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A MORTE COMO POSSIBILIDADE DE CONCRETIZACAO DE UM DESEJO (Uma leitura de “Morte” de Junqueira Freire) Roberto Boaventura da Silva S4 (Letras - IL. UFMT) Luis José Junqueira Freire, ao completar 19 anos, entra, como seminarista, na Ordem Beneditina, em Salvador, motivado por desgostos familiares, Em sua vida, os acontecimentos sio sempre de ordem interior. Segundo o critico Alfredo Bosi, “em Junqueira Freire éprecisamente esse convivio tenso entre "eros" e "thanatos" que sela a personalidade do religioso e do artista malogrado", Afinal, morando no seminario, nao se esquece dos prazeres mundanos. No poema “Morte”, objeto desta leitura, inserido nas Inspiragdes do Claustro, essa tensio apresenta-se bem evidente, pois 0 et-poético procura, a todo instante, mostrar sua angtistia por nfo ter encontrado quem merecesse os seus amores. Assim, passa @ clamar pela morte para que quando seu corpo, enquanto pura matéria, for depositado na cavidade terrestre, consiga a relacéio sexual téo desejada com o proprio elemento terra sob a forma de buraco. No sentido de se comprovar este enfoque, nao perdendo de vista a necessidade da sintese forma/contéudo no texto literério, recorreu-se a elementos da simbologia, especificamente aos mameros que dao formato 20 préprio texto. Sem a recorréncia, quaisquer afirmagGes ndo transcenderiam aos limites de uma impressio. A construcio do poema “Morte” apresenta os seguintes ntimeros: 19 estrofes distribuidas em quartetos. Das 19, 11 esto Aispostas em versos decassilébicos. As 08 estrofes restantes, em versos heptassildbicos. Deste emaranhado, nada teria dimens&o signiticativa se o tema nao fosse a morte e, em especial, a maneira como ¢ tratada pelo eu-poético, No desmembramento do mimero 19%, terseé: 1+9=10, ©oincidindo com as medidas dos versos decassilabicos. Nos estudo de humerologia, 0 “10” simboliza a perfeicdo, a completeza espiritual, mas pode também expressar a unidade atuando como ntimero par (ambivaléncia) ou comego de uma série total. De fato, a perfei alvo do eulirico. Todavia, ante a angustia existencial, sua principal Companheira, surgem as irregularidades ou a quebra da perfeigéo na PrOpria construgéo da forma poética. O prentincio de que o estado Perfeito nao seria atingido encontra-se j4 na mencionada subdivisio 143, das estrotes, Conforme Eliphas Lévi®), 0 mimero “11" indica transieg perigo: ntimero do conflito e do martirio. Ora, ja se falow do ter conflito entre “eros” e “thanatos” vivenciado pelo poeta. Divi responsivel pelo martirio, Sofrimento atenuado nas intercalag das vito estincias de redondilha maior; visto ser 0 “08", o simbolo regeneracdo, ou seja, da vontade de vencer 0 martirio, a angi existencial. Em contrapartida, vez mais, isso nao serd possi porque, em sendo oito estrofes as simbolizadoras da regeneraci estas sio de versos heptassilabos. E 0 “07” corresponde & tridimensional, simbolizante da dor. De novo, o martirio. Portanto, impossibilidade de se obter a perfeigéo em vida. Continuando 0 raciocinio em que os ntimeros explicam | composicéo, verificase que todas as estrofes sio compostas quatro versos (quarteto). © “04”, no texto, ¢ basilar por ser 0 simbol da terra, da espacialidade terrestre, do situacional: “Quero o chéo, quero a terra - esse elemento Que nao se sente dos vaivéus da sorte" Por outro lado, nu observacao da presenca das rimas, perceber sea cada estincia formada no esquema (ABCB). Os primeiros terceiros versos s2o brancos. Os segundos e quarts rimam entre si com 0 detalhe de as rimas serem perfeitas. Assim, se se observar esquema visto na real posic&o versifica, tem-se: wae ep Mesmo néio sendo possivel chamar, consoante 0 tradicic nalismo teérico, tal esquema de rimas alternadas ou eruzadas, por apresentar, na verdade, misturado, quem poderia, mesmo assim negar a existéncia de um cruzamento dos versos, no tocante a rim em todas as estrofes de “Morte” zamento que remete ao sign’ cruz, de sigificativa importancia ao texto em analise. Para o cristianismo, religiéo do monistico, “no complex simbolismo da cruz... entram dois fatores essenciais: 0 da crt 144 ropriamente dita € o da crucificaco ou estar sobre a cruz”. 