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PA D R E PA U L O R I C A R D O

A BATALHA DOS MISSAIS

O Sacrifício
da Missa
Avenida Higienópolis, 174, Centro
86020-908 — Londrina/PR ADAPTAÇÃO
editorapadrepio.org
Fábio Gonçalves
AUTOR IA
Padre Paulo Ricardo
A BATALHA DOS MISSAIS I: CAPA
O SACR IFÍCIO DA MISSA Klaus Bento
DIAGRAMAÇÃO
© Todos os direitos desta edição Eduardo de Oliveira
pertencem e estão reservados à
Editora Padre Pio DIR EÇÃO DE CR IAÇÃO
Luciano Higuchi
Redempti ac vivificati Christi sanguine, nihil Christo EDIÇÃO E R EVISÃO
præponere debemus, quia nec ille quidquam nobis præposuit. Éverth Oliveira
SUMÁRIO

1. O QUE É SACRIFÍCIO? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
I. Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
II. Por que os protestantes odeiam a Santa Missa?. . . . . . . . . . . . . 8
III. O que é sacrifício?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
IV. O sacrifício e a natureza humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
V. A oferta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
VI. A transformação da coisa ofertada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
VII. O legítimo oferente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
VIII. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

2. A DOUTRINA PROTESTANTE SOBRE A MISSA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23


I. Apresentação .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
II. Lutero e a “abominação” da Missa papal . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
III. A luta de Lutero contra a “Missa silenciosa”. . . . . . . . . . . . . . 25
IV. O sacrifício de Cristo segundo a Carta aos Hebreus. . . . . 28
V. A posição de Calvino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
VI. A definição do Concílio de Trento .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
VII. Por onde vai o debate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
VIII. Uma nova fé, uma nova religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
IX. Um caminho de santificação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
3. O CALVÁRIO E A MISSA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
I. Recapitulação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
II. O sacrifício da Missa nas Sagradas Escrituras.. . . . . . . . . . . . 40
III. Quando acontece o sacrifício na Missa? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
IV. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
V. Nos próximos capítulos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

4. A DOUTRINA CATÓLICA SOBRE A MISSA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51


I. Recapitulação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
II. O que diz Lutero. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
III. O que dizem os Santos Padres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
IV. Diferenças entre o Calvário e a Missa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
V. As quatro finalidades da Missa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

5. A REFORMA LITÚRGICA DE PAULO VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67


I. Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
II. A validade da Missa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
III. Um testemunho pessoal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
IV. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

BIBLIOGRAFIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
A BATALHA
DOS MISSAIS I:
O SACRIFÍCIO DA MISSA
PADRE PAULO RICARDO
1. O QUE É SACRIFÍCIO?

I. Apresentação
Este é um livro sobre o santo sacrifício da Missa. Entendemos
que ele seja necessário porque vimos surgir na internet, princi-
palmente depois que o Papa Francisco publicou a Carta Apos-
tólica Traditionis Custodes, um intenso debate a respeito dos
dois missais: o de Paulo VI e o de Pio V.

O problema é que as pessoas têm discutido de maneira muito


superficial temas como a validade dos missais, a oportunida-
de ou não deles, a superioridade de um em relação ao outro,
e assim por diante. No fundo, vemos que as pessoas estão
desencontradas.

Por isso, para lançar um pouco de luz no debate, gostaríamos


de ir à substância da coisa e entender realmente a questão, o ar-
ticulus stantis vel cadentis Ecclesiæ — para usar uma expressão
de Lutero —, aquilo “que faz a Igreja ficar de pé ou cair”.

O núcleo da discussão é o santo sacrifício da Missa ou a Mis-


sa entendida como sacrifício. Nos capítulos desta obra, por-
tanto, vamos explicar o que é um sacrifício, qual é a visão dos
revolucionários protestantes a respeito do sacrifício da Missa
e qual foi a reação católica do Concílio de Trento, dos santos
e do magistério posterior. O objetivo é entender o que é es-
sencial e inegociável em relação ao santo sacrifício da Missa
e, a partir daí, nos posicionar, com os pés no chão, sobre a
polêmica dos missais.

7
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

II. Por que os protestantes odeiam a Santa Missa?


Para começo de conversa, vejamos por que a Missa Tridentina,
e principalmente a Oração Eucarística do Cânon Romano, é
inaceitável para os revolucionários protestantes.

Vejamos o que Lutero diz em seus “Artigos de Esmalcalda”, que


compõem a obra Konkordienbuch, ou “Livro da Concórdia”.
No segundo artigo, escrito como preparação para o Concílio
de Trento, o ex-monge apresenta aos príncipes protestantes a
razão pela qual não seria possível negociar com os delegados
papais enviados à Alemanha:

A missa deve ser considerada a maior e mais hedionda abo-


minação do papado, pois que se opõe aberta e violentamente a
este artigo principal, o artigo primeiro.

O primeiro artigo trata do sola fide, pilar da doutrina protes-


tante a respeito da justificação. 1

Do princípio evocado no sola fide, conclui-se que nenhuma obra


realizada pelo homem é capaz de merecer para ele a salvação.
Sendo a Missa uma obra que propicia a justificação do homem,
Lutero conclui que ela deve ser completamente rejeitada:

Não obstante, ela foi acima e antes de todas as outras idola-


trias papais a mais elevada e admirada; por isso se afirma que
esse sacrifício ou obra da missa, ainda que oferecido por um
malandro ímpio e perdido, liberta os homens de seus pecados
tanto em vida como além, no purgatório.

1.Vale dizer que nós católicos também aceitamos que a justificação se dá pela fé,
mas — e aqui está a discordância fundamental — não somente por ela. Além disso,
o conceito de fé inventado por Lutero resume-se a uma confiança subjetiva, psico-
lógica, espécie de crença no poder da mente. Isso não é de maneira nenhuma a fé
verdadeira, a fé teologal.

8
1 . O q u e é s ac r i f í c i o ?

Quando Lutero critica o fato de que até um “malandro” possa


verdadeiramente realizar o sacrifício da Missa, ele está atacan-
do o conceito de ex opere operato. A Missa é ex opere operato,
pois é operada por Cristo mesmo. É Cristo quem age; o sacer-
dote é simplesmente um instrumento, um ministro. Atacando 2

essa doutrina, Lutero retrocede a uma questão já resolvida sé-


culos antes por Santo Agostinho no seu debate contra Dona-
to. O donatismo dizia que um sacramento só seria válido se o
ministro o celebrasse em estado de graça.

Com base nisso, ele conclui:

Mas isso [o sacrifício, a obra meritória], conforme dito acima,


somente o Cordeiro de Deus o deve e tem de fazer. Também
deste artigo não podemos nos afastar e ceder em algo, pois não
o permite o primeiro artigo.

Ou seja, para ele, a Missa era completamente inaceitável.

Em outros escritos, Lutero mostra claramente que o proble-


ma principal está no Ofertório e no Cânon Romano. Em 1519,
dois anos após o lançamento das 95 teses (que aconteceu em 31
de outubro de 1517), Lutero já escreve contra a doutrina cató-
lica contida no Cânon da Missa. Em 1521, escreve um de seus
3

livros mais revolucionários, De abroganda missa privata, no 4

2. Nota do Editor: A Missa, enquanto oferecida pelo sacerdote em nome próprio,


opera ex opere operantis em função do mérito, da piedade e da devoção do oferente.
Com efeito, esta oblação é uma boa obra feita pelo sacerdote que, nas devidas con-
dições, tem — como toda boa obra — valor meritório, satisfatório e impetratório.
Por isso, ainda que se trate de um valor acessório, vale muito em ordem à obtenção
de graças para receber melhor os frutos provenientes do valor essencial, ex opere
operato, da Missa.
3. Cf. Sermon von dem hochwirdigen Sacrament: WA 2 [1884] 751.

4. Cf. WA 8 [1889] 411–476; Von Missbrauch der Messe: WA 8 [1889] 482–563.

9
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

qual rejeita claramente o Cânon — já que este não deixa dúvi-


das de que a Missa é um verdadeiro sacrifício oferecido a Deus.

Para deixar o assunto bem claro desde o início, vejamos o que


ensina o Concílio de Trento (Sessão 22.ª) a respeito da Missa
enquanto sacrifício:

Cân. 1. Se alguém disser que na Missa não se oferece a Deus


um verdadeiro e próprio sacrifício, ou que oferecer-se Cristo
não é mais que dar-se-nos em alimento — seja anátema.
5

Fala-se exatamente de verum et proprium sacrificium. Ou seja,


enquanto, para Lutero, a Missa deveria ser apenas um dom de
Deus, um gaben, um simples testamento deixado por Cristo
com o qual nós nada oferecemos a Deus, Trento condena essa
6

ideia enfatizando que, sim, nós oferecemos a Deus o sacrifício


de Cristo na Cruz.

Quer dizer, o sacrifício de Cristo que oferecemos é a essência


da Missa. Esta é a visão católica. Afirmar o contrário é perder
comunhão com a Santa Igreja de Deus. Trata-se de uma reali-
dade determinada por um concílio ecumênico.

Ao longo deste livro, estudaremos tudo isso com mais calma. O


que fizemos até aqui foi estabelecer o status quæstionis inicial.

III. O que é sacrifício?


Para avançar, precisamos agora responder a uma pergunta
muito importante. Afinal de contas, o que é um sacrifício? Sa-
crifício é uma oferta feita a Deus. Mas as palavras oferta e obla-

5. DH 1751 [2013] 449.

6. Cf. Von den guten Werken: WA 6 [1888] 231.

10
1 . O q u e é s ac r i f í c i o ?

ção, que são sinônimas, nem sempre expressam a ideia de sa-


crifício no seu sentido específico, técnico. Se não entendermos
exatamente o que significa o termo, não vamos compreender
onde está a disputa entre os católicos e os protestantes.

Os protestantes aceitam que a Missa seja um sacrifício no sen-


tido amplo da palavra (lato sensu). Para eles, a Missa pode ser
um “sacrifício de louvor”, um “sacrifício de ação de graças”;
aliás, a própria palavra eucaristia expressa isso: um sacrifício
de ação de graças. O que eles não aceitam é que a Missa seja
um sacrifício no sentido estrito da palavra (stricto sensu), ofe-
recido por um sacerdote também no sentido estrito da palavra.

É importante lembrar que as palavras podem variar em seus


significados. Se eu bato no ombro de um amigo e falo: “Cara,
você é um soldado!”, eu não estou usando a palavra soldado no
seu sentido mais próprio. Estou querendo dizer simplesmente
que o sujeito é uma pessoa que luta, que luta por algum ideal,
que trabalha bastante etc. Soldado, no sentido estrito, é a pes-
soa que foi alistada e depois realmente convocada, ingressou
no serviço militar e recebe para isso um soldo. Isso é propria-
mente um soldado.

O Concílio de Trento afirma — atenção — que a Missa é um


sacrifício verdadeiro e próprio, um sacrifício em sentido es-
trito. É muito diferente do sentido que empregamos em fra-
ses como: “Nossa! chegar aqui foi um sacrifício”. Nesse caso,
a palavra sacrifício está sendo usada em sentido amplo. É o
mesmo que acontece quando alguém diz que ofereceu sua
dor de cabeça como sacrifício a Deus, ou que ofereceu sua
vida como sacrifício. Nada disso é sacrifício no sentido técni-
co, verdadeiro e próprio.

Para que haja um sacrifício em sentido estrito, são necessários:

1. a oferta de algo sensível, material, feita a Deus;

11
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

2. um sacerdote no sentido técnico da palavra, ou seja,


uma pessoa que age não somente em nome próprio, mas
pelo povo; e

3. uma mudança na coisa oferecida.

Quanto à definição específica de sacerdote, podemos achá-la


na própria Sagrada Escritura: “Todo pontífice, tomado dentre
os homens, é constituído a favor dos homens naquelas coisas
que se referem a Deus para que ofereça dons e sacrifícios pelos
pecados” (Hb 5, 1). É portanto alguém que foi tomado dentre
os homens (ἐξ ἀνθρώπων λαμβανόμενος, ex anthrṓpōn lamba-
nómenos), e foi constituído (καθίσταται, kathístatai) em favor
dos homens (ὑπὲρ ἀνθρώπων, hypér anthrṓpōn). Não existe
sacrifício se não há um sacerdote verdadeiro.

Neste ponto, ou seja, na questão do sacerdócio, começa a bri-


ga de Lutero, de Calvino e dos protestantes em geral. Lutero
não admitia que a Missa fosse sacrifício propriamente dito
porque, se o fizesse, teria de admitir que os padres, o Papa e
os bispos são sacerdotes no sentido estrito da palavra — ho-
mens retirados do meio dos homens e constituídos diante de
Deus para oferecer a Ele, em favor dos homens, dons e víti-
mas (δῶρά τε καὶ θυσίας, dōrá te kai thysías). Lutero aceitava
que isso tivesse ocorrido de uma vez para sempre no Calvá-
rio. Não admitia de maneira nenhuma que essa realidade se
repetisse na Santa Missa.

IV. O sacrifício e a natureza humana


Precisamos aqui nos aprofundar na noção de sacrifício. Para
Santo Tomás de Aquino, a realidade do sacrifício é uma coisa
natural, é algo que está na natureza humana. Para o Doutor
Angélico, um ser humano, para ser plenamente realizado, pre-
cisa necessariamente oferecer sacrifício a Deus.

12
1 . O q u e é s ac r i f í c i o ?

Por quê? Vamos entender isso refletindo sobre quatro elementos


do nosso relacionamento com pessoas que nos são superiores.

Pensemos em nossos pais. Você é uma criança e tem o seu


relacionamento com o papai e a mamãe. Ora, a primeira coisa
a se admitir é que papai e mamãe são superiores; é preciso
portanto admitir a autoridade deles. Se a criança tem os pés
no chão da realidade, tem de admitir que ela é menos e os
pais são mais, que ela pode menos e eles podem mais. Tem de
haver, por parte da criança, uma reverência para com os pais.
É uma experiência fundamental. Trata-se do mandamento
“honrar pai e mãe”.

Essa é a primeira coisa que se faz num sacrifício: o reconhe-


cimento da superioridade de Deus. Quando reconhecemos
nossos pais como superiores, nós os honramos. Quando re-
conhecemos que Deus é superior a nós, nós o adoramos, com
culto de latria. Portanto, a primeira coisa que um sacrifício
faz é adorar a Deus. Quando entramos na igreja e nos pros-
tramos diante dele em adoração, estamos reconhecendo a sua
superioridade.

Uma das finalidades do sacrifício é reconhecer isso. E temos


de perceber que se trata de uma realidade natural. E é a coisa
mais óbvia. É justo, como se diz no Prefácio da Missa, “é digno,
justo, equitativo e salutar” — dignum et justum est æquum et
salutare. Ora, é justo que adoremos a Deus porque temos de
reconhecer que Deus é Deus. É natural que seja assim.

