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A REVOLUGAO DE OUTUBRO E ANTICOMUNISMO YW Domenico Losurdo CRITICA DA RAZAO CONSENSUAL - © DIREITO BURGUES ¥ Nozes Pires A AMEACA NUCLEAR, AS. APLICAGOES DA INTELIGENCIA ARTIFICIAL E AS PERSPECTIVAS DE LONGO PRAZO PARA A VIDA NA TERRA ¥ Frederico de Carvalho MUSEU FARADAY — DOIS SECULOS DE INOVAGAO NA ELETROTECNIA Y Moisés S. Piedade, Carlos A. F. Fernandes, Albano |. Santos, Jorge Amarante ALGUMAS NOTAS PARA UMA REFLEXAO SOBRE O CINEMA PORTUGUES ¥ Sérgio de Sousa BOCAGE E SADE «A SUL DE QUALQUER NORTE» W Manuel Augusto Aradjo O FETICHISMO DO XADREZ ¥ Diniz Cayolla Ribeiro i 45 VER TICE Director: Fanczco Melo Coordenador editorial: Manuel Gusmao Chete de redagie: Ri Moa Lopes Consetho de Redacciio: Anténio A. da Costa, Fer~ nando Correia, Fernando Guerreiro, Francisco Silva, Francisco Melo, Gisela da Conceigio, Inés Zuber, oana Dias Pereira, Manvel Gusmio, Maria Helena Serio, Pedro Maia, Pedro Pina, Rui Mota Lopes, Rui Namorado Rosa, Silvestre Lacerda, evo: Papin a gina ~Divalgago do Liv, SA algo epropriedade:Pigina a Pigiaa~ Divulgepio do Liv, SA ‘Capital social: €250 000 Tnstigho na Dirseyo Geral da Comniagio Social ‘2° 9513 —Conuibuinte n” $04 929909 Depo Tegal 2920279788, ive Hane Adtntrago: Campo Gran, 204 CConsetho Editorial: Alvaro Salazae, Anténio Ave Trond ton Tis Nunes, Anténo Hespanhe, Annio Borges Coe- ‘Tee, 218 161 160 — Fan: 218161 769 tho, Ant6nio Quadros Ferreira, Arquimedes da Silva “Ema: vistas paginaapapna.p Composgio: Pigina Pgina ~ Divlgngo do Livro, SA Impressio: DPS ~ Dial Piatng Services, Li Publicldade: Campo Grands, 2208 ~ 1700-094 Tisbou ‘Tee 218 429 600 Fave 218-429 59 Distibuigdo: VASP ~ Distlbsidor de Publicagies, Lda (uta do Grjl~ Venda Seca 273311 AGUALVA.CACEM ‘Asinatuas:Pigin Pina ~ Divugaso do Livvo, SA (Cara Grands, 2208 - 1700094 Lishoa ‘Tle. 218 161 760—Pax: 218 161 78. Santos, Carlos Ribeiro, Caslos Santarém Andrade, Claudina Marques Rodrigues, Eduardo Paiva Raposo, Elsi Rodrigues, Femando Ant6nio Bap- tista Pereira, Franklin Pereira, Frederico Carvalho, Guilherme Arraz, Helder Coetho, Joio Caraga, Joao Ferrcira Duane, Jot Gouvela Montero, Joto Sousa Lopes, José Barata-Moura, José Manuel Mendes, José Oliveira Barata, José Oxta, Luis Guerreiro, Luis ‘Moniz Pereira, Luis Reis Torgal, Manuel Augusto ‘Anujo, Manuel Lousi Henriques, Margarida Pino, ‘Maria Helena Mira Mateus, Maria de Lourdes Maciel Correia, Mario Vieira de Carvalho, Salvato Teles de Meneses, Sérgio Ribeiro, Severo de Melo. (Os chaques serio remetidos &erdem de gina a Pina — Divolgag do Livro, $A, ~ Cape Grane, 220 1700-098 Lisboa ‘Tabela de assinaturas Wace ports inshldos ‘Continents elas ~ 29,00 € (nvidua); 4,0 €entidaes colectva), Europa 40,50 € Resto do Mundo ~52,80€ Represestugio no Brasil = Livia Portugal — Rua Genebra 16S Cavessa ca Rua Mc Pals) ~ CEP 01316010 ~ Sto Paulo ~ SP Tet: (11)604-1748 ~ FAX: (011)232-2071 200 Amero) |AOS COLABORADORES: 1. 0s origins dstinaos a pbliaso dover ser datlgraidos & dois espagos. 