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DICIONÁRIO DA

ESCRAVIDÃO
E LIBERDADE
50 textos críticos

Lilia Morítz Schwarcz


e Flávio dos Santos Gomes
ORGANI ZADORES

fts
Companhia Das Letras
Hebe Mattos e Robson Luís
Machado Martins
MEMÓRIAS DO
CATIVEIRO
Paulo Vicente M achado nasceu em igio, eilho caçula de Vi­
cente Machado, ex-cativo na Fazenda da Presa, em Alegre,
no Espírito Santo. Cresceu "tocando lavoura" com seus pais
e seus irmãos, em regime de parceria, na mesma fazenda
em que seu pai tinha vivido como “escravo". Sua m ãe não
chegou a ser cativa, pois — segundo seu depoimento —
nascera “de ventre livre". Seu pai se tornou, posteriormente,
pequeno proprietário de um sítio de café em Vala de Souza,
também no Espírito Santo. Após seu casamento com afilha
de um sitiante vizinho, Paulo Vicente Machado se tornou
operário na Estrada de Eerro Leopoldina. Nessa condição,
morou em várias cidades de Minas Gerais, até — já apo­
sentado -fix a r -s e em São Gonçalo, no Rio de janeiro, onde
vivia na época da entrevista às historiadoras Hebe Mattos
e Martha Abreu, e ao seu neto, então estudante de história,
Robson Martins, no ano deiggg.

A entrevista com Paiilo Vicente Machado nasceu


numa sala de aula do curso de graduação da Univer­
sidade Federal Fluminense. Não imaginavamos, então,
que ela mudaria a trajetória profissional do seu neto e

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das duas professoras que o incentivaram a realizá-la.
Marcou também o início do projeto de história oral Me­
mórias do Cativeiro/Passados Presentes, do Laboratório
de História Oral e Imagem da Universidade Federal
Fluminense (Labhoi-UFF). Foi parcialmente transcrita e
analisada no capítulo final do livro Das cores do silêncio,
originalmente tese de doutorado de Hebe Mattos, e deu
origem à decisão de Robson Martins de seguir pesqui­
sando sobre a comunidade cativa e o pós-emancipa-
ção na terra dos seus antepassados — o município de
Alegre, no Espírito Santo. Em 1994, Hebe Mattos, Ana
Lugão Rios e Robson Martins desenvolveram juntos a
proposta de continuar entrevistando camponeses ne­
gros das antigas áreas cafeeiras do Sudeste, sobretudo
Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, a partir de
um roteiro genealógico, para o arquivo do Labhoi-UFF.
Desde 2005, Martha Abreu, presente na primeira entre­
vista, voltou a ser parceira no projeto.
A pesquisa coletiva então iniciada acabou por acom­
panhar também o movimento de emergência de uma
nova identidade coletiva, oriundo da implementação
do artigo 68 das Disposições Constitucionais Tran­
sitórias da atual Constituição brasileira, que declara:
"Aos remanescentes das comunidades dos quüombos
que estejam ocupando suas terras é reconhecida a pro­
priedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos". Muitos dos nossos entrevistados
passaram a reivindicar o reconhecimento de suas co­
munidades como "remanescentes de quilombo" para
efeitos de titulação coletiva de terras tradicionais ou
j

constitutivas de lugares de memória.


O arqtdvo do Labhoi incorporou também cópia das
transcrições das entrevistas com a primeira geração
dos entrevistados para o projeto Memória da Escravi­
dão em Famílias Negras de São Paulo, desenvolvido pela
USP, no ano do centenário da abolição. O ano de 1988 foi

