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LINGUÍSTICA

APLICADA AO ENSINO
DO PORTUGUÊS

Juliana Battisti
Bibiana Cardoso
da Silva
B336l Battisti, Juliana.
Linguística aplicada ao ensino do português / Juliana
Battisti, Bibiana Cardoso da Silva. – Porto Alegre : SAGAH,
2017.
157 p. : il. ; 22,5 cm.

ISBN 978-85-9502-062-7

1. Linguística aplicada. I. Silva, Bibiana Cardoso da.


II. Título.

CDU 81’33

Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094

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O ensino de português
na escola atual: análise
de alguns fenômenos
linguísticos e mudanças
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

n Analisar as mudanças nas concepções de ensino de Língua Portuguesa.


n Identificar a importância do trabalho com a variação linguística para
o ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa.
n Diferenciar um ensino de português, centrado na Gramática Norma-
tiva, de um ensino reflexivo da linguagem, centrado no texto.

Introdução
Você já parou para pensar que as aulas de Língua Portuguesa na escola
não mudaram muito ao longo dos anos? Queremos dizer que o ensino
do português ainda é sinônimo de ensino de gramática. Neste texto,
você vai conhecer as características do ensino de língua portuguesa na
escola atual, observando o fato de que, em muitos contextos, esse ensino
ainda está vinculado ao ensino normativo da Gramática Tradicional. A
partir dessa observação, falaremos sobre o papel da variação linguística
como objeto de estudo da aula de língua portuguesa. Temos, então, duas
abordagens de ensino de Língua Portuguesa: uma que legitima apenas
uma variedade do Português Brasileiro, a variedade padrão; e outra que
valoriza a diversidade intrínseca à língua, trabalhando com diferentes
variedades em aula, inclusive a padrão, e enfatizando que não há uma
variedade melhor do que a outra.

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O que se ensina na aula de língua portuguesa?


O ensino e a aprendizagem de línguas, tanto materna quanto adicionais, é um
importante campo de estudo da Linguística Aplicada (LA). A LA investiga como
as pessoas aprendem uma língua e quais são as diferentes maneiras de ensiná-la.
Através do estudo de boas práticas de ensino e aprendizagem de línguas, a LA
apresenta resultados que ajudam o professor a pensar e repensar suas práticas.
Neste capítulo, vamos centrar nossa atenção no ensino de Língua Portuguesa
na escola atual e em como essas novas perspectivas e discussões sobre ensino
englobam a questão da variação e mudança linguística. Podemos começar refle-
tindo sobre o quão paradoxal é a ideia de ensinar língua materna na escola (GUY;
ZILLES, 2006), afinal todos entramos na escola já sabendo português, certo?
Entramos na escola conhecendo, ao menos no que se refere à variedade lin-
guística da nossa comunidade, a complexidade da língua. A maioria das crianças
desenvolve, antes de entrar na escola, muitas capacidades relacionadas à linguagem,
inclusive a noção de que as línguas variam. Se a criança já sabe português ao
entrar na escola, o que o professor de português tem a ensinar? Existem várias
respostas a essa pergunta. Podemos pensar na questão da língua escrita, afinal,
embora as crianças já saibam falar português ao entrar na escola, a maioria ainda
não sabe escrever. Portanto, o processo de alfabetização é um componente óbvio
do ensino da língua materna. Para Guy e Zilles (2006, p. 41), é possível fazer uma
distinção, com base na leitura (psico)linguística, entre “[...] adquirir (espontanea-
mente, por mera exposição) a língua falada, um processo que se dá com base
em uma capacidade inata resultante da evolução cerebral da espécie humana,
e aprender a língua escrita, um processo que se desdobra em, pelo menos, dois
grandes aspectos: a construção da leitura e da escrita, no sentido psicogenético
da alfabetização, e a apropriação das regras que regem a variedade escrita.”.

Para saber mais sobre o processo de aprendizagem da leitura e escrita, leia a obra A
construção social da alfabetização (COOK-GUMPERZ, 2008).

