O Imperio Bizantino The Byzantine Empire

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tudo historia ) de Oliveira Andrade F° c . sS 2 eS 107 brasiliense Copyright © Bilkrio Franco I. ¢ Ruy de Oliveira Andrade Filho Responsével editorial: Lilia Moritz Schwarez Cop ‘Todo-Poderoso”, mosaico do séc. XI. Revisdo: ‘Marcia Takeuchi Elisabeth Tasiro Introdugio .. ‘As estruturas religiosas ‘As estruturas politicas estruturas econdmicas ... ‘As estruturas sociais . ‘As estruturas culturai Olegado de Bizincio . Conclusio . Indicag6es para leitura ... Editora Brasiliense S.A. . General Jardim, 160 01223 — Sto Paulo — SP Fone (011) 231-1422 INTRODUCGAO ‘Ao se pretender dar uma visio geral, simples |\ mas rigorosa, do Império Bizantino, o primeiro pro- ‘ema que se coloca 6 quanto ao seu proprio nome. De fato, 6 essencial lembrar que “*bizantino” nfo tem Ponotagio Gtnica, mas civiizaciona), correspondendo 0s individuos de fala grega (ainda que seu idioma Seaterno fosse outro) ¢ religito cristl ortodoxa. As- Tum tal grupo de individuos (racialmente gregos, Saincios, aiatices, semitas, eslavos) variou a0 longo Ge hnistéria bizantina, conforme as alteragdes terri- foviais e/ou religiosas ocorridas no império. Por Sremplo, grande parte da populacto do Egito ¢ da Sica, grupo humano dos mais importantes nos pri- Siciros séculos da vida de BizAncio, ao ser submetida pelos frabes mauculmanss, mudando conseqiente- Gdioma e sua religifo, perdeu a condiglo {de bizanting. Ou melhor, de rhomaiot (“romanos”), Scie cles assim se consideravam. De fato, o termo 8 Hildrio Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho (0 Império Bizantino “pizantino” foi vulgarizado apenas a partir do século XVI, depois do desmembramento do imptrio, que ‘em vida se via como herdeiro ¢ continuader do Im- pério Romano. ‘Num certo sentido isso era verdadeiro, pois aqui- o que se tornou conhecido por Império Bizantino era nna origem o Império Romano do Oriente (Grécia, Egito, Siria-Palestina, Mesopotimia, Asia Menor). E realmente, como Roma, Bizfincio uniu através de uma lingua ¢ uma determinada maneira de sentir ¢ ide pensar, povos que nada tinham de comum entre Si, Como 9g antins gress manos, 0 bizantinos consideravam- cos habitantes do mundo civi fizado, rotulando de,bétharas todos os que nfo par- ‘iihavam de sua cultura. Contudo, ao longo de sua cextensa histéria, de 330 a 1453, aquele Estado foi aos poucos mesclando suas raizes latinas com os ele- mentos greco-orientais ha muito enraizados naqueles territ6rios, surgindo assim uma civilizaco nova, ori- ginal, com personalidade propria. Por ; ‘Suastelagties com o Ocidente medieval sempre foram Gificeis. A lingua grega, uma vida material faustosa, tuma culfura refiiada, a concepcfo de um imperador visto como vice-rei de Déus, eis alguns dos elementos inconcebfveis para 03 ocidentais e que of afastava dos bizantinos. if, Mesmo aquilo que poderia ser 0 grande-ponto | de contato, acabou por os isolar irremediavelmente: |o-crisinismo. Elemento central nas duas civilize bes, a era vista, professada, sentida, de ma- heiras diferentes. Para os orientais, sempre mais es- peculatives, herdeiros das_antiqiissimas.religises egipcio- s temas ds Hosoi fia grega, 0 crist nismo era ao mesma tempo fonte de sentimento € reflexto. Por isso envolvia a todos: « palavra ¢ 8 : ha If seu sentido literal, de comunidade, _significando o conjunto dos fis, mortos e vivos. Para 1} ‘0s ocidentais, de espirito mais pragmatico, por muito Secu fx vista comb tits epi de poke tica magica, que nfio poderia ser objeto ‘de estudo ¢ debates [Daf para cles Igreja designar_a hierarquia ’ Sseerdotal,.o grupo de pessoas que monopofizava a comunicagio ¢ a negociago (Feilidade, sade, 7 9 Guexs, vitoria, salvagdo) com Deus.. ‘Contudo, os ocidentais nfo podiam deixar de se ‘espantar diante do esplendor de Constantinopla. Re- velando surpresa, o cronista francés participante da ‘Quarta Cruzada confessou: “ndo creio que nas 40 ci- dades mais ricas do mundo houvesse tantos bens ‘como se encontraram em Constantinopla”. De fato, a velha col6nia