digdes de trabalho € vida, Por isso, contra os interesses imediatos do patronato, no hesitou em reconhecer as razdes do movimento grevista, divulgando notas, convocagées para assembléias e argumen- tando em favor de reivindicagées especificas dos trabalhadores ~ jornada de trabalho de oito horas, descanso dominical, saitio-mini- mo, aumento salarial etc. Assim, em 1918, entre noticias da Revolu- ‘io Russa, da insurreigio popular na Alemanha, das greves em Sio Paulo e no Rio de Janeiro, e da gripe espanhola, que vinha agravar a situagio das camadas populares, o Jornal do Brasil, “érgio dos inceresses do povo”, ponderava: [J « doloross realidade em que se encontta a maioria da populagio nacional [...] devia aconse- Ihara todos os nossos homens piblicos © aos politicos de todos os matizes uma conduta de ‘moderagéo, asseguradora da ordem de que carece fo Pals para atravessar esta hora ertica sem faltar as suas obrigagbes © sem oferecer 0 deprimente PROCESSOS CONTRA-NEGEMONI COR... 78 espetdculo da anarquia, Uornal do Brasil, 10. mar. 1917 apud Bandeira, 2004, p. 72) Com essa disposigio, o matutino era mesmo capaz de pu- blicar manifestos de organizages de classe clamando pela greve geral, sem deixar, no entanto, de ressaltar que o movimento dos operiios, “associando-se & greve geral, nfo obedece a fins politicos ou subversivos da ordem piiblica” (Jornal do Brasi, 20 nov. 1918, On ‘A simpatia do jomal pelos proletétios cinha limites claros. Quando, mais do que assistencialismo ou novas leis erabalhistas, os operiios reclamavam um outro sistema politico ¢ econémico, 0 “popularissimo” sala em defesa da ordem, da patria, da incistria nacional ¢ da repressdo aos “bandoleiros da politica republicana”. ‘Assim, ao mesmo tempo em que critica com veeméncia a “violéncia desnecessiria” contra um trabalhador, nr ara Er on (ula policia se mantém vigilance, sendo o firme propésito do st. de. Aurelino Real, de acordo com as deliberagbes tomadas pelo governo, no permi- tir a menor tentativa de perturbagéo da ordem publica, tentariva que s6 pode partir dos elementos nocivos que exploram 0 operariado, arrastand-o aos excessos que todos lamentamos © que nio se devem de forma alguma reproduzic. ‘A agio da policia vai agora se fazer sentir enérgica e inflexivel contra esses elementos, per- seguindo-os ¢ castigando-os de forma a obstar de uma vez por todas a sua maléfica inromissio no seio da familia operiria, concorrendo tio-somente para prejudics-la e arrastéla a ruina. (Jornal do Brasil, 22 nov. 1918, p. 5) A critica do jornal nao se dirige, portanto, ao proletariado, chamar “a atengio dos nossos humildes homens de trabalho contra 60s promototes de desordens, contra os agitadores impelidos por um ideal desumano € que sempre quiseram fazer dos trabalhadores instrumentos de seu bérbaro ¢ abomindvel sectarismo” (Jornal do Brasil, 23 nov. 1918, p. 4). Apelando para o SHRUB 1 desenvolye amplamente nesse periodo, a imprensa reutilia um velho © desgastado cliché das primeiras greves operirias no Brasil, © de que tais agitadores cram quase todos estrangeiros. + A polka, devido aos slkimos movimentos que alarmaram 2 cidade, colheu nas suas malhas quase cem anarquisas, insstentesesimuladores dos dess- gmadiveis movimentos por parte do nosso opers- riado. "nate todos esses homens, a mantenedora. da ordem piblica apenas encontrou um brasileiro, 0 que basta para deixar fora de divida que o anar- quismo no encontra tereno propkio no espfrco dos tabalhadores nacionais ‘A minoria brasileira nas linhas anarquisas é de tel some eloglente que bem se pode afirmar haver no esplrito dos nossos trabalhadores completa aversio pela seta de desordem e destrigio que a virios paises cem custado 0s mais dolorosos dissabores. Jornal do Brasil, 28 nov. 1918, p. 5) Segundo Moniz Bandeira, a conta da policia ¢ do Jornal do Brasil estava errada, visto que, “entre os presos apontados como cabecas