2 As events nos deveria ser umeradas progressvament agrupadas no fm do texto ArcliagSes bition inclieo no minim, nome do aor, tloe daa de pbliepo. SS Emende-s como recomervel gue os ators subdivigam oe textos com subaos ou meres. ‘4 Cad estado ou esti Joverd ser acompaahiad do um remo de 38 las dectografadas, de ‘igus ase par, eventuamente, erem dstasadas do exo (uns por ince pina dactilografa {as} ede uma breve cha cuielar do ator. 8, A revista no se resposabiliza pela devout dos ‘rginis, solctdos ou al, 6 Os origin sprovados par pbllapo ni podero a parti desse momento ser sjeos a eager sgnieativis, 7. A reprodoto, em parte ov no todo, de tbe Thos pobliados pela VERTICE 36 ¢permiida mediante previa atrizago da disso da evs 8. Os artigos asinnds slo da responsabilidad dos sus autres. Novo email revistas@paginaapagina.pt ATENCAO: E conveniente que os autores nos enviem os texto por email para www.paginaapagina,pt fortran 94 Diniz Cayolla Ribeiro O fetichismo do xadrez Introdugao ‘No final do primeiro capitulo do volume 1 d’O Capital, Karl Marx introduz um conceito que rapidamente se transformou numa relevante ferramenta analitica, valorizada sobretudo nos campos mais filoséficos e literdrios (Harvey 2013: 46). Chamou-Ihe «o fetichismo da mercadoria». O que € que isto significa? Grosso modo, duas coisas. A primeira é que a mercadoria esconde as relagées ¢ as condigées sociais em que essa mesma mercadoria foi forjada. Olhando para o produto final, ndio temos a possibilidade de ver tudo aquilo que teve de existir a montante, nomeadamente a situacao miseravel em que muitos trabalhadores vivem, ou os parcos salérios que recebem, para que aquela mercadoria pudesse existir. Por outro lado, o bem ou 0 servigo final que consumimos nao nos ‘mostra a parte de trabalho nfo pago que essa mesma mercadoria comporta, e que € a fonte principal do lucro do capitalista. Dito por outras palavras, 20 contrério da corveia feudal, em que o trabalhador tinha de dar ao pro- prictério da terra, ao terratenente, de uma forma que era bem visfvel para todos os envolvidos, uma parte do seu trabalho, no sistema capitalista essa ‘mais-valia nio é materializada de uma forma tangivel, escondendo deste ‘modo o trabalho nao pago. Esta ideia de mais-valia, como sabemos, € 0 argumento principal desta obra «capital» de Marx. Na realidade, o conceito de fetichismo da mercadoria, apesar de 86 parecer cunhado desta forma n’O Capital, € uma ideia que acompanha © trabalho anterior de Marx, dando continuidade a0 conceito de ideo- logia que vem mais detris e que, segundo Larrain (2007: Capitulo 2), praticamente desaparece ao longo dos tés volumes desta obra maior de Marx, O fetichismo da mercadoria chama a nossa atengiio para o facto da mercadoria ser uma espécie de «hierdglifo social», encerrando em si mesmo a chave para a compreensio do complexo sistema capitalista em que todos nés vivemos. No fundo, o que importa aqui realgar, e pen- sando sobretudo no argumento que ser desenvolvido ao longo destas VERTICE 185/Ouubro-Novembro-Dezembro 2017 OFETICHISMO DO XADREZ paginas, € o facto do carécter fetichista da mercadoria remeter para algo ‘que num primeiro momento nos fascina, nos enfeitiga, para depois nos lembrar que por detrés desta «bela montra>, para usarmos uma imagem, existe uma «arrecadagdo> escondida, «bafienta», que encerra uma reali- dade bem menos bonita, para no dizer miserdvel, assente na exploracio humana, Ou, entdo, se quisermos recorrer a uma outra imagem mais artis- tica, lembremo-nos da peca Abajur (2010) do artista conceptual brasileiro Cildo Meireles. Esta instalagdo artistica é particularmente indicada para nos ilustrar este conceito porque nos apresenta num primeiro momento um cenério paradisfaco, constitufdo por uma imagem colorida de um barco numa paisagem