grega de Bizancio, criada no século VIL fora refundada em 330 ¢ tornada capital pelo imperador Constantino devido a sua excepcional Jocalizagao. Colocada. ‘entre a Europa ea Asia, todo o trinsito do mar Negro pafa 0 mar Mediterrineo obri- gatoriamente deveria passar por. ali. Estrategica- mente, a cidade também era privilegiada, apresen- tando condigdes naturais que facilitavam sua defesa. ‘Assim, no é de se espantar que Constantinopla tenha provavelmente se aproximado de um milhio de_ habitantes (no mesmo momento em que Roma ou Paris nfo passavam de 20000) e tenha por sé- teens Bog 10 Hilério Franco Jr, ¢ Ruy de Oliveira Andrade Filho culos um dos maiores centros urbanos do mundo. Ai ¢ atividade cultural era naturalmente intensa, © © "de seus preconceitos e resisténcias Jo muito da cultifa bizantina/Por exemplo, até o século XII a arte ocidental Segui, as Yezes muito de perto, modelos bizantinos, como na Jereja que Carlos Magno mandou erguer em Aix-la- Chapelle ou na catedral de Sto Marcos, em V Tndimeras vezes, em guase toda Europa, igrejas, mos- palfcos, esttuas, pinturas, iluminuras, fo; ram inspiradas na producto artistica de Bizincio/O Gireito romano, que a propia Itélia esquecera du- ante a Alta Idade Média, Toi redespertado.no Gente através da compilagia.¢ sistematizaglo que ‘eles (por intermédio dos. retamente no de Platfo, A ciéncia da, Antiguidade, esquecida por longo tempo pelos cristios ocidentais, Seguiu o mesmo eaminho. Enfim, Bizincio forneceu © material indispenssvel paraque a Europa — sobre- tudo a Itélia, por sua proximidade geogrifica ¢ suas relagdes mais freqientes com os bizantinos — pro- uzisse o Renascimento dos séculos XV-XVI e com tle entrasse na Modernidade. ‘Procurando examinar o significado historico de Bizincio, e nfo simplesmente o desenrolar linear de seus fatos, cada capitulo deste livro corresponde juma das estruturas basicas da vida do império. Claro fest, que tal divisto 6 apenas formal, visando uma 0 Império Bizantina ‘methor compreensibilidade da realidade historica bi zantina. Desta forma, deve-se ter sempre em mente “Ne em Fungo disso ha propositalmente repeticdes ‘Ge um capitulo para outro — que na verdade todas faquelas estruturas nfo existiam de maneira isolada, ‘Apenas a articulago entre elas nos permite entender de forma adequada 0 que foi o Império Bizantino. —E————————— u AS ESTRUTURAS RELIGIOSAS Indiscutivelmente, o homem, e portanto a His- ‘toria, € uma globalidade, com suas atividades, an- seios, necessidades, sentimentos, existindo uns em fungio dos outros, formando um todo. Assim, qual- quer andlise centrada sobre a economia, a politica, a cultura ov outta manifestagto humiaiia, decorre ape: ‘nas de uma nécessidade mefodolbgica. Contudo, cada sociedade parece, dentro de’sua totalidade his- torica, enfatizar um de seus elementos constitutivos, ‘Que funciona ento como articulador do conjunto, ‘No caso do Império Bizantino, tal fator sem dii- vida era a religito, que fornecia a ientago do jagto bisica e a justficativa ior, ‘eo significado da pro- cect cra. rl ela parte conside- Pavel dos recursos econtmicos, que determinava o cotidiano dos individuos do nascimento a morte. Mais do que isso, Império era — daf sua importincia e BP Oddo he Draws f Olmpério Bizantino ob. Oc) <% De homwiup B ‘sua razio de ser — uma antecipagiio do Reina dos ‘Céus, uma eépia imperfeita mas que preparava_os ‘homens para Aquele. Para tanto deveria ser just crente, mas, € assim os bizantinos explicavam o fra- casso politico do império, como ele fora dominado pelo pecado, Deus puniu essa cépia terrestre que se afastara demais do modelo celeste, destruindo-a. Essa_importiincia_central_da_religibo fic monstrada por tres fafores: extensto.