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Farsa de Inês Pereira, Gil Vicente 2022
Farsa de Inês Pereira, Gil Vicente 2022
► Contextualização histórico-literária
Entre o final da Idade Média e as primeiras manifestações do Renascimento em Portugal, ou seja, no período que
corresponde ao último quartel do século XV, início do século XVI, há um autor que se destaca no panorama literário
português: Gil Vicente. Autor de transição entre os dois períodos referidos, a sua obra é disso reflexo, bem como de
uma grande diversidade, plasticidade e até modernidade, em alguns aspetos.
• Tendo vivido entre 1460-70 e 1540, a sua obra foi organizada por dois dos seus filhos, que editaram
a Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente.
• Foi no ambiente da corte que produziu a sua obra dramática, tendo a primeira – o Auto da
Visitação ou Monólogo do Vaqueiro– sido representada em 1502.
• Até 1536, ou seja, ao longo de 34 anos, Gil Vicente terá escrito cerca de 50 peças (1).
De entre a sua vasta produção, centraremos a nossa atenção em duas obras, a saber: a Farsa de Inês Pereira e
o Auto da Feira.
O “pai do teatro literário português” colheu inspiração nas manifestações teatrais pré-vicentinas, como
os momos, os mistérios, as moralidades e os milagres, com as suas temáticas profanas e religiosas. A Farsa de Inês
Pereira é um exemplo de um auto profano e o Auto da Feira é um exemplo de um auto religioso.
Deste elenco, constatamos que as obras dramáticas de Gil Vicente podem ser agrupadas sob a designação
de comédias, farsas ou moralidades. Trata-se de uma classificação tripartida deixada pelo próprio Gil Vicente, mas
que “não significa que as obras incluídas em cada grupo apresentem uma perfeita homogeneidade entre si” (1).
Gil Vicente viveu num tempo de mudança e as peças estudadas são um testemunho da sociedade portuguesa do
século XVI.
Se a época de ouro das Descobertas trouxe novos conhecimentos, novas culturas, novos hábitos, trouxe
igualmente novos problemas, pois à volta da corte gravitam muitos parasitas da sociedade, para além de a pequena
nobreza não trabalhar (porque considera que o trabalho é indigno) e por isso estar cada vez mais pobre, ainda que
mantenha uma postura de arrogância.
No fundo, chega-se à conclusão de que a riqueza, o luxo e a ostentação resultantes dos Descobrimentos tiveram
como contraponto a decadência dos costumes e dos valores, a degradação moral e humana, que Gil Vicente tão
bem captou e espelhou na sua obra através das chamadas personagens-tipo.
Assim, se, por um lado, a sua obra é o “acabamento das melhores tradições do teatro medievo europeu” 1,
revelando uma religiosidade pura e tradicional, articulada em torno de questões como o Bem e o Mal, o Céu, o
Inferno, a salvação, a ordem do mundo, por outro lado, já “participa […]de uma incipiente atmosfera humanista e
renascentista”, patente, por exemplo, na crítica social, na sátira comportamental, na postura anticlerical, denotando
que Gil Vicente é um homem atento ao que o rodeia e é um homem do seu tempo.
Tendo em conta a classificação tripartida de Gil Vicente sobre as suas obras – farsas, comédias e moralidades –, a
peça que vamos agora estudar é uma farsa. Convém, porém, referir que na Copilaçam de todalas obras de Gil
Vicente o título que surge é Auto de Inês Pereira, o que se explica pelo facto de, na Idade Média, o termo “auto” se
aplicar a qualquer peça de teatro.
A farsa, presidida pelo mote já referido, pode ser resumida da seguinte forma:
“Inês Pereira, uma jovem caprichosa e ambiciosa, vê-se pressionada a casar com Pêro Marques, o “asno”, lavrador
simples e sem cultura, mas está encantada pelo galante combatente Brás da Mata, que encarna o “cavalo”. É neste
momento de escolha de pretendentes (e suas consequências) que se centra a mais famosa farsa escrita por Gil
Vicente e, sem dúvida, uma das mais divertidas e satíricas da vida quotidiana do seu tempo.” (1)
Sendo Gil Vicente um artista da corte, esta farsa tinha como fito divertir o rei, a sua família e, naturalmente, os
cortesãos.