maritima, acompanhada do chilrear das gaivotas, para depois nos revelar, assim que subimos as escadas e nos aproxima- mos do centro deste «parafso», que na base deste abajur, no eixo desta instalagdo girat6ria, se encontram quatro seres humanos a mover todo 0 sistema, No fundo, foi a pensar nesta metafora que este texto foi escrito. Quem olha num primeiro momento para o jogo de xadrez depara-se com um fascinante jogo de tabuleiro, assente em intricadas jogadas estratégicas € téticas. Contudo, quando observamos este jogo a partir duma perspetiva ‘mais adistanciada>, como Brecht nos ensinou, e analisamos alguns dos ‘elementos estruturais que servem de base para o xadrez, encontramos um. Conjunto de nogdes ideol6gicas que tém servido para «naturalizar» assi- metrias resultantes dum longo processo hist6rico. Dito por outras palavras, ao longo das préximas paginas defenderemos trés argumentos principai que se escondem por detras do feitico que o xadrez exerce sobre todos nos. ‘A saber: 1) o xadrez favorece as pecas «brancas» em relago as outras pecas de «cop», 2) 0 xadrez contribui para a diferente percecio dos poderes ligados ao género, ¢ 3) 0 xadrez desvaloriza a tenso entre classes atra- ‘vés da criag&o de um inimigo externo contra o qual todos se devem unir, criando simultaneamente a percecio errada que a salvago de todos pode passar pela «promog20» de uns poucos. Fagamos entio este exercicio de andlise, pondo de lado momentanea- mente este fascinio pelo jogo, vestindo ao invés 0 capacete e 0 fato de servigo para podermos atravessar aquela porta que tantas vezes encontra- mos nas lojas onde fazemos as nossas compras e na qual se pode ler: «E proibida a entrada a pessoas estranhas ao servigo>. «White is right» Apesar de vivermos num mundo que promove a ideia de que todos os seres humanos, independentemente da «cor da pele» devem ser tratados de maneira igual, a escravatura, a discriminagio racial, bem como intimeras outras iniquidades passadas ou presentes da nossa histéria lembram-nos que as assimetrias, de facto, existem, e que, adaptando a célebre frase de George Orwell da Quinta dos Animais, todos os seres humanos sao iguais. ainda que alguns sejam «mais iguais do que outros». VERTICE 185/Qutubro-Novembro-Dezembro 2017 95 DINIZ.CAYOLLA RIBEIRO ° 96 O fetichismo do xadrez Pesquisa realizada em 20 de fevereiro de 2018, hupfcaeidaes2014 fide com, Se divides houvesse, o recente combate ‘algoritmieo» realizado em Dezembro de 2017 ear programma Alphizero desenvol- vido pela empresa DeepMind, eo programa Stockfish, velo mostar que tro primeiro lance ¢, de facto, uma enorme vantagem também 10 nivel informético. Alphazero cilindroolteralmente 0 seu adversri, ven ‘endo 28 jogos eempatando ox rextantes 72; 25 das 28 vitdeias foram abids de braces! ‘Vem isto a propésito do xadrez, porque neste jogo, a semelhanga do que se passa no «mundo real», também existe uma enorme assimetria entre as pecas brancas e as pecas negras, apesar do jogo criar a ilusio de que a simetria é perfeita. As provas so intimeras ¢ nao deixam margem para qualquer diivida. Comecemos pelos ntimeros. As estatfsticas demonstram de uma forma categérica que as brancas gozam de uma enorme vantagem pelo simples facto de principiarem 0 jogo. Analisemos, por exemplo, uma base de dados de partidas de xadrez como a Mega Chesshase 20/4, com mais de cinco milhdes e meio de partidas (5 791 579, se quisermos ser