Vista Do Etnografia de Rua - Estudo de Antropologia Urbana - RUA

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ETNOGRAFIA DE RUA: ESTUDO DE ANTROPOLOGIA. URBANA Carvalho da Rocha* Cometia Eckert Resume (© artigo descreve um estudo antropoldgieo baseado em nareaivas etnogrificas e podtias Visuals no meio urbano de Porto Alegre e Pris (Beasl/Franga) a partic da enc de etnografia cer que vine ‘utitzag0 de instrumentos aio visu na pesquisa de campo (cimera fotogriticae video), Objetiva- seinvesigara dinamica das interagdese representagses socais nae da cidade soba perspectiva de suas formas de vida social visandoa um repertdrio mais amplo das forms de sociabilidade no meio urbane « sus Variagdes culturais, Propie-se © exercicio de emnogratia de rua com forma de coneeber as ‘ranstormagbes ds territéivs da vida urbana local investigand sobre a meta coletiva ea estéica urbana nas eae, Walter Benjamin (1892-1940)' inspirou-se na obra de Charles Baudelaire (1821- 1867)? e de Marcel Proust (1871-1922)* para falar de um estado de ser e estar no Doutora em Antropotogia Social pela Paris V. Sorbonne, em 1994, & pesquisadora no Laborato de Antropologia Social eprofessora naPis-graduagio do IFCH na UFRGS, Doutora em Antiopologia Social pela Pars V, Sorbonne, em 1992, Awa com peofessora no Departamento de Antropolosia ema Pos-graduasio do IFCH na UFR( " Referinio-nos principalmente a Das Passagen-Werk escrito em 1939 em Parise publicado em 1982. * Referimo-nos hasicamente wos trabalhos Le spleen de Parise Tableau parisiens * Refetimo-nos sobretudo a A la recherche die temps perdi, 1954 ‘ua, Campinas, 9: 101-127, 2003 102 Emografia de Rua: Esuulo de Antropologia Urbana mundo ao refletir sobre seus deslocamentos nas eidades de Berlim ou Paris, a partir de uum “trabalho” da memsria afetiva ¢ do pensar a “si-mesmo™ na paisagem urbana, © personagem batdelaitiano, o fléneur, caminha na cidade: um percurso sem com promissos, sem destino fixo. O estado de alma deste personagem-tipo € de indiferenca, ‘mas seus passos tragam uma trajet6ria, um itinersrio que concebe a cidade, o movimen- tourbano, a massa efémera, 0 proceso de civilizacto, Logo, esta nao é uma caminhada inocemte. A cidade 6 estrutura e relagies sociais, economia ¢ mercado; é politic tica e poesia, A cidde € igualmente tensio, anonimato, indiferenga, desprezo, agonia, crise e violencia, ‘Assim, cidade do andarilho tem uma histéria, nem a melhor nema pior do mundo, simplesmente histérias que configuram referéncias pritieas e simbélicas em que se reconhece ou se constrange nas ruas que perambula, lugares que conhece ou desco- nnhece, espagos que gosta ou desgosta, contextos que Ihe atraem ou passam desaperce- bidos. Objetos, eventos nio verbais ou verbais, nafdos ow matérias atiram-the a atengao sensorial que delineia seu trajeto, seus atos. A cidade acolhe seus passos, ¢ ela passat existirna exist@neia deste que vive, na instincia de seu itinerrio, um tragado que enco- bre um sentido, algo que seri desvendado ao seu final. Espagos, cheiros, barulhos, pessous, objetos e naturezas que o caminhante experiencia em sua itinerdneia, nao sem figuras pré-concebidas. Sua caminhada 6 de natureza egocéntrica, funcional, mas tam- bam postica, fabularia e aletiva, © por que milo dizer, uma earninhada cosmolézica como os jogos de meméria que os tempos reencontrados proustianos en Walter Benjamin, em seu texto Sur quelques themes baudelairiens (Paris, 1939), Jembra que a multicio metropolitans na formagao do mundo industrial despertava medo, 1 e horror naqueles que a viam pela primeira vez, Da mesma forma, 0 impacto das transformagées urbanas, to bem tratadas no conjunto de autores que de ‘modo geral sio reunidos na denominagao Escola de Chicago, iri inspirar uma geragao de antropalogos que privilegia, desde entio (anos 1930), © tema do viver na cidade como cenrio primordial de anslise das mudancas ¢ transformagies. Soba dtica destes autores, a vidi cit portanto, agitada, vertiginosa mesmo, ou ‘mondtona e repetitiva, dependendo da adesio ow nio dos seus habitantes aos tempos ¢ + Ricoeur 1996, Poa, Campinas, 9: 101-127, 2003 Ana Luiza C.da Rocha v Comelia Eckert los espagos vividos, ritmados pelos movimentos incessantes das imagens de cidade que habitam seus pensamentos em constante mutagao, Deserever a cidade, sob um tal ponto de vista, & conhecé-Ia como focus de interagdes sociais ¢ trajetérias singulares de upos e/ou individuos cujas rotinas esto referidas.a uma tradigdo cultural que as trans- ‘end, Conhecer uma cidade é, assim, nao sé apropriat-se de parte de um conhecimen- to do mundo, ou seja, os saberes e fazeres dos habitantes e 0 que conhego desta expe- riGncia de pesquisa junto a eles, quanto desvendar 6 conhecimento na busca de situar ‘meu préprio ser em relagao ao ser do Outro na ¢ Inspiradas nas obras cientificas’ e literdrias* sobre 0 “passear e caminhat”, a idéia de desenvolver etnograi cel com a proposta de projeto de pesquisa’ intitukido Estudo antropolégico de itinerdrios urbanos, meméria coletiva e for~ le, mas de sociabitidade no mundo urbano contemporineo. Como pesquisadoras.e desenvolvendo a atividade de formar bolsistas de iniciagao ciemtiiea ao método antro- ursos etnogrificos na cidade de igagdo antropolGuica sobre dindmiea das interagies cotidianas ¢ represemlagdes sociais “na” ¢ “dal” cidade, No decorrer desta experiéncia etnogratica na rua, no bairro, na cidade. a introdugZo de instrumentos audiovisuais como & edmeta fotogrifica e/ow a edmera de video, passam a fazer parte do seu olhar € polégico, propomos ao aluno tecer os seus proprios per Porto Alegre, contexto de uma inv Retrim-nos ene outros 3 Claude Lévi-Stauss, Colette tonne, Piere Sanson * Citamos igualmenteagui as obras iterrias Ue Hen Beyle Stendhal, Georges Perce, alo Calvino e Emest Hemingway Projeto integrado do CNPg desenvolsido no Programa de Pss-Graduago em Antropologia Social na UPRGS. dese 1997, € que aliments com dads de pesquis.oprajeto Banco de Inuigense Efeitos Visuais, por nds cuordenado, no dmbito do PPGAS/UPRGS, sediade no ILEA/UPRGS, ‘ua Campinas, 9: LOL=127, 2003 104 Euografia de Rua: Estudo de Amropologia Urbana atitude de coleta de dados de pesquisa: 0 exereicio de etografia de rua, inclui entio “a ‘camera na mao” ‘A etnogratia consiste em deserever priticas e saberes de sujeitos e grupos socials a partirde téenicas como observaciio e conversagies, desenvolvidas no contexto de uma. pesquisa. Interagindo-se com o Outro, olha-se, isto &, “ordena-se o visivel. organiza-se {t experiéncia” conforme propic Régis Debray.” O etndgrafo desereve, tradicional- * Citamos com eveiplos os seguintes tals Fidvio Abreuce Svea," posticado vvido: uma etnogratia du eotiiano na Cidade BatxatPOARS" In Ieaninuras: Série do Banco de Imagens e Efetos Vieuais, Porto Alegre: BIEN. PPGASTUFRGS, 2000: Aline Greft Buses, "Etnograia de wma caso, stwlo de antropologia urbana e visual sobre os desis danatureza ea snnrevivéncia como mode de vidaentre moradores de Aguns Caras, Via. uminunas Série do anew de Imagens e Efeitos Vsuais, Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UPRGS, 2001, PibiciCNPa, LUFRGS: Laciane Coovaro,”Asdonasda raga: estudo antropokigicn de formas de socabilidade napraga da mats In: lonineeas. Serie do Banco de hnagens eBfeiios Visuats. Posto Alegre: BIEN, PPGASIUFRGS AOL. Bie Crp 1997/1999; Rafael Devos, "Da ante de dizer: pra vé como a vida reserva tanta evisa pra eae”. Ins Hamtnaras: Série do Banco de tosagens ¢ Hjetos Visuas, Porte Alegre: BIEV, PPGASIURGS, 0 Bie Cp 1998/2000 Hucqves Naver acon. “Estuloantropotsgico de um espaso urbano singular, ‘vais do port a iad ae