Muita gente hoje repete: “Nós somos cristãos. Deus é um


Deus de amor. Deus não quer sacrifícios”. Isso está errado.
Ora, quando a Bíblia diz que Deus não quer sacrifícios, ela
está se referindo ao sacrifício exterior isento de sacrifício in-
terior. O problema é quando o sacerdote oferece o sacrifício
de bodes e carneiros, mas não oferece junto o sacrifício inte-

13
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

rior do seu coração. Aí entramos num formalismo farisaico,


numa exterioridade, pelo que claramente o sacrifício ofereci-
do não agrada a Deus.

Quando Deus diz: “Misericórdia eu quero e não sacrifício” (Os


6, 6; Mt 9, 13), o sentido da afirmação é: “Eu quero que o co-
ração de vocês ofereça o sacrifício de misericórdia ao mesmo
tempo que oferece o sacrifício externo”. Não se trata de Deus
não querer sacrifício, pois o sacrifício faz parte da natureza das
coisas; é necessário. O sacrifício é do ser das coisas. Se Deus é
mais, nós o adoramos, e se o adoramos, é necessário, é essen-
cial que haja um sacrifício de adoração.

Segundo: vamos pensar também que nossos pais dão coisas a


nós: a vida, proteção, casa, comida, educação etc. Qual deve
ser a nossa reação diante de quem nos dá coisas tão valiosas?
Naturalmente, devemos ter gratidão, responder com ação de
graças. Essa é a tônica do relacionamento de duas pessoas em
níveis diferentes. Primeiro o inferior reconhece a superiorida-
de do outro e com isso o honra. Segundo, ao receber as coisas
do superior, demonstra gratidão. Por isso a gratidão é impor-
tante e faz parte da realidade cristã. É necessário que haja a
ação de graças, a eucaristia, esse agradecimento a Deus. Tudo
isso faz parte da natureza das coisas.

Terceiro, o filho naturalmente pede coisas a seus pais. “Papai,


tenho fome. Me dá comida”. “Papai, estou doente. Me dá re-
médio”. É assim. Há, portanto, nessa relação desigual de pai e
filho, a realidade impetratória, ou seja, o pedido, a intercessão.

Insisto: percebam que essas finalidades do sacrifício não são


coisas retiradas de manuais escolásticos. Basta abrir os olhos
para ver que a realidade é assim. É o que deriva naturalmente
do relacionamento de uma pessoa que é inferior com uma que
é superior. Quem é inferior reconhece a inferioridade, quem é

14
1 . O q u e é s ac r i f í c i o ?

inferior agradece por receber coisas, quem é inferior pede as


coisas necessárias. E tudo isso foi instituído por Deus.

Vejamos ainda o quarto elemento.

O diabo introduziu no mundo uma coisa que não havia antes:


o pecado. Por isso, se observarmos direito, no relacionamen-
to do filho com os pais pode acontecer que o filho os ofenda.
E se isso acontece, ele precisa reparar essa ofensa. Ele ofende
a sua mãe, diz coisas horrorosas contra ela; mas, depois que
passa a raiva, ele vai lá no jardim, pega uma rosa e diz: “Ma-
mãe querida, me perdoe, eu estava com a cabeça quente, não
sei onde eu estava com a cabeça naquele momento, eu não
quero ofendê-la mais, receba essa rosa”. Com aspas, no sen-
tido amplíssimo, no sentido poético da palavra, a mãe rece-
be esse “sacrifício”, essa oblação, essa rosa como um presente
para reparar a ofensa feita pelo filho.

Se é assim, também é verdade que nós, seres humanos, preci-


samos oferecer a Deus um sacrifício. Todo ser humano pre-
cisa oferecer a Deus um sacrifício de adoração, de ação de
graças, de impetração e também de reparação pelos pecados
cometidos.

Essas quatro finalidades estão dentro da realidade chamada


sacrifício, que diz respeito às virtudes da justiça e da religião.
Trata-se de algo justo, digno, equitativo e salutar. E repito: tem
de ser assim, faz parte da coisa. Ou você acha normal um filho
desprezar o pai e a mãe e não os honrar? Acha normal um filho
não agradecer por ter recebido as coisas do pai e da mãe? Acha
normal o filho nunca pedir nada? Acha normal ele ofender e
não se desculpar? Se você não enxerga isso, você tem um sério
problema na avaliação da realidade.

15
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

V. A oferta
Voltemos, pois, à nossa definição de sacrifício, agora com as
noções mais esclarecidas. O sacrifício é uma oferta, é uma
oblação. Oferta e oblação são a mesma palavra em latim. Of-
ferre e oblatum são formas do mesmo verbo: offero — “eu ofe-
reço”; oblatum — “oferecido”. E o que é essa oferta? É trazer
diante dos olhos de alguém uma coisa, um dom. O que é o
Ofertório da Missa? O Ofertório é quando pegamos aqueles
dons e os trazemos diante de Deus, colocando-os debaixo do
seu olhar. O ofertório propriamente dito, no sentido estrito da
palavra, acontece durante a Oração Eucarística.

Mas, para ser um sacrifício no sentido estrito da palavra, ver-


dadeiro e próprio, essa coisa oferecida precisa ser sensível.
Ora, quando rezamos, por exemplo, estamos oferecendo algu-
ma coisa a Deus. Estamos oferecendo o nosso amor, a nossa
vida. Quando fazemos a consagração do Tratado da Verdadei-
ra Devoção, de São Luís Maria Grignion de Montfort, fazemos
uma consagração à Sabedoria encarnada, Jesus Cristo, através
das mãos da Bem-aventurada Virgem Maria. Essas coisas são
ofertas, oblação e sacrifício em sentido amplo, não em sentido
estrito. Sacrifício, em sentido estrito, tem de ter algo sensível,
material; tem de ter uma vítima visível.

E por que isso? Porque nós, seres humanos, somos corpo e


alma. Uma coisa é o culto prestado pelos anjos, um culto de
sacrifício totalmente espiritual. Nós, seres humanos, de carne
e osso, precisamos oferecer algo sensível, porque é justamente
pelas coisas visíveis que chegamos às invisíveis. Nós não somos
anjos, nem temos, normalmente, ciência infusa. A inteligência
humana age per sensibilia, ou seja, pelas coisas sensíveis, pelas
coisas concretas. Portanto, o nosso culto agradável a Deus pre-
cisa passar por esse lugar.

16
1 . O q u e é s ac r i f í c i o ?

Aliás, como é que nos chega a verdade de Jesus Cristo senão


pelas coisas materiais e sensíveis? Agora mesmo você está aí,
de celular na mão, diante do computador, essas coisas mate-
riais, e por meio delas está recebendo um conhecimento ima-
terial, espiritual. Ora, o nosso culto a Deus precisa passar pelas
coisas sensíveis também. Obviamente, você pode oferecer es-
piritualmente; mas para que haja um verdadeiro sacrifício, é
necessário que haja algo sensível, real, concreto.

VI. A transformação da coisa ofertada


Esse algo sensível precisa ser, de alguma forma, modificado,
para que haja uma entrega verdadeira. Vamos supor: Moisés
ofereceu a Deus o cordeiro pascal, que foi sacrificado, e parti-
cipou daquela refeição, pegando aquilo para comer também.
Este era um dos tipos de sacrifício na Antiga Aliança, o sacri-
fício pacífico. Veja, aconteceu aí uma mudança na coisa ofere-
7

cida: o animal morreu.

Pode ser, por outro lado, um sacrifício de expiação. Neste, você


não pega um animal e o come, você simplesmente o pega e o
destrói. É como acontece com o bode expiatório, sobre o qual
você joga os pecados da comunidade e manda-o ao deserto
para morrer. O bode tem de morrer para que haja uma expia-
ção ritual do pecado.

Pode haver ainda um sacrifício de entrega total a Deus, como


o chamado holocausto, em que você pega a vítima e a queima,
destruindo-a por inteiro, numa entrega total.

7. Os sacrifícios pacíficos são aqueles em que você pega uma parte do animal e a
come, porque está fazendo uma espécie de refeição com Deus, uma ceia com Deus.

17
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Há vários tipos de sacrifícios conforme se queira enfatizar


uma das finalidades que colocamos. Mas, em todos os ca-
sos, sempre precisa haver algo de material, de sensível, que
é modificado.

É evidente que esses sacrifícios de animais foram abolidos, em-


bora os vejamos ainda na sociedade brasileira, especialmente
no candomblé. No candomblé, um “sacerdote”, para usar a ca-
tegoria sociológica de sacerdote, ou pai de santo, ou mãe de
santo, oferece um sacrifício, que eles tecnicamente chamam
de “ebó” (popularmente chamado de “despacho”). Trata-se de
um sacrifício em que você oferece uma vítima: por exemplo, o
frango imolado. Há também os sacrifícios líquidos, chamados
de libação. É comum ver nos bares um sujeito lançar no chão
o primeiro gole da cachaça. É como uma oferta a um orixá.
Por conta do sincretismo, dizem ser para o “santo”. Mas evi-
dentemente não se trata de nenhum santo católico; é oferenda
para um orixá. Seja como for, podemos entender como isso
faz parte de um conceito universal, intrinsecamente humano.
Qualquer homem com religião tem esse conceito de sacrifício,
essa realidade de oferecimento a Deus.

Acontece, porém, que esse sacrifício externo, visível, para que


seja autêntico, precisa ser acompanhado de um sacrifício in-
terno, espiritual. Por isso São Paulo nos diz que precisamos
oferecer “os ázimos da sinceridade” (1Cor 5, 8). Ou seja, não
podemos oferecer com o “fermento dos fariseus”. Isso quer
dizer o seguinte: se você vai oferecer, ofereça de coração. Por
que o sacrifício de Abel foi aceito e o de Caim não? Porque
Abel ofereceu de coração e Caim ofereceu de má vontade.
Deus vê o coração.

Esse oferecimento, esse sacrifício que estamos fazendo, nos


priva de algo. A gente pega um carneiro, mata o bicho e o
oferece em holocausto. Mas se o oferecemos esperneando no

18
1 . O q u e é s ac r i f í c i o ?

coração, como que dizendo: “Não quero dar, não quero dar”;
ou se, ao invés de pegar o melhor cordeiro do rebanho, ofe-
recemos a ovelha manca e defeituosa, nós estamos dando de
má vontade. Isto não é um sacrifício. Não estamos oferecendo
como Melquisedec ofereceu pão e vinho; não estamos ofe-
recendo esses “ázimos de sinceridade” de que fala São Paulo.

Essa é a realidade do oferecimento do sacrifício.

VII. O legítimo oferente


Em suma, o sacrifício precisa ser uma oferta de algo sensível,
acompanhada do oferecimento interno, feita a Deus. E este
oferecimento a Deus é feito por um sacerdote, não por uma
pessoa qualquer. Vejamos por quê.

Existe o sacerdócio no sentido amplo da palavra. No sentido


amplo da palavra, todos os seres humanos são sacerdotes por-
que, como já dissemos e provamos, todos os seres humanos
precisam oferecer a Deus. Inclusive um pagão que procurasse
a Deus e seguisse os ditames da razão, sentiria o apelo a fazer
sacrifícios a Deus.

Por outro lado, embora todos os seres humanos sejam sacerdo-


tes em sentido amplo, nós não somos ilhas, não somos isolados.
Existe a sociedade humana, existe a nação, existe o povo, existe
a tribo, existe a família. E pelo fato de sermos seres sociais, nós
precisamos uns dos outros. Nesse estado da organização social
humana, alguém tem de ser deputado, alguém tem de ser tirado
do meio do povo, como diz a Carta aos Hebreus, e constituído
em favor do povo para oferecer sacrifícios públicos. 8

8. A palavra “público”, aqui, não é o contrário de “secreto”. Público vem de populi-


cum ou populus, “povo”. O sacrifício deve ser oferecido pelo povo. Daí não haver
fundamento na controvérsia de Lutero contra as Missas privadas, porque nenhuma

19
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Ora, o verdadeiro, único e eterno sacerdote é Jesus Cristo. Foi


Ele que, propter nos homines et propter nostram salutem (por
nós, homens, e para a nossa salvação), desceu dos céus e, etiam
pro nobis (também por nós), padeceu sob Pôncio Pilatos. Ele,
ou seja, Deus, vendo que o ser humano não poderia salvar-se,
se encarnou, criou para si um corpo e uma alma, “se fez ho-
mem”, ainda sendo Deus, e desse modo recebeu do Pai a mis-
são de oferecer o sacrifício em nome do povo, de todos nós.

Jesus, por nós (ὑπὲρ ἡμῶν, hypér hēmṓn), veio e se ofereceu no


Calvário. No Calvário, Jesus foi ao mesmo tempo sacerdote
e vítima. Ele, tendo um corpo, ofereceu algo sensível. E esse
corpo foi mudado porque Ele morreu. Além disso, Ele se ofe-
receu com essas quatro finalidades: adoração, ação de graças,
impetração e satisfação a Deus por nós. Este seu sacrifício foi
suficientíssimo para a salvação de todos nós.

Porém, esse sacerdote, na Última Ceia, quis que outros fossem


instrumentos do seu sacerdócio, do seu único sacerdócio; quis
que fossem instrumento da sua Pessoa. Alguém que é instru-
mento de outra pessoa se chama ministro. Por isso há sacerdo-
tes ministros, pessoas que receberam o mandato de Jesus. Ele
ordenou aos doze Apóstolos: “Fazei isso”. Apenas eles foram
ordenados, não a Virgem Maria, nem Madalena, que não esta-
vam lá. Jesus lhes disse: Hoc facite in meam commemorationem,
e hæc quotiescumque fecéritis, in mei memóriam faciétis, “quan-
do vocês fizerem isso, façam-no em memória de mim”. Foi um
mandato. Jesus lhes concedeu um poder para fazer com que

Missa é estritamente privada. De fato, um padre sozinho celebrando Missa está ofe-
recendo um sacrifício público porque o faz em nome do povo, pela Igreja inteira.
Público tampouco quer dizer que estamos na praça pública, mas simplesmente que
o estamos oferecendo em nome de todo o Corpo de Cristo. Para isso, no sentido
específico da palavra sacrifício, verdadeiro e próprio, é necessário que haja um sa-
cerdote delegado.

20
1 . O q u e é s ac r i f í c i o ?

esse único sacrifício que Ele realiza no Calvário seja atualiza-


do. Não “repetido”, mas “atualizado”, “renovado”, de forma in-
cruenta e sacramental na Missa.

Lutero aceita que haja um sacerdócio comum dos fiéis, um


sacerdócio batismal, mas não um sacerdócio ministerial no
sentido estrito da palavra. No sacerdócio em sentido estrito há
a necessidade de agir em nome do povo, tendo um mandato
para agir em nome ou no lugar do povo. Eis aí toda a contro-
vérsia com os protestantes.

Quando dizemos que a Missa é sacrifício, falamos também de


um sacerdote ordenado que age em nome do sacerdote invisí-
vel. Este ministro ordenado é o instrumento visível de um sa-
cerdote invisível que oferece um sacrifício — cruento na Cruz,
dois mil anos atrás, e incruento no altar, atualizado através da
consagração do pão e do vinho. Assim se renova o sacrifício da
Cruz do mesmo sacerdote, da mesma vítima, mudando apenas
a forma de oferecimento.