exatos). Quando criamos um filtro, solicitando ao computador que nos dé a percentagem de vitorias de brancas e de negras, assim como de empates, os resulta- dos sio claros: 39,1% vit6rias de brancas, 31,7% de negras e 29,2% de empates. Ou seja, a diferenga entre as vit6rias de brancas e negras é de 7.4 %. E a diferenca aumenta se fizermos 0 mesmo exercicio numa base de dados mais criteriosa, com partidas jogadas apenas por Mestres de xadrez internacionais e Grandes Mestres. Por exemplo, na base de dados em linha Chessgames.com, com cerca de 866 mil partidas ('), a diferenga entre brancas e negras sobe para quase 10%: aproximadamente 326 000 vit6rias de brancas (37,7%); 242 000 vit6rias de negras (28%); € 296 000 empates (34,3%). E se quisermos filtrar ainda mais os jogos, optando por analisar as percentagens de vit6rias de brancas ¢ negras em tomneios de elite, entiio essa diferenga pode duplicar. Veja-se, a titulo de exemplo, a final do tomeio de candidatos de 2014 @), que apurou 0 challenger que disputou o titulo de campedo do mundo com Magnus Carlsen nesse mesmo ‘ano, na qual a discrepfincia entre as vitérias de brancas e de negras chegou 0s 21% (30% de brancas contra 9% de negras), 0 que mostra de forma evidente que jogar de brancas é realmente uma vantagem, nomeadamente se 0 jogo for disputado ao mais alto nivel () Ha quem procure contemporizar esta diferenca, alegando que as negras também tém algumas vantagens. O Grande Mestre de xadrez Jonathan Rowson, por exemplo, autor do livro Chess for Zebras: Thinking Dif- ferently about Black and White, argumenta que as negras tém alguns trunfos que podem jogar a seu favor, e que resultam «das expectativas que a vantagem de brancas cria, bem como duma profunda compreenstio das limitages da iniciativa» (2005: 225, tradugdo nossa). Rowson lem- bra ainda que o facto das negras jogarem em segundo lugar permite-Ihes ter mais informaco, o que pode ser vantajoso num jogo como 0 xadrez em que a informagdo é perfeita. No entanto, apesar das varias sugestdes dadas pelo Grande Mestre escocés para «pensarmos de forma diferente» consoante o lado em que estivermos, como 0 préprio subtitulo indica, Rowson reconhece que as brancas tém vantagem, confirmando uma ideia que € partilhada pela maioria dos jogadores de xadrez. Evidentemente que, como em qualquer érea, hd sempre individuos iconoclastas, que insistem em desafiar as ideias dominantes. E 0 caso do Grande Mestre htingaro Andras Adorjén, autor de varios livros sobre este assunto — Black is Ok (1988), Black is still Ok (2004) e mais recentemente VERTICE.185/Outubro-Novembro-Dezembro 2017 Referimo-nes& asta Iteratura sobre aber= tras e defesas de xadrer, nos quais S80 spesentados os lances denise as exatias. sibjacentes para comoyaro jogo. Tambémn ‘gu podemos deter um reforgo ideolo- fico «brancom. Se ovo for pensado para fs poyas brancas, tita-ee de um Tivo de ‘ater efor por gras, nese e950 fale-se de wdefesas>. Ou sea, as brancas sre, as negras defendem. OFETICHISMO DO XADREZ. Black is back! (2016) -, que insiste em colocar em causa a suposta vanta- gem das brancas, Adorjan insurge-se sobretudo contra uma determinada atitude . Judit chegou a topo da modalidade. Judit foi durante muitos anos a tnica representante feminina nos torneios de elite, e 0 seu percurso, assim como o das suas irmils, mostrou que uma ‘mulher pode competir de igual para igual com os outros homens no