4 (...) *Em sentido ideal e simbélico, estar crucificade é viver a esséncia do antagonismo, base que constitui a existéncia, sua dor agénica, seu cruzamento de possibilidades e de impossibilidades, de construcao e destruigéo."5) Em sintese, a cruz 6 a conjungio de contrarios e entre as oposigdes estdo a vida e a morte. A vida, sendo 0 comeco da nova série total, no poema, 86 existiré apés a morte que surge relacionada com o elemento terra: “Vermes que sobre podridoes refervem, Plantinha que a raiz meus ossos ferra, Em vos minha alma e sentimento e corpo Indo em parte agregar-se a terra.” O senso de realismo, nesta estancia, chega mesmo a antecipar Machado de Assis em Memoérias Péstumas de Bras Cubas no momento em que seu personagem Bras Cubas dedica as suas memérias péstumas ao primeiro verme que roer as frias carnes de seu cadaver, £ sempre bom lembrar que Junqueira Freire aparece, dentro da historia literaria brasileira, como um dos representantes da geragao egética do Romantismo, Mas, retornando ao caminho da simbologia, vé-se que “terra”, dentro do texto, refere-se ao buraco feito na mesma para o depésito do cadéveres. E “buraco”, para Mircea Eliade, no ‘Tratado de Histéria de las Religiones, pode ser visto em dois planos: biolégico - fecundacao, fertilidade; espiritual ou transmundano - Passagem deste mundo a outro. Jé os povos primitives da india identificavam o elemento “buraco” com 0 sexo feminino: Nao achei na terra amores Que merecessem os meus Nao posso da vida & campa transportar wma saudnde Por isso, 6 morte, eu amo-te endo temo: Por isso, 6 morte, eu quero-te comigo Leva-me @ regido da paz horrenda, Leva-me ao nada, leva-me contigo.” Diante das simbologias e dos versos da composicao poética, se a procura do ewlirico na terra (buraco) do que na terra (es; global) nao encontrara, ou seja, amores. Desta forma, no instante que seu corpo, apés a morte, for depositado na cavidade terres estaré cle concretizando, metafisicamente, @ relagdo sexual desejada em vida: “Miriades de vermes la me esperam Para nascer de meu fermento ainda, Para nutrirse de meu suco impuro Talvez me espera wma plntinha linda.” Desta maneira, a simbologia se totaliza: espiritualmente, 0 lirico obtém vida na transcendéncia; biologicamente, deixa cor herdeiros, resultado da fecundagdo corpo/terra, “miriades vermes...” ou “talvez... uma plantinha linda”. Nt (1) BOSI, Alfredo. Histéria Concisa da Literatura Brasileira, 3° ed. Sao Paulo, Cultrix, 1985, p. 124. (2) © processo que nos levou a encontrar 0 resultado da adi¢&o dos nameros esta em Helyn Hitchcock, A Magia dos Nameros ao Seu Aleance, p. 65. (3) CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionario de Simbolos. Trad. de Rubens Eduardo Ferreira Frais, Sio Paulo, Editora Moraes, 1984, p. 414. (4) Idem p. 195. (5) Ibidem p. 197. 147 MORTE / (HORA DE DELIRIO) Pensamento gentil de paz eterna, Amiga morte, vem. Tu és 0 tarmo De dous fantasmas que a existéncia forma, — Dess'alma vi e deésse corpo enférme, Pensamento gentil de paz eterna, Amiga morte, vem. Tu és 0 nada, ‘Tu és a auséncia das nogdes da vida, Do prazer que nos custa a dor passada. Pensamento gentil de paz eterna, Amiga morte, vern. Tu és apenas Avvisdo mais real das que nos cercam, Que nos extingues as visoes terrenas Nunca temi tue destra, Nao sou o vulgo profano: Nunea pense! que teu brago. Brande um punhal sobr-humano, ‘Nunca julguet te em meus sonhos Um esqueleto mireade; Nunca deite, pra voayes, Terrivel ginete alaclo. Nunca te det uma fouce Dura, fina ¢ recurvad: Nunca chamer te inimiga, impia, erue} ou culpada. Ameite sempre: ~-e pertencerte quero, Para sempre também, amiga morte Queto 0 cho, quero a terra, ~ ésse elemento Que nao se sente dos vaivéns da sorte. Para tua hecatombe de um segundo Nio falta alguém? — Preenche-a comigo. Leva.me a regiéo da paz horrenda, Leva-me no nada, leva me contigo, Mirfadas de vermes lé me esperam Pura nascer de meu fermento ainda, Para nutrirse de meu suco impuro ‘Talver me espera uma plantinha linda, Vermes que sobre podrides refervem, Plantinha que a ruiz meus ossos ferra, Em vs minha alma e sentimento e, Info em parte agregarse a terra, E depois, nada mais. Jé nao hit Nem vida, nem sentir, netn dor, ne Agora o nada, ~ &sse real t@o belo, SG nas terrenas visceras deposto, who que a morte ao lumiar apa Foi essa alma fatal que nos aterra, Consciéneia, razio, que nos afliger Deram em nada ao baquear na te Gnica idéia mais real dos homens, Morte feliz eu quero-te camigo; Leve-me 8 regio da paz horrenda Leva me ao nuda, leva me contigo, ‘Também desta vida a camp: Nao transporto uma saudag Cerro meus clos contente Sem um aj de ansiedade, E como automato infante Que ainda ndo sabe mentir, Ao pé da morte queria, Hei de insensato sorrir, Por minha face sinistra Meu prante nie corrers, Em meus othos moribund ‘Terrores ninguém le Nao achei na terra amores Que merecessem os meus, Nao tenho urn ente no mun A quem diga o meu ~ adeus, Nao posso da vida 8 eampa ‘Transportar uma saudade. Cerro meus ollos contente Sem um ai de ansiedade, Por isso, 6 morte, et amo tee Por isso, 6 morte, eu quero te com! Leva me a regio da paz horrenda, Levarme ao nada, leva me contigo.

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