VIII. Conclusão
Temos aí o status quæstionis, para poder debater com clareza.
A controvérsia é esta: Lutero aceita que os pastores protestan-
tes sejam sacerdotes por sacerdócio batismal, sacerdócio no
sentido amplo, mas não no sentido verdadeiro e próprio; aceita
que a Missa seja um sacrifício de louvor, um sacrifício de ação
de graças etc., isto é, um sacrifício em sentido amplo, mas não
no sentido verdadeiro e próprio, de algo material que é ofere-
cido a Deus por um sacerdote deputado, em que há modificação
na vítima sensível.

Se não enxergarmos isso com clareza desde o início, não va-


mos enxergar onde está o debate. Com ideias claras, contudo,
vamos ver o que é o santo sacrifício da Missa.

21
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Nos capítulos a seguir, estudaremos de verdade por que este é o


articulus stantis vel cadentis Ecclesiæ, o “artigo que faz a Igreja
ficar de pé ou cair”. Porque, afinal, Ecclesia de Eucharistia vivit,
“a Igreja vive da Eucaristia”: se tirarmos a Eucaristia, a Igre-
ja acaba. Exatamente por isso, o diabo manifesta a sua raiva
contra a Missa, contra a Eucaristia, contra a renovação desse
sacrifício do Calvário por cada sacerdote que sobe ao altar.

22
2. A DOUTRINA PROTESTANTE
SOBRE A MISSA

I. Apresentação
Como já dissemos, na internet o pessoal fica discutindo sobre
os vários missais, especialmente o Missal de Pio V e o Missal
de Paulo VI. Ora, o Papa Bento XVI fez um Motu Proprio per-
mitindo o rito antigo, mas o Papa Francisco fez outro restrin-
gindo-o. Afinal de contas, o que está por trás desse debate?

Com este livro, eu não gostaria de fechar posições, mas colocar


com clareza o status quæstionis, ou seja, esclarecer o que está
realmente sendo debatido.

Não é uma questão de latim ou não latim, de Missa orientada


ou não orientada, de altar colado na parede ou altar de frente
para o povo. Nada disso. O que está realmente em questão aqui
é a Missa como sacrifício. E, como dissemos no capítulo ante-
rior, se conseguirmos entender o centro da questão, consegui-
mos nos posicionar quanto à situação litúrgica e dialogar sobre
o que é melhor conforme a legislação atual e as possibilidades
de cada paróquia.

II. Lutero e a “abominação” da Missa papal


Vamos entender a posição de Lutero e de Calvino, uma po-
sição de quem não discorda, por assim dizer, delicadamente.
Traduzi aqui uma homilia de Lutero, feita no 1.º Domingo do

23
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Advento, quando ele já era protestante e não celebrava mais


Missa. Diz assim:
9

Eu digo, eu declaro que todos os bordéis, os quais Deus real-


mente proibiu, todo homicídio culposo, roubo, assassinato,
adultério, não são tão prejudiciais quanto essa abomina-
ção da missa papista (grifos nossos).

Em alemão, a afirmação destacada está assim: nicht so schädli-


ch sind wie dieser Greuel der päpstlichen Messe. Greuel é abomi-
nação. Ele está dizendo que, se você cometer um assassinato,
roubar, abrir um prostíbulo etc., tudo isso “não é tão prejudi-
cial” (schädlich), “não faz tanto mal” quanto a “abominação”
(Greuel) da Missa.

É esse o tipo de posição veemente de Lutero. Ele realmente acha-


va que a Missa era uma blasfêmia. E, de fato, ele tomou essa po-
sição desde cedo, de tal forma que, se vocês assistirem ao nosso
curso Lutero e o Mundo Moderno, verão que a história do triunfo
da revolução protestante é a história da abolição da Missa. 10

Por exemplo, logo no início da revolução, quando Lutero ainda


estava foragido e escondido num castelo, ele escreveu a seus
confrades agostinianos de Wittenberg, persuadindo-os a não
celebrar Missas privadas.

9. WA 15 [1899] 774.

10. Foram feitos estudos estatísticos para ver como, sociologicamente, se conseguiu
implantar a revolução protestante. E o critério adotado para verificar o sucesso do
protestantismo numa cidade era se ali havia parado a celebração da Missa. Isto é:
parou de celebrar Missa, pronto, prevaleceu ali a heresia protestante, a revolução
venceu, cessou o santo sacrifício. (Mais sobre isso, na aula “Lutero Universitário”, do
curso Lutero e o Mundo Moderno, disponível aqui: <https://padrepauloricardo.org/
aulas/lutero-universitario>.)

24
2 . A d o u t r i n a p ro t es ta n t e s o b r e a M i s s a

Lutero começou a dizer que a Missa era somente um “sacrifício


de louvor”, um culto; logo, não havia sentido celebrá-la sem
ninguém. Seria como falar sozinho. Para Lutero, a razão de ser
11

da celebração é renovar nas pessoas “bons sentimentos de fé”,


sentimentos que nos dão a confiança de que Deus nos deixou
uma justificação, um testamento.

Para o protestante, a Ceia não é um sacrifício, é um dom de


Deus, algo que Ele nos deixou. Não é, de maneira nenhuma,
algo que nós oferecemos. Mas na Santa Missa, como nós cató-
licos a celebramos, temos as duas coisas. A Missa é, para usar
a linguagem da liturgia, um admirabile commercium, uma per-
muta admirável, miraculosa, entre Deus e os homens. Deus
nos dá o sacrifício com o qual nós o louvamos.

Por essa razão, para nós, católicos, faz sentido a Missa ser ce-
lebrada por um padre sozinho ou acompanhado apenas de
um coroinha. Afinal, o padre está oferecendo algo agradável a
Deus, algo que tem sentido em si mesmo: o único sacrifício de
Cristo renovado no altar.

III. A luta de Lutero contra a “Missa silenciosa”


Seja como for, Lutero começou a convencer os frades a não
mais celebrar Missas privadas. A partir disso, voltou-se contra
o Cânon Romano, aquilo que hoje, na reforma de Paulo VI, se
chama de Oração Eucarística I, a oração eucarística que o rito
romano manteve durante séculos. 12

11. Antigamente, os luteranos usavam a palavra Missa, como no novo ritual criado
por Lutero, a Deutsche Messe, a chamada missa alemã, que era um culto protestante.
Mas, aos poucos, eles deixaram de lado essa linguagem e hoje em dia o que eles dizem
é Gottesdienstes, o culto a Deus. É um culto, como a gente usa na língua portuguesa.
12. A Oração Eucarística I, conhecida como Cânon Romano, foi a única a ser reza-
da por séculos. Toda ela está baseada na convicção de que a Missa é um sacrifício.

25
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

O próprio Lutero escreveu um panfleto contra “A abomina-


ção da Missa silenciosa, chamada pelos ‘papistas’ de Cânon”.
E isto porque a Oração Eucarística era toda pronunciada em
silêncio. Ora, se a Missa é um culto para que as pessoas ou-
çam aquelas palavras, tenham bons sentimentos e então ofe-
reçam a Deus um “sacrifício de louvor”, de ação de graças, de
adoração etc., se é assim, não teria sentido o padre no altar
rezar em silêncio.

No entanto, na Missa católica, durante séculos e séculos, o Câ-


non foi pronunciado em silêncio. O padre oferecia o sacrifício
apenas mexendo os lábios, pronunciando com um pouco mais
de volume na hora da consagração, o suficiente para se ouvir.

Mas Lutero, nesse panfleto contra “a abominação da missa si-


lenciosa”, analisa o Cânon Romano e diz que se trata de “uma
coisa horrorosa”, que “o padre vai e apresenta aquele pedaço de
pão e aquele vinho como se fosse um sacrifício”, que ele “tra-
ça o sinal da Cruz e diz: hæc dona, hæc múnera, hæc sancta
sacrifícia illibáta”. Perguntava Lutero: “Como esse é um santo
sacrifício ilibado? O santo sacrifício ilibado é o que Cristo ofe-
receu na Cruz”, dizia, “não esse pão e esse vinho que estão no
altar do padre”.

Lutero abominava a linguagem do Cânon. E abominava que o


padre insistisse, depois da consagração, “chamando aquele pão
e aquele vinho de ‘hóstia’”. Para nós, na linguagem corriqueira,
hóstia é o pãozinho guardado no armário da sacristia. Mas, em
latim, hóstia quer dizer vítima; é a vítima do sacrifício da Mis-
sa. Por isso o padre reza: hóstiam puram, hóstiam sanctam, hós-
tiam immaculátam, Panem sanctum vitæ ætérnæ, et Cálicem

Em seu núcleo fundamental, ela é de época apostólica, sendo citada em seu nú-
cleo já por Santo Ambrósio. Depois, houve o seu desenvolvimento com os Santos
Padres (São Gregório Magno e outros), que foram acrescentando mais coisas.

26
2 . A d o u t r i n a p ro t es ta n t e s o b r e a M i s s a

salútis perpétuæ, “hóstia pura, hóstia santa, hóstia imaculada,


pão santo da vida eterna e cálice da salvação perpétua”.

Lutero e os demais revolucionários protestantes fizeram um ca-


valo de batalha por toda a vida contra a Oração Eucarística I,
justamente porque nela, assim como no Ofertório, não há como
fugir do fato de que a Missa é a renovação do sacrifício de Cristo
na Cruz, um sacrifício verdadeiramente oferecido, no sentido
estrito da palavra, conforme vimos no capítulo anterior. 13

Em resumo, as duas coisas que Lutero e os demais revolucio-


nários protestantes achavam e acham o fim da picada são o
Ofertório e o Cânon Romano. Essas são as duas “desgraças”
da Missa católica para eles. E isto porque, em primeiro lugar,
os padres rezavam em silêncio; e, em segundo lugar, porque
os padres pretendiam oferecer “um novo sacrifício”, conforme

13. Vamos recordar brevemente o que é sacrifício em sentido estrito. Primeiro, deve
haver um sacerdote no sentido verdadeiro e próprio, ou seja, um homem que rece-
beu uma delegação, uma deputação para oferecer um sacrifício em nome do povo,
um sacrifício público. Os protestantes não aceitam isso, não aceitam o sacerdócio
católico, o ministro. Eles só aceitam o sacerdócio batismal, o sacerdócio no sentido
amplo da palavra. Cada um é seu sacerdote, mas não é sacerdote no sentido estrito
da palavra porque não recebeu a delegação de oferecer o sacrifício em nome de
todos. Você oferece o seu sacrifício, o outro oferece outro sacrifício; então não se
trata de sacrifício no sentido estrito da palavra. Segundo, para que haja sacrifício
no sentido estrito da palavra deve haver uma coisa sensível, um objeto sensível,
seja um cordeiro, um boi, um touro, pão e vinho, enfim, uma coisa externa que
seja oferecida. Ou o Cristo que oferece o seu corpo para ser sacrificado na Cruz.
Deve haver algo sensível que está sendo oferecido, sinal externo de um sacrifício
interior da vontade, da alma. Se não houver esse sinal externo, não há sacrifício no
sentido estrito da palavra. E deve haver, terceiro, a modificação dessa coisa ou pela
morte do animal ou pelo derramamento do líquido ou, no caso do pão e do vinho
consagrados na Missa, pela transformação, pela transubstanciação e, digamos as-
sim, a separação sacramental do Corpo e Sangue de Cristo pelas duas consagrações
diferentes. Jesus não morre outra vez, nada disso, mas, sacramentalmente (em ra-
zão das consagrações separadas do Corpo e do Sangue), é a morte de Cristo que
acontece na Missa.

27
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

entendia Lutero, “desprezando o sacrifício de Cristo na Cruz”.


Essa é a discórdia.

IV. O sacrifício de Cristo segundo a Carta aos Hebreus


Para firmarem posição, os protestantes se fundamentam, sobre-
tudo, na Carta aos Hebreus, que fala do sacrifício de Cristo com
mais clareza. Na Carta se insiste várias vezes que Jesus ofereceu
o seu sacrifício uma vez só. O texto recorda, citando o Salmo
39, que Jesus, ao entrar no mundo pelo ventre da Virgem Maria,
cumpriu a vontade de Deus Pai. Por isso Ele diz: “Não quiseste
sacrifício nem oblação, mas formaste-me um corpo” (Hb 10, 5).
Com isso, Jesus veio pôr fim aos holocaustos do Antigo Testa-
mento e oferecer um novo holocausto, o sacrifício do seu corpo.
Dito de outro modo, Deus formou um corpo para si mesmo, a
segunda Pessoa da Santíssima Trindade, de modo que, morren-
do na Cruz, oferecesse o sacrifício definitivo.

O versículo 10 do mesmo capítulo insiste: “Por esta vontade


somos santificados mediante a oblação do corpo de Jesus Cris-
to feita uma vez”.

Em português, “uma vez” não diz grande coisa, mas, no ori-


ginal grego, está ἐφάπαξ (ephápax), palavra forte que quer di-
zer “uma vez só”, “uma única vez”, “uma e tão somente uma”.
A Carta diz que somos santificados διὰ τῆς προσφορᾶς (dia
tēs prosphorás), isto é, “pelo oferecimento”, “pela oblação”, τοῦ
σώματος Ἰησοῦ Χριστοῦ ἐφάπαξ (tou sōmatos Iēsou Christou
ephápax) “do corpo de Cristo, uma vez só”.

Os protestantes, diante disso, afirmam sobre o sacrifício de


Cristo: “É uma vez só. O que esses católicos querem agora? To-
dos os dias precisa oferecer novamente Jesus? Oferece, oferece,
oferece... O que vocês estão fazendo é uma abominação. Vocês
pretendem matar Jesus novamente todos os dias na Missa? Pa-

28
2 . A d o u t r i n a p ro t es ta n t e s o b r e a M i s s a

rem com isso! O sacrifício de Cristo no Calvário foi suficiente,


e vocês ficam matando Jesus outra vez!”

O mesmo capítulo 10 de Hebreus reafirma essa realidade em


outros momentos, como no versículo 12: “Tendo oferecido
uma só hóstia pelos pecados…”, ou seja, uma só vítima pelos
pecados: μίαν ὑπὲρ ἁμαρτιῶν (mían hypér hamartiōn), em
grego. Depois, no versículo 14, se diz novamente: μιᾷ (mia),
quer dizer, “uma”, γὰρ προσφορᾷ (gar prosphorá), “uma só
oferta”, uma só oblação. O autor martela: “Uma só vez”, “uma
só vez”.

A Carta assinala aqui um contraste com os sacrifícios do Anti-


go Testamento, do Templo de Jerusalém, em que os sacerdotes
tinham de oferecer reiteradamente sacrifícios e mais sacrifí-
cios. Havia sacrifícios pacíficos, sacrifícios de expiação, holo-
caustos, várias formas de sacrifício.

Portanto, nós, católicos, não estamos fazendo outro sacrifício,


não estamos desprezando o sacrifício de Cristo na Cruz. Es-
tamos em perfeito acordo com os protestantes neste ponto: o
sacrifício que nos salva é único; é um só, não dois. Não é neces-
sário discutir algo em que já estamos de acordo.