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um marco decisivo para a história do movimento negro
no Brasil, com as marchas contra o racismo e a denún­
cia da incompletude da abolição, bem como para a pes­
quisa em história social da escravidão e a inauguração
da problemática do pós-emancipação e do pós-abolição
como campo de estudos. Nesse terreno, destacamos o
surgimento de pesquisas acadêmicas interessadas de
maneira sistemática pela memória familiar dos últi­
mos cativos e seus descendentes. Os projetos iniciais de
história oral com a memória familiar de descendentes
de libertos do “Treze de Maio” tinham todos, como
primeiro objetivo, inserir a experiência dos últimos li-
bertandos, sobretudo das antigas áreas cafeeiras do Su­
deste, na história social do pós-abolição.
Em grande medida, atingiram o objetivo traçado. Hoje
sabemos que os ex-cativos das áreas de produção de
café do Sudeste, antigas ou novas, após a libertação ten­
deram a permanecer próximos às regiões onde viviam,
ainda que não nas mesmas fazendas, valorizando os
lacos familiares e comunitários estabelecidos até então.
Formaram um campesinato itinerante, na expressão de
Ana Lugão Rios, conjugando mobilidade e trabalho fa­
miliar. Como Paulo Vicente, muitos se tornaram propri­
etários de pequenos sítios, apesar de as famílias terem
perdido as terras nas gerações subsequentes. As mi­
grações negras intensificam-se algumas décadas depois
da abolição, seguindo os trilhos das estradas de ferro,
como a história de Paulo Vicente ilustra, e fazendo da
negritude uma característica das periferias das cidades
da região.
A trajetória de Paulo Vicente Machado antecipava a
história coletiva que as mais de trezentas horas de
entrevistas posteriores nos ajudariam a construir e
que hoje estão na base da coleção de vídeos Passados
Presentes, dos aplicativos de turismo histórico Pequena
África, Quilombo São José, Quilombo do Bracuí e Jongo

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de Pinheiral, e de memoriais em honra dos últimos afri­
canos cativos, erguidos na cidade de Pinheiral e nos qui­
lombos de São José, em Valença, e do Bracuí, em Angra
dos Reis, no estado do Rio de Janeiro.
A tardia possibilidade desse tipo de iniciativa acadê­
mica se deveu, em grande parte, ao contexto político de
aprovação da Constituição de 1988 e aos movimentos
negros que nele emergiram. Eles fizeram social e poli­
ticamente viável tornar público o que antes era vivido
como legado familiar de caráter privado, quebrando o
silêncio sobre a memória familiar da experiência da es­
cravidão.
Desde então, entrevistas, performances e depoimen­
tos ajudaram a produzir conhecimento sobre a história
e a memória da última geração de africanos escravi­
zada no Brasil. Os testemunhos coletados até a década
de 1990 em especial, e mesmo antes, nos raros regis­
tros de ex-escravos, preferiam usar o termo “cativos"
e "tempo do cativeiro”, em vez de "escravidão", como
destacou o historiador Mário Maestri. Antecipavam,
assim, a tendência política dos movimentos negros do
século XXI, de preferir a palavra "escravizado” à natu­
ralização da condição jurídica de "escravo", e repetiam,
sem saber, a opção dos abolicionistas radicais do século
XIX, que denunciavam, com o uso do termo "escravi­
zado", a ilegalidade da maior parte do tráfico negreiro
no Brasil imperial, quase todo posterior à primeira lei
de extinção em 1831. Comunidades negras do litoral
fluminense, formadas por descendentes de trabalhado­
res escravizados das chamadas “fazendas de engorda",
estabelecimentos rurais com pequenos portos que ser­
viam à logística do contrabando de africanos (chegada,
enterramentos, quarentena e recuperação), surpreen­
deram com uma eloquente tradição oral que se tornou
fonte para os historiadores.
O uso das palavras "cativo” e “tempo do cativeiro"

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nos depoimentos de descendentes dos últimos escra­
vizados, em diferentes projetos de pesquisa, ensinava
igualmente sobre a importância da família e das comu­
nidades de senzala como instituições de transmissão
j