Porto Alegre (od cidade que tem porto até no nome”. I: Hina: Série ide Banca de Imagens Ejetos Viswais, Porto Alegre: BIEN, PPGAS/UPRGS, 2001, Bie Cupg 1997/19 Rodrigo Mereio Mello, Moinbos de Vento... longe Go pert... uando a exclusio sovial se raves com constrangimento, © vin io reconbcide.” In: Huminras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Viswais, Porto Alegre: BIEN, PPGASIUFRGS, 2001. Bic UFRGSICNPq 2000; Leandra Mylius. Significagies do viver macidade: um pescursoafetivo em oar igo, eserigio de uma enogralia de roa tau Osvaldo Aranina, Baitto Bonfirs em Porto Alggre/RS”. In: Junineac: Série do Banco de imagens & [Hein Vsuais, Port Alegre: BIEV. PPGAS/UFRGS, 2001, BicCapy 1999/2001; Rosana Pikivo Macho, “Bxuudoanttopolisieo das formats de soeabidade da eeniro de Porto Alewre: vid de camel, in: Homies Série lo Banc de Inuagense Bios Vswuis, Porto Alegre: BIEN. PPGASI 1000, Bie Faperes 19997 2001; Olavo Reamatho Mangues, "A cidade e o tempo: as tansformagGes.no cenirio urbano em Porto Mew: Mainars: Séedo Banco de fnasgense Efetos Visuas,Pocto Alegre: BIEN, PPGASIUFRGS. $000. Bie LFRGSiCopx 1999/2001; Sandro Bello Rillo,"A cidade eos seus iscos: 0 viver de defieientes Visuaisem Porto Alegre" bs luninuras: Série do Banco de bmagense Eeitos Visas, Pocto Alexte: BIEV, PPGASIUFRGS, 2001. Bie Fapergs: Patricia Rodolpho, “Encontrando imagens ma e da Rua da Pra problemas ¢ descobertas de umaetnogratia urbana, In; Hninwvas: Série do Banco de Imagens e Efeitos Viswats. Posto Alegre: BIEN, PPGASIUFRGS, 2000, Bit Cap 1997/199% oo de los Santos, “Runase tragédia: um est sobre temporalidades em Porto Alegre”. In: Mamimuras: Sénfe do Banco de Imagens Hjeitos Visuwis, Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UPRGS, 2001. Bic Fape ‘image tire son sens egard, comme I ert de la eeture,et ce sens n'est passpcutait mais pratique, Segundo Debray: 1992: 56 aes Campinas, 9 101-127, 2008 Ana Lica C. de Rocha e Cometia Bekert mente em didrios, relatos ou notas de campo, seus pensamentos ao agir no tempo © espao hist6rico do Outro-observado, delineando as formas que revestem a vida coleti- va no meio urbano. A etnogtafia de rua, aqui, & um deslocamento em sua propria cida- le, 0 que significa dizer, dentro de uma proposta benjaminiana, que ela afitma uma reocupagdo com a pesquisa antropolégica a partir do paradigm estético!” na interpre- {ago das figuragées da vida social na cidade, Um investimento que contemplat reciprocidade cognitiva como uma das fontes de investigactio, a peépria retér ca do pesquisador em seu dilogo com o seu abjeto de pesquisa, a cidade e seus habi- lantes. Uma vez que tal retried & portadora de tensdes entre unra tradigtio de pens mento cientiico e as representagdes coletivas proprias que a cidade coloca em cena, 0 pesquisador constr6i 0 seu conhecimento da vida urbana na e pela imagem que om-partilha, ou no, com os individuos efou grupos sociais por ele investigados, A protensio de aprofundar uma pritica de “etnografia de rua” para © easo da pes- quisa em Porto Alegre, ou talvez.fosse melhor dizer etnogratia “na” rua, no se limita apenas aos comentarios de Walter Benjamin, A proposta singular de observation Jlotanie, como Colette Pétonnet!' denominou o exercicio de observagio de pesquisa ‘a rus, encontra em nds, uma adesao de estilo pela forma como pensamos, no referido projeto. o (emma da etnografia da curacao" a partir da descrigdo etnogrifica dos itiner tins dos grupos urbanos na cidade Segundo advogamos na pesquisa sobre meméria coletiva, narrativas e formas de sociabilidade no mundo contemporaneo, a técnica de etnografia de rua consiste na e ploragao dos espagos urhanos a serem investigados através de caminhadas “sem desti- no fixo” nos seus territérios. A intengdo nio se limita, portanto, apenas a retornar o olhar do pesquisador para a sua cidade por meios de processos de reinvengio/ eencantamento de seus espacos cotidianos, mas capacité-lo is exigéncias de rigor ni 0 longo de agdes que envolvem deslocamentos constantes observagdes etnogrificas no cenirio da vida urbana, " Lemramos aqui trabalho de Michel Malfesoli, 1985, " Pétoanet, 1982 "Becker e Rocks, 2000; 19-40, Rua, Campinas. 9: 101-127, 2003 106 Emografia de Rua: Bstudo de Aniropologia Urbana Postulando uma carta de Porto Alegre Bairros, ruas, pracas ¢ esqttinas “Tomar-se “um” com os ritmos urbanos € perder-se no meio da multido, se deixar possuir por alguma esquina, fundir-se nos encontros Fortuitos, mas é também localizar- se nas conversas tipidas dos habitantes locais, registrar piscadelas descompromissadas dos passantes, rabiscar apressadamente um desenho destas experiéncias no seu bloco de notas, “bates” algumas fotos, gravaralgumas cenas “estando li”, Desenhios, croquis, anotagbes, fotos, videos etc. No dizer bachelardiano, para se praticar uma boa emografia de nia 0 pesquisador precisa aprender a pertencer a este territério como se ele Fosse stia morada, lugar de intimidade ¢ acomodacdo afetiva, através dos devaneios do repou- Uma etnogratfia de rua propde ao antropélogo, portanto, 0 desafio de experienciar a ambiéncia das cidades como a de uma "morada de r¥as" eujos caminhos, ruidos, che ros © cores a percorrer sugerem, sem cesar, ditegdes e sentidos desenhados pelo proprio movimento dos pedestres ¢ dos carros que nos conduzem a certos lugares, cendrios, pais detrimento de outtos Destocamentos marcados por uma forma de apropriagiio dindmica da vida citadina, mas cuja apreensdo pauta-se pela freqiiéncia sistematica do etnégrafo a uma rua ou uma avenida, um bairro ou uma esquina etc. Neste sentido a etnografia “na” rua consis- te no desenvolvimento da ebservagiio sistematica de uma rua efou das ruas de wm bairro ¢ da descrigio einogrifiea dos cendrios, dos personagens que conformam a rotina da rua e bairro, dos imprevistos, das situagdes de constrangimemto, de tensdo © conflito, de entrevistas com habitnds © moradores, buscando as significagdes sobre © viver o dia-adia na cidade, Fruto de uma adesio irrestrita do etnégrafo a uma ambigneia urbana, escolha movida por amor ou édio, & primeira vista ou no, pouco importa, a etnografia de rua, por insisténcia recorrente a poética do andarillo, a0 explorar/inventariar 0 mundo na insta~ bilidade do seu movimento, descobre um patriménio intangivel de formas que teem as P action, 1989 Ru Campinas, 9 101-127, 2003 Ana Luiza C.ca Rocha e CometiaKckert 107 interagées sociais num lugar. Assim, o ato simples de andar torna-se estratégia para igualmente interagir com a populagdo com que cruzamos nas ruas. Habitues, freqiientadores, ou simples passantes, todos eles convidam o etnégrafo a perfitar perso hagens, descrever agdes ¢ estilos de Vida a partir de suas performances cotidianas. E todos so bons momentos para se te-tracar 0s cendrios onde transcortem suas hist6rias de vida e, a partir deles, delinear as ambiencias das intimeras provincias de significados, que abrigam os territ6rios de uma cidade. Através da técnica da ctnografia de rua, pode-se argumentar, o antropélogo observa ‘cidade como objeto temporal, lugar de trajetos e percursos sobrepostos, urdiddos numa tama de ages cotidianas. Percorrer as paisagens que conformam um territério, seguir 6s itinerdrios dos habitantes, reconhecer os trajetos, interrogar-se sobre os espagos evitados € evocur as origens do préprio movimento temporal desta paisagem urbana no espago. A cidade toma-se, assim, aos olhos do etnégrafo, um territério fluido © fugaz em alusao “a unidade de uma sucesso diaerénica de pontos percorridos, ¢ nfo a figura que tesses pontos formam num lugar supostamente sinerdnico ou aerénico”. Mas para se aprender a cidade como matéria moldada pelas trajetsrias humanas, & hilo apenas como mero tragado do destocamento indiferente de um corpo no espaco. 