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rumo a uma redistribuigdo desobediente de género e anticolonial da violéncia! jota mombaga rumo a uma redistribuigao desobediente de género e anticolonial da violéncia! jota mombaga * “86 porque ndo hé uma guerra nado significa que haja paz.” Mistiea em X-Men Apocalypse (2016) CENA 1_ QUEM POLICIA A POLICIA C. morreu asfixiada no porta-malas de uma viatura da policia militar de Sao Pauilo. A narrativa oficial 6 a de que ela teria entrado la por vontade prépria, na intengao de roubar algo e acabara morta. Segundo um portal de notfcias online, a viatura foi reparada, limpa e voltou As ruas em poucos dias. Ninguém foi responsabilizado exceto C., que morreu asfixiada e tinha o rosto roxo e as maos sujas de sangue quando a encontraram, na traseira de uma viatura militar, com 19 anos de idade. Um boletim de ocorréncia foi feito contra ela. A policia no Brasil é a tinica facgio criminosa responsivel pela investigagtio de seus préprios crimes. CENA 2_0 QUE E UM CRIME? ‘Vera Malaguti descreve as fantasias absolutistas de controle social da policia no periodo posterior a abolicdo formal da escravidao no Brasil para desdobrar dai uma percep¢do mais agucada do sistema de justica criminal hoje. £ sobretudo no controle sistémico do transito de pessoas africanas livres ¢ afrodescendentes que a policia vai passar a operar ai, como braco do projeto colonial em sua versio moderna, garantindo a seguranga das elites brancas e mesti¢as e 0 terror das comunidades empobrecidas ¢ racializadas. O racismo contra pessoas pretas e pobres est4, portanto, no DNA das polfcias e das redes de controle e exterminio que se articulam em torno delas. Mas niio teria sido necessério ouvir uma académica branea para dar-se conta disso. Nao é de hoje, i Jgas como Mj © Beaimap Seid Masta (0) assim como uma serie de vozes implicadas nos ativismos e organizacoes comunitarias pretas, produzem contetido, deniincia e articulacao para visibilizar o papel efetivo desses genocidios racistas ¢ classistas nas gramaticas da dominacao a brasileira. A presenga do racismo como fantasia colonial indeterminadamente atualizada no marco do colapso da colénia esta exposta como ferida na paisagem das cidades, na densidade dos muros, cercas ¢ fronteiras. Est exposta também na coreografia das carnes, na intensidade dos cortes ¢ ancestralidade das cicatrizes. E tudo isso esta bastante evidente, ainda que mascarado; esta latente em toda emogiio possivel de forjar-se perante esse regime. Mesmo quando as maquinas de fazer desperceber conflitos ¢ desigualdades estruturantes projetam — sempre arbitrariamente — verdades cuja promessa a de serem neutras, justas e universalmente aplicaveis, transcendentes, legais, modernas, coloniais, sobre 0 que significa ser um criminoso; o que é seguranca; quanto vale para este mundo a indastria do punitivismo; que marcadores sociais desenham os grificos do exterminio sistematico, continuado e neocolonial; por que hd vidas matéveis; que corpos adornam os projetos de futuro; quem sao os sujeitos da historia; 0 que é catistrofe, golpe, crise, extingao...? Afinal, o que é um crime, quandqgsptGpsiosmade,de-funcionamentodasiustica se faz inseparavel de um projeto de gnllasia eapEL Ay ‘como fantasia de controle? 0 que é um crime, quando tudo-o que se enfende sob o guarda-chuva da normalidade e legalidade nao cessa de reperformar a presenca da morte como expectativa de vida de comunidades inteiras, dagenies daqui e de toda a terra, ‘humanase nao-humanas? CENA 3_FICGOES DE PODER E O PODER DAS FICGOES 0 poder opera por fiegdes, que no sto apenas textuais, mas estfio materialmente engajadas na produgo do mundo. As figaigsudgspeds se proliferam junto a seus efeitos, numa marcha fiinebre celebrada como avango, progresso ou destino incontornaveis. O monopélio da violencia é uma ficgao de poder baseada na promessa de que é possfvel forjar uma posigao neutra desde a qual mediar os conflitos. Ogigtemmendesmatica, produzido pela apililidadeeccimascoaia, como sistema de policia, visa neutralizar os confiitos socials, administra todas as tensdes no limite de uma rede muito pequena de instituicdes e gaities pelas narrativas hegeménicas. Além de uma fico de poder, a eutralidade do.sistema.de iustica ~ que torna moral e politicamente ee éum mecanismo