A farsa, enquanto género, apresenta características próprias e que estão presentes no auto vicentino:
Relativamente ao papel que cada personagem desempenha, convém referir que muitas das figuras desta farsa, à
semelhança do que se verifica em outros textos vicentinos, representam um determinado grupo social e/ou
profissional, naquilo que ele tem de sui generis, de particular, em termos de comportamento. São, por isso,
consideradas personagens-tipo, figuras que encarnam uma maneira de ser comum ao grupo a que pertencem e que,
por essa razão, não expressam densidade psicológica nem dinamismo. São personagens planas, com uma vida
interior estática. No entanto, são fundamentais para a dimensão satírica de que se reveste esta obra de Gil Vicente,
como veremos posteriormente.
Inês Pereira
Inês Pereira é a protagonista da farsa, já que toda a intriga se desenvolve em torno do seu desejo de casar (para
ascender socialmente e ter mais liberdade) e das escolhas que faz nesse sentido.
Logo de início, esta figura feminina surge-nos como alguém muito descontente com a vida que leva:
(1) Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, Porto: Porto Editora, 2014
Inês sente-se “cativa” da vida doméstica que leva e gostaria de ter a mesma vida que outras jovens, que têm uma
vida mais folgada. Nessa medida, representa um grupo social com uma forma de estar, de pensar e de se comportar
típica. No entanto, como veremos, é uma personagem que apresenta densidade psicológica e que vai evoluir ao
longo da peça.
Sendo “muito fantesiosa”, Inês constrói uma imagem idealizada de marido:
A Mãe e a Alcoviteira, Lianor Vaz, tentam orientá-la, mas Inês mostra-se decidida e irredutível nas suas
opiniões: “Folgaste vós na verdade / casar à vossa vontade? / Eu quero casar à minha”.
Assim, Inês acabará por aprender às suas custas, como, aliás, a própria o afirmara: “Que tendes de ver co isso? /
Todo o mal há de ser meu”. De facto, numa primeira fase, enganada pelo Escudeiro Brás da Mata e pela sua
aparência, Inês opta pelo pretendente mais galante, que representa o “cavalo” do mote inicial da peça. Depressa,
porém, percebe a má escolha que fizera e arrepende-se.
Constata-se, pois, uma mudança de atitude da parte da protagonista, que revela, inclusive, um plano futuro a fim
de se vingar do sucedido.
Depois de ter sido “derrubada” pelo “cavalo”, Brás da Mata, Inês escolhe a personagem que representa o “asno”,
o Lavrador Pêro Marques, pois, tendo aprendido por experiência própria – “Sobre quantos mestres são / experiência
dá lição” –, reconhece que:
Dos exemplos dados, conclui-se que as características apresentadas sobre esta personagem foram, sobretudo,
depreendidas a partir daquilo que ela diz ou faz, ou seja, trata-se de uma caracterização indireta. No entanto,
algumas personagens apontam características a Inês Pereira. Por exemplo, a Mãe afirma que ela é preguiçosa e
pergunta-lhe: “Como queres tu casar / com fama de preguiçosa?”, reforçando, assim, um traço do carácter da filha
que já poderia ser intuído através do seu monólogo inicial. Neste caso, estamos perante uma caracterização
direta que é feita por outra personagem – heterocaracterização. A própria Inês Pereira também se autocaracteriza,
quando, por exemplo, afirma “Mas eu, mãe, sam aguçosa”.
Mãe
Esta “mulher de baixa sorte” (caracterização direta, apresentada na didascália inicial), bastante perspicaz (ver as
respostas que dá à Alcoviteira, quando esta relata o seu encontro com um clérigo), manifesta opiniões totalmente
discordantes das da filha relativamente ao casamento e ao marido que esta deveria escolher. Analisando as suas
falas, repletas de provérbios e de expressões populares, e as suas atitudes – caracterização indireta –, podemos
dizer que a Mãe é a voz do bom senso, da razão e também da experiência: “Mata o cavalo de sela, / e bom é o asno
que me leva”, “Muitas vezes, mal pecado, / é melhor boa simpreza”.
A Mãe quer ajudar Inês, daí que, ao saber da proposta da Alcoviteira, elogie a filha, caindo mesmo no exagero de
dizer – “Hui! E ela sabe latim, / e gramática e alfaqui (sábio muçulmano – a Mãe pensa que esta palavra designa uma
ciência difícil, por isso não a utiliza adequadamente), / e tudo quanto ela quer.”
Por outro lado, dá conselhos a Inês, sempre que um dos pretendentes a vai visitar, mostrando, assim, o seu
cuidado, a sua preocupação. Outras vezes, coloca perguntas à filha, esperando dessa forma levá-la a refletir e a
ponderar melhor sobre o seu futuro, fazendo referência à necessidade de garantir um futuro seguro em termos
monetários e aludindo à vantagem de ter um marido trabalhador, do mesmo nível social.