xadrez, ou em qualquer outra modalidade que nao dependa de diferencas fisicas, se nio se deixar intimidar pelos intimeros obstéculos educativos, culturais, e sociolégicos que se colocam no seu caminho. Resumindo e concluindo este ponto, para podermos passar para o «feitigo» seguinte. O xadrez cria-nos a ilusio de que o género feminino esté bem representado porquanto a Dama tem mais poder efetivo em cima do tabuleiro do que qualquer outra pega. Contudo, também como vimos, este poder é instrumental: € um meio para um fim superior masculino. Para além do mais, a prépria forma como se encontra organizada esta modalidade revela que o mundo do xadrez é miségino, tratando (ainda) as mulheres com alguma displicéncia. Je suis la Loi, Je suis I'Etat; I’Etat c'est moi» 0 terceiro aspeto ideolégico que se pretende aqui analisar prende-se ‘com auséncia de luta de classes no xadrez. Se pensarmos que cada uma das pegas de xadrez representa um grupo distinto no seio de uma sociedade, € que esses mesmos grupos esto unidos em torno de um bem maior que consiste em derrotar o adversério, entGo talvez possamos compreender melhor esta auséncia de conflito interno, 0 que nao corresponde de todo a0 que se passa nas nossas sociedades. Mais um aspeto que o xadrez.esconde através da promogio da ideia contréria, ‘Aprofundemos melhor esta auséncia de conflito interno, através desta analogia entre as pecas e a sociedade. Apesar do xadrez ter evolufdo a partir duma versio indiana, no ha diivida, como jé vimos anteriormente em relagdo & Dama, de que 0 modo como a sociedade europeia medieval estava organizada exerceu uma pressio na forma como o jogo de xadrez se foi «moldando». Esse aspeto 6 particularmente evidente no campo hierérquico, na medida em que as trés ordens medievais esto bem patentes nas diferentes «classes» que as pecas de xadrez representam. VERTICE 185/Outubro-Novembro-Dezembro 2017 101. DINIZ CAYOLLA RIBEIRO O fetichismo do xadrez No topo da pirémide encontram-se os Reis as Rainhas, com toda uma série de prerrogativas que so tinicas ¢ exclusivas dos monarcas: ‘muito poder, mas também uma enorme fragilidade. A seguir na piramide aparecem as mais altas hierarquias aristocraticas e clericais, que no xadrez correspondem as Torres. Depois temos os Bispos e os Cavaleiros (Cava- Jos), que representam os outros cargos menos elevados da aristocracia e do clero. E finalmente aparecem os pedes, que obviamente simbolizam 0 povo. Frangois-André Danican Philidor (1726-1795), um dos mais notd- veis jogadores do século xviti, captou esta sintonia entre o xadrez e «vida», através de uma frase que escreveu no seu livro Le jeu des échecs (1792), codificando bem as tensGes revoluciondrias que se viviam naquele tempo: «08 pedes siio a alma do xadrez. Esta correspondéncia entre a hierarquia do xadrez e sociedade medieval 6 algo que est bem assente na literatura, e até serviu de motivo para um sermio, como podemos ler, por exemplo, no Liber de moribus hominum et officits nobilium super ludo scacchorum (The Book of Chess, 2008) do padre Jacopo da Cessole (lacobus de Cessolis: c. 1250 ~c. 1322). Nesta prédica, Cessolis faz corresponder a cada uma das pegas de xadrez uma posigao na sociedade, chegando ao ponto de atribuir profissées distintas a cada um dos oito pedes que existem no jogo, em funeao do casa inicial que ocupavam no tabuleiro. Assim, para além do Rei e da Rainha, que obviamente correspondem