de alienacao dos contlitos, que isola as pessoas neles Implicadas dos seus proprios processos de resolucio. A frase » esta, portant, sitiada, uma vez que evoca estritamente a ggdgleepads clo sistema de justica moderno-colonial, * desarticulando dessa maneira todas as outras ficgGes de justiga que poderiam vir a ser conjuradas a partir dessa afirmacdo. A ficcio cientifica é uma das linhas de tensio entre as ficgdes de poder e 0 poder visionario das ficcdes. Se consideramos o eixo especulativo candnico, difundido pela literatura, pelo cinema e pela arte euroestadunidense em geral, majoritariamente formulado desde as posicdes de homem, branco, cisgénero e heterossexual, é comum que nos vejamos presas 4 gigguabidadedgepader, numa espiral distopica capaz de mover-se apenas do controle rumo ao maior controle. Autores e histérias aparentemente criticas da sociedade disciplinar e de controle podem, contraditoriamente, operar na atualizacao dos sistemas contra os quais escrevem. O trabalho incessante de revelar 0 maquinario do poder, projetando-o no futuro ou no dominio fantastico, coincide ai com a tarefa ingrata de produzir essas maquinas, imaginando-as como entidades inescapiveis. Ogg deme» i i Ses é 0 de ser cimento do mundo, porque, como propoem pensar as co-editoras do livro Octavia’s Brood, Walidah Imarisha e adrienne maree brown, —{ijgiigieinas ° Wiidiiinaiiiebioadaiiaseimaaiaas > le modo que tudo o que esta construfdo gaugeisgu, antes, seiimmagimago. E ai reside o poder das ficgdes. Nao é, portanto, a dimensio ficcional do poder que me interessa confrontar. Sio, mais bem, as fiegdes de poder especificas ¢ os sistemas de valores que operam no feitio deste mundo, e seus modos de atualizagio dominante. Nessa chave, 0 monopélio da violéncia tem como premissa gerenciar no apenas 0 acesso As técnicas, Aquinas e dispositivos com que se performa a violéncia legitima, mas também as técnicas, mAquinas e dispositivos com que se escreve a violencia, 0s limites de sua definigao, Esses dois processos de controle se implicam utuamente ¢ dio forma 2 quibble ebaARAAseOb iat visiondrias ¢ gisiaigiamigs — isto é: contra a habilidade de pressentir, no cativeiro, que aparéncia tém os mundos em que os cativeiros ja no nos comprimem. ders paer das do dominio totalizante das fiecdes de poder é parte le um processo denso de rearticulagio perante as violéncias sistémicas, que requer um trabalho continuado de geimaginagsy e das formas de conhecé-lo, ¢ implica também tornar-se capaz de conceber resisténcias gliphas cle fuga que sigam deformando as formas do poder através do tempo. CENA 4_ 0 ESTADO MOLECULAR O estado, assim como as policias, jagbiaiiasies Ques Wo Quando o movimento LGBT brasileiro luta pela criminalizagiio da homofobia, ele esta lutando, no limite, por esse desejo. Ogdeselodesetpsategislo pela policia e neutralizado pelo estado nfo importa a que preco. Nao se considera, por exemplo, augignensio tagiaia estaaiatiaaiye do sistema prisional, cujo maior alvo segue sendo as pessoas pretas e empobrecidas, inclusive aquelas cujas posigdes de género e sexualidade poderiam ser compreendidas no espectro LGBT. A aposta nessas estruturas normativas como fonte de conforto e seguranga para as comunidades agrupadas em torno da sigla LGBT é um sinal evidente da falta de imaginacao politica interseccional desses ativismos, que estado limitados a lutar eqdtaiaiaiigs do projeto demisagg do qual temos sido reiteradamente excluidas. O estado tem dimensdes imensas, ma moléculas. Durante varios anos, parte dos movimentos al fitaram pela Lei Maria da Penha, que tipifica a violéncia doméstica e implementa um tratamento mais rigoroso para com aqueles que cometem esse tipo de crime. Em 2006, o projeto virou lei, Em 2013, a taxa de crimes contra mulheres em espacos domésticos era jd 12,5% maior que em 2006. dubeinndigup@deeonicneniolincionensi cTornevetumuesulugao anseendental ors ua Apesar de sua dimensio institucional, a violéncia contra as mulheres, assim como contra corpos desobedientes de género e dissidentes sexuais em geral, est enraizada numa politica do desejo que opera aquém da lei. Por isso, ao chamar a policia para intervir em situagdes de violéncia sexista e/ou transfobica-homofébica- lesbofobica-etc, Samal 1

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