O discurso da Mãe incorpora, no fundo, a crítica ao desejo de promoção social tão comum na época. Inês não
quer casar com um seu igual, isto é, com um homem da mesma classe, mesmo que este seja, como Pêro
Marques, “um bom marido, / rico, honrado, conhecido” e que não pretenda dote (“em camisa vos quer”). Almeja,
sim, o matrimónio com alguém da corte, com um homem que toque viola, que seja galante e saiba falar.
A Mãe, porém, é mais realista e interessa-se pela condição económica do Lavrador, daí o cómico de linguagem na
referência ao morgadio – “De morgado (7) é vosso estado? / Isso viria dos céus!”. Ainda assim, Inês decide casar com
o Escudeiro, pelo que, à Mãe, nada mais resta senão aceitar e abençoar a união, preparando uma festa e deixando a
filha entregue ao marido.
A partir do casamento, a Mãe não volta a aparecer, como se a sua missão já tivesse sido concluída e “todo o
mal” fosse agora responsabilidade da escolha que Inês fez.
Esta personagem-tipo, uma Alcoviteira, é uma mulher cujo ofício consistia também em “arranjar” casamentos,
apresentando pretendentes. Assim, é ela quem dá a conhecer Pêro Marques a Inês e à sua Mãe, considerando-o “um
bom marido, / rico, honrado, conhecido” e esse casamento abençoado – “Eu vos trago um casamento / em nome do
Anjo bento”.
Lianor Vaz partilha das opiniões da Mãe quanto à escolha que Inês devia fazer e expressa-o através de expressões
populares: “Filha, ‘No Chão do Couce, / quem não puder andar choute.’ / ‘Mais quero eu quem m’adore, / que quem
faça com que chore’”.
Porém, tal como a Mãe, a Alcoviteira não consegue, inicialmente, convencer Inês a optar pelo Lavrador e é só
após a morte do primeiro marido de Inês que Lianor Vaz aparece e aconselha-a novamente, chamando a atenção
para as vantagens económicas de tal união.
Com Lianor Vaz também se denuncia o comportamento devasso do clero, através do encontro com o clérigo que
a assedia, o que constitui um exemplo de crítica social.
Pêro Marques
Retrato fiel do camponês, do homem rústico e simples, Pêro Marques é uma personagem-tipo e aparece como o
primeiro pretendente, aquele que, apesar de todos os elogios feitos pela Alcoviteira, é desprezado por Inês Pereira.
Esta, aliás, não hesita em caracterizá-lo de uma forma bastante negativa e sarcástica, tecendo comentários
pejorativos sobre ele quer às outras personagens quer ao público, através de apartes:
• “Viste tão parvo vilão? / Eu nunca tal coisa vi / nem tanto fora de mão.”
• “(Oh, Jesu! Que João das bestas! / Olhai aquela canseira!)”
Esta caracterização direta (heterocaracterização) decorre dos comportamentos e atitudes que Pêro Marques
revela não só antes de conhecer Inês (por exemplo, a carta que lhe escreve, numa linguagem muito rudimentar),
como no momento em que se encontra com ela. Veja-se, por exemplo, a situação cómica que se cria quando Pêro
Marques, não sabendo para que serve a cadeira, se senta ao contrário (de costas) ou quando procura, em vão, as
peras no chapéu.
Neste caso, o leitor/espectador pode inferir outras características desta personagem (caracterização indireta),
um vilão, isto é, aquele que não é nobre.
Para além disso, Pêro Marques também se autocaracteriza como sendo um homem de bem (“eu de bem er
também”) e sério, decente (“como homem de bom pecado”). No entanto, para Inês, estas qualidades não são de
valorizar, antes pelo contrário. Atente-se, por exemplo, na ridicularização que ela faz quando se apercebe do
desconforto que Pêro Marques sente ao estar sozinho com ela.
Por fim, a imagem do camponês inocente, ingénuo e desajeitado fica completa no último episódio da peça,
quando o vemos a transportar Inês, agora sua mulher, às costas, levando-a ao encontro do Ermitão e entoando o
verso “Pois assi se fazem as cousas”, tal como Inês lhe pedira. Pêro Marques encarna, então, o papel de marido
obediente, crédulo (“I onde quiserdes ir, / vinde quando quiserdes vir, / estai onde quiserdes estar”) e enganado pela
mulher.