do movimento encontravam-se José Oiticica, Astrojildo Pereira, Joao da Costa Pimenta e Agripino Nazaré ~ todos brasi- leiros” (Bandeira, 2004, p. 187). pnocessos CONTRA-HEGEMONI COS... 7 Contemplando desejos de mudangas do proletariado e con- denando o clemento revoluciondrio, havia, naquele momento de complexificagio da brasileira, = que consistia, em iltima andlise, na ie spo litizagao e ressignificagao da fala proletéria. Tratava-se de moldar as “queixas do povo”, aparar-Ihes as arestas e imprimirlhes um ccariter reformista, trabalhista ¢ liberal. A essa tarefa se prestou a imprensa periédica burguesa, abrindo, neste mesmo processo, es- pago para discursos efetivamente contra-hegeménicos. Eo que vveremos a seguir. Vores dissonantes n nse burguese A construgio da hegemonia burguesa ao longo da Repiiblica Velha teve como contrapartida o desenvolvimento de processos contra-hegeménicos. Pois se as modemas relagbes de dominagio, baseadas no consenso, envolviam, como forma de controle, a assi- milagio do popular a0 nacional, isto é 0 reconhecimento das camadas subalternas como sujeito politico ¢ cultural, isso abria brechas para a contestagéo popular 4 dominacio a partir de dentro do propio rena sinks doin c Parafraseando Marx, pode-se dizer que toda hegemonia traz em si o germe da contra-hegemonia. Hi, na verdade, uma unidade dialética entre ambas, uma se definindo pela outra. Isto porque a hegemonia nko & algo estético, uma ideologia pronta e acabada, Im processo de luta pela cultura, “Deve ser continuamente renovada, recriada, defendida e modificada e é continuamente, resistida, limitada, alterada, desa- fiada por pressbes que nio sio suas", observa Raymond Williams (apud Chaui, 1986, p. 22) Quando, sob a influéncia dos sovietes, ganhava forga no mei proletirio brasileiro uma visio de mundo anticapitalista, a cultura dominante precisou ser reorganizada, de maneira a incorporar € deformar as vozes descontentes, esvaziando-as de seu contetido revoluciondrio. Esse processo garantiu as presses populares certa legitimidade e um expago, ainda que restrivo ¢ marginal, para a sua manifestagio mais radical E assim que encontramos na imprensa burguesa textos no apenas anoligirquicos, nacionalistas, reformistas ou jacobinos, mas também anarquistas, socialistas e maximalistas ~ enfim, revolucio- nirios. A rigor, verifca-se na grande imprensa, desde os primérdios da Repablica, lateralmence ou de viés, a presenca de textos contra~ hegeménicos de diferentes macizes. A despeito da repressio e da cooptagio dos homens de letras pelos grupos arrivistas da sociedade ¢ da politica, uma categoria marginal de intelectuals continuaria lutando pela democratizagio e pelos ideais republicanos “auténti- cos” de Quintino Bocaiiva e Lopes Trovio. Como observa Danie! Pécaut: Enquanto alguns autores aceitaram adaprar sua pena a0 gosto dos novos-icas do Rio de Janeiro fe as solicitagées dos proprietirios de jornais © editoras beneficiados pela expansio do piblico, outros reagiram, “passando a uma condigio de categoria social isolada”, (Pécaut, 1990, p- 23) ‘Atuando nos intersticios do discurso autoritério da imprensa burguesa, um grupo hererogéneo de intelectuis igados ao universo popular fez de sua atividade intelectual um instrumento de aio publica e de mudanga histérica. Seu projeto de nagio, marcado por ido sentido democritico, reflesiu um engajamento em favor um dos oprimidos ¢ marginalizados. ‘Assim, a0 lado do enluvado ¢ encasacado artigo de fundo, no qual o diretor do jornal sustenta idéias motivadas por interesses privados; da colaboracio literéria intimista, ornamental ¢ vazia; do noticitio, em que, como observa Olavo Bilac, impera o repérter, cuja principal obtigagio é manter sempre acordada ¢ excitada, com escindalo ou sem ele, acuriosidade do paiblico; e do vasto dominio do antincio ~ onde, segundo 0 pocta, “o dinheiro é rei” (Bilac, 1996, p. 172) —, criam-se