aos monarcas do reino, temos, por exemplo, os Bispos, que correspondem a juizes ou a figuras mais yelhas do reino (e no a membros do clero como num primeiro momento se poderia pensar), fazendo com que 0s pedes que estAo a sua frente tivessem profiss6es subal- temas que serviam para apoiar o trabalho destas «pegas»: eram escrivies, ou entio vigilantes da cidade, que zelavam pelo bem-estar geral. J4 as ‘Torres correspondiam a figuras com lugar de destaque no reino — vigdrios ‘ou deputados (assistentes) do Rei ~e os pedes, situados nas casas imedia- tamente a sua frente, eram agricultores (que deviam prestar vassalagem a estas figuras eminentes do reino) ou entio exerciam uma de quatro possibilidades: jogador, critico, esbanjador ou mensageiro. O argumento aqui mais complexo, e para podermos compreender melhor a sua légica iremos recorrer s prdprias palavras de Cessolis: Este petio representa o jogador, 0 crfico, o esbanjador e 0 men- sageiro, E apropriado que deputados ¢ vigérios tenham homens nas cidades e paises que esto & procura do antagonismo com 0 Rei. Os deputados também t@m mensageiros para levar cartas © men- sagens reais. Os criticos so necessérios para relatar assuntos que info induzir vergonha e escndalo entre os vigérios e os deputados do principe. E os jogadores, quando nio tiverem dinheiro, levarao _mensagens rapidamente a todo o pats. (Cessolis 2007: Part I ~ ‘radugiio nossa) Ea descri¢io de cada uma das outras pegas prossegue ao longo de todo 0 sermio. No entanto, 0 mais importante desta prédica nfo 6 tanto a correspondéncia em si entre as pecas e as figuras do reino, mas sim 0 102 VERTICE 185/Outubro-Novembro-Dezembro 2017 (O FETICHISMO DO XADREZ. papel que cada individuo ocupa na sociedade, com toda a carga de deveres ¢ obrigagdes que a sua condigao implica. Dito por outras palavras, Ces- solis usa a analogia escaquistica para lembrar aos seus concidadiios que a ‘sua passagem pela terra esté relacionada com um plano divino, imutavel, evando deste modo os seus ouvintes a aceitar resignadamente a sua con- digdo terrena, evitando simultaneamente qualquer tipo de tentago mais «cevolucionéia», que pudesse por em causa o status quo. Esta imutabilidade do plano geral, esta impossibilidade duma pega poder rebelar-se contra a sua propria condigao, faz-nos colocar a hipétese do xadrez estar ainda a ecoar a influéncia original do Charuranga indiano, assente num sistema de castas que s6 prevé a mudanga através da reencar- nagdio, Esta hipétese torna-se ainda mais plausivel quando olhamos para a regra da promogiio do Peo — que permite a transformacio desta peca numa ‘outra no momento em que alcanga a oitava casa - na medida em que esta possibilidade ilustra na perfeico a possibilidade de subir na hierarquia social. Como sabemos, no sistema de castas indiano, os individuos das castas inferiores que cumpriram escrupulosamente o seu papel poderaio reencarnar numa outra casta numa vida futura: podem ser Damas! A semelhanga do passado, a ideia de promogao continua a exercer um forte poder ideolégico nas classes mais baixas, permitindo-Ihes sonhar ‘com a possibilidade de subir na vida, independentemente do local ou con- dig&o econémica e social em que nasceram. A sociedade norte americana tem até uma expressiio para representar esta expectativa: self-made man. Ou seja, a transformagao do Peo em Dama encaixa na perfeigao nesta ideia de autopromogao dos