O problema é que eles, os protestantes, não ouvem. Não


adianta você dizer que não está matando Jesus de novo, que
há um único sacrifício, um só, agora renovado de modo di-
ferente, sacramentalmente. Não adianta explicar que na Cruz
houve o sacrifício cruento, com sofrimento; e que agora Jesus
não sofre mais, pois o sacrifício é oferecido de outro modo,
de forma sacramental. Eles não querem ouvir. Eles insistem
que matamos Cristo de novo. No final das contas, o que eles
fazem é a tal da teologia panfletária. A ideia é fazer um pan-
fleto para escandalizar e abalar a fé dos católicos. Por isso não
é possível o debate.

29
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

V. A posição de Calvino
Para dizer que não é uma coisa só de Lutero (os luteranos
aqui no Brasil são poucos, aqui a maior parte dos protestan-
tes é de matriz calvinista), cito também as Institutas da Re-
ligião Cristã, de Calvino. Num dos capítulos finais, ele fala
14

“da missa papal”, a Missa católica, como um “sacrilégio pelo


qual a ceia de Cristo foi não apenas profanada, mas destruída
por completo” (quo sacrilegio non modo profanata fuit coena
Christi sed in nihilum redacta). E mais: “Com essas inven-
ções e outras semelhantes, Satanás, como que espalhando
suas trevas, esforçou-se em ofuscar e obscurecer a santa ceia
de Cristo para que nem mesmo sua pureza fosse mantida na
Igreja”. O que Satanás fez, segundo Calvino, foi fazer “crer que
a Missa é sacrifício e oferenda para alcançar a remissão dos
pecados” (ut crederet missam sacrificium et oblationem esse ad
impetrandam peccatorum remissionem).

Aqui está a desgraça para eles: a Missa entendida como sacrifí-


cio e oferenda. Esse é o ponto da discórdia para luteranos, cal-
vinistas e qualquer tipo de protestante. Eles nunca irão aceitar
que a Missa seja um verdadeiro sacrifício.

Eu quero bater nesta tecla: a Missa é sacrifício no sentido estri-


to da palavra. Conforme já dito, eles aceitam a Missa, no má-
ximo, como um sacrifício de louvor, em sentido amplo. Que
exista um sacerdote delegado, que atue em nome do povo,
como diz a Carta aos Hebreus (5, 1), isso eles não aceitam. E
que o padre suba ao altar para oferecer um sacrifício visível, a
hóstia, sinal de um sacrifício invisível, o sacrifício de Cristo na
Cruz, eles também não aceitam.

14. Calvino, 1869, p. 1051.

30
2 . A d o u t r i n a p ro t es ta n t e s o b r e a M i s s a

Por isso Calvino exortava seus leitores a “combater a opinião


com que o anticristo de Roma e os seus profetas embriagaram
o mundo”; pois a visão que temos de que a Missa é uma obra
meritória, através da qual somos reconciliados com Deus, é para
ele “uma blasfêmia intolerável e uma afronta a Cristo” (ibid.).

Embora Calvino seja um pouco mais comportado que Lutero


em matéria de linguagem, podemos ver que a coisa é igual-
mente trágica.

VI. A definição do Concílio de Trento


O Concílio de Trento, por outro lado, respondeu aos dois,
dizendo que não há dois sacrifícios. Essa é a posição oficial
da Igreja. Isso está declarado dogmaticamente. O Concílio de
Trento (Sessão 22.ª) diz:

Com efeito, uma só e mesma é a vítima [una enim eademque


est hostia], pois quem agora se oferece pelo ministério dos sa-
cerdotes é o mesmo que então se ofereceu na cruz; só o modo
de oferecer é diferente.
15

Em outras palavras, a vítima é a mesma, é a mesma pessoa:


a Pessoa divina que se encarnou e que se ofereceu na Cruz,
agora se oferece pelo ministério do sacerdote, do padre, no
altar. “Só o modo de oferecer é diferente”: na Missa, é sem
derramamento de sangue.

Essa é a posição dogmática da Igreja Católica. Não é o Padre


Paulo falando. Isso foi respondido há 500 anos. A Igreja já dis-
se: a vítima é uma só. O que acontece é que os protestantes não

15. DH 1743 [2013] 447.

31
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

vão aceitar de jeito nenhum que exista um poder sacerdotal


dentro da Igreja Católica. Aqui está a grande controvérsia.

VII. Uma nova fé, uma nova religião


Agora vamos pensar.

Eu quero que vocês enxerguem a coisa, pois não adianta eu


fazer este livro simplesmente para dizer ou repetir aquilo que
outros já dizem. Eu quero que vocês façam um ato de inteligên-
cia e enxerguem onde está o problema.

No meu curso sobre a Engenharia da Santidade, eu começo 16

dizendo onde está o grande problema de Lutero. Lutero era


um rapaz, um jovem sacerdote, que infelizmente desesperou
da santidade. Ele tinha péssimos confessores e diretores espi-
rituais. Os agostinianos de Wittenberg eram uma espécie de
desvio da Ordem, uma corrente meio doida, aloprada. Eles
achavam — vejam o absurdo — que existia pecado sem con-
sentimento. Imaginem a desgraça: eles achavam que bastava
ter uma sugestão de pecado e pronto, já pecou. Eles pegaram o
conceito de tentação, o conceito de concupiscência, e chama-
ram isso de pecado.

Por isso, por conta daqueles agostinianos, antes mesmo da


revolta de Lutero já havia uma desgraça por lá. Staupitz era
confessor de Lutero e ficava ouvindo a confissão dele, do então
padre Martinho, durante seis horas seguidas. Isto porque Lute-
ro nunca se contentava, vivia com escrúpulos, com uma ânsia
neurótica de falar até o último sentimento. E, por causa da gen-
te doida que o aconselhava, ele nunca se sentia suficientemente
livre do “pecado”.

16. Disponível em <https://padrepauloricardo.org/cursos/engenharia-da-santidade>.

32
2 . A d o u t r i n a p ro t es ta n t e s o b r e a M i s s a

Nós, católicos, sabemos que não é assim, que existe o senti-


mento, existe a tentação, e é somente quando você percebe a
advertência: “Opa, isso está errado”, que, dali para a frente,
pode consentir em pecar ou não. O fato é que Lutero, atormen-
tado, inventou um jeito de sair dessa neurose: inventou um
novo conceito de fé. Lutero entendia a fé como uma “confian-
17

ça subjetiva”, um autoconvencimento de que se está salvo por


Cristo e ponto final.

Ora, quando Lutero fala que somos salvos pela fé, nós, católi-
cos, não podemos estar de acordo com ele, embora a afirmação
seja, em parte, verdadeira. Nós somos salvos pela fé, sem dúvi-
da, mas não pela fé que Lutero inventou. Somos salvos porque
a fé teologal é o instrumento através do qual a salvação entra
na nossa vida.

De fato, não é possível ser salvo sem fé. Sem fé não é possível
agradar a Deus. Mas não é dessa fé teologal que falava o monge
revolucionário. Quando Lutero ainda não tinha sido excomun-
gado, o Cardeal Caetano, que o julgou, percebeu imediatamen-
te o problema. O Cardeal, nada diplomático, achava suficiente
dar uns berros com o frade petulante: Com esse conceito de fé,
você inventou uma nova religião. Isso não é o cristianismo.

A religião que Lutero inventou, com essa fé fiducial, subjetiva,


uma espécie de autoconvencimento, apaziguava as angústias
do seu coração. Cristo salva todo o mundo. Basta ter fé e Ele
nos justifica.

E o que é essa justificação, essa salvação que Cristo nos dá?

17.Vimos no curso Lutero e o Mundo Moderno (disponível aqui: <https://padre-


pauloricardo.org/cursos/lutero-e-o-mundo-moderno>) um estudo profundo de
Paul Hacker a esse respeito. Trata-se do livro Faith in Luther: Martin Luther and the
Origin of Anthropocentric Religion. Emmaus Academic, 200p.

33
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Para Lutero, a justificação era uma questão judicial, uma justi-


ficação forense. Funciona assim: você é pecador, desordenado,
safado, sem-vergonha. Então o Cristo escreve, digamos assim,
uma quitação, uma ficção jurídica, e a partir daí você não deve
mais nada, pode entrar no Céu. Basta acreditar nisso e pronto:
você está salvo. Você continua pecador, continua sem-vergo-
nha, continua egoísta, não há nenhuma modificação em você,
mas não tem problema. Você faz de conta que está quitada a
dívida e, voilà, está resolvida a história. No Calvário, Cristo pa-
gou a sua dívida e a pregou na Cruz — para usar a analogia de
São Paulo (cf. Cl 2, 14). Feito: você está perdoado.

É claro que com esse conceito de justificação não tem senti-


do celebrar Missa. Porque, se é simplesmente uma questão
de liquidação, uma vez quitada a dívida, para que ficar re-
petindo a quitação? Imaginem que eu tenho uma dívida no
cartório. Vou lá, faço a quitação e, no dia seguinte, e no pró-
ximo, e no outro, volto para quitar de novo e de novo. Não
faz o menor sentido. O atendente do cartório vai dizer, com
razão, que sou louco.

Só que nós, católicos, sabemos que não é isso. Existem duas


coisas que os luteranos não enxergam. Primeiro, a justificação
não é somente isso. Há uma modificação na alma da pessoa.
Segundo, estar justificado não é a mesma coisa que ficar santo.

Sendo assim, por que eu preciso renovar o sacrifício da Missa?

Entendamos: não é a Missa que justifica as pessoas, as pessoas


são justificadas pela fé e pelo sacramento da fé que é o Batis-
mo. E uma vez que o Batismo lava os seus pecados, você está
salvo. Mas não se trata simplesmente de uma salvação forense,
jurídica. É uma salvação pois Deus colocou uma semente de
salvação na sua alma. E se você morrer agora, está salvo.

34
2 . A d o u t r i n a p ro t es ta n t e s o b r e a M i s s a

Você creu em Jesus Cristo, professou a fé, foi batizado, seus


pecados foram perdoados e você está salvo. Mas, e se caiu
outra vez em pecado mortal? Arrependa-se, confesse, e aí
você volta ao estado de graça. Se você morrer em estado de
graça, será salvo. Mas você ainda não ficou santo, há trabalho
pela frente.

Porque veja: Deus é Deus de amor. Se Deus é Deus de amor e


você é filho de Deus, você precisa amar. Lutero transformou o
cristianismo, a religião do amor, na religião da quitação jurídi-
ca. Você é filho de Deus, mas não o ama. Você pode até dizer:
“Mas eu não dou conta de amar, eu sou pecador, eu sou sem-
-vergonha”. Entendo que os protestantes enxerguem isso den-
tro de si, é uma dificuldade que existe. Mas se essa dificuldade
existe, existem também caminhos para se santificar.

Lutero não acreditava na santidade. Ele olhava a narrativa


dos santos e achava que era tudo invenção. Só que acontece
o seguinte: a santidade existe, e a santidade existe não por-
que eu ouvi falar de santos medievais. Existe porque eu co-
nheço pessoas santas, porque eu já vi isso acontecer na vida
das pessoas. Não é uma coisa comum, você não encontra um
santo em cada esquina. Mas isso acontece realmente. Essa
transformação interior realmente acontece, e os fiéis católi-
cos, caso tenham um bom diretor espiritual, fazem um cami-
nho de santificação.

VIII. Um caminho de santificação


É nesse caminho de santificação que a Missa tem sentido. Ou
seja, a renovação do sacrifício de Cristo na Cruz realmente é
fonte de santificação para nós. O sacrifício da Missa é ofereci-
do, ele remite a pena das almas que estão no Purgatório, almas
que estão salvas, mas não são santas o suficiente. E a Missa

35
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

tem, de fato, o poder de remir as penas temporais dos vivos que


dela participam. Agora, claro, como em qualquer caminho de
santificação, isso depende de como a pessoa recebe aquilo. Não
basta estar de corpo presente na Missa.

Daí você pode dizer: “Está vendo, é exatamente como Lutero


falou, não é ex opere operato, é ex opere operantis. Isto é, depen-
de do ato de fé de cada um, a Missa em si não tem nada, é uma
coisa subjetiva, Lutero tinha razão”.

Errado. Tinha razão nenhuma, zero.

Façamos uma comparação. Quando você ingere um suplemento


para fazer exercício, a comida tem ou não tem a energia, as pro-
teínas, as vitaminas, ex opere operato, ou seja, automaticamente,
de que você precisa? Sim. Só que, se você tiver um problema no
intestino, se o seu duodeno estiver inflamado, você não conse-
gue absorver aquilo tudo. Logo, depende também de você.

Lutero, Calvino e os revoltosos protestantes, contudo, olham


para a Missa e dizem que aquilo é simplesmente um dom de
Deus para nós. Por isso julgam não ser necessário celebrar no-
vamente o sacrifício de Cristo na Cruz. E batem na tecla: já
foi oferecido ἐφάπαξ (ephápax), “de uma vez por todas”, como
uma quitação judicial definitiva.

Nós, católicos, por outro lado, cremos que essa redenção obje-
tiva aconteceu na Cruz, há dois mil anos, mas que ela precisa
ser apropriada. É o que chamamos de redenção subjetiva. Em
outras palavras, o remédio está aí, agora precisamos tomá-lo.

E como nos apropriamos dessa redenção, desse remédio? Pela


fé, pelos sacramentos da fé como o Batismo, a Confissão etc.,
que me colocam no estado de justificação, mas também pelo
crescimento dessa semente que é instalada no dia do batismo e
que é restaurada na confissão. Não é simplesmente uma coisa

36
2 . A d o u t r i n a p ro t es ta n t e s o b r e a M i s s a

cartorial. Existe uma transformação da alma. A alma precisa


amar e realizar obras divinas como os santos. E para isso não
há caminho melhor do que a Eucaristia.

Já vimos em outro curso toda a riqueza da Eucaristia: a impor-


tância da adoração eucarística e os frutos da Sagrada Comu-
nhão. Neste livro, mais adiante, veremos especialmente o va-
18

lor da Santa Missa enquanto renovação, atualização do único


sacrifício de Cristo na Cruz.

Por ora, estamos mostrando a diferença entre nós, católicos, e


os protestantes. Os pobrezinhos dos protestantes acham que
são salvos somente pela fé inventada por Lutero, pela confiança
numa quitação cartorial assinada por Jesus. Na cabeça deles,
você está condenado a pecar e pecar, a vida inteira, e para ser
salvo basta confiar na salvação, porque Jesus é “bonzinho”.

Consegue enxergar como essa visão é compartilhada até por


membros da Igreja Católica? Por exemplo, durante o Ano da
Misericórdia, alguns pregadores diziam: “Deus já perdoou
19

tudo!” É a quitação cartorial. Deus já perdoou tudo e você con-


tinua sendo o sem-vergonha de sempre. Isso é coisa de Lutero,
que dizia: Pecca fortiter, sed crede fortius, “peca com força, mas
crê com mais força ainda”.