0 antropélogo precisa recompor os tragos af deixados por homens © mulheres, Uma etnografia de ua nao se sustenta como pritica antropoligica de investigagio sem con- templar, desde seu interior, uma reflexio sobre o forte componente narrativo que enc ra os deslocamentos humanos capaz, de metamorfosear “a articulagiio temporal dos lugares em uma seqiiéncia espacial de pontes”.'* Para se atingir um tal componente narrativo, o etnégrafo precisa contar com o tempo como amigo. pois ele s6 0 atinge quando a densidade de sobreposigao cumulativa dos {tempos vividos ao longo de um trabalho de campo, aparemtemente Fadado i “perda de inte dos seus olhos. Horas de um trabalho persistente de escritu- ou folhas de tempo”, se precipita di ra deposit sna tela do computador, fitas de video, peliculas fotogriti wos, a, Campinas, 9: OI-127, 2003 108, Emografia de Rua: Esuudo de Autropologia Urbana papel, sempre na tentativa do investigador aprisionar 0 ef&mero, sto, finalmente, re- Ccompensaduas ¢ encontiam, enfim, um sentido desvendado por um leque de conceitos. ‘Sem difvida, na etnografia de rua o perfil de uma comunidade, individuo e/ou grupo se configura aos poucos, pois 0 etnégrafo trabalha pacientemente a partir de colagens de seus fragmentos de interac. Isto porque uma cultura urbana se expressa no 6 por bes gestuais. de linguagens recorrentes, especializagies profissionais de seus wdores, mas se apresenta igualmente através de suas priticas ordinirias, saberes & tradigies com as quais o pesquisador precisa familiarizar-se neste deslocamento em espagos que so, ou niio, 0 seu proprio lugar de origem, Na busca do cncontro ¢ didlogos menos fortuitos que aqueles que os deslocamentos ha rua permitem uo etndgrafo, a cumplicidade dos pequenos gestos, sorrisos ou olhares dos habitantes da rua, moradores locais, comerciantes, freqiientadores, mendigos, ven dedores ambulantes, menino(a)s de rua, feirantes, pode signifiear urs convite a aprox ‘magio mais duradoura. Nestes rituais de seducdo e jogos de conquista da atengtio do Outro, desvenda-se a Iégica da criagdo dos papéis através dos quais canstroem-se os personagens do antropélogo € do “nativo"” em interacki ‘Assim, ao lado das abservagdes sistemiticas dos lugares de sociabilidade de rua, das suas intensidades segundo os diferentes horitios, 0 comportamento corporal dos indiv’- duos c/ou grupos nas esquinas, suas formas de interago nos bares e bancos de praca stias regtas de evitagdes ou, ainda, as suas formas de cumprimentar ao eruzarem os olhares is, tudo, enfim, vai criando sentido na observagao atenta do pesqui- medida que ele se desloca, Esta caminhada vai sendo enriquecida em sua densidade temporal na medida em que o pesquisador consegue precisar, nas consténci- as de sttas diversas idas ¢ vindas, 0s aspectos de permanéneia e rmudanga que earacte- rizam e dio forma estética a este Lerrit6rio urbano. Ads poucos, os movimentos das pessoas, freqientadores ou passantes, se desenham em formas mdiltiplas, mas eonstan- tes, através de mictoeventos da propria rua observados meticulosamente pelo etndgrafo A nog de “nativo” &0 temo tGcnico para definir@ OUTRO na interagao de pesquisa de campo, io aiorigando mais preconevtos da origem conceal do mundo colonizado, mas apotandoumaconsciéneta biséricad mominagao, uu, Campinas, 9: WOL-127, 2003 Ana Lica C.da Rocha ¢ Comelia Boker 109 gragas 8 perspeetiva comparativa de uma at da vida social Apesar de uma presenga freqiiente aos lugares, dt insisténcia para ser visto & nhecido pelo olhar do Outro, na etnografia de mua o contato nasce sempre de um pedido de consentimento i imteragao troca possiveis que se Seguem ao reconhecimento dos movimentos, olhares, rufdos locais, eddigos ¢ etiquetas a serem observadas ¢ aecita iio da comunieagao solicitada, Entretanto, © pesquisador que vivencia a dramitica da roa esta sujeito a conhecer roeventos de interagao, a qual ele préprio interage ou reage conforme a situagao experienciada, O contato, sempre o eontato, expressa o desejo de uma multiplicidade de trocas com os “nativos”, pois € a reciprocidade, sem diivid taeiio de ser e existir deste analisia da diversidade © complexidade cultural. Nesta ele depende niio s6 do dominio da lingua do Outro para compreender 0 que & dito, mas da atenedo aos tons e meios tons, das insinuagses e dos siléncios, dos no clio do estar ma nedo flutuante na observagaio sister © aqui que os personagens do etndgrafo e do “native” nascem, ambos, numa relagio que é consirufda a partir de uma cireunstancia artificial provocada, provocativa ©, por vezes, provocatéria, porque jamais natural, A construgo do contexto do encontro ctnogrifico nutre-se destes eédigos apreendidos pelo antropétogo na sua observagao constante de si e do Outro, muitas vezes sob o fogo eruzaudo da situagio de interagiio tanto quanto de negociagZo de realidade, Em todas elas, os atos que unem os antropé- logos nos nativos assumem formas e graus diversos de sentido por snus especializagses e desempenhos de papéis frente a eles. Tomando-se a pesquisa dos dramas sociais e performances que encerra 0 teatro vida urbana mediada pelo uso de recursos audiovisuais, estes dads levantados ata do exereicio de etnografia de rus podem ajudar aqui na reflexdo das implicagdes da antropdlogo como intérprete de sua teia de significados. Oso da fotografia ou do video tna perspectiva do registro dramtico, e mesmo dramatrgico, das interagties entre indi- ‘viduos ¢/ot erupos na cidade permitem ao etn6grafo aprofundar 6 estude das formas de eas, Campinas. 9 101-127, 2008 ho Emografia de Rua: Estudo de Amropologia Urbana sociabilidade no mundo contemporiineo sob a perspectiva da poiesis™” que rege o “es tar-junto” de um corpo coletivo, a partir, portanto, da expresso compartillaada de deter- minado tipo de comportamento estético entre os moradores mmo bairro, rua ou prédio de apartamentos, cefou habitués de um mes- Em especial, o recurso sistemiitico do video nas etnografias de rua tem nos forgado aarefletir sabre o papel estratégico da imagem-movimento niioapenas como modalidade de registro, no tempo, do proceso de inserea (0 do antropélogo em campo (seus dilaceramentos), mas como parte do seu proceso de interpretagio dos atos de destrui- cdo/reconstitigio das formas de vida social nas modernas cidades urbano-industriais, ¢ de onde emer narra ee a evidéneia dt escritura einogrifica como construct da inteligéneia va do proprio antropdlogo. Neste sentido, 1o ambito do desenvolvimento de um projeto sobre estudos de narra- tivas como fonte de pesquisa para documentirios etnogrificos sobre a memsria coleti- vaem Porto Alegre (desde 1997) ¢ em Paris (2001), recorre-se & técnica de “etnografia ra rua” como mais um exercicio que permite ao etndgrafo no apenas reconhecer © Interpretar 0 “nativo”, mas igualmente interpretar 0 seu si-mesmo no contexto do didilo- go como Outro, Se a etnografia de rua se apdia no uso de recursos audiovisuais, como cdmeras de video ou fotografia, o olhar do antropSlogo por vezes assume um lugar de destaque se, em muitos momentos, dio de interayiio que ira introduzir 0 uso do equips mento audiovisual no trabalho de eampo, em outros & a camera de video ou a maquina fotogriica que ira inserir 0 antropdlogo no seu lugar de pesquisa. No primeiro caso, o equipamento contima o gesto da pesquist naquito que é captado como vivid humano no presente, seja 0 seu proprio, seja dos nativos, € mesmo de ambos. No segundo easo, as imagem registradas de instantneos, quase sempre autori zadas, algumas até mesmo roubadas, nao io apenas testemunhas do pasado do Yeu tstive ki” do antropélogo. Els podem exprimir o desejo expresso do nativo de ver “ia” eternizado na imagem capturada pelo othar do antropsl P Rieweur, 1994: 55- "0s ha sufleientemente amiiagzados com » mundo teenols ites das grandes cidades.