Outro componente no ensino da língua materna é o sentido normativo,


provavelmente o que todos nós mais lembramos quando pensamos em nossas

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aulas de Língua Portuguesa. Travaglia (2002) chama essa perspectiva de ensino


prescritivo, na qual se promove uma variedade da língua como modelo, como
norma, suprimindo as demais variedades da língua. Ao ingressar na escola,
o aluno não conhece as peculiaridades da variedade padrão e a escola toma
como função, principalmente através da aula de Língua Portuguesa, ensinar
os aspectos distintivos dessa variedade de maior prestígio.
Pesquisas recentes na área de Linguística Aplicada acerca do que se faz
na aula de Língua Portuguesa têm revelado que o sentido normativo ainda
prevalece. Dentro dos planos de ensino nas aulas de LP, ainda predomina uma
concepção de língua muito estática, que não considera variação e mudanças.
Segundo Antunes (2009, p. 34), essa é uma concepção falseada, pois vê a lín-
gua de maneira descontextualizada, sem interlocutores e sem intenções: “[...]
ainda predomina uma concepção de língua como um sistema abstrato, virtual
apenas, despregado dos contextos de uso, sem pés e sem face, sem vida e sem
alma [...]”. Essa visão de língua limita a aula a memorização de nomenclaturas e
classificações, se esgotando na morfologia das palavras e na sintaxe das frases.
Esse ensino de Língua Portuguesa, pouco significativo e completamente
descontextualizado, acaba gerando no aluno um discurso muito conhecido:
“eu não sei português”. Como falamos anteriormente, obviamente nossos
alunos brasileiros sabem sim falar português, o que eles querem dizer é: “eu
não memorizei toda as nomenclaturas e classificações que a escola acha im-
portante”. Essa é uma confusão perigosa e pode gerar práticas de preconceito
linguístico. Britto (2003) chama essa perspectiva de ensino de gramatiquismo.
Segundo o autor, a prática do gramatiquismo não é uma novidade no ensino
de Língua Portuguesa no Brasil, e também fora desse contexto, na mídia,
conversas cotidianas, etc.
Britto (2003) reitera que, ao contrário do que afirmam os puristas, não se
fala mal o português no Brasil. O que acontece é que os usuários da língua a
usam conforme suas necessidades e circunstâncias. É preciso, e o professor
de português tem um papel importante nessa tarefa, combater o discurso de
que “se maltrata” a língua portuguesa. Esse é um discurso purista e precon-
ceituoso; pensar que a fala popular é uma “corrupção” (BRITTO, 2003) da
língua culta, devendo ser corrigida através do ensino regular da LP, é descon-
siderar que a língua é dinâmica e possui muitas variedades. Outro discurso
que precisa urgentemente ser eliminado é o de que a Língua Portuguesa é
difícil. Se aprendemos o português ainda bem pequenos, a língua não pode
ser tão difícil, certo? O difícil é memorizar tantas nomenclaturas de forma
descontextualizada, sem relação com o uso da língua.

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É papel do professor de Língua Portuguesa auxiliar na tarefa de desconstrução de


preconceitos. Os livros do linguista Marcos Bagno são uma grande inspiração para
esse trabalho em sala de aula:
BAGNO, M. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. 2. ed. São Paulo:
Parábola, 2003.
BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

A Linguística tem um papel fundamental nessa discussão, já que ela de-


monstra, através da pesquisa na área, que a variação é intrínseca ao fenômeno
das línguas humanas. Como disse Britto (2003, p. 88), “[...] a ideia de uma
forma ideal de expressão oral e escrita e sua associação à inteligência humana,
que denominou o pensamento europeu até o século XVIII, resulta de uma
visão simplista e etnocêntrica de sociedade.”. Os defensores do gramatiquismo
demonstram falta de conhecimento no campo da Linguística, pois desconhecem
o processo de variação, intrínseco a todas as línguas. Os estudos de sintaxe e
de variação linguística desenvolvidos pelos centros de estudos linguísticos de
todo Brasil demonstram que ocorrências como “os peixe” e “acabou as ficha”
podem ser explicadas, pois apresentam um padrão regular e perfeitamente
gramatical.
Pode-se afirmar que essa insistência, de tantos e tantos anos, no ensino
da gramática tradicional, está relacionada a três noções que não se confir-
mam na análise das práticas sociais: “[...] a de que a ação normativa tem por
finalidade evitar a corrupção e a degradação da língua nacional; a de que a
chamada norma culta é própria de relações sociais formais, de modo que seu
não domínio implica a exclusão do sujeito destas situações; e a de que seu
conhecimento garante acesso a determinadas expressões superiores de cultura
de informação [...]” (BRITTO, 2003, p. 96).