18. Essas matérias foram objeto do curso A Divina Eucaristia e seus Milagres, disponí-
vel em <https://padrepauloricardo.org/cursos/a-divina-eucaristia-e-seus-milagres>.
19. Nota do Editor: O Ano da Misericórdia foi um ano jubilar extraordinário
proclamado pelo Papa Francisco para toda a Igreja e realizado de 8 de dezembro de
2015 a 20 de novembro de 2016. Como jubileus anteriores, tratou-se de um perío-
do para remissão de pecados e perdão universal, concentrando-se particularmente
no perdão e na misericórdia de Deus. Foi um ano extraordinário porque não havia
sido predeterminado muito antes; jubileus ordinários são geralmente comemora-
dos a cada 25 anos.

37
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Não podemos rejeitar o patrimônio, a riqueza espiritual da San-


ta Igreja de Deus, que nos quer santos. A Santa Igreja sempre
teve membros pecadores, é evidente. Mas a Igreja é santa porque
ela nos dá os meios da santidade. É essa a grande diferença entre
a visão distorcida e pobre, paupérrima, dos protestantes, e a ri-
queza dos tesouros da Santa Igreja de Deus.

38
3. O CALVÁRIO E A MISSA

I. Recapitulação
É importante lembrar que não é nosso objetivo tomar as de-
cisões prudenciais que cabem, na verdade, ao Magistério, aos
bispos ou aos próprios padres que vão celebrar usando um ou
outro missal. A ideia é oferecer aos interessados uma base teo-
lógica firme de modo que se possa debater o tema com foco
naquilo que é realmente fundamental.

E esse fundamento, esse xis da questão, como já tivemos a


chance de entender, é o fato de a Missa ser a renovação in-
cruenta do sacrifício de Cristo na Cruz. Aqui é que está o ver-
dadeiro debate, pois, como também já dissemos, existe dentro
da Igreja uma corrente teológica que quer reduzir a Missa a
uma mera refeição, partilha ou simples memorial.

É verdade que, em certo sentido, a Missa seja um memorial.


Mas é preciso ter discernimento para compreender que não é
apenas isso, que não é essencialmente isso.

Dizendo de outro modo: a Missa não é um ato que, pictorica-


mente, artisticamente, rememora o sacrifício de Cristo. Fosse o
caso, ela se rebaixaria a uma espécie de pantomima, um jogral,
um teatrinho. Fosse este o objetivo, seria melhor o padre abrir
mão da casula e, vestido de Cristo, reunir os jovens da paró-
quia para encenar a Paixão. Teríamos um memorial da morte
de Cristo, não um sacrifício.

39
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

O Concílio de Trento nos disse, não custa lembrar: a Missa é


um verdadeiro e próprio sacrifício. Nela acontece um sacrifício
mesmo, realmente. Quando o sacerdote faz as duas transubs-
tanciações, a do pão em verdadeiro Corpo de Cristo, e a do vi-
nho em verdadeiro Sangue de Cristo, ocorre verdadeiramente
um sacrifício; se dá, verdadeiramente, a renovação incruenta
do Calvário.

Eis aí o centro da questão, aquilo que deve ser o foco de um


debate que se pretenda sério sobre os missais. Caso contrário,
vamos ficar discutindo acidentes, banalidades, o fato de um ter
fitinhas vermelhas e o outro fitinhas coloridas.

II. O sacrifício da Missa nas Sagradas Escrituras


Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo a ordem de Melquisedec,
ofereceu pão e vinho de forma incruenta na Última Ceia, sig-
nificando o sacrifício cruento que realizaria no Calvário. E ali,
naquela ocasião, Ele deu uma ordem: Hoc facite in meam com-
memorationem, “Fazei isto em memória de mim”. Ele mandou,
com todas as palavras, que se repetisse aquele sacrifício.

Os protestantes tradicionais — os pentecostais brasileiros até


isso deixaram de fazer — também realizam a ceia, mas a en-
tendem como um sacrifício de louvor, um simples memorial
da Paixão de Cristo. Eles não a tratam de modo nenhum como
a renovação do sacrifício da Cruz, argumentando que não há
base bíblica para se crer nisso.

Para refutá-los, Trento recorda (Sessão 22.ª) um texto de São


Paulo. A passagem esclarece o que a Igreja de fato diz quando
20

afirma haver, na Missa, a renovação do sacrifício do Calvário.

20. DH 1739 [2013] 445.

40
3 . O Ca lvá r i o e a M i s s a

Vejam, portanto, como não se trata de uma elucubração esco-


lástica ou de uma invenção tridentina. É algo que aparece com
muita clareza nas Sagradas Escrituras. Vamos ler e meditar. A
ideia é que você, leitor, faça um ato de inteligência e consiga
enxergar a realidade. São Paulo diz assim:

Meus caríssimos, fugi da idolatria! Falo como a pessoas sen-


satas. Julgai vós mesmos o que eu digo. Porventura, o cálice
de bênção, que abençoamos, não é a comunhão do Sangue de
Cristo? O pão que partimos, não é a comunhão do Corpo do
Senhor? Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só
21

corpo, porque todos participamos do mesmo pão. Considerai


Israel segundo a carne: os que comem das vítimas, porventura,
não têm parte no altar? Mas que digo? Que o ídolo é alguma
22

coisa? Ou que o sacrificado ao ídolo é alguma coisa? Antes


digo que as coisas que os gentios sacrificam, as sacrificam aos
demônios, e não a Deus. Ora, não quero que tenhais socieda-
de com os demônios. Não podeis beber o cálice do Senhor e
o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa
do Senhor e da mesa dos demônios. Queremos porventura
23

provocar o Senhor? Acaso somos mais fortes que ele? Tudo


é permitido, mas nem tudo aproveita. Tudo é permitido, mas
nem tudo edifica (1Cor 10, 14-23).

Claramente o Apóstolo está dizendo: existe sacrifício a Deus


e existe sacrifício aos demônios. No original grego, lemos: ou

21. Os protestantes interpretam este trecho num sentido amplo: São Paulo estaria
falando de sangue, mas não de sangue real; de corpo, mas não de corpo real.
22. Aqui, São Paulo faz uma correlação entre mesa e altar. Quer dizer, é inútil o
debate que surgiu, após o Concílio Vaticano II, para definir se se trata de mesa ou
altar: é as duas coisas. Alguns tradicionalistas negam que o altar seja mesa; alguns
modernistas negam que a mesa seja altar. Mas é os dois ao mesmo tempo.
23. Diga-se que a palavra “mesa”, objeto de controvérsia, aparece no original: tra-
pezēs (τραπέζης). Trapeza é mesa em grego. Fala-se, portanto, em mesa, no sentido
próprio da palavra.

41
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

thelō de, “eu não quero então”, hymas koinōnous tōn daimoniōn
ginesthai, “que tenhais” koinōnous, “comunhão”, ou seja: não
quero que vocês comunguem com os demônios (οὐ θέλω δὲ
ὑμᾶς κοινωνοὺς τῶν δαιμονίων γίνεσθαι). O Apóstolo diz isso
pois, no contexto do Antigo Testamento, as carnes eram imola-
das aos ídolos e depois vendidas no mercado. Quem compras-
se, estaria, portanto, em comunhão com os demônios, com os
ídolos — embora São Paulo não lhes reputasse nenhum poder.

Ou seja, se lemos da maneira correta, compreendemos que São


Paulo afirma claramente: comungar do cálice do Senhor signifi-
ca participar de um sacrifício; comer o “pão” e beber o “vinho”,
na Missa, é participar de um sacrifício. Ora, se é possível sacri-
ficar ao demônio e comungar do seu cálice, é também possível
sacrificar a Deus e comungar do seu cálice.

E para não deixar dúvidas, vale lembrar que o Antigo Testamen-


to menciona a existência de um sacrifício de trigo ao lado da
oferta de ovelhas. A prescrição é a seguinte: “Manda aos filhos
de Israel, dize-lhes: Apresentai no tempo determinado a minha
oferta… Todos os dias, dois cordeiros de um ano. Sem defeito,
em holocausto perpétuo… um pela manhã, outro pela tarde”
(Nm 28, 2-4). Mas, além das vítimas, continua o texto, é preciso
oferecer “a décima parte de uma efá de flor de farinha amassada,
na quarta parte de um hin de azeite puríssimo” (v. 5).

Sacrifício de farinha ao lado do sacrifício do animal: é clara-


mente uma prefiguração da Eucaristia. É por isso que Trento
cita, também, a famosa passagem do profeta Malaquias: “Do
nascente ao poente, meu nome é grande entre as nações, e em
todo lugar se oferece em meu nome um sacrifício fumegante,
uma oblação pura, porque o meu nome é grande entre as na-
ções, diz o Senhor dos Exércitos” (Ml 1, 11).

42
3 . O Ca lvá r i o e a M i s s a

Com isso, o Concílio queria nos lembrar que sempre, até o fim
dos tempos, será necessário oferecer um sacrifício puro. Cristo
o ofereceu de uma vez por todas, estamos de acordo. Mas o
profeta diz que esse sacrifício há de perdurar até o fim dos tem-
pos. E é o que fazemos na Missa, conforme o próprio Cristo
ordenou na Última Ceia.

Calvino, como para rebater esse argumento, afirma haver uma


espécie de anacronismo na interpretação, já que os sacrifícios
mencionados ocorriam no contexto do Antigo Testamento. To-
davia, quando analisamos o original hebraico, encontramos a
expressão ū-min-ḥāh, ‫חנִמּו‬ ְ ‫ ָ֣ה‬, que quer dizer exatamente um sa-
crifício de trigo. O profeta afirma que em todos os tempos, em
todos os lugares, vai se oferecer ao Senhor um sacrifício puro, e a
palavra min-ḥāh indica justamente o sacrifício de trigo. 24

Quer dizer, se olharmos para o Antigo Testamento, inclusive


passando pelo exemplo de Melquisedec, veremos que o pão e
o vinho, eles mesmos, já eram matéria sacrificial. Existia, des-
de lá, o sacrifício incruento, o mesmo que Cristo realizou na
Quinta-feira Santa, o mesmo que os padres realizam diaria-
mente na Santa Missa.

E isso é importante esclarecer, pois uma frequente e injusta


contestação de protestantes, como Zwinglio e Calvino, é a de
que não poderia haver realmente um sacrifício na Missa uma
vez que a vítima, o pão e o vinho, não é modificada — algo que,

24. Nota do Editor: Embora ‫ הָחְנִמ‬se refira às vezes ao sacrifício de flor de farinha
(e.g. Lv 2, 1) e assim o entendam alguns comentadores de Ml 1, 11 (e.g., Cornélio a
Lápide), a expressão tem em muitas passagens o sentido amplo de oferta, oblação,
dom etc. Ora, se se atende ao uso majoritário que lhe dá a Escritura, o correto seria
restringir o termo à ideia de sacrifício incruento, sem especificar a matéria. De resto,
não parece possível estabelecer a matéria da oblação de Ml 1, 11 tão somente pela
análise do texto. O único que dele se pode inferir, aparentemente, é a instituição
de um sacrifício em sentido próprio, mas incontaminável pela malícia do oferente.

43
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

como vimos, é necessário para que haja sacrifício no sentido


verdadeiro e próprio.

Eles questionam: como pode ter havido mudança na vítima


oferecida se o pão e o vinho continuam lá, exatamente como
pão e vinho? Ao que poderíamos responder: pão e vinho não
continuam lá, senhores. Acontece a transubstanciação. Perma-
nece a aparência de pão, mas a substância já é outra; permane-
ce a aparência de vinho, mas a substância já é outra. 25

Quer dizer, na liturgia católica nós vemos claramente as profe-


cias do Antigo Testamento se cumprindo, e isso porque ela re-
pete, obedientemente, o que Cristo fez na Última Ceia: todos
aqueles sacrifícios diários, perpétuos, de cordeiros e de trigo, se
realizaram em Cristo — que fez, segundo a ordem de Melqui-
sedec, o sacrifício do pão e do vinho, sacrifício incruento como
sinal do sacrifício cruento que Ele realizaria no dia seguinte.

De novo: estamos de acordo com os protestantes quando eles


afirmam ter sido este o único sacrifício, oferecido de uma vez
por todas, ephapax (ἐφάπαξ). O próprio Concílio de Trento
reafirma em vários momentos essa realidade. Por exemplo:

Este nosso Deus e Senhor, embora se houvesse de oferecer,


uma só vez, a Deus Pai sobre o altar da cruz por sua morte (cf.
Hb 7, 27), para realizar para eles [ali] uma redenção eterna…

25. Nota do Editor: Ao contrário do que supõem a objeção e a resposta, o pão e


o vinho não são, enquanto tais, a vítima oferecida, cuja destruição equivalente se
daria por transubstanciação. Na Missa, o propriamente oferecido são o Corpo e o
Sangue de Cristo sub specie aliena, isto é, sob as espécies de pão e de vinho. Nesse
sentido, a modificação operada sobre a vítima não é a transubstanciação, mas o ser
sacramental que, por meio dela, Cristo adquire vi verborum, ou seja, por força das
palavras do sacramento: sob a espécie de pão está seu Corpo e sob a de vinho, seu
Sangue, misticamente separados.

44
3 . O Ca lvá r i o e a M i s s a

Até aqui estamos de acordo com os protestantes. Agora vem o


essencial da fé católica:

…contudo, porque seu sacerdócio não se devia extinguir pela


morte (cf. Hb 7, 24), na última ceia, “na noite em que foi en-
tregue” (1Cor 11, 23), para deixar à sua dileta esposa, a Igreja,
um sacrifício visível — como a natureza humana exige —, pelo
qual fosse tornado presente aquele sacrifício cruento que se
havia de realizar uma só vez na cruz e seu memorial permane-
cesse até o fim dos séculos e seu poder salutar fosse aplicado
para a remissão dos pecados que diariamente cometemos [e
por isso precisa haver missa diariamente, pois continuamos
pecando], declarando-se constituído “sacerdote eterno se-
gundo a ordem de Melquisedec” (cf. Sl 110, 4; Hb 5, 6; 7, 17),
ofereceu a Deus Pai seu corpo e sangue sob as espécies de pão
e de vinho e, sob os sinais destes, os transmitiu para que os
recebessem os Apóstolos (que constituía então sacerdotes do
Novo Testamento) e, com as palavras: “Fazei isto em meu me-
morial” etc. (Lc 22, 19; 1Cor 11, 24), ordenou-lhes, a eles e
a seus sucessores no sacerdócio, que os oferecessem, como a
Igreja católica sempre tem entendido e ensinado.
26

O Concílio, com a máxima clareza, desbanca todas as objeções


dos revolucionários. E com base nas Escrituras.

III. Quando acontece o sacrifício na Missa?


Partamos do seguinte ponto, para que não haja mais qualquer
dúvida: há só um único sacrifício redentor, que é o de Jesus
Cristo na Cruz. Este sacrifício, como já dissemos, tem um úni-
co sacerdote, o próprio Cristo, e uma só vítima, Cristo.