¢ fas estruturas, — a intensa ¢ exaltada espi- ritualidade popular, as indmeras controvérsias teold- gicas com pesados desdobramentos politicos e 56° siais. No primeiro caso, o papel desempenhado pela hhierarquia clerical na vida do império dependia mui: to da figura de seu chefe, 0 patriarea de Constanti- nopla. Contudo, desde suas origens ele esteve intima. ‘mente ligado ao poder imperi: undo Concillo Beuménleo, por presto. in love x fom gs ae ane an politica a diocese da nova capital ganhave sobre as de Alexandria, Antioquia e Jerusalém, sar destas terem sido fundadas por apéstolos. A mntrrio do que corr Ho Osten onde ‘de uma forga politica permitia ao Papado Seivolver-se como um poder independente, em Bi Ancio o Patriarcado desde seu inicio esteve atrelado aperad "Est faa a propria gcoloa do patrarca a parte de uma lista triplice claborada pot'um sinode, mas “ Hilério Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho 0 Império Bizantino 18 1 freqiientemente acabava por indicar um quarto no- me, totalmente de sua confianca. Em funcHo disso, algumas vezes foram indicados laicos, que ocuparam ‘© mais alto posto da hierarquia eclesiistica sem ja- mais terem anteriormente feito parte dela. Mas tal intervene dos soberanos, ios da lereja era consider , MEsMO Porque, como nos con- ta ti ja do século XII, eles se julgavam “os intérpretes infaliveis das coisas divinas ¢ humavias, ‘certos de qué nessas matérias no sto inferiores a ninguém, apresentando-se cof intérpretes, jutzes definidores dos dogmas”. ‘Completava-se assim a fusdo tipicamente bizan- tina entre o temporal ¢ 0 espiritual: © imperador, ‘como sabemos, reunia em si as duas atribuigdes, © © mesmo deveria ento ocorrer com 0 segundo perso- nagem do Estado, o patriarca. De fato, este, além de possuir a suprema jurisdigao em matéria eclesiéstica, ‘com suas sentencas criando jurisprudéncia, assesso- ava o imperador mesmo em questdes temporais. Desde o século V, quando nio havia imperador ou imperatriz vivos para coroar o sucessor, isso era Teito pelo patriarca. No caso de minoridade do imperador, 6 patriarca era figura obrigatéria no conselho de re- géncia, a que muitas vezes presidia. Ainda que de maneira geral ao longo da histéria bizantina ele te- nha permanecide numa posicdo secundina em re- lacdo a0 imperador, 0 patriarca podia, e o fez al- gumas vezes, discutir e criticar atos do governo, im- por peniténcias ao soberano, interditar-lhe os oficios religiosos e até excomungé-1o. Mesmo um cédigo im- perial de fins do século IX reconhecia que ““o pa- triarca € a imagem viva de Cristo”. Por tudo isso, a concérdia entre o imperador ¢ o patriarca era vista como condicdo bésica para o bem-estar espiritual ¢ ‘material dos bizantinos. ‘Abaixo do patriarca na hierarqui via, no século X, perto de arceblapos que por rocos. O valor moral ¢c Episcopal naturalmentevariou conforme as epocas © ‘08 locais do Império Bizantino. Algumas vezes os erical ‘viverem em Constanti- 6, 0 hidbito de certos bis nopla, visitando-suas mente, para receberem os rendimentos que gastavam mundanamente na capital. Como os bispos nto diam se eabar(ao-conteinio dos piacos)s partir Jo século XII eles passaram a ser recrutados exc pnt te mene o.que d nivel moral ‘mas balxou seu nivel intelectual. De qualquer forma, 0s bispos estavam bem distanciados dos clérigos que nas cidades ou nas aldeias rurais viviam préximos aos fitis, realizando 0s oficios religiosos cotidianos. Di- vididos em vérias hierarquizadas(leitor, sub- sacerdote, etc.), aqueles clérigos viviam na sua prOpria paréquia com mulher € filhos. a se-dedicarem a tarefas art des suspeitas (usura, jogo, hospedaria, prost ‘tuigto) que de tempos em tempos os bispos procu- 16 Hilério Franco Jr. ¢ Ruy de Oliveira Andrade Filho ravam reprimir. Em fungfo disso, o prestigio do clero secular foi oucgs-decaindo © a popularidads do mons dos 120 patriarcas da hist6ria ‘monges; poucos anos antes da queda do império, em Constantinopla existiam apenas 8 igrejas paroquiais ‘mas 200 mosteiros. Na verdade, o estilo de vida mo- tianismo com eremitas que se isolavam para escapar as tentagdes mundanas e levar vida ascética, Foi por iso que no Oriente Médio varios desses individuos foram viver ou no deserto, ou em grutas ou em altas colunas construfdas para esse fim. Os exageros ¢ abusos, porém, levaram a organizagio de comuni- dades, ‘nas quais se passava a valorzar a vida em ", efupo, dseiplinada, 6 trabalho. Por