A variação linguística e o ensino de língua


portuguesa
A diversidade linguística é uma importante característica das línguas e
deve, sem dúvida, ser tratada como elemento central no ensino de lín-

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gua materna. Podemos dizer que, quando ensinamos português, estamos


também ensinando sobre línguas, mostrando como elas são dinâmicas e
mudam com o tempo e as circunstâncias. A aprendizagem da linguagem
é um ato de reflexão sobre a linguagem. Certamente nossos alunos já
conhecem uma, ou talvez mais de uma, variedade de português. Por isso,
ao reforçarmos o ensino da variedade padrão, temos que tomar o cuidado
de não apresentá-la como a única ou a mais válida. Afi nal, esse discurso
diminui as variedades trazidas pelos nossos alunos e os ensina que a língua
é algo estático, pronto.
Ao mostrarmos aos nossos alunos que a língua é (re)construída no próprio
processo interlocutivo, ou seja, ela não está de antemão pronta, possibilitamos
que ele se veja como um sujeito que pode se apropriar da língua e usá-la se-
gundo suas necessidades específicas do momento de interação. Ou seja, em
alguns momentos de interação, a variedade padrão será a mais apropriada,
enquanto em outros momentos não. Assim como não há uma língua dada,
pronta, também não há sujeito pronto, o sujeito se completa e se constrói nas
suas falas. Segundo Simões (2008, p. 196), “[...] para um projeto de português
que de fato sirva para aprofundar o domínio que os alunos têm dos recursos
da LP e alargar suas práticas de letramento, é preciso partir de uma visão
dinâmica da língua.”.
Para Bagno (1999), é importante mostrar que a língua varia tanto quanto
a sociedade varia e que existem muitas maneiras de dizer a mesma coisa.
Outra questão importante levantada pelo linguista é a tendência de acharmos
que a variação e mudança linguística só existem no meio rural ou menos
escolarizado. Isso não é verdadeiro. A variação linguística existe também
entre os falantes urbanos, socialmente prestigiados e altamente escolarizados,
inclusive nos gêneros escritos. Para que essas questões sejam esclarecidas, é
fundamental termos a variação linguística como objeto e objetivo do ensino
de língua, “uma educação linguística voltada para a construção da cidada-
nia numa sociedade verdadeiramente democrática não pode desconsiderar
que os modos de falar dos diferentes grupos sociais constituem elementos
fundamentais da identidade cultural da comunidade e dos indivíduos par-
ticulares.” (BAGNO, 1999, p. 16).

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Esta questão apresentada na prova de Linguagens do ENEM-2016 representa bem o


entendimento de Bagno sobre termos a variação linguística como objeto de ensino
da língua. Nas alternativas, percebemos uma discussão sobre a dinamicidade da
língua e como as escolhas que fazemos estão relacionadas ao contexto. É interessante
observarmos que todas as provas do ENEM trazem questões que tratam sobre variação
e mudança linguística. Esperamos que essa recorrência tenha como efeito retroativo
a frequente discussão dessa temática na educação básica.

Fonte: Brasil (2016).

Para entendermos como a discussão é antiga, esta é uma questão do ENEM de 1998,
que já trata as variedades como adequadas/inadequadas dependendo do contexto
de uso. Esse tipo de questão é fundamental para acabarmos com o discurso do certo/
errado e pensarmos em termos de adequação.

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O texto mostra uma situação em que a linguagem usada é inadequada ao contexto.