cidadaos, na medida em que alimenta a ideia de mobilidade social, levando milhes de individuos a pensar que um dia chegario «A oitava casa do tabuleiro», dando-Ihes deste modo a possibi- lidade de serem, passe a expresso, 0 «préximo Cristiano Ronaldo» ou a «préxima Beyoncé». No entanto, como sabemos, esta possibilidade de ascensio social no é mais do que uma miragem para a esmagadora da populacdo, ainda que a mesma seja muito ttil, uma vez que todo o sistema assenta nesta miragem. ‘Em suma, o xadrez, através deste mecanismo da promogio do Peio, cria-nos a ilusio de que é possivel subir socialmente e economicamente, ‘ou mesmo a fantasia que 0 sucesso do coletivo passa pelo sucesso de um. pequeno grupo de individuos. Por outro lado, ao centrar toda a sua aten- Go no inimigo externo, promovendo a ideia de que cada pega/individuo fem uma determinada fungo especifica no seio da sociedade a qual se deve conformar, o xadrez est a promover a ideia de que a luta de classes nao existe e que 0 sucesso do coletivo implica 0 esforgo concertado de todas as pecas, o que muitas vezes implica o seu prdprio sacrificio. E isto Ieva-nos a pensar que todos juntos somos uma sociedade centrada num mesmo e tinico objetivo, quando na realidade o esforco coletivo serve frequentemente os interesses de um conjunto de mandarins. Razio tinha Louis XIV, quando nos lembrava que o Estado era Ele, ¢ que nés todos 1nd éramos mais do que pecas do seu xadrez: «Je suis la Loi, Je suis Etat; Etat c’est moip. VERTICE 185/Outubro-Novembro-Dezembro 2017 103 DINIZ CAYOLLA RIBEIRO O fetichismo do xadrez Concluséo Facamos ento um resumo dos trés argumentos aqui apresentados, salientando o carécter fetichista de cada um deles, Num primeiro momento vvimos que o xadrez veicula a ideia de ser um jogo absolutamente simétrico, ‘em que brancas e negras se defrontam em circunstincias idénticas, quando na realidade todas as provas apresentadas apontam num sentido contrario. Em segundo lugar, verificamos que no xadrez a pega mais poderosa em termos de movimentos é feminina, para depois constatarmos que esse poder niio é de todo comparado 20 poder do Rei, que 6, passe a redundan- cia, «absolutamente absoluto»: sem Rei nfo hé jogo de xadrez; tudo se entra em torno dele. Finalmente, num terceiro momento, levando ainda mais longe este cardcter absolutista do jogo de xadrez, compreendemos que 0 jogo de xadrez. desvaloriza a luta de classes, promovendo ao invés a ideia de mobilidade social como uma espécie de salvago da maioria em geral, e do Rei em particular. Ao enveredarmos por esta anilise fetichista do xadrez, que nos mostra a faceta mais ideol6gica do jogo, corremos 0 risco de ter dado a ideia de que o xadrez apenas reflete os lados menos positivos da sociedade. Nao cra essa a intengio. O xadrez, enquanto espelho da sociedade, ou sintoma de algo mais profundo, também tem a capacidade de materializar outras transformagées da sociedade vistas como mais positivas. J4 o t{nhamos percebido quando anlisémos a transformagao e ascensfio da Dama nos tabuleiros» europeus, mas ha sobretudo um perfodo recente da histéria que por momentos afetou o xadrez, ainda que de forma passageira, Referimo-nos ao modo como 0 pés-modernismo e o pés-colonialismo se refletiram no «Xadrez 960». Esta variante de xadrez, criando em meados dos anos 90 do século passado por Robert (Bobby) Fischer, um dos mais notdveis (mas também polémicos) jogadores