26. DH 1740 [2013] 446.

45
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Aqui vale um aprofundamento. Embora Jesus seja o sacerdo-


te, não é Ele quem derrama o sangue da vítima, como ocor-
re nos sacrifícios. Deus aproveita a ocasião de um crime, a
execução de um inocente, crime este cometido por Pôncio
Pilatos, por Herodes, por Caifás, por Anás, pelos soldados
romanos, para que Cristo ofereça o seu sacrifício. Isto é uma
das realidades da cristologia antiga que nos faz enxergar Je-
sus como sacerdote. Ora, Cristo diz claramente que, se Ele
quisesse, deteria aquele crime a qualquer momento. Mas
Cristo deixou-se atingir; tornou-se vulnerável porque quis.
Ele ativamente aceitou o crime. Ele, portanto, como sacerdo-
te ativo, se ofereceu. E o fez, evidentemente, sabendo que o
mais importante do sacrifício não é a separação do corpo e
do sangue da vítima, sinal externo do ato, mas a intenção do
sacerdote, a oblação interna.

É importante bater neste ponto, pois isso que era uma ver-
dade admitida até pelos protestantes tradicionais, hoje é ig-
norado inclusive por católicos — por falta de pregação e de
catequese. As pessoas hoje não olham para a Cruz como um
sacrifício salvador. Olham para Cristo como um homem le-
gal, um cara que veio, pregou o amor, ensinou lá sua doutri-
na, e, no fim, como que num acidente de percurso, padeceu
uma morte injusta. Uma chatice… “Mas — dizem — ainda
bem que Ele ressuscitou e a história teve um final feliz”. Não!
Errado! Não foi acidente nenhum. Cristo não veio do Céu à
terra para outra coisa. Cristo veio exatamente para isso. Cris-
to veio para oferecer na Cruz um sacrifício de amor a Deus,
um sacrifício de adoração, ação de graças, propiciação e in-
tercessão, por amor a nós; sacrifício em que, a um só tempo,
Ele é sacerdote e vítima.

46
3 . O Ca lvá r i o e a M i s s a

E isto que Ele realizou na Cruz foi antecipado na Quinta-feira


Santa, na Última Ceia. Ali, Jesus, segundo a ordem de Mel-
27

quisedec, ofereceu pão e vinho. Naquela oferta, Ele realizou,


pela primeira vez, a transubstanciação. Ou seja, operou-se uma
mudança naquelas oferendas: o pão fez-se Corpo; o vinho fez-
-se Sangue. Os Apóstolos, de fato, naquela noite, comungaram
o Corpo e o Sangue de Cristo.

Ora, na dupla transubstanciação realizada por Jesus na Santa


Ceia, antecipou-se, de maneira sacramental e simbólica, o sa-
crifício cruento que se daria no dia seguinte.

Agora, um ponto muito importante: Jesus instituiu que, pela


força do sacramento, o pão se tornasse o seu Corpo. Mas,
quando fez isso, na Ceia, seu Corpo não estava separado do
Sangue — como o pão estava do vinho. Ele estava ali, vivo,

27. Nota do Editor: “O sacrifício da Missa é substancialmente o mesmo que o


da Última Ceia, do qual se diferencia apenas acidentalmente. São substancialmente
idênticos: Cristo, ‘na Última Ceia […], declarando-se constituído sacerdote eterno
segundo a ordem de Melquisedec, ofereceu a Deus Pai seu Corpo e Sangue sob as
espécies de pão e de vinho e, sob os sinais destes, os transmitiu para que os recebes-
sem os Apóstolos (que constituía então sacerdotes do Novo Testamento), e com as
palavras: ‘Fazei isto em meu memorial’ etc., ordenou-lhes a eles e a seus sucessores
no sacerdócio que os oferecessem. Por esse motivo, o sacrifício da Missa é o próprio
sacrifício da Ceia, isto é, o mesmo que foi instituído pelo Senhor e há de existir até
o fim dos tempos e do qual foi Ele o primeiro oferente. Em ambos é a mesma vítima
oferecida, o mesmo oferente principal, o mesmo modo de oferecer (sob as espécies
de pão e de vinho) e a mesma imolação incruenta; ambos enfim são aplicações dos
frutos do sacrifício da Cruz. Mas acidentalmente distintos em razão (a) do oferente,
pois na Ceia Cristo ofereceu-se a si mesmo visível e imediatamente, enquanto na
Missa ele se oferece pelo ministério dos sacerdotes, que o oferecem só visivelmente;
(b) da vítima, no sentido de que, na Ceia, Cristo ofereceu-se ainda em estado pas-
sível e mortal; na Missa, porém, oferece-se imortal e glorioso; (c) do mérito no ofe-
rente principal: na Missa, Cristo aplica-nos os méritos de sua Paixão e Morte, mas
já não pode merecer ou satisfazer novamente porque, uma vez ressuscitado, não
está mais em estado de via, ao passo que o sacrifício da Ceia foi verdadeiramente
meritório e satisfatório” (Zubizarreta, 1939, vol. 4, p. 281).

47
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

diante dos Apóstolos. Quando consagrou o pão e se operou a


transubstanciação, estava, portanto, naquela aparência de pão,
o Corpo de Cristo tal como Ele se apresentava naquele momen-
to histórico: Corpo, Sangue, Alma e Divindade.

Só para ilustrar: se, por hipótese, algum padre consagrasse o


pão no Sábado Santo, ali estaria o Corpo de Cristo separado
da Alma, pois era como estava naquele dia. Se consagrasse o
vinho, mesma coisa: naquela aparência de vinho, estaria o San-
gue de Cristo separado do Corpo. Quer dizer, o Corpo e o San-
gue tornam-se presentes tal como se encontram, em Cristo, no
exato momento histórico da consagração.

Então vejam: quando na Missa se consagra o pão, por força das


palavras da consagração está ali presente o Corpo de Cristo.
Como o Corpo, ali na aparência de pão, é o do Cristo ressusci-
tado, o Corpo glorioso e impassível do Cristo no Céu — assim 28

como na Ceia era o do Cristo vivo diante dos Apóstolos —, há


também ali, por concomitância, ou seja, por um acompanha-
mento necessário, o Sangue, a Alma e a Divindade do Cristo. 29

E o mesmo ocorre com a consagração do vinho: por força das


palavras da consagração há ali o Sangue; por concomitância,
há ali também o Corpo, a Alma, a Divindade.

Dizendo de outro modo:

28. E aqui cai por terra a acusação maluca dos protestantes clássicos de que a Missa
renovaria, também, o sofrimento de Cristo na Cruz. Claro que não é assim. Se o
fosse, nós também deveríamos abominar a Missa.
29. Para entender a ideia de concomitância, imagine que você vai ao supermercado
para comprar escova de dente, mas ela só pode ser adquirida, necessariamente, num
combo em que a acompanham pasta, fio dental e enxaguante. Esses outros produ-
tos, que não a escova, seriam comprados “por concomitância”.

48
3 . O Ca lvá r i o e a M i s s a

I. na instituição da Eucaristia, houve a dupla consagração


das duas espécies em separado: o pão tornado Corpo, o
vinho tornado Sangue.

II. em cada uma delas, embora separadas, mantiveram-se,


por concomitância, o Corpo e o Sangue, a Alma e a Di-
vindade, juntos, pois era assim que, naquele momento
histórico, Ele, o Cristo, se apresentava.

IV. Conclusão
Ora, na Santa Ceia, a consagração das duas espécies, em sepa-
rado, é o sinal sacramental do sacrifício cruento que ocorreria
na Cruz — em que haveria a separação do Corpo e do Sangue
de Cristo. É isto o que acontece na Missa. O sacerdote católico
30

que sobe ao altar está oferecendo, na hora da consagração, por


esta dupla consagração, dupla transubstanciação, o sacrifício
de Cristo na Cruz. O sacerdote é o mesmo, a vítima é a mesma,
só a forma de oferecer é diferente.

Depois que compreendemos isso, podemos discutir qual dos


missais transmite da melhor forma essa realidade. E também
podemos refletir com qual espírito devemos celebrar Pio V,
Paulo VI, ou qualquer outro rito católico: bizantino, mala-
bar, malancar, copta etc. Pois um rito pode ser mais adequado
ou menos adequado, isso é um ponto. Mas, independente do

30. Por isso é terminantemente proibido, segundo o Código de Direito Canônico,


o padre realizar a Missa tendo apenas o pão. Se ele o consagrar, haverá a transubs-
tanciação. No entanto, não haverá a renovação do sacrifício, que depende da dupla
consagração, sinal da separação do Corpo e do Sangue. Entendendo isso, podemos
compreender por que o padre, na Comunhão, nos diz: “O Corpo de Cristo”. De fato,
pelo poder do sacramento, ali está o Corpo. Porém, por efeito da concomitância,
estão ali, naquela espécie, o Corpo, o Sangue, a Alma e a Divindade, tal como Cristo
se encontra no momento presente, ao lado de Deus Pai. Por isso podemos comun-
gar tomando apenas uma das espécies.

49
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

rito, a substância deve estar lá. E, para sabermos se está lá,


temos de perceber, com clareza, o que essencialmente se ce-
lebra na Missa.

V. Nos próximos capítulos


Antecipando temas que discutiremos mais adiante em nosso
estudo: onde está o problema do Missal de Paulo VI?

Algumas das pessoas que estavam na comissão que elaborou


o missal queriam puxá-lo na direção da teologia protestante.

Veremos a seguir por que o Cânon Romano era o alvo. Mas,


adiantando, posso dizer que as outras orações eucarísticas, em-
bora não sejam heréticas, podem ser lidas de maneira filo-he-
rética. O Cânon Romano não permite essa ambiguidade.

Ora, quando o Papa mandou que se deixasse no missal o Câ-


non Romano — a Oração Eucarística I —, queria com isso dei-
xar claro que as demais deveriam ser lidas da mesma maneira,
com o mesmo espírito. É uma chave de leitura obrigatória. Ti-
rasse o Cânon Romano, as outras poderiam ser lidas ao sabor
do sacerdote: ora de maneira ortodoxa, correta, como um sa-
crifício verdadeiro; ora de uma forma protestante, como um
sacrifício de louvor, que poderia ser oferecido por qualquer
um da assembleia.

Mas, de novo: para abrir um diálogo acerca dos missais, é preci-


so entender o que é de fato a Missa. Vale lembrar que a finalida-
de aqui não é promover a discórdia, a discussão. Minha intenção
aqui é que vocês, compreendendo essas realidades, vivam me-
lhor a Missa. Minha intenção é levar vocês para o Céu. E para
isso é preciso participar do sacrifício de Cristo na Cruz.

50
4. A DOUTRINA CATÓLICA
SOBRE A MISSA

I. Recapitulação
Seguimos nossa formação a respeito da Missa como sacrifício
para lançar um pouco de luz sobre todo esse debate que existe
a respeito dos missais, o de São Pio V e o de Paulo VI.

Sem entrar em detalhes da liturgia em si mesma, nós estamos


indo ao centro, ao coração do que foi definido pelos concílios
da Igreja. Essas coisas que eu estou ensinando são essenciais;
negá-las significa abandonar totalmente a fé católica. O Con-
cílio de Trento verdadeiramente definiu as fronteiras da fé ca-
tólica sobre o sacrifício da Missa. Há uma matéria que é in-
questionável, que não está aberta a debates. É isso que eu estou
tentando ensinar.

Uma vez que fincamos a âncora e dissemos: “Isso não é discutí-


vel”, podemos considerar coisas como a língua em que deve ser
celebrada a liturgia, a posição do altar durante a Missa, ou até
coisas menos importantes, como o modelo das casulas. Esses
debates estão abertos, mas outros não. Por exemplo, que a Mis-
sa é a renovação do santo sacrifício de Cristo no Calvário, isto
foi definido por Trento; que existem, em cada Missa, um sacer-
dote invisível oferente, Jesus, e um sacerdote visível, o ministro
ordenado, é algo que não se debate. Mas é exatamente isso que
os protestantes debateram.

51
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Pois bem, eu já apresentei a vocês o que foi definido por Tren-


to, mas para não ficarmos fixados somente nesse concílio,
entendamos que essa é a fé da Igreja de todos os séculos. Os
próprios Calvino e Lutero admitiam, por exemplo, que o que
nós católicos cremos hoje havia sido dito pelos Santos Padres
da Igreja, os autores do início do cristianismo. Ou seja, os re-
voltosos protestantes estão dispostos a negar os Santos Padres,
a jogá-los na lata do lixo, para não admitir, por exemplo, que a
Missa é um sacrifício.

II. O que diz Lutero


Vejam a afirmação gravíssima de Lutero logo no início de seu
livro “Do Cativeiro Babilônico da Igreja”:

Quid ergo dicemus ad canonem et auctoritates Patrum?


Primum respondeo: Si nihil habetur quod dicatur, tutius
est omnia negare quam missam concedere opus aut sacrifi-
cium esse. “O que vamos dizer do Cânon e da autoridade dos
Padres [da Igreja]? Primeiro respondo: Se não tivermos nada
para dizer, é mais seguro negar tudo que afirmar que a Missa é
uma obra ou um sacrifício.”
31

Ora, não pode haver diálogo com uma pessoa assim. Num
diálogo verdadeiro, uma pessoa está aberta a possibilidades, a
admitir o erro. Mas Lutero diz claramente e em tom polêmico
— não só no De captivitate babylonica Ecclesiæ, mas também
no De abroganda missa privata, em que ele pede a abolição do
Cânon Romano — que Santo Agostinho, São Gregório Magno
e São Bernardo devem ser condenados. Tudo porque afirma-
ram ser a Missa um sacrifício.

31. De captivitate babylonica Ecclesiæ (WA 6 [1888] 524).

52
4 . A d o u t r i n a cat ó li ca s o b r e a M i s s a

Se o problema é diálogo, digamos então a Lutero: “Não, Lutero.


Não estou disposto a deixar a fé que está plenamente atestada
nas Escrituras (como vimos no último capítulo) e nos Santos
Padres. Não estou disposto a trocar a interpretação deles, do
início da Igreja, pela sua”. A Igreja por 16 séculos interpretou a
Bíblia de um jeito, viveu a Missa de um jeito; de repente apa-
rece Lutero e diz: “Jogue tudo isso fora! Vocês têm de ouvir a
mim!” Vejam bem o que ele nos pede: que demos ouvidos a
32

ele — um homem de teologia torta, um neurastênico que tinha


surtos ao rezar Missa, que sequer sabia se confessar direito —,
que o prefiramos aos Santos Padres, que prefiramos uma fé in-
ventada no século XVI à fé destes santos e sábios homens! Ora,
isto é absolutamente sem cabimento!

III. O que dizem os Santos Padres


Apresentemos, enfim, as sentenças dos Santos Padres, come-
çando pelo final do século I, com um Papa, São Clemente de
Roma — sucessor direto de São Pedro, São Lino e São Cleto
(ou Anacleto). Falando dos bispos e dos sacrifícios e oblações
por eles oferecidos, ele diz:

32. Na aula “Lutero Atormentado”, do curso Lutero e o Mundo Moderno, Padre Pau-
lo Ricardo cita o trecho de um comentário de Lutero à Carta aos Gálatas: “Quando
Satanás me urgia com esses argumentos que quase conspiravam com a carne e com
a razão, quando a consciência se me aterrorizava e desesperava, era preciso entrar
continuamente em mim mesmo e dizer: ‘Mesmo que São Cipriano, Santo Ambró-
sio e Santo Agostinho, mesmo que São Pedro, São Paulo e São João, mesmo que um
anjo do céu te diga outra coisa, uma coisa é certa: eu não ensino coisas humanas,
mas divinas…’ (Lutero, Commentarius in Epistolam S. Pauli ad Galatas I 12: WA 40/I
[1911] 131). A aula em questão está disponível para assinantes em <https://padre-
pauloricardo.org/aulas/lutero-atormentado>.