Considerando as diferenças entre língua oral e língua escrita, assinale a opção que representa
também uma inadequação da linguagem usada ao contexto:
a) “o carro bateu e capoto, mas num deu pra vê direito” – um pedestre que assistiu ao
acidente comenta com o outro que vai passando.
b) “E ai, ó meu! Como vai essa força?” – um jovem que fala para um amigo.
c) c) “Só um instante, por favor. Eu gostaria de fazer uma observação” – alguém comenta
em uma reunião de trabalho.
d) “Venho manifestar meu interesse em candidatar-me ao cargo de Secretária Executiva
desta conceituada empresa” – alguém que escreve uma carta candidatando-se a um
emprego.
e) “Porque se a gente não resolve as coisas como têm que ser, a gente corre o risco de
termos, num futuro próximo, muito pouca comida nos lares brasileiros” – um professor
universitário em um congresso internacional.

Gnerre (1991, p. 6) afirma que “[...] uma variedade linguística ‘vale’ o que
‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e
da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais.”. Isso justifica
a língua padrão, um sistema ao alcance de uma parte muito reduzida dos
integrantes de uma comunidade, ser considerada a língua de maior prestígio,
pois é falada pela camada da população com maior poder. É também um papel
importante do professor de português mostrar aos alunos as relações de poder
que existem na língua.
Se adotarmos uma posição de que as línguas não mudam e de que qualquer
variação do padrão é erro, estamos dizendo que o português inteiro é um erro
e que deveríamos voltar a falar latim (FIORIN, 1996). Afinal, o português
provém de uma variedade do latim, o chamado latim vulgar, muito diferente
do latim culto. É só lembrarmos disso para nos darmos conta de que as línguas
mudam, sempre mudaram e sempre mudarão. É importante trazer isso para
a aula de Língua Portuguesa, mostrando aos alunos as mudanças que a nossa
língua já teve. A língua se renova incessantemente, portanto, o estudo da
língua deve ser constante e acompanhar suas mudanças e variações.
A língua é heterogênea devido aos aspectos sociais, culturais, econômicos
e geográficos que a compõe. Rodrigues (2002) fala sobre dois tipos de varia-
ção: em função do falante e em função do ouvinte. A variação dialetal, em
função do falante, pode apresentar variantes espaciais (dialetos geográficos
ou diatópicos), variantes de grupos de idade (dialetos etários), variantes
de sexo e variantes de gerações (variantes diacrônicas). Já a variação em
função do ouvinte, Rodrigues (2002) chama de variação de registro e está

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relacionada com graus de formalismo, variantes de modalidade (falada e


escrita) e variantes de sintonia (adaptação de acordo com o interlocutor). Ou
seja, a variação mostra-se também no comportamento de cada indivíduo,
de cada falante da língua à medida que se encontra em um determinado
contexto ou situação. Alguns pesquisadores chamam esse tipo de variação
de variação estilística, os falantes adequam suas formas de expressão
às finalidades específicas. Bagno (2007) fala também em monitoramento
estilístico, já que essa adequação exige do falante um determinado controle,
uma atenção e um planejamento maior ou menor. Formar alunos que saibam
fazer uso de diferentes variedades estilísticas adequadamente é importante
tarefa da escola.

Para saber mais sobre variação linguística, leia o capítulo “Mas o que é mesmo variação
linguística?” de Bagno (2007).

Alternativas para uma educação linguística


inclusiva
A partir da nossa conversa com outros professores de português, percebemos a
dificuldade na desconstrução da identidade de guardião da língua portuguesa,
aquele que diz o que é certo e errado no uso da língua. A tradição do ensino
de gramática normativa faz com que muitos professores se vejam mais como
professores de gramática do que professores de Língua Portuguesa. Ao assumir
essa identidade, torna-se difícil discutir a variação linguística como objeto da
aula. Afinal, o ensino normativo da gramática pressupõe a existência de uma
única variedade válida: a língua padrão.
Alinhadas a Guy e Zilles, também entendemos que não é adequado criticar
uma tradição de ensino sem sugerir alternativas. Guy e Zilles (2006, p. 49)
levantam uma pergunta muito relevante: “[...] quais são as possibilidades
de uma abordagem ao ensino da língua materna no Brasil que reconheça a
realidade sociolinguística e procure respeitar os direitos e o valor dos falantes
de variedades não padrões?”. Os linguistas afirmam que a resposta a essa
pergunta depende da relação não só política, mas também linguística entre
essas variedades e o padrão.