QED no dizer de Muniz Sodré, por ‘onde afloram narrativas identificadas a interesses minoritérios. ; TTD io piracas no “iberlismo auténtico”, no anarquismo, num vago socialismo ou em alguma ou- tra ideologia das que cixculavam entre a classe trabalhadora. Umas, assimibiveis pelo projeto hegem@nico nascente; outras, absolutamen- te avessas & ordem burguesa, preconizando a luca direta, a atividade politica fora da ordem estabelecida, como no manifesto anarquista intitulado “A Revanche”, publicado no Jornal do Brasil em marco de 1918. Caso tenham 0s seus salirios diminuidos, a sa- boragem é uma arma poderosa que poe nas mios dos erabalhadores a certeza de sua vitéria na luca estabelecida contra o capiral. A sabotagem empre- ga-se da seguinte forma: lenta ¢ metodicamente vai desmoronando 0 castelo de privilégios patronais; hoje, quebram-se dois pracos, amanha cinco copos « depois despeja-se no fogio uma lata de banka ou uuma certa porgio de carne, queima-se canvdo dema- siado, enfim, rudo que seja para prejudicar 0 “cora- gio", isco 6 0 inceresse do patrio recalicrance (oral do Brasil, 16 mar. 1918) se, por exemplo, na atividade de Pausilipo da Fonseca, redator politico do Correio da Manha e diretor do semanitio anarquista Nove Rumo (1905). De alguma forma, € na medida do possfvel, 79 20 cesses jomalistas se valiam de seus espagos nas folhas comerciais para a divulgagao de idéias libertérias. Em Sao Paulo, na mesma época, 10 poeta Ricardo Gongalves escrevia no Comércio de So Paulo pe- quenas notas de contetido anarquista, em geral nas colunas de canto: era a segio do “Corvo”, que em tom jocoso trazia para o leitor da imprensa convencional opiniGes € contrastes que the cram inteira- mente inéditos (ver Prado, 1986). TTA 5 to volvimentoydas relagées capitalistas no Brasil ¢ a ascensio do movi- mento operitio yegemonizada ‘ou nfo — nos jornais cariocas, Nesse momento, paralelamente & sua atividade na imprensa operiria, militantes como José Oiticica, Astrojildo Pereira, Roberto Feij6, Domingos Ribeiro Filho, Lednidas Resende, Mauricio de Lacerda, Fibio Luz, Evaristo de Moracs Agripino Nazaré QS on pReneSuRRUERDO professor Oiticica, por exemplo, principal lider da greve insurrecional de 1918, publicava artigos inflamados no Jornal do Brasil ¢ no Correio da Manha. Havia também aqueles que, mais do que even- tuais colaboradores, tinham colunas difrias nos grandes jornais, como o portugués José Marques da Costa, que militava no jornal A Patria, de Joao do Rio. Houve, inclusive, importantes intelectuais ligados a0 movi- mento operirio que foram ditetores de periédicos comerciais. Domingos Ribeiro Filho,‘ por exemplo, um dos Iideres da greve de 1918, foi redaor-chefe da revista ilustrada Careta, que, a des- peito de sua superficialidade, martelava as mazelas do governo com as hiicidas e ferinas crénicas de Lima Barreto e as extraordindrias caricaturas de J, Carlos, ¢ cujo cardter contra-hegeménico € subli- nihado pelo autor de Jsalas Caminha: A troga é a maior arma de que nés podemos: dispor ¢ sempre que a pudermos empregar, € bom) e util PROCESSOS CONTRA-NEGEMOnICos Nada de violéncias nem barbatidades. Troga ¢ simplemente twoga, para que tudo caia pelo rid © ridfculo mata e mata sem sangue, Eo que aconselho a todos os revoluciondtios de todo 0 jacz J. Carlos, com uma caricatura no O formal, fez mais do que todo © qualquer revolucionétio. (Ce- rea, 29 set. 1929) ‘Além de darem seu concurso na imprensa sindical e colabo- rarem de diferentes maneiras na grande imprensa burguesa — in- clusive como grificos, recusando-se, em alguns momentos, a com- por_matérias caluniosas contra © proletatiado* Scitados Lima Barreto e Domingos Ribeiro Filho, juntamente com Noronha Santos ¢ os escritores Fabio Luz ¢ Curvelo de Mendonga® fundaram, em 1907, a revista literéria Floreal, “um tentame de escapar as injungdes dos mandarinatos licerarios”. Considerada por