essa concepeio, nascida no século IV com Sdo Basilio (que influen- ciaria 0 modelo monfstico ocidental, de Sdo Bento, no século V1), os monges dividiam seu tempo entre as oragdes eo trabalho manual e intelectual. Esses prinefpios gerais foram depois completa- dos e codificados pela io justiniana. Por esta, (0s monges deveriam renunciar aos seus bens particu: ares antes de ingressar no mosteiro, e as pessoas ca- sadas precisavam obter o consentimenio da.coniuge. ‘Apés um noviciado de trés anos, faziem-se os votos definitivos de castidade, pobreza e obediéncia. A co- munidade era dirigida por um abade eleito pela maio- ria dos monges e confirmado pelo bispo em cuja dio- cese 0 mosteiro se localizava. Comumente, apenas 0 Império Bizantino » poucos monges de cada comunidade tinham sido ‘ordenados sacerdotes, mas o abade obrigatoriamente deveria sé-lo. Além dele, devia haver um certo ni- mero de monges sacerdotes no mosteiro para que os servigos religiosos fossem realizados regularmente. Em suma, para o tanto a verdadeira vivéncia crista, ter plenamente no mundo. Contudo, a realidade his torica nem sempre correspondia a esse retrato ideali zado: as intimeras doagves recebidas pelos mosteiros enriqueceram-nos_ de tal forma que_em varios mo- ‘De qualquer forma, os monges eram imprescin- diveis para a sociedade. De um lado, pois suas ora- Bes nio se davam apenas em proveito préprio, mas intercediam junto a Deus para beneficio de todos os homens. Dai a imperador Justiniano afirmar que “‘se essas mos Mee eae ea ee a nen, pelo império, o exército sera mais forte, @ prosperi- dade do jmpéio maior,-« agricultura ¢ 0 comércio mais florescentes’’. Geralmente, foram eles também que realizaram a evangelizagio dos varios povos da Europa Oriental, alargando a frea de atuagio da Igreja Ortodoxa ¢ da influéncia exercida pela civili- zagio bizantina. De outro lado, eles eram populares devido também ao fato da vida monistica ser a anti- tese da vida oficial, escapando a hierarquizagio que regia toda a sociedade bizantina, Escolhendo seu a Hilério Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Fiho proprio lider e as regras de sua comunidade (respei- {adas as determinagdes mais amplas da legislacto), © monge €, de todos os pontos de vista, ‘um anarquis- ta” (Ducelier). Cioso de sua independéncia tanto em relagio ao poder eclesidstico quanto ao imperial, n “Gelo de pureza e de religiosidade apaixonada, 0 m: era sem divida a personagem mais populat da so- Siedade bizantina, Mesmo depois da queda do im- $éfio, © papel dos monges continuou importante na preservagao da civilizagio bizantina, de cuja retigito e arte eles foram os maiores continuadores. “Tal se devia, sobretudo, 20 fato de os monges se identificarem com a religiosidade popular, com a ¢s- piritualidade vivida e sentida pela maior parte da opulagdo do império. Isto é, com o sentimento reli- Fioso que tocava diretamente o bizantino comum, Gistanciado de sutilezas teol6gices dominadas apenas por uma elite clerical ¢ intelectual. A Tgreja Bizan- fina esteve quase sempre a0 longo de sua historia mais préxima dessa religiosidade popular do. que ccorria com a Igreja Ocidental. Em Bizincio no havia preocupagio em se estabelecer rigidamente ‘uma teologia a ser seguida por todos os cristos. Pelo contrério, havia uma certa tolerncia, deixando um espago de manobra dentro do qual cada individuo ‘ecolhia seu caminho para a Salvagio. Por isso mes- imo, as controvérsias religiosas eram ali apaixonada- mente discutidas e no raro geravam violéncia ¢ re- percutiam de forma ampla na vida do império. De ‘Qualquer maneira, a religiosidade bizantina era viva, intensa, sem grandes fossos rando-a da eli 0 Império Bizantino » 29 Hilério Franco Jr. ¢ Ruy de Oliveira Andrade Filho 0 Império Bizantino tical, como aconteceu em boa parte da hist6ria do ‘Ocidente medieval. Na sua esséncia, a mentalidade ctist& bizantina steve voltada para a questio da Graa, da relagio direta com Deus, isto é, caracterizava-se por um acentuado sentimento de presenca do sagrado entre os homens. Para os bizantinos, a idéia