da memória, capazes de engendrar aguda consciência


histórica em alguns de seus descendentes. A expres­
são "ventre livre”, referência aos antepassados nascidos
após a lei que libertou os nascituros, em 1871, é outro
recurso de periodização presente na memória coletiva
registrada por pesquisadores. No conjunto, são muitos
os depoimentos que falam de antepassados africanos,
de indígenas "pegos a laço” também ilegalmente escra­
vizados, da separação de famílias no tráfico interno, e
sobre a dor da preterição dos próprios filhos, na hora
da amamentação, pelas amas de leite escravizadas.
O conjunto dos registros disponíveis para pesquisa,
orais e audiovisuais, apresenta ainda diversas formas
estruturais de memória coletiva, impressas em gestos,
performances e religiosidades. As coincidências narra­
tivas referem, por fim, as transformações históricas do
pós-abolição, com destaque para os impactos das po­
líticas públicas da Era Vargas e dos direitos culturais
e territoriais garantidos na Constituição de 1988 nas
formas como a herança familiar pode ser transmitida e
interpretada. Neste último aspecto, a herança cultural
centro-africana expressa no jongo/caxambu e seu reco­
nhecimento como patrimônio imaterial do Brasil, em
2005, é um caso eloquente, que tomamos como exem­
plo, a partir da etnografia de Robson Martins de sua pri­
meira estada na terra dos seus antepassados no Espírito
Santo, no verão de 1994.
Nessa visita inicial, em busca da história de seus an­
tepassados e de suas raízes familiares no “tempo no
cativeiro”, a primeira impressão do pesquisador foi a
de ter recuado no tempo. Encontrou comportamentos
diferentes, códigos compartilhados, um leve toque no

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chapéu em forma de saudação, olhares fixos e uma in­
tensa circulação de pessoas numa área rural não muito
distante do centro do município; humildes lavradores
vendendo produtos cultivados em suas roças. Muitos
deles eram homens e mulheres negros com cabelos
brancos e aparentavam ter mais de sessenta anos.
Robson havia sido informado por funcionários da Se­
cretaria Municipal de Cultura que numa comunidade
negra, na antiga Fazenda Novo Horizonte, os moradores
tinham o costume de dançar o caxambu no dia 12 de
)

junho, em comemoração ao aniversário do sr. Antônio


Raimundo da Silva e em louvor a Santo Antônio. Che­
gando lá, foi muito bem recebido pelo sr. Antônio, que
logo lhe contou sobre a origem da dança do caxambu
“no tempo do cativeiro”.
Segundo o sr. Antônio, as informações sobre as ori­
gens do caxambu vinham de dona Bibiana, uma ex-es-
crava que teria ajudado a mãe dele a criar os onze filhos.
Sua narrativa enfatiza o sentido místico da prática, mas
também o papel do caxambu como espetáculo, fator de
negociação com o poder senhorial. Graças ao caxambu,
os cativos teriam conseguido comer no dia do "casa­
mento da princesa":

“‘Quê que vocês estão batendo e cantando aí?’, ela per­


guntou. ‘Vocês já almoçaram?’
"Eles responderam: ‘Não, porque nós estamos espe­
rando a ordem da sinhá ou de sinhô para arrumar o
nosso almoço [...]’.
“'Ah, meu Deus do céu!’, falou a sinhá. ‘Eu até esqueci
mais vem pra cá meus filhos para vocês comerem.’ Aí
eles largaram os caixotes e foram comer e quando ter­
minaram essa comadre falou: ‘Agora eu quero que vocês
voltem pra lá e retomem a bater porque eu quero ouvir
este batuque’. Aí eles bateram e bateram e ela pergun­
tava: ‘Mais o que vem a ser isto?’.

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“Aí veio \im negro velho, que era o rei dos trabalha­
dores, e falou: 'É o caxambu’. Então foi registrado o
caxambu, então eles arrumaram logo um tronco oco de
pau e fizeram aqueles tambores, aí começou onde que
até hoje tem o dia dos cativos e o dia em que liberou
o caxambu, então todas as festas que havia nas fazen­
das eles faziam a festa deles pra cá e convidavam todos
os negros de outras fazendas e dançavam o caxambu a
noite toda.”