O segundo pretendente de Inês Pereira parece corresponder ao perfil que ela tinha em mente para marido. Com
efeito, fazendo jus aos rasgados elogios dos Judeus, o Escudeiro, também ele personagem-tipo, parece ser um
homem encantador, hábil com as palavras e com os instrumentos musicais, como se autocaracteriza:
• “Sei bem ler, / e muito bem escrever, / e bom jogador de bola, / e quanto a tanger viola, / logo me vereis tanger.”
Mas, na verdade, o Escudeiro é um homem falso, pretensioso, pelintra e prepotente, traços caracterizadores que
podem ser deduzidos a partir dos diálogos que trava com o seu Moço (caracterização indireta) ou a partir dos
apartes que este último produz (caracterização direta):
“Esc. Moço, que estás lá olhando?
Moço Que manda Vossa Mercê?
Esc. Que venhas cá.
Moço Pera quê?
Esc. Por que faças o que eu mando!
Moço Logo vou.
(O Diabo me tomou:
sair-me de João Montês
por servir um tavanês,
mor doudo que Deus criou!)”
Concretizado o casamento, o Escudeiro revela a Inês a sua verdadeira personalidade, como marido autoritário e
insensível, impedindo-a de socializar ou de estar sequer à janela, dando-lhe a liberdade de apenas ir à igreja.
Inês percebe, então, o engano em que caíra. Ela própria, depois de saber da morte do Escudeiro às mãos de um
pastor, quando fugia da batalha, traça o seu último e fiel retrato, realçando a sua cobardia: “Guardar de cavaleirão /
barbudo, repetenado, que em figura d’avisado / é malino e sotrancão”
► A representação do quotidiano
Uma das características da farsa, enquanto género, é representar flagrantes da vida quotidiana. Daí que na Farsa
de Inês Pereira seja possível identificar vários episódios que espelham os hábitos, os costumes, as crenças, os modos
de vida das pessoas daquela época, em especial aqueles que diziam respeito:
• ao casamento – o texto vicentino dá-nos a conhecer as conceções antagónicas de Inês Pereira, da Mãe e de
Lianor Vaz em relação a este assunto, para além de todo um conjunto de aspetos relacionados com o casamento: a
intervenção da Alcoviteira e dos Judeus, os encontros com os pretendentes, as regras, o dote, a festa, a vida em
casal;
• ao estatuto da mulher, sobretudo da mulher solteira – os casamentos eram, regra geral, combinados,
funcionando como um negócio entre duas partes, sem que a jovem solteira tivesse qualquer participação. Neste
caso, apesar de haver intermediários entre Inês Pereira e os pretendentes, a última palavra é da protagonista, que,
no entanto, não consegue, com o primeiro casamento, alcançar aquilo que tanto desejava: libertar-se do “cativeiro”
da vida doméstica e ascender socialmente;
• à vida doméstica – acompanhamos a protagonista nos seus afazeres domésticos, assumindo a postura típica da
mulher do povo que trata da casa. No seu monólogo inicial, Inês está em casa, a costurar; depois, já casada e fechada
em casa, também costura;
• à vida palaciana – apesar da vida de aparências que existia na corte e que está bem espelhada no
comportamento do Escudeiro, muitos eram os que ambicionavam fazer parte desse mundo, como Inês. Ela
quer “ouvir e folgar” e, por isso, pretende inicialmente casar com um homem “discreto”, “avisado”, que
saiba “tanger” viola;
• à vida do campo, simples, autêntica, mas pouco considerada – Pêro Marques representa esse tipo de vida, em
oposição à vida fútil, falsa da corte. Curiosamente, esta vida simples, de trabalho, garante mais sustento que a vida
ociosa dos fidalgos pelintras;
• à vida do clero – o encontro de Lianor Vaz com um clérigo devasso e o de Inês Pereira com um Ermitão devoto de
Cupido denunciam comportamentos imorais da parte de elementos do clero.
► A dimensão satírica
O teatro de Gil Vicente é eminentemente satírico. Na realidade, um dos principais objetivos do dramaturgo, ao
escrever e encenar as suas peças, era chamar a atenção para as mudanças que afetavam a sociedade de Quinhentos
e que, na sua perspetiva, a corrompiam, traduzindo-se em comportamentos viciosos como, por exemplo, o desejo de
promoção social das camadas mais baixas, o parasitismo da nobreza, o adultério, a devassidão e a imoralidade do
clero.
Estes comportamentos são denunciados, essencialmente, através das personagens-tipo e do cómico.