Werneck Sodré a tinica tentativa séria neste terreno, Floreal teve apenas quatro edigdes. Em 1912, Mauricio de Lacerda, um dos raros deputados de esquerda do periodo, ¢ Lednidas Resende, um dos primeiros marxistas no Brasil, fundaram o vespertino A Nagao. Em sua primeira fase, @ jornal nacionalisca ecoava a vor dissonante de Lacerda no Con- Bresso. Mais tarde, num segundo momento (1926-1927), dirigido pelo professor Lednidas, o jornal, de rendéncia comunista, teve inporance papel na organizagio dos quadros sindicais, orientando, inclusive, a campanha loco, srério e Camponés nas eleigé pie = cm do Bloco Operitio e Camponés nas eleigoes O Debate ~ outro peribdico de esquerda de vida curta — comegou a circular em 1917, dirigido por Astrojildo Pereira e com a colaboragao de Lima Barreto, Fébio Luz, Théo Filho, Mauricio de Lacerda, Agripino Nazaré, Teodoro Magalhies, José Saturnino de Brito, Adolfo Porto ¢ outros. Em seu primeiro nimero, decla- tava: “E necessério fazer reboar sobre o charco e em meio da calmaria pode 0 grito das consciéncias insatsfeitas’ (O Debate, 12 jul 1917). Dos jornais que eram lidos pela pequena burguesia, talvex tenha sido este 0 que de forma mais orginica expressou 0 idedrio das camadas subalternas naquela quadra hist6riea, Alguns de seus colaboradores estiveram no grupo de intelectuais que, em 1921, fundaram a versio brasileira da revista politica Clarté, criada na Franga, ent 1919, pelo escritor Henri Barbusse e difundida em vi rios paises, com 0 objetivo de formar uma rede internacional do pensamento de esquerda,” A revista foi liquidada com o estado de sitio em 1922. Entre os pequenos ¢ efémeros jornais alternativos, lidos por oucos, e a grande imprensa, em que, como diria Lima Barreto, Je “atirar fora 0 que fe tem de melhor na cachola”,cransitavam os jornalistas de esquerda nna contracorrente, © proprio Lima, além de colaborar na impren- sa burguesa, militou intensamente em jornais ¢ revista revolucion Tios ou ligados a associagbes de classe — A Lanterna, © Cosmopolita, © Parafisn, A Patuléia, A Luta ~ © em pequenos periédicos libe~ rais — como a Revista Contemporines, a ABC, 0 jornal Bris Cubas — pelos quaistnha grande simpatia. A Ieitura dessesperiédicos “obscu~ tos”, diz um de seus personagens, é 0 meio encontrado para “travar conhecimento com a jovem inteligéncia de minha terra” (Barreto, 2001, p. 591). Causava admiragio, dizia ele, que “em to detrarado subtirbio, se agitasscm tantas idéias diferentes ¢ novas. [. 1] A vista dos nossos grandes jomnaise revistas catitas, a Pesquisa, de Cascadura, 6 uma bela publicagio intelectual” (bid.). E por uma dessas pe- quenas revistas - a ABC — que Lima publica, em maio de 1918, lum artigo intitulado “No ajuste de conras..”, tido por muitos como tum manifesto maximalista. Tais periddicos liberais, embora dessem voz aos maximalistas « libertitios, expressavam tendencialmente a visio de mundo do- PROCESSOS CONTRA-HEGEMONICOS... minance, E assim que, na mesma revista ABC, podia-se ler uma dura critica aos bolcheviques em 1917, acusando-os de se unirem aos soldados alemies para “tripudiar sobre o cadaver da mie patria” (apud Bandcira, 2004, p. 132). Também o jornal A Razdo, sim- por quererem “suprimir o dieito de propriedade”. Comentando a ‘macéria, Astrojildo Pereira aponta aquilo que pode ser considerado @ limite da imprensa liberal ¢ do projewo de hegemonia burgués: ‘Ecco!... O que 08 capitalistas proprietarios de A Rezo no podem admitir a supressio do sagrado direito de propriedade.... Natu- ralmente!” (apud Bandeira, 2004, p. 422). . I) movimento de Outubro de 1917 na Réssia foi condenado pela totalidade da imprensa burguesa, 0 que nio impediu a publicaga tu de ces em dee os tlcerigae Vopan porcce plo, as cartas que Astrojildo Pereira, sob 0 pscudénimo de Alex Pavel, ditigiu a diferentes jornais, procurando dlesfazer 0 emaranha- do de fabulagses diftundidas pelas