Foi desde essa época que a equipe do projeto Memórias


do Cativeiro tomou o jongo/caxambu como objeto de
estudo. Na década de 1960, Maria de Lourdes Ribeiro,
uma das principais referências nos estudos sobre o
jongo do Sudeste, ao perguntar a um jongueiro se ele co­
nhecia uma dança chamada caxambu, ouviu a seguinte
resposta: "[...] pois é o mesmo Jongo, desde Carmo da
Cachoeira até Passa Quatro o nome é esse”. Para tia Ma­
rina, do jongo de Piraí, em 2007, jongos eram os versos
e caxambu, a dança e a percussão.
As entrevistas sobre a origem da prática, realizadas
já no século xxi com quilombolas do Rio de Janeiro,
preferiram enfatizar, na resposta, os versos cifrados.
“O jongo da comunidade São José da Serra é uma das
coisas que a gente tem consciência [que] é uma das
coisas boas, porque o jongo ele foi criado assim: no
tempo da escravidão, então o negro vinha lá de fora
da África e quando chegava no Brasil eles faziam tudo
pra poder trocar, tirar parentesco, grau de parentesco.
Cada um levava para um lugar aí até com língua di­
ferente [...] até dialeto não falava o mesmo [...] para
poder complicar a convivência deles nas comuni... nas
fazendas. E no jongo, os negros se organizaram através
do cântico. Então comecaram a cantar... e cantando eles
j

se conheciam, através do canto e daquilo foi surgindo


algum namoro, nas lavouras de café. E passaram a um

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confiar no outro. E assim foi criado o quilombo tam­
bém. Porque o jongo ele é um cântico não decifrável.
Porque o cara cantava, combinava quem ia fugir, como
ia fugir, quando iria fugir, com quem iria fugir. Mas os
feitores, que ficavam o dia todo nas lavouras de café,
não tomavam conhecimento daquilo. Aí foi indo, com o
passar do tempo, aí foi criando os quilombos. Veio o dos
Palmares, depois vieram outros quilombos, como hoje é
o de São José da Serra [...]."
Lidamos aqui com definições complementares, inte­
grantes de um mesmo repertório de memória coletiva
de longa duração. As inflexões de narrativa são, porém,
determinadas pela geração do narrador e pela mudança
do contexto político. O enquadramento paternalista
predominante até os anos 1990, sobretudo nas gera­
ções mais antigas que viveram a chamada Era Vargas
(193 0-40), difere do das gerações dos anos de superação
do regime militar (1980-90), as quais dialogam com
a lógica política do movimento quilombola. Segundo
Antônio Nascimento Fernandes, “o negro não foi liber­
tado, o negro conquistou a sua liberdade. É isso que eu
faço questão de frisar em todo lugar que eu vou. A li­
berdade do negro com aspas, porque não temos ainda
tal, tal a total liberdade, ela foi conquistada, nada de
princesa Isabel assinou. Então pra gente mesmo, hoje,
eu que tenho consciência, é o 20 de novembro, mas é
uma data bem recente. [...] [Atualmente] a comunidade
comemora mesmo é dia de Santo Antônio [...] e de São
José que não tem muito a ver, mas é o santo da fazenda,
é o dono da fazenda e é ali que nós estamos procurando
nosso espaço”.
No jongo/caxambu, a realização dos rituais em torno
de uma fogueira tem sentido prático, mas também sim­
bólico, compartilhado por todos os envolvidos. Quando
a voz do tambu enfraquece, os tocadores aproximam-
se do fogaréu, umedecem o couro com pinga e de­

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vagarinho vão batendo, experimentando com a ponta
dos dedos, até que a pele aquecida se retesa e lhes dá
o timbre perfeito. O fogo recupera a sonoridade dos
tambores, mas também celebra os antepassados. Em
algumas sociedades da África Central, a realização de
certas cerimônias ao redor de uma fogueira possui sen­
tido místico; uma forma de os espíritos dos ancestrais
também participarem e estarem prontos para atender
as solicitações.
Não há contradição nesse jogo de reconfigurações
de sentidos políticos e coincidências narrativas e per-
formáticas com raízes na África Central. As pesquisas
com a memória familiar dos descendentes dos últimos
cativos africanos têm contribuído para quebrar a invi­
sibilidade de seus antepassados, ao mesmo tempo em
que reconstrói a história dos diferentes significados po­
líticos assumidos por sua memória e legado cultural.

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