€ mesino de cetos lugares urbanos como Feira, praias ee. et udendose eda vez jo da midi. compre “ores do mundo soeial emo apenas espectadres passives, desenvolvenda ih algum tempo sh Forma de veiculaca imagem desi as olhe des outros (pesquisadores jomaistas, eineastas et.) Roa, Campinas, 9: 101 2008) Ana tia C. dla Roche ¢ Comelia Kckert Mt A inclusdo da miquina fotogrifien ou cdmera de video na etnografia de rua niio significa um ato compulsério, mas, quando for o caso, a sua adogio exige um certo conhecimento das regras dos cédigos de ética para o set uso, conforme aceitagio por parte dos nativos, uma vez. que o registro de imagens de pessoas e situagées nro mundo Urbano contemporiineo responde a direitos civis e disposigdes juridicas e leguis. Atenas que em tomo da fixagio do olhar etnogrfico pela imagem foto- fica, pode-se dizer que o uso de recursos audiovisuais durante uma fia de rua& uma intervensio que ona far pate dt caminhada de econhecimen- ‘0 do antropélogo do seu lugar de pesquisa, ora configura-se como um momento de intervencio consentida pelos petsonagens jd contatados, Sob este fngulo, o potencial interpretativo da imagem etnogniica ja se apresenta no proprio contexto de interagiio que eria a sua situagao de captagao, uma vez que o triunfo da imagem, fotografica ou Videogrifica, no trabatho de campo revela este frigil instante em que o pesquisador screver uma tuptura na interago com 0 Outro." Neste ponto, flea evidente que a proximidade etnégrafornativo na ruaé possivel sem- pre que a presenga da eimera ¢ aceita pelos sujeitos pesquisadas. Nio raro, 08 propri nativos so convidados a manusear a camera (seja fotografia, seja video) registrando tem imagens o mundo que the rodeia a partir de sua propria perspectiva, dependendo, & claro, de um tempo mais ou menos longo da equipe no contexto da pesquisa de campo. Imagem impressa num negativo, acomodada num papel ou transferida para a memé- ria do computador, fotos cotoridas ox preto e branco, decisao de enquadramentos, defi da velocidade (tempo), regulagem do diafragma ete. a enica exige um aprendi- zauo que ni se processa sem que haja por parte do etndgrafo mediages conceituais, ein "Por exemplo, a imagem de um estabelecimento vomercil tem gue ser antesiormente concedd, mesmo «ve sei 6 Tacha favo eimaygem de uma pessoa faclmente Mentificaa tm que ser autoizadls pl mesma. mesmo que uso desta nage sejarestrita ao universo da aeenvia sem ileresse comercial ou de mereado, Ocorre que hoje cada vez mals os prnjctns “extramae” das universes so possiveis, Convite para exposigdes em locais pices eem prograinas de TV Ioeal podem acorn a pasteriové eo pesquisadon tem que estar respaldadojuridicamente paraa wilizacio das imagens roduzidas no ambito de sua pesquisa, "4 concordancia do grupo ¢, sem diva, fundamental tanta quant sua compreensio da existncia dos direitos de imagem e seu aevte em assinar documenta para ransmissio eventual da obra unsersitéti em ua, Campinas, 9: 101-127, 2003 m2 Etmografia dle Rua: Estudo de Autropologia Urbana ‘ambos as casos, fot io etnogs no di fica, fia ou video, 0 processo posterior du des io de campo, associado ao da decoupage (edigio das imagens), tornam-se um rico processo de avaliagio reflexiva da propria estética das imagens, distoreidas ou nao, ue habitam os pensamentos do antropélogo em situagdo de pesquisa de campo."* Uma sintese do mundo Rue Faubourg du Temple ¢ Rue de Belleville ~ Paris ‘A oportunidade de desenvolver um pés-doutoramento em Paris, to longo do ano 2001, criow a possibilidade de ampliarmos para 0 contexto parisiense os exereicios de etnografia de ua que vinhamos desenvolvendo em viirios bairros de Porto Alegre. Em junho de 2001, dois meses apés noss chegada a Paris © uma estada de dois meses dlojadas em apartamento de amigos, no 13" arrondissement (delinigao pelo qual a cichade de Paris & dividida administrativamente em bairros), mudamos para nossa mora dia alugada, um apartamento “deux pidces”, sitwado na Rue de la Fontaine au Roi, no 11S arrondissement, em edificio projetado pelo arquiteto Louis Fargon em 1894, con- forme esti inscrito no portico de entrada. La estivamos nds, habitando um bairro parisiense “Vipieo” em raziio de sustentar ‘uma tradi¢ao pluriéinica, tal qual tinha sido nossa proposta de trabalho de pés- doutoramento estruturada ainda em Porto Alegre. Na época, a proposta era desyendir aa cidade de Paris a partir de uma pesquisa etnogréfiea sobre as formas tensionais de vida no seu contexto urbano, num ensaio comparativo com as situagdes por nds pesquisadas, no Brasil Recém-chegadas ao bairro, ¢ morando proximo a Place de la Republique, wma regio considerada por muitos como territério de ertizamentos culturais os mais diver- {de desordem que nos lembra a paisagem urbana de deter sno sos (a que The dit uma fei minadas sireas centrais dos grandes centros utbanos do Brasil), os primeiros di local foram de timidos passeios nas cercanias da nova residéneia, percorrendo varias 110 em video, a equipe deve ser pequona para que sa possivel, no contexte dar, onimidae inns dea doeinggra com os individuos eu gmupo investigades 0 petite quine ‘aa, Campinas, 9: LOL-127, 20038 Ana Laie C. da Roche ¢ Come vezes as suas ruas mais préximas & confirmando as nossas representagdes a respeito ‘das mareas ct multietnicidade de sta paisagem, impresses tecidas durante cinco anos, quando viviamos em Patis (Eckert de 1987 a 1991 e Rocha de 1990 a 1994), na época de realizagio do doutoramento, Aeescolha de uma rua em especial no bairro nos foi sugerida por um “nativo" eparisiense. A Rue de Belleville (derivado do nome “belavista” por situat-se na seg da maior elevagao de Paris, ap6s Montmartre) nos foi apresentada como sendo uma das mais interessantes para explorarmos uma Franca “profunda’” segundo nos confes. cia a sua meméria povoauda de boas lembrancas dos “tem pos cle boemia'” dos anos 1970 no local. A sugestiio era um convite para retornarmos 0 exercicio reflexivo em tomo das formas diferenciais de se “viver a cidade” que vinka- mos fazendo no Brasil, agora a partir de nossa insergiio em Paris. Foi, portanto, com tais moti vagdes iniciais que nos aventurumos nas nossas Jongas caminhadas pelas nas que nascendo na Place de la Republique seguiam em continuidade até o limite da cidade: Rue Faubourg du Temple ¢ Rue de Belleville Mapa na mio, livros de hist6ria da cidade e do bairro, Folders turisticos,dlbuns de Fotografias publicados, fichas de documentirios assistidos sobre o buirro,” visitas & internet a partir da palavra-chave “Rue de Belleville”. recorremos a estes como instru ‘mentos importantes para dar os contomose contextos etnogrificos iniciais dos tragados 4 serem percorridos®® Agradocems coordenadorade Assuntos Culturais do Forum des Inagens (Parish, Mme. El pela perissan eoncedida para pesquisarmos neste centro, * Oura forma de conhevermus o lugar fo a husca de personagens que se dispusessem a falar sobre sua ‘experiencia de viverno lugar A primeiea personagem nasceu nest ua, tem hoje anos evivena Aleman “onde & casa e tem tes fills. Num encantro ecasional em julho de 2001, esta francesa se encanta com a informagao que damos que desenvolvemes pesquisa na rua de Belleville, e nos diz “nunca imaginel que Pukessem se intressar por esta rua tao poueo turstica eas para mim & uma supresa agradavele