agéncias de noticias internacio- nais (Havase United Pres) e ecoadas nos jornais do mundo inteio. A despeito de seu conservadorismo, © Jornal do Brasil publicou as do jovem lider proletirio. Pouco depois, em dezembro de 18, tais cartas seriam reunidas num folheto intitulado A Revo- lugio Rusa ¢ a imprensa Jamais, jamais sé viu na imprensa do Rio so comovedora unanimidade de vistas e de palavras como nest instante, 4 rexpico da Revolugio Russa, Infelzmente, so comovente quanto deplorivel, esa uunanimidade toda afinada pelas mesmissimas cor- das da ignorancia, da entra e da calinia, Saudada quando rebentou e dew por terra com 0 cz dominante, 2 Revolugio Russa é hoje objeco das maldig6es da nossa imprensa, que nela s6 vé funtas- ‘mas de espionagem alema, bicho perigaso de nto sei quantos milhées de cabegas ¢ de garras. (Astrojildo Pereira apud Bandeira, 2004, p. 405) Meso CaaS Sodré, “levantou sempre o protesto das camadas populares” (Sodré, N. W., 1983, p. 287), embora tenha sido tomado por Lima Barreto, em seu primeiro romance, como emblemético do que eram todos os grandes jomais: “érgios de fagoes da burguesta rica, da industria, do comércio, da politica ou da administragio” (Barreto, 2001, p. 473) = mesmo o Correio da Manha, que defendera Joao Candido em 1910, durante a Revolta da Chibata, reg roduzia os See a iene ni ee ee: traidor disfargado em socialista, fomentador fediesordem (Correio da Manha, 5 set. 1917). Apesar disso, 0 Cor- reio também era capaz de dar voa aos defensores da revolusio bol- chevique. Discursos radicais, nitidamente marxistas ou leninistas ~ ‘e nfo apenas liberais radicais -, tinham lugar nessa folha oposicio- nista. Veja-se, por exemplo, este artigo de um certo J. Ibiapina: jornal que, segundo Werneck Vai se rornando costume invererado entre nés 6 dizer mal do bolcheviquismo, das idéias que 0 ingpiram, dos homens que 0 encarnam, Na im- prensa didria, nos discursos dos politicos, nas plataformas dos chefes de governo, passou a scr moda apontar 0 movimento politico que se opera na Rifssia como um extravasamento das. paixBes subalternas da escéria social, uma onda de lama {que ameaca submergir as mais belas conquistas da civilizagio. [...] seria preferivel adotéssemos um critério de mais tolerincia nos conceitos que emi- tissemos sobre acontecimentos desenrolados longe de nds ¢ que, em regra, chegam a0 nosso conhe- cimento através de fontes suspeitssimas, alimen- tadas pelos polvos do capitalismo ¢ seus servidores, que tomaram a si 2 tarefa de empalhadores das ins- ‘ituigées hodiernas, & sombra das quais se vio eter- nizando as injustigas e exploragées feitas & grande ee ovo, até agora privada dos mais elemen- tares direitos ¢ das mais rudimentares exigncias do conforto. (...] wee Moral ou intelectualmente, serio os grandes ca- Pitalistas ¢ seus servidores, que constituem a “aristo- ial moderna fundada apenas na rique- 2a, sem talentos nem virtudes”, porvencura superio- res a homens como Lenin, Trotski, Lunatcharski, € muitos outros, cujas vidas so uma sétie inincer- rupta de sacrificios em prol da regenerasio huma- na? (Correio de Manha, 12 nov. 1923, p. 2) Ja nfo se trata de um discurso que tem como objetivo incor- porar a fala proletitia e esvazidla de sua radicalidade, de se buscar © consenso ativo do dominado. Por esta brecha aflorou uma visio de mundo dificilmente assimilivel pela ideologia dominante. As contradigées sociais estéo expostas. Aqui, 0 povo néo é representado nem como “classe perigosa”, nem como “pobtes trabalhadores”, mas ea Ibiapina — seja es o sau nome verdad ou um psudénimo ~ no esta em car, sem artificios, © préprio “fundador da filosofia da prixis’: Porque no melhoram, com as facilidades da produsio, as condigSes materiais do. proletariado? ‘A razio esté nas seguintes palavras de Karl Mars: “Se, por um lado, a manufieura se apresenta historicamente como uma fase necessiria no desen- volvimento