de todos os tempos, assentava na ideia de que era possivel comegar 0 jogo de xadrez a partir de uma de 960 posigdes possiveis, Dito por outras palavras, Fischer desenvolveu uma variante do jogo que partia duma posigao aleat6ria das pecas de xadrez, sgerada pelo computador, que dispunha simetricamente no tabuleiro as oito pecas da primeira e oitava linhas do jogo de um modo nao convencional. Assim por exemplo, seria possivel comecar 0 jogo a partir da seguinte disposigdo de pecas, da esquerda para a direta: Torre, Rei, Torre, Bispo, Bispo, Cavalo, Cavalo, Dama. Ou entio: Torre, Bispo, Dama, Cavalo, Bispo, Rei Cavalo, Torre. E assim por diante. As tinicas duas regras que existiam eram, por um lado, mantet um dos Bispos nas casas brancas € 0 ‘outro nas casas negras, e colocar o Rei entre as duas Torres, por forma a permitir a realizagio do Roque pequeno e do Roque grande (cujas posigdes finais eram idénticas ao xadrez convencional). Tal como se pode facilmente compreender, esta variante de xadrez. ‘mostrava uma vez mais que os «ares do tempo» estavam em sintonia com © jogo de xadrez, permitindo que a diversidade e a multiculturalidade do pés-modemismo e p6s-colonialismo influenciassem este milenar jogo de Reis. Ou seja, j4 nfio havia uma posigio mainstream a partir da qual se 104 VERTICE 185/Outubro-Novembro-Dezembro 2017 OFETICHISMO DO XADREZ comecava o jogo; havia 960 possiveis. Era como se tivéssemos passado de um tinico mapa mundo para 960! No entanto, apesar desta variante ter sido bem recebida e posta em pritica por uma vasta maioria de pratican- tes, inclusive ao mais alto nfvel, chegando mesmo a haver campeonatos mundiais desta variante de xadrez, 0 entusiamo inicial esmoreceu-se nesta Giltima década, tornando-se cada vez mais dificil encontrar parceiros que estejam dispostos a fazer um jogo de «Xadrez 960>. Mas também aqui, se pensarmos bem, percebemos que o xadrez continua a ser influenciado pelo Zeitgeist deste principio do século, bem patente em populismos rea- ciondrios e outros diversos retrocessos civilizacionais que grassam um pouco por todo lado. Sintetizando, o xadrez é um excelente jogo para passarmos o tempo, ‘bem como um meio para analisarmos o mundo & nossa volta, uma vez que tem esta capacidade invulgar de espelhar ou sintomatizar as tendéncias sociais que esto a ocorrer na sociedade ocidental em que vivemos. Por um lado, como sabemos, consegue atrair a atengo de milhdes de homens, ‘e mulheres pela beleza racional que comporta; levando os praticantes em todo o mundo a gastarem muito horas do seu tempo para compreender as intricadas e misteriosas jogadas estratégicas e taticas que as suas pecas permitem realizar. Contudo, por outro lado, como vimos ao longo deste. texto, a anilise do xadrez, a partir duma perspetiva ideol6gica, permi- te-nos compreender que este jogo, & semelhanga de tudo aquilo que os seres humanos tém inventado, nfo foi feito no «vécuo», revelando deste modo as relagées sociais em que 0 xadrez foi forjado, bem como as ideias subjacentes que favorecem invariavelmente as «classes» dominantes. E esse o seu feitico. V Bibliogratia AporsAN, Andras. 1988. Black Is Ok! London: Batsford, Cessouis, Jacob de. 2008. The Book of Chess. New York: Italica Press. Gancia, Leontxo, 2013, Ajedrez ¥ Ciencia, Pasiones Mezcladas. Barce- ona: Editorial Planeta. Harvey, David. 2013. 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