tenho ‘nuitas coisas para te contararespeito, pois nascie eresei nagucla rua, mas foram outros tempos”. Tendo oeeito ser entrevista sobre o assunio, est Faneesa nos rocebe em sa resiéneia na cidade de Musique, desfilando uma quantidade enorme de fotografia antigas guardadas de forma desordenada em eaixas de ceamisas esapatos ‘Noss. outta informanteé uma cincasta que viveem eificio Jocalizado no eruzameno dan Bellovillecor Jean Dana, sindica de sev eitici, Rua, Campinas, 9: 101-127, 2003 ha Emografica de Rua: Estudo de Amvopologia Urbana Nossas caminhadas iniciavam-se regularmente na Place de la République onde 0 trajeto da Rue de Belleville tem o nome de Rue Faubourg die Temple e deste ponto, subindo em diregao ac morro de Ménilmontant, sob os tragos da Tinka ce metr6 Chavelet/ Porte de Litas, carvefour entre 0s arrondissement 10°, 11°, 19% @ 20. Nos limites desta linha de metré situamese virias estagdes, inclusive, aestagio de Belleville, territ6rio nos arredores da qual podemos ainda descobrit pequenos fragmentos da ‘ambigncia antiga do vilatejo que ali existiu, preferido por artistas e poetas desde 0 séeu- lo XVIII, encantados com 0 ar “mais salubre” € as habitagSes mais populares que existiam no local, No trecho em que esta rua ttaz o nome de Rue Faubourg du Temple, ela concentra imimeras moradias residenciais misturadas a uma paisagem pontilhada de varias casas comerciais que se sucedem, tais como boutiques tipicamente francesas, acougues, um clube de lazer privado, cafés, padarias, frutarias, ivrarias, um cinema com filmes alter- nativos, lojas de aparelhos eletrdnicos etc. Na altura do Canal San Martin, esta me mma rua torna-se mais estreita, Na esquina da direita, um restaurante McDonald's, © na dda esquerda um café tipicamente parisiense parecem um portico de entrada para um mundo “das mil e uma noites”, O coméreio passa a ser dominado por proprietirios de origem érabe com quinguilharias que avangam pela calgada buscando chamar a atlen- ‘go do poteneial cliente, além de algumas casas de produtos tipicos do Paquistio, das Antilhas e da Africa, Nas lojas de “quinquilharias” situadas no trecho deserito acima vendem-se mercado rias diversas por unidades. Faz-se esta observagdo para diferenciar esse territério da- quele que contcmpla o coméreio da Rue de Temple, situado do lado oposto & Place de Ja République, e onde os comerciantes, predominantemente de origem asiftiea, ven- dem por atacado. Neste local, as vitrines podem ser esteticumente fascinantes, mas, restrito ao atacado, a clientela & quase invisfvel, deixando as ruas vazius mesmo em dias de semana. Ao contririo, na Rue Faubourg du Temple, torna-se extremamente dificil manter a ‘caminhada em linha eta, uma vez que, ao longo do pereurso, somos surpreendides por produtos e mercadores dispastos nas calgadas, disputando espago com os pedestres. Calgadas sempre lotadas, seja em horirio diurno ou noturno, deslocar-se nesta rua € ua, Campinas, 9: VOI-127, 2003 Ana Lita C. da Rocha Cornelia Fckent us estarno meio de uma pequena multidio que se acotovela ¢ a palavra “pardon” é ouvida aqui ki A divisa entre a Rue Faubourg du Temple e a Rue de Belleville (trecho que cons: tivufa a principal rua do antigo vilarejo de Belleville) situa-se no eruzamento com as grandes avenidas denominadas Boulevard de la Villette ¢ Boulevard de Belleville (esta ttima conhecida por abrigar 9 ponto turistico do Cemitério Pére-Lachaise). Fe- char os olhos nesta eneruzilhada e ouvir os sons em diversas linguas, uma polifonia de vozes, nos desvendam atores dialogando em francés, érabe, aftieano, portugui fazendo-nos lembrar da nag manssiana de mana na obra sobre a diva de Marcel Mauss, pois certamente este & um territério onde misturam-se as almas ¢ as coisas, Um olhar mais atento as Fachadas das casas comereiais confirma o multilingtiismo como marca local, Ao lado da indicagdo do estabelecimento escrito em francés (boulangerie, patisserie, coiffewr), noblesse oblige, encontramos regularmente as informagdes traduzidas na escrita chinesa, drabe e turea ete, Esta imagem de cruz mentos culturais é reforeada com a plica que anuneia a presenga da filial Quick, fas food americano, cercado pela ambiéneia fortemente européia de cafés tipicamente n carrossel tradicional dispmutado poreriangas, das padarias, confeitarias tipiease da fachada dos grandes prédios que se sucedem na ra Escolhemos um trecho de nossos disrios de campo para descrever esta ambi ‘to mesmo tempo confiasional e fusional. Na rue de Belleville, em Paris, um viajante desavisado pode se semir choca do com « surpreendente misnura énica do bairro (3 junko 2001)." Hoje, dia 17 de agosto, percorremos novamente « rue de Belleville e confirmamos que 44s nossas prinieiras impressbes regisiradas no didrio de campo, logo da nos- sa primeira caminhada nesia rua, no inicio de juno, nao eram exageradas Hoje, para se chegar neste “canto do mundo”, néo & preciso se destocar de metro, o sistema de transporte mais popular na cidade de Paris. Nossa resi- déncia ndo se situa muito longe deste territério, O dia estava bom e convida- tivo para uma emografia de rua, termo que adoiamos, em 1997, para desen- volver exercicios de observacito de itinerdrios urbanos na cidade de Porto ua, Campinas, 9: W1-127, 2008 116 Bmografia de Rua: Estuto de Antropotogia Urbana Alegre. Alidis, ao sair de casa, na Rue de la Fontaine au Roi, pode-se dizer que estamos no territério da multiplicidade émica tipica do bairro. Ainda na nossa rua, na quadra oposta ao nosso prédio, um restaurante senegalés, ao lado dele, um restaurante cubano e, segnindo-o, na mesma calgada, wm restaurante tipicamente francés. Na esqiina de nossa quadra, wm bar com clientela que escuta em alto volume nuisicas cantadas em drabe ou rocadas com a popular guitarra argelina, Mistura de signos que anunciam a caracte ristica do bairro: uma torre de Babel, uma sintese do mundo, No curto per- curso que se faz na Avenue Parmentier, antes de subirmos @ Rue du Faubourg du Temple em direcio a Rue de Belleville, podemos registrar alguns comérci- os dominados por hindus (ow serdo paquistaneses?). Estas lojas comerciais se sucedem, mercadinhos, barbearias ete. Atravessamos, assim, este peque: no trecho da Avenue Parmentier, subindo a Rue Faubourg du Temple aé 0 entroncamento da Boulevard La Villese com a Boulevard de Belleville, que nos introduzem na Rue de Belleville, Neste carrefour temos a tentagio de Jotografar indo. Mas evitamos neste momento en que queriamos estar aten- tas aos personagens da rua, Um grupo de trés homens de origem hindu ow paquistanesa conversam na esquina, mas eles sdo minoria perto da quanti- dade impressionante de homens de origem argelina (ou serdo magrebinos?) que se espatham nesta exquina. Parece wna manifestagdo, mas eles esto todos apenas conversando em local piiblico, afirmando ser a rua o lugar masculino por exceléncia desta cultura. A presenca destes personagens nos cafés de esquina & massive. Cumplicidade predominamemente masculina, sem divida. Tomam café, bebem cerveja ¢ fumam muito as tradicionais “narguité” (cachimbos de origem persa). Varios grupos de homens se for- mam, 08 cumprimentos com beijos na face sao freqiientes, lembrando ser este um costume nio s6 francés, mas também presente na cultura érabe. Os mais jovens parece preferir un aperto de mdos, mas tudo indica a presen- cade relagoes de bairro ou de vizinhanga, ou simplesmente “habitués Ouvem-se varias linguas possiveis com predomindncia do arabe. O movi- mento é incessante, Passam, caminhar, tomam diversas diregdes, provan- do que evocar os limites da rua é wna preacupagio erronea, Num esforso, ua, Campinas, 