Efetivamente, a representação do quotidiano ganha uma outra projeção graças às personagens-tipo. Na verdade, na
sua individualidade de personagem, elas incorporam modos de estar, de pensar e de sentir específicos de um grupo
social e/ou profissional que, assim, adquire mais impacto. Na Farsa de Inês Pereira, podemos reconhecer os
seguintes tipos:
• a Alcoviteira (Lianor Vaz) e os Judeus (Latão e Vidal) – figuras gananciosas que agem com um fim económico;
• o Vilão (isto é, o homem do povo), lavrador (Pêro Marques) – personagem rústica, serve para fazer rir a gente da
corte, com a sua ignorância e simplicidade;
• o Escudeiro (Brás da Mata) – género de parasita, ocioso e vadio, que imita os padrões da nobreza – toca guitarra,
verseja, faz serenatas, finge-se bravo, mas é medroso e explorador do Moço. Não trabalha e passa fome;
• o Ermitão – há uma desconformidade entre os atos e os ideais, pois, em lugar de praticar a austeridade, a pobreza
e a renúncia ao mundo, busca a riqueza e os prazeres mundanos.
Em última análise, podemos ainda dizer que cada uma destas personagens ilustra um determinado conjunto de
defeitos e de vícios que Gil Vicente, através do seu olhar perspicaz, queria criticar. Daí que as personagens-tipo sejam
cruciais para a sátira social que o dramaturgo pretendeu concretizar.
As personagens-tipo ajudam, pois, a compor o quadro do quotidiano e da sociedade à época de Gil Vicente,
permitindo ao dramaturgo expor e satirizar atitudes e valores, muitas vezes através do riso. Nesse sentido, as
personagens-tipo podem também contribuir para o cómico.
O cómico é, aliás, outro instrumento de que Mestre Gil se serve para criticar os seus contemporâneos. Com
efeito, o teatro de Gil Vicente é o melhor exemplo da máxima “ridendo castigat mores”, isto é, a rir castigam-se,
corrigem-se os costumes. Nesse sentido, ao criar personagens, situações ou discursos que fazem o público rir, o
dramaturgo pretende, com algum distanciamento e de uma forma divertida, pôr a descoberto, muitas vezes
ridicularizando, um comportamento, uma ação, um valor que, na sua ótica, é moralmente condenável.
Na Farsa de Inês Pereira, podemos identificar exemplos de cómico de carácter, de situação e de linguagem.
Antes de analisarmos alguns, gostaríamos, porém, de salientar que não raras vezes eles se entrelaçam, ou seja, o
efeito cómico pode resultar da personalidade da personagem e/ou da situação em que esta se encontra, bem como
da linguagem que utiliza.
► Linguagem e estilo
Para além de poder ser um elemento ao serviço da comicidade, a linguagem em Gil Vicente é um importante
elemento de caracterização das personagens. De facto, nos seus textos, o dramaturgo procurou sempre adequar a
linguagem de cada personagem ao grupo social a que pertencia ou à atividade que desempenhava. Nesse sentido,
verificamos que na Farsa de Inês Pereira:
• Pêro Marques fala como lavrador que é, ou seja, de forma simples, provinciana e, por vezes, até confusa, visto que
não era instruído.
• Inês Pereira, a Mãe e Lianor Vaz falam como as mulheres do povo, recorrendo a expressões populares e a
provérbios (“ante a Páscoa vêm os Ramos”, “maior é o ano que o mês”, “Mata o cavalo de sela / e bom é o asno que
me leva”, “No Chão de Couce, / quem não puder andar choute”, “Quem bem tem e mal escolhe, / por mal que lhe
venha não s’anoje”, “Antes lebre que leão”).
• Brás da Mata, como pretende enganar Inês, fala com ela de um modo galante, sendo o seu discurso rebuscado e
em tom hiperbólico (“Senhora, eu me contento / receber-vos como estais; / se vós não vos contentais, / o vosso
contentamento / pode falecer no mais”); porém, com o Moço, já usa uma linguagem mais coloquial e agressiva
(“Faria bem de t’a quebrar / na cabeça, bem migada”), tal como fará com Inês, depois do casamento (“Juro ao corpo
de Deus / que esta seja a derradeira! / Se vos eu vejo cantar, / eu vos farei assoviar…”).
• Os Judeus recorrem a uma linguagem de cariz popular e, a dada altura, para criar um efeito de verosimilhança,
usam mesmo fórmulas macarrónicas dos rituais judaicos (“Alça manim dona, ó dona, ha, / arrea espeçulá, / bento o
Deu de Jacob, / bento o Deu que a Faraó / espantou e espantará”).
Por outro lado, tratando-se de um texto literário, está permeado de recursos expressivos que lhe conferem novos
sentidos, para além do óbvio. Assim, nesta farsa, podemos identificar, entre outros, os seguintes recursos
expressivos:
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