de que “Deus se fez homem para que o homem possa se tornar Deus” era algo concreto ¢ ansiosamente perseguido. Assim, buscava-se a fusto do materiale do espiritual {idéia presente no Ocidente apenas a partir do século XID, o que se refletiu, por exemplo, na concepeto de ‘um Estado que era uma organizacao celeste na Terra. ‘Um bizantino do século XII sintetizou a questio di- zendo que “‘ntio se pode chamar homem, separads- mente, nem a alma nem ao corpo; é juntos que eles ‘constituem a imagem de Deus”. Por isso mesmo, nem as festas piiblicas (como a comemoracio da fun- dago de Constantinopla ou a coroacio de um impe- rador) nem as privadas (como os anivershrios, feste- jados no dia do nascimento da pessoa ¢ no dia do santo cujo nome adotara) tinham cariter exclusiva- ‘mente laico. a . Essa constante_presenca do sagrado na Jrumanafrangpaece na urg(“servigo public be zantina, que muito mais que @ latina revive o Evan- seiho. De fato, através dela recupe Sagrada, - Dal a falta a missa por oe ern garg ype munh&o para 0s leigos ¢ de deposicio, para os clé- rigos. Isso porque, na verdade, a liturgia no 6 apenas representagio, mas atualizaco, renovacto do fato, portanto presenca objetiva da Divindade. Por exem- plo, a celebracio do Natal nfo é somente uma come- ‘moragio do nascimento de Cristo, mas Ele realmente nasce com 0 rito. Ou seja, pelo mistério da liturgia 0 crist&o & colocado no tempo dos acontecimentos bf- biicos, vive-os como testemunha ocular. Nesse sen- tido trabalha também a arquitetura das igrejas Orto- doxas, com a imensa_cipula representando o ctu, onde se coloca em pinfura ou-massico 0 Cristo Pan- tocrator (ou seja, Todo-Poderoso) observando seus falar no a razio dos: seus sentimentos, E sem diivida atingia seus obje- ‘tivos, como testemunham os emissérios de um prin- cipe russo falando dos oficios religiosos assistidos por cles na catedral de Santa Sofia: “no sabemos se es- tivemos no Céu ou na Terra, pois sj "Bo ial capledor ov Ocexe om pore eam sa Ter 'Nio podemos descrevé-to a vos; s6 sabemos que Deus ‘mora If entre os homens e que 0 culto que eles ren- dem ultrapassa o modo de adorar de todos os outros fugares. Nao podemos esquecer tanta. beleza”. O ‘mesmo devia acontecer nos intimeros templos de todo territério bizantino: s6 em Constantinopla, segundo tum jude ocdental ques sion sal KIL hava ra cada dia do ano. cry n Hilério Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Fitho O Impéric Bizantino a Mas a methor expresso da cotidiana presenga divina entre os homens estava no fervoroso culto bi- zantino as reliquias ¢ nos milagres por elas produ- zidos. As reliquias — pedacos de corpos santos ou objetos que tinham tido contato com eles — existiam em Bizfncio em tal quantidade que causavam admi- ragdo ¢ inveja aos ocidentais. Alias, quando do saque que os cruzados realizaram em Constantinopla em 1204, dentre as riquezas mais cobicadas e levadas. para o Ocidente estavam as reliquias. Realmente, a variedade que delas possuiam os bizantinos era es- pantosa: de Cristo tinham os cueiros, a camisa, a faixa, o cinto, as sandalias, a tinica, o sudario, uma ‘garrafa com seu sangue, a cruz, 0s pregos, a coroa de espinhos, a langa. Possuia-se até mesmo a bacia na qual Ele tinha lavado os pés dos discipulos e a toalha que usara para os enxugar. E também os cestos dos pies por Ele multiplicados ¢ mesmo uma carta assi- nada por Ele préprio. Da Virgem tinha-se uma gar- rafa com seu leite, a tinica, a cinta ¢ 0 manto. De imimeros santos havia fragmentos espalhados por todo império: de Joao Batista a cabeca, um dente, um dedo, de Sao Paulo e Sao Mateus as cabecas, de ‘Sao Simao 0 joelho, de Sao Pedro a tibia, de Sao Es- teviio a m&o direita, de Sto Tiago um brago... A importfincia da maioria dos _mosteiros decor- ria em grande parte do fato-de abrigarem reliquias, que por sua simples presenca sacralizavam_aquele espago e seus habitanies, os monges. Daf as freqUen- tes peregrinagdes Aqueles mosteiros, que ganhavam desta forma riqueza ¢ prestigio. Por isso, a morte de tum eremita de vida santa produzia novas reliquias € construgao de um novo mosteiro para abrigé-las. Diante desse papel que as reliquias desempenhavam, aquela luta ganhou aspecto de guerra santa e no cessou até recuperarem 0 objeto Sagrado 14 pois. Pela mesma razXo, 6 7% ibo de refiqui ‘parte daquelas reliquias, torna- ram-se os maiores inimigos de qualquer idéia de rea- roximagdo com 0s ocidentais. Todo esse valor dado as reliquias devia-se & fungo protetora que elas exerciam, ajudando com seus milagres no apenas aos bizantinos individual- ‘mente, mas garantindo a propria sobrevivéncia do império. Foi uma imagem santa da Virgem, defen- sora de Constantinopla, que em procissao pelas mu- ralhas da cidade impediu que os persas e os fvaros a invadissem em 626, 0s érabes em 677 ¢ 717. O mesmo tipo de milagre fez um véu da Virgem ao frustrar um ataque russo em 860. As vezes, essas interferéncias sobrenaturais na vida do império podiam ser mano- bradas pelos homens. No século XII, no inicio de ‘uma guerra contra os héngaros, ocorreu um mau pressdgio. No forum de Constantinopla havia duas| tstituas de mulheres, uma hingara, outra grega,| tendo esta misteriosamente desmoronado enquanto aquela continuava de pé. Para alterar o resultado do u Hillrio Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho 0 Império Bizantino prodigio, 0 imperador Manuel Comneno mandou imediatamente levantar a estitua grega e Gerrubar a hingara. Essa providéncia produziu bons frutos, pois logo a guerra terminou através de negociacbes diplomaticas bastante favoriveis ao Império Bizan- tino. Esse lima de forte sobrenatualidade, de cons- bizantinos a prética de diversas formas de adivinha- 80. Buscando saber o que a Vontade Divina thes reservava, eles recorriam especialmente astrologia e A interpretacdo de sonhos. Também eram praticadas as bibliomancia, ou seja, a abertura da Biblia a0 caso, interpretando-se a passagem encontrada de acordo com as dividas atuais do consulente; a “‘lei- tura” do véo das aves, que pela sua altura, direco e duracio indicavam acontecimentos futuros; a alek- iryomancia, isto é, 0 método de se escrever as 24 letras do alfabeto na areia, colocando grios de ce- reais sobre elas ¢ soltando um galo que ao picar de- terminadas letras dava as indicagBes desejadas. Des- tas priticas mégicas pessivas, de consulta as forgas sobrenaturais, ‘Priticas ativas, de utilizagto daguelas foreas para beneficlo proprio gu prejuizo de fk wn de apres um pate. Por cial do clero ¢ intensa religiosidade popular, é que se deve colocar as freqlentes e acirradas controvérs teolbgicas. Para os ocidentais, sempre de espirito mais prético, os acalorados debates dos cristaos ori- centais sobre assuntos religiosos pareciam mero pas- satempo, uma “discussio bizantina”, segundo a ex- pressio pejorativa que indicava a futilidade do ponto de vista ocidental) daqueles debates. Muitas vezes, orém, tais disputas tiveram profundas repercussdes sobre os rumos tomados pelo Império Bizantino. Nao sendo possivel aqui acompanharmos as complexes sutilezas teol6gicas ¢ todos seus desdobramentos his- ‘éricos, vamos nos limitar a lembrar um ou outro desses debates ¢ seus reflexos nas relagtes Bizincio- Ocidente. ‘© ponto de partida de tais divergéncias eram as indmeras questdes teologicamente mal esclarecidas pelas Escrituras. Na_busca de uma int consensual, reuniram-se de 325 a 278) Sete Concilios Ecuménicos, com representantes de_ todas Terejas cristas. Confudo, o pano de funda de tais debates foi validade entre as sés episcopais da Oriente, que. pediam o arbitrio de Roma, mas com aquelas que tinhani seit onto de vista derrotado negando enti 20 papa autoridade para tal decisio. Como Constan- ‘inopla foi a0s pouco firmando su: sent Oriente, suplantando as rivais Alexan ¢ lerustlém, acabou par be colocar fenie a frenle com Roma na dispita pela lideranea sobre 0 m cristo, Nesse contexto, cada heresia — divergéncia doutrinal, ou seja, rejeicio de um dogma aceito pela Hilério Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho 0 Império Bizantino Igreja através dos concilios — ganhava forte cono- tagdo politica. Foi