53
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Para nós, não seria culpa leve se exonerássemos do episcopa-


do aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensí-
vel e santa.
33

De São Clemente, no Ocidente, partamos para Santo Inácio,


bispo de Antioquia, no Oriente. Martirizado por volta do ano
108, em Roma, Inácio escreve o seguinte numa carta à Igreja
da Filadélfia:

Preocupai-vos em participar de uma só eucaristia. De fato, há


uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só cálice na
unidade do seu sangue, um único altar, assim como um só bis-
po com o presbitério e os diáconos, meus companheiros de
serviço. Desse modo, o que fizerdes, fazei-o segundo Deus.
34

Em primeiro lugar, brilha claríssima a fé na transubstanciação:


“uma só carne… na unidade do seu sangue”. Depois ele diz:
“um só altar” (θυσιαστήριον, thusiastérion), ou seja, o lugar
onde se oferece θυσία (thusia), o sacrifício. Estamos traduzin-
do esse termo como “altar” porque não há outra palavra; mas a
palavra própria seria “sacrificatório”, o lugar do sacrifício. “Há
um só sacrificatório”, isto é, o bispo que celebra a Eucaristia
está oferecendo um sacrifício.

Mas isto ainda não é Idade Média, este não é Santo Tomás de
Aquino. Nós estamos no ano 100, na Igreja dos mártires. Di-
zendo bem claramente: ainda não havia nem Bíblia! Como Lu-
tero ia falar de sola Scriptura se o cânon do Novo Testamento
não estava nem definido? Foram esses homens que definiram
os livros da Bíblia; se eles estão errados, a Bíblia inteira está
errada! Esses homens foram discípulos dos Apóstolos! Santo

33. “Carta aos Coríntios”, 44. In: Padres Apostólicos, 1995, p. 32.

34. “Carta aos Filadelfienses”, 4. In: Padres Apostólicos, 1995, p. 60.

54
4 . A d o u t r i n a cat ó li ca s o b r e a M i s s a

Inácio de Antioquia conheceu São João, foi sucessor de São


Pedro na cátedra de Antioquia! Se ele está errado ao falar de
episcopado, de presbiterato, de diaconato, da Eucaristia, do al-
tar, então está tudo errado!

Com isso nós vemos que a Igreja nasceu católica; ela não se tor-
nou católica com o tempo. Segundo os protestantes, os primei-
ros cristãos iam à igreja todo domingo com a Bíblia debaixo do
braço, até que veio Constantino e inventou o “paganismo católi-
co”. Não. Os cristãos não traziam a Bíblia debaixo do braço. Nes-
sa época ainda não havia Bíblia! Foi a Igreja Católica, foram os
bispos em comunhão com o Papa que definiram os 27 livros do
Novo Testamento. Sem o episcopado católico, sem essas pessoas
que diziam ser a Eucaristia um sacrifício, não haveria Bíblia!

Citemos agora a Didaqué, que embora não seja de um Padre


da Igreja nem de autoridade inquestionável, é um documento
bastante respeitável por sua antiguidade:

Reuni-vos no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, de-


pois de ter confessado os pecados, para que o vosso sacrifício
seja puro.
35

“Para que o vosso sacrifício seja puro”, isto é, o ato de “partir o


pão” é um sacrifício.

Agora, São Justino Mártir, que teve de defender a Igreja diante


dos imperadores romanos e escreveu os relatos mais antigos
da estrutura litúrgica da Igreja (as Apologias, endereçadas ao
Imperador Antonino Pio). Seu martírio aconteceu por volta
do ano 150. Em seu Diálogo com Trifão, citando a profecia de

35. “Didaqué”, 14, 1, adaptado. In: Padres Apostólicos, 1995, p. 188.

55
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Malaquias (1, 11) de que falamos no capítulo passado, e que


muitos Santos Padres citam também, ele diz o seguinte:

A oferta de flor de farinha, senhores, que os que se purifica-


vam da lepra deviam oferecer, era figura do pão da Eucaristia
que nosso Senhor Jesus Cristo mandou oferecer em memória
da paixão que ele padeceu por todos os homens [...]. Portanto,
quanto aos sacrifícios que vós antes oferecíeis, como já mos-
trei, diz Deus pela boca de Malaquias, um dos doze profetas:
“Minha vontade não está convosco — diz o Senhor — e não
quero receber sacrifícios de vossas mãos. De fato, desde onde
o sol nasce até onde ele se põe, meu nome é glorificado entre
as nações e em todo lugar se oferece ao meu nome incenso
e sacrifício [‫הָ֣חְנִמּו‬, ū-min-ḥāh] puro. Grande é o meu nome
entre as nações — diz o Senhor — e vós o profanais”. Assim,
36

antecipadamente fala dos sacrifícios que nós, as nações, lhe


oferecemos em todo lugar, isto é, o pão da Eucaristia e o cálice
da própria Eucaristia e ao mesmo tempo diz que nós glorifica-
mos o seu nome e vós o profanais.
37

São Justino está dizendo com clareza não só que Malaquias se


refere à Eucaristia, mas também que esta é sacrifício — um
sacrifício “que nós, as nações, lhe oferecemos em todo lugar,
isto é, o pão da Eucaristia e o cálice da própria Eucaristia”. Ou
seja, o pão e o cálice são um sacrifício. Mais claro do que isso,
só desenhando.

36. Como já dissemos, Malaquias está prevendo aqui um sacrifício “entre as na-
ções”, isto é, entre os povos pagãos — uma referência ao cristianismo, pois só com
Nosso Senhor a fé de Israel é espalhada ad gentes, isto é, “aos gentios”. O profeta diz
ainda que o sacrifício será oferecido “em todo lugar” — uma revolução, sem dúvida,
pois até então o sacrifício era oferecido no Templo de Jerusalém. Mais do que isso,
no original hebraico a palavra “sacrifício” descreve um sacrifício feito com grãos de
trigo (ū-min-ḥāh ‫ — )הָ֣חְנִמּו‬exatamente a matéria do pão eucarístico.
37.Justino Mártir, “Diálogo com Trifão”, 41. In: I e II Apologias: Diálogo com Trifão.
São Paulo: Paulus, 1995, p. 102.

56
4 . A d o u t r i n a cat ó li ca s o b r e a M i s s a

Santo Irineu de Lyon († 202), por sua vez, diz em seu Adver-38

sus Hæreses:

Aconselhando também aos seus discípulos a oferecerem a


Deus as primícias das suas criaturas, não porque precisasse,
mas porque eles não se mostrassem inoperosos e ingratos,
39

tomou o pão que deriva da criação, deu graças, dizendo: “Isto


é o meu corpo”; do mesmo modo tomou o cálice, que provém,
como nós, da criação, o declarou seu sangue e estabeleceu a
nova oblação do Novo Testamento. É esta mesma oblação que
a Igreja recebeu dos apóstolos e que, no mundo inteiro, ela ofe-
rece a Deus que nos dá o alimento, como primícias dos dons
de Deus na Nova Aliança.
Malaquias, um dos doze profetas, a profetizou dizendo: “Não
tenho prazer em vós, diz o Senhor onipotente, e não me agra-
da o sacrifício de vossas mãos; porque do levante ao poente
meu nome é glorificado entre as nações e em todo lugar se
oferece incenso ao meu nome e sacrifício [‫הָ֣חְנִמּו‬, ū-min-ḥāh]
puro; porque o meu nome é grande entre as nações, diz o Se-
nhor onipotente”. Com estas palavras afirma de forma claríssi-
ma que o primeiro povo cessaria de oferecer a Deus e que em
todo lugar lhe seria oferecido sacrifício puro e que o seu nome
seria glorificado entre as nações.
40

38. Santo Irineu foi declarado Doutor da Igreja pelo Papa Francisco em 2022, com
o título de Doctor Unitatis. Em seu livro Adversus Hæreses ele também fala da suces-
são apostólica do Papa, dizendo que poderia detalhar a sucessão de todas as Igrejas
do mundo (então conhecido), mas propter potentiorem principalitatem, “por causa
de sua maior importância”, ele detalha a de Roma, fazendo a lista dos sucessores de
Pedro até o Papa de sua época.
39. A palavra “porque” está sendo usada aqui como conjunção de finalidade. Em
outras palavras: “Aconselhando também aos seus discípulos a oferecerem a Deus as
primícias das suas criaturas, não porque precisasse, mas para que eles não se mos-
trassem inoperosos e ingratos…”
40. Irineu de Lyon, “Contra as Heresias”, IV, 17, 5. In: São Paulo: Paulus, 1995, p. 230.

57
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Vejam como, claramente, para Santo Irineu, a Eucaristia não é


somente um sacramento no sentido de que recebemos o pão,
mas também é um sacrifício no sentido de que nós oferecemos
algo a Deus.

Estou citando esses Padres da Igreja porque eles são pré-nicenos,


isto é, anteriores ao Concílio de Niceia (325), ainda na época das
perseguições à Igreja, para que os protestantes não digam que se
trata de uma Igreja “pós-constantiniana”, já “contaminada” pelo
Império Romano. Por isso eu cito os mais antigos, pois, se fosse
para citar todos os Santos Padres que falam da Missa como sa-
crifício, nós gastaríamos aqui páginas e mais páginas.

Para mostrar também como a Igreja tinha consciência, desde


o princípio, do momento exato em que acontece o sacrifício da
Missa, citemos pelo menos um Padre pós-niceno, São Gregó-
rio Nazianzeno: 41

Segundo São Gregório Nazianzeno, o sacerdote, quando pro-


nuncia as palavras da consagração, “divide com talho incruen-
to o corpo e o sangue do Senhor, usando sua voz como uma
espada” (Ep. 171). Seguindo o modo de se expressar dos San-
tos Padres, os teólogos da Escolástica nos falam de uma imo-
lação incruenta ou mística (immolatio incruenta, mactatio
mystica) do cordeiro pascal divino. 42

Não se diga que hoje nós conhecemos esses dados, mas que na
época de Lutero eles eram ignorados. Pois seu contemporâneo
São Roberto Belarmino, nas suas famosas “Controvérsias”, cita

41.São Gregório de Nazianzo (ou Nazianzeno) foi Patriarca de Constantinopla


durante o 2.º Concílio Ecumênico (381), ocorrido no lugar de sua sede episcopal,
onde foi reafirmado o dogma da Santíssima Trindade contra os pneumatômacos
(que diziam que o Espírito Santo não era Deus).
42. Ott, 1966, p. 600 (tradução nossa).

58
4 . A d o u t r i n a cat ó li ca s o b r e a M i s s a

uma quantidade enorme de Padres da Igreja provando que a


Missa é sacrifício. Ainda assim, mesmo sabendo de tudo isso,
o heresiarca Lutero não deu o braço a torcer. Em suas próprias
palavras, ele não “se importaria ainda que mil Agostinhos e
mil Ciprianos estivessem contra ele”! Então o conhecimento
43

havia, o que não havia era honestidade, boa vontade, diálogo e


vontade de conhecer a verdade.

IV. Diferenças entre o Calvário e a Missa


Considerando que na Missa existe um sacrifício e que ele acon-
tece na hora da consagração, vejamos como essa realidade se
aplica nas nossas vidas.

Primeiro é preciso compreender que, na hora da consagração,


acontecem duas coisas que são apenas conceitualmente distin-
tas: o sacramento e o sacrifício. Sacramento é algo que Deus
nos dá; sacrifício é algo que nós damos a Deus. O sacramento
que Deus nos dá é o seu Corpo e o seu Sangue para nosso ali-
mento, para que possamos comungar. O que nós damos a Deus
é o sacrifício de Cristo, o único sacrifício de Cristo na Cruz.

Mas qual é a diferença entre o sacrifício da Cruz e o sacrifício


da Missa?

Primeiro, há uma diferença no modo. Na Cruz, Jesus se ofere-


ceu de modo cruento. Houve sangue, sofrimento, dor e morte.
A Missa é incruenta. Não há derramamento de sangue, sofri-
mento, dor ou morte.

Vale frisar mais uma vez: Jesus não morre na Missa. Há até
alguns tradicionalistas bem intencionados que argumentam
contra o bater de palmas na Missa ou contra músicas anima-

43. Cf. Contra Henricum Regem Angliæ (WA 10/2 [1907] 215).

59
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

das dizendo que não se pode estar alegre diante da morte de


Cristo. Mas não é assim. A música litúrgica é o que é, não por
estarmos num velório, mas porque ela harmoniza, coaduna
com a realidade da oração. A Missa foi feita para rezar, e há
uma música mais propícia para esse fim. Compreendendo isso,
está resolvido o problema da música litúrgica.

Ocorre que esse argumento, que diz acontecer na Missa a mor-


te de Cristo, termina dando razão aos protestantes, que nos
acusam justamente de em cada Missa matar Jesus de novo e de
novo. Que fique claro: nós não matamos Jesus na Missa, senão
a Missa seria mesmo uma coisa hedionda, como afirmava Lu-
tero. Jesus se ofereceu de modo cruento no Calvário; agora, Ele
se oferece de modo incruento no altar.

A segunda diferença é que no Calvário havia apenas o único sa-


cerdote visível: Jesus. Na Missa, Ele é invisível; ali Ele se oferece
usando como instrumento, como ministro, o sacerdote orde-
nado, que é verdadeiro sacerdote. É sacerdote subordinado fei-
to instrumento do sacerdote principal, que é Cristo.

A terceira diferença está no fato de que, na Cruz, Jesus mere-


ceu. Entendamos: os atos de amor que Jesus fazia, enquanto
estava neste mundo, eram meritórios. Na Cruz, Jesus mereceu;
na Missa, nós aplicamos os frutos desse mérito.

É claro que o ato de o padre celebrar a Missa e de os fiéis par-


ticiparem também são meritórios. Rezar o Terço, por exemplo,
também é um ato meritório. Mas não é disso que eu estou fa-
lando. Quero dizer que no sacrifício, no único sacrifício que se
oferece na Missa, Cristo não está merecendo outra vez a salva-
ção. Ele a mereceu de uma vez por todas, ephapax (ἐφάπαξ),
uma vez só, semel.