econdmico da sociedade, por outro la- do, € um refinado método de exploragio.” (Correia da Manbd, 12 nov. 1923, p. 2) Embora conservadores, os jornais liberais eram tecidos de vores diferentes ¢ contraditérias. Veja-se, ainda como exemplo, 0 caso do vespertino A Rua, um dirio de porte médio capaz de defender a extradigéo dos operirios anarquistas estrangeiros, con- denar os “pitatas bolchevistas” ¢, a0 mesmo tempo, expressar a consciéncia de classe do proletariado, Quando, sob o influxo do nascimento da Terceira Internacional (1919), os operitios cariocas se voltaram para um novo programa de lutas ~ 0 comunismo — ‘A Ruaabriu-lhes um espago para adivulgagao de seus novos métodos revolucionérios. Note-se, nesta entrevista, a simpatia do repérter pela causa,do entrevistado: © proletarindo nacional vai, parece certo, arregimentar-se ¢ entrar em lura para a obtengio dos direitos que hi muito reclama. Uma feigio completamente nova desenha-se nos mérodos de agio até agora adorados pelos trabalhadores do Brasil e a noticia que agora surge € promissora. no campo da politica nacional [...)- * Assim, foi que nos flow um lider operirio: = Vamos fazer 0 que ji deverfamos ver feito hi muitos anos. Somos nada mais do que eternos escravos das situagBes dominantes, A nés € negado todo c qualquer direico que a Constituigio asse- gura. Se nos organizamos, estamos fora da leis se prorestamos contra exploragdes do capitalismo, somos criminosos; se erguemos a voz contta leis absurdas que nos vem achincalh criminosos ¢ quando, levados pela fore, reclama- consideram-nos ‘mos, a nossa miséria é um acinte para 0 poder. ‘Mandam-nos para o estrangeiro ou para os sertOes inéspitos do Norte. E tempo de acabar com esse estado de coisas [...} = Mas nos parece que dada a otientagio que se quer seguir agora, haveri dissdéncia entre o ele- mento excremista eo moderado... {Diz 0 entrevis tador, referindo-se a0 anarquismo.] paocessos CONTRA-HEGEMONICOS 87 —Néo, nio hi tal. Continuamos juntos: separa- ‘mo-nos apenas por método de agio, para chegar- mos juntos as mesmas finalidades [...]. Os extte- mistas continuario dentro do seu programa ¢ nés ‘0s ampararemos porque 0 que eles aspiram & 0 que rnés aspiramos dentro da revolugio. (A Rua, 16 ou 1920, p. 4) ‘A presenga de textos como este na imprensa burguesa difi- cilmente seri compreendida se nao considerarmos 0 @i5 ‘ascensio —_ ph saa trazendo a primeiro plano sua vanguarda, a pequena burguesia urbana, que assumia fungio po- Itica eminente” (Sodré, N. W., 1983, p. 356); 0 “contrato de leitura” estabelecido entre a empresa jornalistica e seus leitores, que influiam ¢ eram influenciados pelos periddicos; a insatisfagio de alguns donos e dirctores de jornais com os governos oligirquicoss a presenga nas redagdes de uma intelectualidade de baixa extragio social, um segundo escalio de jornalistas sem titulos, status e di- plomas que, nio pertencendo & elite intelectual e econémica da sociedade, encontrava-se, pela sua prépria condigao de classe, ligado a vida das camadas populares. Mais ou menos radicais, tais intelectuais deplacés, para uti- lizar a expressio de Maria Alice Rezende de Carvalho, defendiam a criago de instituiges democréticas, contra 0 poder das oligar- guias ¢ as chocantes desigualdades sociais. Nem todos eles eram aia aol eee Panam sociedade, Eram repérteres, caricaturistas, humoristas, cri ‘008 literirios, redatores, cronistas da vida social que pretend m cottigir habitos ¢ costumes, em nome do interesse ptiblico ¢ da cidadania. Podemos nos indagar sobre o saldo dessa militincia na imprensa carioca; sobre 0 resultado dessa luta, em situagio tao adversa, contra potentes e amplificadas vozes do capital. Daquelas falas contra-hegeménicas, algumas foram assimiladas, cooptadas pelo projeto egeménico burgués. Outras foram reprimidas, aba- fadas, manginalizadas, Basta pensar na trajet6rin de Lima Barreto, nas