assim, por exemplo, com o monofisismo. No século V um patriarea de Constantinopla, Nestorio, defendeu a doutrina segundo a qual em Cristo as na- turezas humana e divina estavam separadas, vendo na Encarnagio uma humanizag’o quase total de Cristo, dai ndo aceitar que se chamasse a Virgem de Mie de Deus. Contra isso levantou-se a sé rival de ainda hoje encontram-se na zona fronteirica Tur- quia-Iraque-Ira-URSS. Q_papa, também_descon- fenle com a intervengio do imperador ent questo religiosa, mas ato se sent er comungou o patriarca de Constantinopla. Ea o pi re ‘Se mais ou menos 50 anos depois, ‘Bo cOmeco do século VI, o imperador Justiniano Alexandria, caindo no exagero oposto, que procla- maya a unio quase completa das duas naturezas, praticamente negando o carater humano do Filho, « abandonou o Henoticon, foi apenas pensando que o | © i fato facilitaria suas conquistas no Ocidente. Mas.as |_° relagdes com Roma continuaram dificeis, tanto que | > I portanto vendo-O com uma s6 natureza, dai o termo tdhopla-e pressionadp a.aceiter 6 po ‘vista im= \ ‘monofisismo. Num primeiro momento, 0 nestoria- perial. Tal fato, alids, repetiu:s século depois W¥ i nismo foi condenado como herético, mas depois 0 com outro papa sendo seailestrada ndo ex. -L | Vonodi acomn ‘monofisismo também. 3 I ‘lado em territéria hizantino. BoE Na tentativa de encontra um meio termo e pa- Muito mais sério, porém, para os = dstines ‘& cificar_ a_dou- Império Bizantino e suas relagdes com o Papado foi o trina Coabedlde por Hevoticon, provirand® feapro- ximar aquelas duas correntes através de f6rmulas. vagas € conciliddoras, Sua tenfativa apenas descon- tentouaiodos, Ogio gg Siri nto qussram neger O inoneigam Senate aa a nage de Constantine por isso séculoe meio depois ‘icitaragpgem resistencia o dominio Trabe. Mas sua religido nfo desapareceu totalmente, ¢ ainda hoje existem Igrejas monofisistas no Egito, Arménia, Etié- piae India, Os nestorianos, por sua vez, refugiaram- se nos dominios do rei persa, alcancaram a China, ‘trabalharam como missionérios entre os mong6is (onde Marco Polo os encontraria no século XIII) e movimento iconoclasta, Este representou a negagdo da validade dos fcones, imagens pintadas ou escul- pidas de Cristo, da Virgem e dos santos. Na verdade, {cons so “um: elagdo di smpo”, a comprovach propria Encarnacto,.. bac 'de_que Deus Ainasererlado a9 homem enor isso € postal re- Lo_de forma visivel. Em 726, contudo, o immperador Le8o III, motivado por razBes religiosas e politicas, decretou que a adoracio de imagens era idolatria e desencadeou por todo o império uma sis- temftica destruiglo dos fcones. Por um lado, isso expressava o pensamento de uma corrente que achava, Hilério Franco Jr. e Ruy de Oliveira Andrade Filho (O Império Bizantino incompativel a esséncia espiritualizada do cristianis- mo conviver com a materializagiio de personagens ‘sagradas em pedagos de pano ou madeira, Por outro, demonstrava um certo descontentamento imperial ‘com 0 crescente prestigio ¢ riqueza dos mosteiros, principais possuidores e fabricantes de fcones. Esse poder de atraclo que fazia jovens vestirem o hébito mondstico tirava do Estado soldados, marinheiros, ‘camponeses e pagadores de impostos. Assim, a since- ridade das intengbes religiosas de Leto III era refor- cada pelo interesse imperial em limitar um poder ‘monfstico perigosamente crescente. Contudo, a espiritualidade popular, profunda- mente crente no valor religioso dos fcones ¢ na sua capacidade de realizar milagres, reagiu violentamen- te & determinagto imperial. Quando a imagem de Cristo existente no porto do Palécio Imperial foi destrufda, o funciondrio encarregado da tarefa foi linchado pela populacdo enfurecida. Mas a icono- clastia podia contar com o exército, em sua maior parte formado por elementos origindrios da Asia ‘Menor (como Leo III), onde o rigorismo e o purita- nismo religioso eram maiores. Desta forma, o im- pério se viu envolvido numa verdadeira guerra civil religiosa. Mesmo dentro da familia imperial a ques- to nao era incontroversa: regente diante da minori- dade do