9 HOI-127, 2003 Ana Lc C. de Rocha ¢ Cometia ckert 47 observamos quem sio as mulheres nesta habitdnia improvisada e percebe- rnios que siio as mulheres de origem africana vestidas a caréter as mulheres de origem asidtica que dominam as calgadas em atitude clara de comprado- ras de produios diversos na imensidao de lojas ¢ armazéns que dominam a Rua de Belleville Sem duivida, por iniimeros indicios, podemos afirmar que estamos num territério parisiense, embora a estética urbana que predomine nao & a da suntuosidade de uma Franga mondrquica ou medieval, © mesmo de uma Paris haussmaniana como aquele que 0 turista insistentemente busca nos arrondissements 1,9 ou 16°. Na contra ‘mio do turismo de uma histéria monumental francesa, Belleville, viveu e, ainda vive, sob outro ritmo temporal, Segundo upontam os livros de histéria da “velhit Pa nnhum outro canto da cidade conservou suas caracteristicas campestres por m que Betlevite Até fins do sée. XIX, a paisagem do bairro concentrava pedreitas, vinhedos, sitios, Pomiues, abatedores ¢ algumas fibricas de manufaturas ¢ armazéns, separados entie Si_ por ruelas estreitas que se entrecruzavam, com Jarguras diversas, variando de 60 centimetros ¢ 2 metros, onde galinhas, patos, cdes e pessoas disputavam scus espagos dle vida, cercados por tertenos vagos, jardins abandonados, tavernas, cabarés e casas acinzentadas de dois andares, com corredores fechados por pequenas cercas de madei- ra em lugares. Um cendrio que herdara os vestizios de ambigneias de sociabilidades coletivas de outros tempos, época em que ali realizavamese as famosas corvidass de touros ¢ a pitoresca festa do vinho com bebedeiras, orgias © badernas conhecidas ¢ reconhecidas na memria dos parisienses como a época em que Paris tomava-se “Roma sem 0 Papa Segundo consta, ainda, em outros relatos que coletamos, o baitro nasce na paisagem, urbana de Paris, aealentado por uma importante presenga de movimentos de revoltas & conspiragdes populares que acompanharam a histéria francesa do século XIX. Uma histéria marcada pela agitagio politica que termina com a supressdo inteira da comuna de Bellevitie, em 1860, e, posteriormente, com a 1 de parte de seu terrt6rio a regitio purisiense, recebendo, desde ai, em diferentes épocas, levas de imigragiio de sts procedénci is tempo ccujas marcas plurigtnicas caraeterizam o local. A forte presengaa ampinas.9: 101-127,2003 1s. Emografia de Rua: Esato de Antropologia Urbana recorrente destas camadas de diferentes tempos, através da referénein do olhar etnogrifico aos seus fragmentos e detalhes na paisagem urbana desta area do bairro, amalgamuam-se no tempo presente de nossa caminhada. Desde 0 inicio do empreendimento do exerefcio, portanto, fidis a idéia de aprofundarmos us reflexes em toro da “etnogratia de rua” como técnica destinada a0 estudo dos itineririas urbanos ¢ & meméria coletiva no mundo contemporiineo, insist ‘mos em caminhadas pela Rive de Belleville, onde 0 destino final, em termos geogriti- cos, pode ser considerado a Porte de Lilas, uma das portas que delimita a fronteira entre a cidade de Paris, organizada em 20 bairros, ea periferia de Paris, conhecida pelo nome de banliewe, Em intimeros pontos dos trajetos adotados para se atingir a Rue de Belleville guia vyam-nos algumas publicagdes destinadas a curiosos sobre as histérias registradas ma rmeméria dos bairtos parisienses e de suas regides limitrofes. Com essas intengBes, nos deixamos levar por idas ¢ vindas em muclas que cortam a Rue de Belleville, & que nos conduziram a belas ¢ boas surpresas, como foi 0 caso da descoberta do Parque de Belleville, cujo acesso por uma pequena ucla, a Rue Pia, bordada & direita, com ‘algumas antigas drvores herdadas das velhas alamedas ali existentes, e que esconde dos passantes a “bela vista” da cidade de Paris que dali se pode ter, sem precisar disputar com nenhum turista o melhor ponto de visao. ‘Mantivemos caminhadas constantes na tentativa de se descobri uma Belleville “no tempo de outror”, mas cujos indicios nos ligassem 2 atual Belleville, Essa foi a forma como tomavamos contato com os pequenos pedagos de paisagem que so quas inv veis se comparados com a agitagio da Rue de Belleville, como foi o caso da Rue de Hermitage. Nesta rua de tragado irregular, quase um beco, e que se situa 3 esquerda de quem desce a colina de Belleville, ainda se podem observar diminutos eonjuntos arquitet6nicos formados por aglomerados de antigos casarios, com seus jardins aperta- «dos por prédios de apartamentos. Todas estas casas baixas foram adaptadas as ativida- des de seus novos donos e/our moradores, em geral artistas, num sinal da permanéneia dda aura através da qual Belleville tormou-se conhecida na meméria da cidade. Mesmo na ausénia da antiga Belleville e dos seus acidentes geogrificos (Fontes, pedreiras e pogos) para nos situar na ambineia romantica do bairro, a cada nova sada us, Campinas, 9: LOL-127, 2003 ‘Ane tsa C. da Rocha ¢ Comelia Bekert irr) insistiamos em levar conosco o atual mapa de Paris numa das mios e, na outta, livros da “velha Paris” que narravam historias pitoreseas do lugar. amos, assim, caminhando a ppassos lentos, surpreendendo-nos aqui & aco com os trajetos sinuosos das nus quc, vez por outra, cortavam, em ziguezague, a Rue de Belleville, conduzindo-nos em dire 80 ao topo do morro de Ménilmoncant Em outra ocusitio, deslocando-nos esquerda de quem sobe a Rue de Belleville, em diregao da Place de Fétes. atingimos, no coragio do 20° arrondissement, o Parque des Buites Chewmront, O passeio havia sido programado no semtido de aproveitarmos, como moradoras do local, a ambiéncia tipicamente de lazer de fim-de-semana dos par- ques parisienses num quentissimo dia de verdo, Pais com seus Tilhos, easais de namori- dos, grupos de adolescents, solitérios empedemidos, eachorros e seus donos, vendedo- res de sorvetes, cata-ventos e baldes, enfim, uma multidio de pessoas passeando, dei- tadas na grams dos jardins ou sentadas nos bancos acotovelavamese para disputar um lugar aosol, Recém-chegaclas do mais rigoroso verio tropical, ao contratio dos pai ‘que acabavam de sair de um longo inverno cinzento, frie e chuvoso. apenas des ‘mos uma sombra agradkivel, protegidas do sol e do calor intenso que Faia naquele dia, Nos deslocamentos constantes, nos divertfamos com o fato de estarmos ora no 19 arrondissement, ota no 20°™ arvondissement, uma alteragao de posigiio no mundo que dependia de onde estavamos situavlas, se de um ou de outro lado, esquerda ou direita de quem desce a Rue dle Belleville. Uma divisao juridico-administrativa que no alterava « paisagem da rua, muito menos a feigdo do proprio bairro, assim como niio prodvzia henhum efeito de marcas diferenciais entre os estilos de vida clos moradores locals Nas caminhadas constantes, quase sempre a descoberta de pequenas ruelas ¢ impasses como ineidentes de percurso marearam nosso afistamento da Rue de Belleville, Num destes dias, aproveitamos a visita de uma colega, Blizabeth Lucas, para nos colocarmos como guias turisticos de seu deslocamento no bairro. Optamos por subir a eolina de Méniimontant de Gnidus. 