sucessivas prises de Orestes Barbosa, nos jornalistas ameacados, espancadlos, Petiédicos alternatives foram empastelados e sufocados Diz-se que seu alvo principal era 2 SESSLER ia. mancida pelos ttabalhadores. Mas, certamente, ela atinge também , momareammreccaccnt Tanto que, quando a lei fol aprovacha no Senado, 0 Corre da Manha estampou a manchete “Lei infame, lei celerada” Mesmo reprimidas e marginalizadas, a minoritérias contribuiram, de alguma forma, para AAANESLRTTARD yomcno em que vive 0 esbogo daquilo que vai se vomar 0 Brasil moderno, essas le variados matizes, expressando os anseios populares de transformacio social, influenciaram, certamente, as feigdes do Estado que, depois da Revolucio de 1930, foi chamado de Reptiblica Nova. E, de certo modo, elas permanecem vivas nos textos criticos ¢ alternativos que até hoje afloram marginalmente nas folhas da imprensa burguesa. Notas + Ver Jornal do Brasil, 20 mar. 1900. In: Lopes, A. H. Do monarguismo 420 “populismo”: 0 Jornal do Brasil na virada para o século XX. Disponivel em: hep://nuevomundo.revues.org/sommaire 230 hem 2 Sobre © ciclo de greves € os reflexos da Revolugio Russa no movi- ‘mento operirio brasileiro, ver, por exemplo, Bandeira, 2004. pnoctssos CONTRA-MEGEMOMICOR... 39 No Brasil, como na Ieilia, os maximalistas ~ também identificados como bolcheviques, posto que simpatizantes da Revolugio de Ouru- bro ~ eram aqueles que apregoavam um programa revolucionsrio radical (mdxima) em oposigio aos reformistas. J4 em 1903, Domingos Ribeiro Filho havia ditigido © semanitio ‘A Avenida (1903-1905). Espirico em fulguragio permanente”, como a dle se tefetiu Astrojildo Pereira, o jornalista ¢ escritor foi grande amigo de Lima Barreto e seu colega na diretoria da Secretaria da Guerra, Lembre-se que as principais liderangas do movimento anarquista brasileiro trabalharam como gréficos. E 0 caso de Edgard Leuenroth © Joio da Costa Pimenta. Estes escritores anarquistas esto no grupo dos intelectuais que levaram a termo, em 1904, a criagio da efémera Universidade Popular de Ensino Livre, idealizada por Elisio de Carvalho. No Rio de Janeiro, 0 grupo Clarté reunia Nicanor do Nascimento, Evaristo de Moraes, Mauricio de Lacerda, Luis Palmeira, Agripino Nazaré, Antdnio Correia, Alcides Rosas, Pontes de Miranda, A. Cavalcante, Teresa Escobar, Vicente Perrota, Francisco Alexandre, Bverardo Dias, Leénidas Resende, Luis Frederico Carpenter, Joaquim Pimenta ¢ cerca de srinta liderangas sindicais IDEOLOGIA, HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA Rodrigo Dantas 1 Falar em hegemonia ¢ contra-hegemonia é pensar no anta- ggonismo entre as classes sociais que, a partir de sua posigio domi- nnante ou subalterna no interior da sociedade e do Estado de classes, exercem, softem e dispucam permanentemente 0 poder. Em codas as épocas da histéria da sociedade e do Estado de classes, a Iuta pela hegemonia, como luta de classes, se desenvolveu como luta em tomo da apropriagéo dos meios de produgéo de vida, da riqueza socialmente produzida e do poder politico do Estado. Abstrair esse fato equivale, na prética, a negar a existéncia histérica das classes sociais ¢ da prépria luta de classes — 0 que j4 é por si s6 0 mais claro indicio de como interesses ¢ posigées de classe podem coagir, ideologicamente, as formas da consciéncia, 0 universo da linguagem € da interlocugio ¢ a prépria produgio e circulagio social do co- nhecimento no interior da sociedade ¢ do Estado de classes 2 AAs relagbes sociais de produgio, propriedade e poder que fazem de uma classe a classe dominante e determinam as condigdes da produgio ¢ da reprodusio social da vida ao longo de toda uma Epoca histérica determinam, na mesma medida, as condigoes materiais e imateriais da produgio e da circulagao de idéias. Nao se trata aqui de qualquer postulado metafisico: a histéria demonstra

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