filho, em 787 a imperatriz Irene reintroduziu ‘o culto das imagens e para se manter no poder man- dou mais tarde cegar o proprio filho: Destronada ‘anos depois, um novo imperador pode em 815 re- tomar a iconoclastia, mas logo foi assassinado. Como as violentas perseguigdes.nio eliminavam 0 partido jconédulo (favorével aos cones), em 843 um sinodo convocado pelo poder imperial finalmente restabe- lecia culto das imagens. © Império Bizantino, no entanto, safa dessa cri- se bastante desgastado interna e externamente, No primeiro caso, 0 poder imperial viu-se impotente ara impor seu ponto de vista, o que fortaleceu a Igreja (sobretudo o segmento mondstico) diante do Estado. No segundo, a oposicfo de Roma a icono- clastia levou Papado a pedir auxilo ao reino ger- minico dos frances, e ndo a Bizancio, para enfrentar a invasdo dos lombardos. Como conseaiéncia disso, « partir de 768 nfo mais se pedia ao imperador que Tatificasse a eleigho de cada novo papa, cuja escolha era porém comunicada ao rei dos francos. Desta for- ma, muitos dos terrt6rios italianos que o império ainda possufa foram perdidos. Também af foi aberto ‘©caminho para que meio século depois, no final do ano de 800, o rei dos francos Carlos Magno fosse co- roado pelo papa como “imperador dos romanos”. Apesar dos protests bizantines, o Império do Orien- aié mesmo no plano te6rico perdera qualquer preeminéncia sobre o Ocidente. : A partir de enti esse afastamento acentuou-se, com qualquer divergéucia teol6gica servindo de pre- texto para as reivindicasSes potiticas de lado a lado. ‘Assim foi trazida & tona uma antiga questfo: os oci- . Contudo, o grau de intervenclo imperial va- conforme as circunstancias histiricas, ainda que ‘de maneira geral tenha prevalecido o papel do Estado como definidor das linhas de rumo da economia, fato perfeitamente aceito pelos bizantines acostumados & sacralizagio da autoridade politica. O resultado dis- so foi uma iniciativa privada extremamente limitada nna medida que o Estado determinava as quantidades dde mereadorias a serem vendidas, 0s pregos, 0s $2- lirios, os lueros a serem obtidos. Uma conseqténcia de extrema importancia adveio desta politica econt- mica: a aristocracia nfo podia invertir na produglo industrial, controlada pelo governo, nem tinha inte- reste em fazi-lo no comércio, ond: os riscos eram grandes. Assim, voltou-se completamente para a agricultura, Esta intima ligaglo da aristocracia com 8 terra provocou, como sabemos, importantes alte- rages na estrutura politica bizantina, debilitando-a. No entanto, a prosperidade serd, até o final do século XI, a grande marca do Império e de sua ca- pital para todos que conheceram ou deles ouviram falar. Um francés do século X dir que Constanti- nopla “é a gloria da Grécia, sua riqueza 6 famosa e é ainda mais rica que sua fama”. Muitos comerciantes chegavam a empreender seis meses de duras e peri- osas viagens para 14 venderem suas mercadorias € obterem as raras especiarias, os produtos de luxo tio decantados. A existéncia de uma moeda forte e es- tavel, onomisma, muito contribuia para a realizaclo deste comércio internacional. Sedas, tecidos de linho, perfumes, jéias, objetos de marfim ricamente traba- Ihados, relichrios, diversos tipos de especiarias; estas mercadorias e muitas outras estimulavam os comer- ciantes de diversas partes do mundo a se ditigirem pa- Fao império. Feiras realizadas em diversas de suas. dades, expunham mereadorias européias, islamicas, petsas, indianase chinesas; em geral, elas coincidiam ‘com as comemoragées do “santo” local e promoviam ‘grandes afluxos de traficantes locais ¢ estrangei artesanato do império muito contribuia para © sucesso destas “feiras” © deste comércio, desta- cando-se 0 de Constantinopla, Todos seus ramos, omo jf tivemos oportunidade de mencionar, es wvam agrupé corporactes, regime que tena defnder os talladores do Gennes rantir aos consumidores abundancia de produtos de boa qualidade ¢ a bom prego, combater a ociosidade € 05 ganhos exagerados, manter a reputaglo dos ar-

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