0°96", até as proximidades da Place de Saint Fargeau, Pponto final de virias outras finhas de Gnibus. Uma passageira brasileira que se encon- Fava no 6nibus, ouvindo nossos comentirios em lingua portuguesa sotaque brasileito, identificou-se rapidamente como antiga moradora do bairro ¢ profunda conhecedora de seus hibitos e caracterfsticas, indicando-nos varias outras opgdes de trajetos que des conheetamas, ‘Rew, Campinas, 9: 101-127, 2008 120 Etwagrafia de Rica: Estado de Autvopotogia Urbana (© enconteo foi um lembrete para nés de que ainda tinhamos um longo caminho de aprendizagens sobre os diversos territ6rios do bairro que permane 440s nossos olhos. Humildemente descemos do Gnibus, caminhamos até a Rue des Pyrenées, de li iniciamos, entio, a “descida’ da Rie de Belleville, pois estévamos no alto da colina, Pequenas ruclas sem safdat nascem em perpendicular & Rue de Belleville Aproximando-nos da igreja Saint Jean Baptiste de Belleville, prestivamos mais aten- ‘glo a seqincia de edificios, buscando aquele onde hiaviantos Visto, em nossas primei- ras incursdes no local uma placa anunciando que ali havia habitado a cantora francesa Edith Piaf, tendo, segundo biografias, nascido nas préprias escadarias que conduziam ‘408 apartamentos, com a sua mac em estado de embriaguez Na ocasiio, “descer” a Rue de Belleville era petcorrer 0 caminho inverso do que amos nos habituado a fazer quando deixavamos a nossa easa em diregiio ato bairto. Do topo do morro, esforgando-nos por olhar por cima dt curva que essa rua desena, primeiro & direita, e depois, em forma de “S”, a esquerda, pade-se ter uma idéta dos ‘motivos otiginais que deram este nome ao ltigar, Posicionaclo quiase no topo da colina, 0 etndgrafo-turista consegue uma helle vue da cidade, uma imagem fugaz da Tour Biffel que € logo recortada, aqui e ali, pelo perfil das fachadas dos prédios de apartamentos que hoje ocupam a sire. Visto de cima, sob o topo do plateatt de Ménifmontant, de 117 metros, desce-se quase em linha reta até a Place de la République, um dos carrefours que liga e Sguam no 11" arrondissement, No percurso de nossa etnografia de rua, em Betleville, a interagio com 0 Outro nem sempre & possivel. Em alguns, cle é simplesmente provocado pela situagao de pesquisa propriamente dita, em outros, este encontro procura se revestir do tom casual de nossas aghes ordindrias no baitro como parte integrante de sta populagao de habirués, como descrevem os fragmentos do cotidiano etnogrifico transcritos neste trecho de didrio de ‘campo que segue Forma de estrela indimeras ruas ¢ ave das que des Para jotografar um contexto interno na rue de Belleville, entvamos mun sa- Io de beleza e tentamos estabelecer uma conversagie com a proprietiria e eu, Campinas, 9: 101- 7.2003 Ana Luiza C. da Rochae Comelia Eokert I funcionérias, todas mulheres asidticas. A proprietéria ndo permitin que eu fotografasse o local para disfarcar meu constrangimento, optei por dizer que também estava té para um corte de cabelo, buscando durante este ten Po, explicar-me methor. O que fot aceito sem nenhum entusiasmo, passando- me para una jovem que nao falava francés ¢ indicava todas as acaes que devia seguir com gestos e palavras soltas em chines, O diélogo. em plena Paris, fora interrompido pela barreiva da thagua Em ambos os momentos por nés assinalados, 0 “caminhae” do eindgrafo busca as iferengas entre o olhar da investigagao e o olhar que orienta as eaminhadas nos locais, turisticas de Paris, onde este staius, “turista”, parece revestir a todos de um Protegio & critica ou ao olhar reprovador. A foto antorizada ao turista parece ser me ‘comprometedora de uma situagio de insergao no local repleta de priticasilegais ¢ estra- {égias de sobrevivencia, pressuposto que podemos exemplificar através deste telato: Mais wna recuse para fotografar, desta vez um vendedor de castanhas para- do na esquina da Place de ta République. Um carvinho de supermercado é a “churrasqueira” provisdria, onde um fogareira com carve em brasas es- quenta as castanhas depositadas em una chapa com furos. A reagéio do pro- vdvel indiano foi taxativa, néio! Agui uma pressuposi¢ao passou a ganhar Jorma para nds: ndo é negligenciavel 0 ntimero de trabathadores estrangei- 10s, principalmente vendedores ambulantes, em situagdo irregular, A foto- grafia se wrnaria una prove desta atividade ilegitina e, por isso, em geval a foto “posuda” é recusada. A negociagdo mais longa é impossivel devido & barreiva da lingua, sao trabathadores que nao falam francés ¢ se excondem em seus segredos de comunidade étnica. Uma outra parte extraida de nosso dirio de campo ilustra esta forma “casual” de ‘euparmos os lugares de vida urbana na Rue de Belteville tal qual apreendemos como “etnografia de rua” € como ela permite, por sua fluidez, que possamos nos aproxin contexto urbano de grandes cidades como estes fossem verd ‘ua, Carmpinas, 9: 101-127, 2003 122 Emografia de Rua: Esuulo de Autropotogia Urbana In és compras es Belleville, na tentativa de descobrir temperos e ingredientes para wna feijoada “i brasileira” & descobrir lojas de espectarias antithesas ¢ africanas. Lojas que procuramos também levadas pela necessidade de com- prar certas bugigangas de plastica para a cast, ¢ que no Brasil encontra- mos nos supermercados. Aqui, para comprar um balde, uma garrafa térmica, copos de vidro ou material elérrico vai-se nas lojas “dos drabes”, se quere- ios comprar tecidas para cortinas ¢ almofadas nos deslocamos até as lojas dos “indianos” ¢ africanos, para renovar 0 estoque caseiro de mothos ¢ chis, hd os supermercade das “chineses". Podemos, se for 0 caso, “dar um pulo” no Monoprix, um supermercado “bon marché”. com aparéncia de wna oja de departamentas, para ver as ofertas de vinhos & queijos franceses. Todas elas sao sempre boas ¢ nobres razdes para percorrer a Rue de Belleville ‘em seus mais diversos comextos, como se ali vivéssemos hai um bon tempo. Sem diivida, ao final de cada ida a campo sempre acabamos nos interrogan- ldo sob a forma como a aparéncia cadtica da rua niio sé agrada aos nossos olhos de emégrafas da desordem urbana, mas desafia nosso senso estético ao provocar a busca de wn sentido para a diversidade tensional de cores, lemperaiuras, cheiros, texturas, famanhos, formas dos produtos comercialicados nestes lugares, tal qual as préprias pessoas que transitam por entre as prateleiras, corredores e culcadas de Belleville. Um esforco reflexivo que vem sempre acompankado do aio recorrente de nos disfarear- mos no Outro, certamente net tentativa de encontrar ali, nds mesinas, 0 nosso lugar de estrangeiras em Pavis, fazendo desta ria a nossa casa natal. Certamente. algumas convengdes sociais nat forma de habitar tis reas de wm baicro parisiense nos pareciam familiares, nao s6 por ji termos vivido na cidade Paris para desenvolver programa de doutoramento, mas por compartilharmos uma cultura urbana que, mesmo em se tratando de Brasil e de uma cidade da escala de Porto Alegre cultiva o gosto pelo deslocamento no anonimato, Entretanto, caminhar por Paris nos limites tragados pela Rue de Bellevitle nos reme- tia constantemente ao nosso encontro, como estrangeiras, com a multiplicidade de cul a, Campinas. 