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É importante lembrar que o padrão é também variável e sofre mudanças.


A variedade padrão do Português Brasileiro é uma mistura de arcaísmos e
elementos do português de Portugal com o uso atual dos grupos sociais mais
poderosos no país. Algumas regras gramaticais não são usadas até mesmo
por esses falantes da variedade padrão. Um exemplo é o uso da mesóclise
que, apesar de ser ensinada como “correta” é pouco utilizada até mesmo em
contextos formais. Isso mostra uma tendência de mudança na língua, ou seja,
nem mesmo a variedade padrão é estática. É importante ressaltar que, dentro
das variedades não padrão, há variações mais ou menos estigmatizadas. A
ausência de concordância verbal, por exemplo, é, na maioria das vezes, mais
estigmatizada do que a ausência da concordância nominal. Ou seja, é mais
aceito falar “as guria” do que “nós vai”.
Mesmo falantes da variedade padrão, em contextos de menor monitora-
mente, fazem uso de variações consideradas “incorretas” pela norma padrão.
Um exemplo trazido por Guy e Zilles (2006), é o apagamento do /r/ final na
pronúncia de palavras com r ou o uso de a gente para indicar a primeira pes-
soa do plural. Pesquisas sociolinguísticas realizadas por esses pesquisadores
comprovam que essas variações acontecem na fala da grande maioria dos
brasileiros. Se pensarmos nessa diversidade de comportamentos, podemos
afirmar que não faz realmente sentido mantermos uma visão monolítica da
língua portuguesa, imaginando que a escola irá ensinar aos alunos uma única
versão certa fixa da linguagem.
Cientes de que a língua inclui diversidades ao monte, o ensino de portu-
guês deve ir além de alfabetizar e ensinar ortografia, apresentar a literatura
nacional e fomentar o interesse pela arte. A aula de português pode ser o
espaço no qual os alunos aprendem coisas muito úteis sobre as realidades
linguísticas do Brasil, tornando-se cidadãos mais conscientes sobre a nossa
diversidade. Guy e Zilles (2006, p. 50) propõem que os estudantes investi-
guem temas como:

n Quais são as variedades usadas por outras pessoas, e por outras camadas
sociais?
n Como é que falam em outras regiões do Brasil, ou em Portugal e Cabo
Verde?
n Qual estilo é usado na escrita? A escrita também varia? De que modo
o estilo usado na escrita difere da língua falada?
n Como é que a gente fala nas diferentes situações sociais?
n Como é que as pessoas indicam pela linguagem que se sentem felizes
ou chateadas ou hostis?

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n Como é que as pessoas usam a linguagem para construir suas relações


sociais, para oferecer aos outros uma imagem de si mesmas e, simul-
taneamente, projetar a imagem que fazem dos seus interlocutores?

A alternativa para um ensino de Língua Portuguesa que se preocupe com


uma educação linguística inclusiva e democrática é deixarmos de lado a gra-
matiquice (FARACO, 2006), focando em práticas pedagógicas que realmente
façam diferença, ou seja, familiarizando o aluno com a diversidade linguística
da sociedade brasileira e permitir que se movimente efetivamente dentro dela.
O objetivo é ensinar ao aluno outras variedades sociais além daquelas que
ele domina como parte da experiência diária, ou seja, buscar a ampliação das
capacidades linguísticas dos alunos, “[...] para que possa agir socialmente com
e na linguagem [...]” (GUY; ZILLES, 2006, p. 50). A educação linguística
inclusiva mostra aos nossos alunos que eles são linguisticamente capazes e
falantes plenos da língua portuguesa. Reiteramos que a escola deve sim ensinar
a língua padrão, mas como uma entre muitas variedades, sem estigmatizar
ou diminuir a variedade trazida pelos alunos.

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