9: 1DI-127, 2003 Ana Luiza C. da Rocha e Comelia kckert 123 turas e etnias denunciads niio apenas pelas diferengas entre tons de pele, cor dos othos, tipos de roupas, de penteados e aderecos, de expressBes e gestos etc. dos habi- tantes locais, homens, mulheres ou eriangas, moradores ou nao. Havia igualmente a confrontagiio com as inimeras sonoridades de voz com que 0 Outro se apresentava aos nnossos olhos, Seja em arabe, chinés, vietnamita, hindu, idiche, seja nas linguas africa- nas que nos era dificil de precisara origem, todas elas, ao mesmo tempo, neste espago parisiense, nos incitavam constantemente a uma reflexio sobre nossa propria lingua e cultura como estrangeiras ap lugar, apontando para 0 esforgo de “vigilancia epistemolégica” a ser feito para ultrupassar tais barreiras, Um pequeno trecho de nosso dio de campo pode ilustrar esse processo aqui apontado No dia 5 de outubro, 0 tracado percorrida néo se diferencia muito de can nhadas anteriores, Caminhar pela Faubourg di Temple e pela Belleville objetivo, mas neste dia carregamos um aparetho forogréfica. A imengdo maior € buscar a riqueza da muliplicidade éica, Nao € dificil cumprir este abje- tivo pois este & 0 contraste predominante. Lojas comerciais de origem arabe, judid, hindu, chinesa, viemamita, cubana etc. se avizinham num aparente harmonia contrastande com o clima de conflito e tensdo mundial enare as culturas orientais ¢ ocidentais que a operagao vigilincia-piraia do governo francés, em seu programa contra o terrorismo, busca acordan Mas nessas ruas nenhum poticial se faz presente. As diversas emias ali presentes certa- mente preeisam recorrer as noticias da imprensa e televisdo para lembrar que a chamada guerra americana ou ocidental contra 0 terrorismo acontece esse mesmo momento em algun lugar. Fotografamos veirios estabelecimen- Jos ¢ situacdes na rua, Um vendedor ambulante de origem hindu vende mi thos aquecidos no carvéio. Néio entendemos de onde possa ser a origem des- te habito. Perguntamas para ele se podemos fotografar ¢ ele cousente, coisa rara, pois em geral temem as fotos por serem srabalhadores érregulares. Mas 2 ditlogo sobre a pritica da venda do mitho nto prossegue, porque 0 vende: dor niio fala francés. Um outro seuhor, parecendo ser de origem drabe, per- guuta @ que procuramos saber. Repito minha pergunta ¢ devido a meu forte soraque ele interroga de onde venko. Respondo ser brasileira, O senkor, que Rua, Campinas, 9 101-127, 2003 24 Ennografia de Rua: Estudo de Antropotogia Urbana entendi ser uma espécie de “fiscalizador” da possivel aproximagiio de fis- ais offciais. pergrmta se sow urrista, Respondo que sin e delicadamenie jus tific udo conkecer a origem do habito de vender mitho queinado. O que importa é que todos comprem, Lembramos que os Jranceses costumeam ven- der castanhas da mesma forma, alimenacdo que os teria salvo da fome em uiinos nosso caminho sempre diversas sitagdes de guerra ¢ de miséria ‘fotografando, visando a interagdes ¢ « prova de que, em Paris, a estética urbana & a mistura de estitos, Retomando-se 08 diitios de eampo para fins de analise, somos atrafds pela cultura polifdnica tratada por Bakhtin” e por seu conceito de heteroglossia visindo a dar conta, ‘aqui, da capacidade de convivialidade plural em Betteville, das quesifes de identidade Sinica, das tenses inerentes multiplicidade de linguas, dialetos e sotaques Fulados, dos atranjos nas formas de sociabilidade locais © das iniimeras formas estéticas que se tecem segundo as miltiplas © complexas formas de interagio, eventos efémeros ob eventos cotidianos e habituais que nos apresentam os referentes urbanos em que © contexto social se ancora A upresentagao de outro extrato do didrio de campo pode aqui exemplifiear, mais precisamente, o que dissemos aime No dia 5 de setembro, a caminhada como sempre foi iniciada na rue Faubourg du Temple. A imengao era seguir un tracado mais desordenado rendo esta rua e a de Belleville como referencia, fazendo quase um ziguezague. Na esquina com Boulevard de la Villette um grupo de seis pessoas formado de homens e mulheres, este sentados na ealgada com clara aparéncia de en- briagues, Parecem ser de origem jrancesa, repetindo wma tendéncia que observamoy nas Has parisienses: pessoas em geral de cor branca, na faixa de 30 «1 50 anos. esida sentados em calcadas ou degraus de lojas conswmin- sar, pedem dinheiro & do mite élcool. Costumam ficar sempre no mesmo ti frente & recuse dizem um simples “merci”, ow mesmo wn desaforo, certamente * akiuin, 1992, ue, Campinas. 9: 101-127, 2008 Aaa Luca © da Rocha e Cornelia Fokest 125 devido ao estado de embriaguez, Nesse dia nav faz frio. Outros baneos sao acupados por homens provavetmente aposentades devido & aparéncia mais idosa, Portan tipicos chapéus argetinos. Conversam em dupla ou peguenos grupos. Conversan em sua lingua de origem, parecem irangiiitos. Aparente- ‘mente joan conversa fora para matar 0 tempo. dé na esquina com a Boulevard Belleville chama a atencdo a quantidade de agougues judeus préstmos a tuna sinagoga, Os negdcios estavam todos fechados com bilhetes excritos a mio amaciando os obséquios de wn dos patrbes. Onque vivemos nos percursos.cotidianos ¢ intensamente 0 movimento, i interayio, as priticas cotidianas. efemeridude da nossa passagem, entretanto, certamene Hos i pede de desvendar uma série de eddigos locais, etiquetas, segredos, nao-dites, gestos, olhares ¢ agdies que nos passam desapercebides, e que apenas uma continuidade da pesutisa de campo neste espago pode clucidar. Mas & a propria experiéncia de =eunkaniento/Familiasizagdo que est sendo dramatizada, Aparéneias imediatas bus ccaun ser ultrapassadas em pate peta imagens que retemos, pel fotografia, poly video, 1 no distro. Ean especial, no que se refere an uso dos recursos audiovisuais, nossa opgiv for neste momento, fotografar com urn efinera Uigital as eens, person dramas que compunhatn « puisugem urbana de Belleville, como se reflete nesta passa gem do disrio de campo: pela deseri Neste dia, nosso destocamento com « muiguina parece nko chamar a aten- Go, pois a pritica do turismo no local ndo é esiranha avs moradores. A obscenidade que nosso othar indiscrew passa provecur parece néo income dar. A luz para tomada fotogréfica é boa. Um tipico dia de outono. 0 enguadranento € ora nu sentido horizontal, ora vertical. Pode-se abservar que tenlemos « enquadrar de forma retangutar certamente devido a estrvte ca da sua ¢ « intengao de, neste momento, buscarmos mapear os espacos ile continuidade das ruas. Fotografinos interaybes ¢ cendrios que para nés aduzen as formas do Inger: Interagir com as habitantes foi wn pouce mais Sustraute. a, Camps, 9 101-127, 2008 126 Emografia de Rua: Estudo de Antropotogia Urbana -0 da cfimera fotografica ou da cmera de video nas eaminhadas por ~vaa reconstrugio de uma narrativa a partirda propria temporalidade do no instante em que 6 acontecimento se desenrola sob nossos olhos, a presenga de todas as outras imagens que nos habitaram em mo- rmentos e situagdes anteriores quando o olho que registrava nfo era o da cfimera, mas 0 olho humano repleto de pequenas impresses mnésicas, experiGneias sensoriais, evoea- {do de imagens de outras cenas urbanas, em outros baitros, cidades e pafses, Cenas evocadas pelo diario de campo, pela fotografia ou video, pouco importa, tra- tamese de imagens que nos habitam na medida em que nos desloeamos pelas ras, avenidas, lojas, esquinas etc. Da Paris de Hemingway a Paris de hoje, de Paris a Porto ‘Alegre, e vice-versa, elas estilo If, conosco, a exigir 0 rigor comparativo com as ima gens apreendidas que dio sentido ao evento urbano propriamente dito que encerra a Ouse sistem: estas ruts obj registro da im fo que desencadeia cetnografia de rua, em Belleville, Résumé Vaile derive une étude amthropogigue sx Tes wis et milieu urbain a Porto Alegre et Paris (BrésilFrance) que d tout en uliisant des instruments audio-visuels dans let vidéo), Le but eoncerne la ecereie deta yang desi Sura ville sous la perspective des formes dela vie sociale afin de construire un repertoire plus tate des Tormes de snciabilité du milieu urbinet ses variations culturlles On propose l'exeteice de ethnographic “dere come une maniére de coneevoir les trnsfoxmations des tetoies dea vie rane Foca a in de 4 Pesthésiqu urbaine dans fs vill. 1 posiques vsuelles dans le oppe latechnigue W'ethnographie de me I de terrain (camera photographigue et retionsetreprésentations sociales dans et para analyser sur Ia mémoire collect Referéncias Bibliogrficas BACHELARD, Gaston. 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