Acontece que agora esse mérito é aplicado tanto aos vivos


quanto aos mortos. Uma das coisas que o Cânon Romano

60
4 . A d o u t r i n a cat ó li ca s o b r e a M i s s a

deixa muito clara, inclusive pelos dois silêncios, os dois Me-


mento, é que o sacrifício está sendo oferecido pelos vivos e
pelos mortos. Antes da consagração, há o Memento dos vi-
vos: Memento, Dómine, famulórum, famularúmque tuárum,
“Lembrai-vos, Senhor, dos vossos servos e servas”. Então o
padre faz silêncio e lembra as pessoas vivas por quem está
aplicando a Santa Missa. Diz: Et ómnium circumstántium,
quorum tibi fides cógnita est, et nota devótio, “e de todos aque-
les que estão aqui presentes, dos quais conheceis a fé e a devo-
ção”. Depois da consagração, há um segundo Memento, o dos
mortos: Memento étiam, Dómine, famulórum famularúmque
tuárum, qui nos præcessérunt cum signo fídei et dórmiunt in
somno pacis, “Lembrai-vos também, Senhor, dos vossos ser-
vos e servas, que nos precederam, marcados com o sinal da
fé, e agora dormem no sono da paz”.

Resumidamente, existe na Missa um sacrifício oferecido a


Deus, que é o mesmo sacrifício de Cristo na Cruz. Trata-se nu-
mericamente do mesmo sacerdote e da mesma vítima, e subs-
tancialmente do mesmo sacrifício, porque se trata do mesmo
amor com que Ele nos amou.

Façamos agora uma recapitulação.

V. As quatro finalidades da Missa


A Missa é um sacrifício de adoração e de ação de graças? Res-
posta: sim. Mas não somente isso. Temos nela as quatro finali-
dades do sacrifício: adoração, um sacrifício latrêutico; ação de
graças, um sacrifício eucarístico; reparação por nossos peca-
dos, propiciatório; e intercessão, impetratório.

Essas quatro finalidades estão na Missa. Os protestantes, como


já vimos, aceitam só as duas primeiras, e mesmo assim de
modo incorreto.

61
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

O Concílio de Trento diz, no Cân. 3 (Sessão 22.ª) sobre o santo


sacrifício da Missa:

Se alguém disser que o sacrifício da Missa só é de louvor e de


ação de graças [tantum esse laudis et gratiarum actionis],
ou mera comemoração do sacrifício realizado na cruz, porém
não <sacrifício> propiciatório; ou que só aproveita a quem o
recebe e não se deve oferecer pelos vivos e defuntos, pelos pe-
cados, penas, satisfações e outras necessidades: seja anátema
[aut nudam commemorationem sacrificii in cruce peracti,
non autem propitiatorium; vel soli prodesse sumenti; neque
pro vivis et defunctis, pro peccatis, poenis, satisfactionibus
et aliis necessitatibus offerri debere: anathema sit].
44

Não estamos brincando aqui. É isto que diz a Igreja. É uma


definição conciliar.

De novo: a Missa é um sacrifício de ação de graças? Sim. Mas


não tantum, ou seja, não só.

No entanto, cuidado: quando os protestantes aceitam que a


Missa seja um sacrifício de ação de graças, aceitam no sentido
de que seja um sacrifício deles, da assembleia reunida. A Igreja,
por outro lado, está dizendo que Cristo, no Calvário, ofereceu a
Deus um sacrifício de perfeita adoração e ação de graças, por-
tanto a Missa é sacrifício de adoração e sacrifício de ação de
graças realizado por Cristo. Isso os protestantes não admitem.

É claro que nós, católicos, na Missa, também fazemos um sa-


crifício de louvor, de adoração e de ação de graças. Acontece,
meus caros, que na consagração se oferece um sacrifício per-
feitíssimo de adoração e de ação de graças, um sacrifício suma-
mente admirável, porque ali no altar, como no Calvário, Deus

44. DH 1753 [2013] 449.

62
4 . A d o u t r i n a cat ó li ca s o b r e a M i s s a

está sendo amado como Ele merece ser amado, como jamais
será amado; está sendo amado com o amor, com a veemência,
com a grandeza com que Cristo na Cruz o amou.

A Missa é um ato tão perfeito de adoração, de louvor e de ação


de graças, que funciona ex opere operato, automaticamente,
pelo simples fato de o sacerdote celebrá-la. É um sacrifício
agradabilíssimo a Deus, é um ato mais precioso do que toda a
adoração e toda a ação de graças que os anjos no Céu possam
oferecer a Ele. Uma Missa, meus amigos, tem maior valor de
adoração e de ação de graças do que todo o louvor que os anjos,
os santos, Nossa Senhora e todos nós juntos faremos em toda a
eternidade, porque nela se dá a renovação do ato de adoração e
de ação de graças do próprio Cristo Deus, Nosso Senhor.

Portanto, um padre, seja ele quem for, quando sobe ao altar,


está realizando um ato agradabilíssimo a Deus. Isto é comple-
tamente diferente daquilo que Calvino diz que é ato de louvor
e de ação de graças.

A Missa é também sacrifício propiciatório, satisfatório, para


reparar as ofensas que fizemos a Deus.

O Concílio de Trento diz, com toda clareza, que as Missas são


oferecidas por nossos pecados cotidianos.

Os Santos Padres, Santo Tomás de Aquino, os manuais, todo o


mundo costuma lembrar o bom ladrão para dizer que a Missa
perdoa os pecados. Eu gosto de recordar um outro persona-
gem: o centurião romano.

Ali, na Missa do Calvário, havia muita gente. Quantos volta-


ram para casa justificados? Havia gente justa: Nossa Senhora,
que não precisou de perdão; São João Evangelista. Havia, por
outro lado, gente que foi à Missa para pecar. Havia os indi-

63
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

ferentes, os transeuntes que estavam voltando do campo, do


trabalho etc.

Porém, havia um pagão em pecado, chamado Longino, que,


sem receber absolvição nenhuma de Jesus, participou da Santa
Missa do Calvário com boas disposições morais e voltou para
casa santificado.

A Eucaristia tem esse poder. Não estou dizendo que vocês devem
comungar em pecado, apenas porque participaram da Missa.
Caso estejam em pecado mortal, não há dúvida: confessem-se.
A certeza do perdão é dada sacramentalmente pela Confissão.

Por outro lado, teologicamente falando, temos de admitir que


existe o perdão de Deus fora da Confissão. O sacramento per-
doa e nos dá a certeza. Porém, todos os autores, Santo Tomás
de Aquino, o próprio Concílio de Trento, dizem que a Missa
pode perdoar os pecados mortais e veniais dos vivos, porque é
o sacrifício de Cristo.

Só que a Missa não perdoa do mesmo modo que a Confissão.


A Confissão perdoa imediatamente, pelo simples pronunciar
da absolvição: se a pessoa está disposta, se está pelo menos
com a atrição, um arrependimento suficiente, e o propósito
de nunca mais pecar, ela é validamente perdoada. Enquanto
a Missa perdoa os pecados mediatamente. Na hora da con-
sagração, Jesus dá graça suficiente para surgir no coração de
todos nós a virtude da penitência, com a contrição perfeitís-
sima que perdoa os nossos pecados. Ele está nos oferecendo.
Que nós a estejamos recebendo, são outros quinhentos. Nos-
so coração é duro e pode deter a graça divina, pode impor a
ela um obstáculo.

Vimos então que, no sacrifício da Missa:

64
4 . A d o u t r i n a cat ó li ca s o b r e a M i s s a

1. a adoração e a ação de graças acontecem imediata e in-


falivelmente;

2. a propiciação dos pecados para com Deus acontece ime-


diata e infalivelmente, mas, para conosco, pecadores,
acontece mediatamente, dependendo de nossa disposi-
ção interior.

A quarta finalidade do sacrifício da Missa é a impetratória, que


também não é infalível. Jesus mereceu na Cruz todos os dons
que Ele quer nos dar. Deus olhou para Cristo na Cruz e disse:
“Eis o meu Filho muito amado, no qual coloquei toda a minha
benevolência”. Ele quer dar tudo a Jesus. E Jesus entrou no san-
tuário celeste sempre vivo ad interpellandum pro nobis, para
interceder por nós (cf. Hb 7, 25).

Então, na hora da Missa, Cristo está de fato pedindo para nós


as graças. Isso significa que, quando estamos bem dispostos
— veja que não é infalível; depende da nossa disposição —,
quando vamos à Missa e intercedemos por uma pessoa, essa
oração tem um valor muito maior do que interceder por uma
pessoa fora da Missa. Na Missa, nós nos unimos ao Intercessor
que tudo mereceu.

O pessoal fala em oração de poder, em fazer novena disso ou


daquilo. Eu digo: se você quer realmente um milagre, saiba que
o maior intercessor está, na hora da consagração, ad interpel-
landum pro nobis. Quer fazer uma novena? Faça uma novena
de Missas!

Que isso tudo nos ajude a ter uma profunda, uma verdadei-
ra devoção pelo momento da consagração. Precisamos viver
o momento da consagração com essa devoção e intensidade.
Sabemos que está tudo perfeitamente realizado por Jesus: Con-
summatum est (Jo 19, 30). Mas nós, na Missa, estamos aplican-
do isso às nossas vidas.

65
5. A REFORMA LITÚRGICA
DE PAULO VI

I. Apresentação
Chegamos ao último capítulo desta formação sobre a batalha
dos missais. Vimos até agora que não está aberto a discussões
45

o fato de que a Missa é um sacrifício verdadeiro oferecido por


um padre ordenado, que é o sacerdote oferente. Não estamos
aqui, portanto, debatendo se a Missa é ou não sacrifício. Fize-
mos estas aulas apenas para esclarecer a questão de modo que
não fiquemos simplesmente repetindo que a Missa é sacrifício
sem compreender o sentido exato dessas palavras.

Em nossa reflexão, entendemos o que está verdadeiramente


em jogo, a saber:

1. o que a Igreja Católica entende quando diz que a Missa


é sacrifício; e

2. o que os protestantes rejeitam quando dizem que a Mis-


sa não é sacrifício.

45. O curso A Batalha dos Missais foi pensado como uma “trilogia”: o primeiro
módulo é este, mais teológico e dogmático, tratando daquilo que mais importa. O
segundo, História da Missa, foi dedicado à história do Missal de Pio V e já se en-
contra disponível em <https://padrepauloricardo.org/cursos/historia-da-missa>.
O terceiro contará a história do Missal de Paulo VI.

67
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Como vimos na última aula, na medida em que temos essas


ideias claras, podemos celebrar a Santa Missa com mais devo-
ção e colher mais frutos espirituais.

Eu julgo esse conteúdo de grande importância, pois ao longo


dos meus trinta anos de padre sempre trabalhei na formação
de sacerdotes, e sei que padres e seminaristas não recebem
essa teologia que vocês estão recebendo aqui. Mais importante
do que a discussão acerca dos missais, é dar clareza teológica
sobre a Missa. Porque se eu, que me formei na Universidade
Gregoriana de Roma, não estudei com profundidade a questão
da Missa como sacrifício nos termos que vimos até aqui, então
fico imaginando que nas outras universidades e institutos por
aí a situação seja a mesma ou pior.

Alguém, ouvindo isso, pode se perguntar se eu, depois de or-


denado, não sabia que a Missa é o sacrifício de Cristo na Cruz.
Sim, eu sabia. Porém, uma coisa é aprender a frase: “A Missa
é a renovação do sacrifício de Cristo na Cruz”; uma coisa é
receber essa informação cultural, outra é realmente enxergar
dogmática, histórica e teologicamente o que isso significa. E
esse nosso pequeno estudo serviu para isso: para esclarecer,
para podermos enxergar com mais profundidade a verdade
que está na Missa.

II. A validade da Missa


Mas agora vem outra pergunta: “Padre, e o sacerdote que não
sabe nada disso que o senhor explicou? Não sabe que a Missa
é a renovação do sacrifício da Cruz, não estudou essa teologia
que o senhor está explicando, será que, quando ele celebra a
Missa de Paulo VI, a Missa dele é inválida?”

A minha opinião em relação à validade das Missas é tradicio-


nalíssima (posso provar) e também tranquilizadora: honesta-

68
5 . A r ef o r m a li t ú rg i ca d e Pau l o VI

mente, acho que a maior parte das celebrações com o Missal de


Paulo VI, mesmo as celebradas por padres claramente heréti-
cos, são Missas válidas.

Explico. Saiamos um pouco do caso da Missa e vamos a um


outro sacramento para ficar claro o que é o ensinamento tradi-
cional da Igreja em relação à intenção do sacerdote celebrante
ou à intenção do bispo ordenante.

Sabemos que os luteranos e, com eles, todo o resto das deno-


minações protestantes não crêem que o Matrimônio seja um
sacramento instituído por Jesus. Portanto, a intenção deles ao
celebrar um casamento é completamente viciada.

Ainda assim, quando um casal protestante vai ao cartório e


celebra a união civil, a Igreja sempre a reconhece como sacra-
mento. Se dois protestantes, ambos batizados na igreja lutera-
na, vão ao cartório e celebram casamento civil, e acontece de
um deles vir à Igreja Católica querendo, depois do divórcio,
casar-se com um católico, a Igreja dirá: “Não”. E dirá “não” por-
que essa pessoa já está casada.

Esta pessoa pode até argumentar que era “só casamento civil”.
Mas a Igreja o reconhece como um casamento válido. Porque
se os dois protestantes quiseram, se tiveram a intenção de se
casar, então o sacramento aconteceu. 46

46. Neste ponto os manuais antigos de Teologia Moral são unânimes. Veja-se, por
exemplo, a obra do Padre Josef Aertnys (sacerdote redentorista e discípulo fide-
líssimo de Santo Afonso de Ligório). Perguntando-se “qual a intenção requerida
e suficiente como objeto da intenção” para a validade de um sacramento, ele diz:
Huiusmodi intentio reperiri potest in hæretico vel infideli, “Esse tipo de intenção pode
ser encontrado num herético ou infiel”. E ainda: Unde hæretici contrahentes matri-
monium Sacramentum efficiunt quamvis existiment non esse Sacramentum, “Daí que
os hereges que contraem matrimônio façam o sacramento, embora estimem que
não seja sacramento [o que eles fazem]”. Essa é a sentença da Igreja quanto à inten-
ção do ministro do sacramento. Basta que haja a intenção de fazer quod facit Ecclesia

69
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Vejam, portanto, que se trata de uma pessoa com conceito


completamente herético de casamento. Mas porque houve um
“ato de vontade” de realizar um casamento, a Igreja o reconhe-
ce como um sacramento válido, apesar da ideia equivocada
que a pessoa tenha sobre o assunto.

Alguém pode rebater: “Padre, esse é o sacramento do Matri-


mônio, que é uma instituição natural. Não é assim com os ou-
tros sacramentos”.

É assim com os outros também. Por exemplo o Batismo. Para


a maior parte dos protestantes, o Batismo é simplesmente uma
manifestação externa da fé. Eles, de forma geral, não acham
que o Batismo faça alguma coisa na pessoa. Para eles, o que faz
é a fé, a fé de quem recebe. O conceito que eles têm de sacra-
mento é completamente errado. Mas a Igreja reconhece a va-
lidade do sacramento do Batismo realizado pelos protestantes
— supondo que se utilizem da matéria e da fórmula corretas
para o sacramento. E isto porque, quanto à intenção, basta que
o ministro queira realizar aquilo que foi instituído por Jesus,
tenha a intenção de fazer aquilo que os cristãos fazem, mesmo
com uma intenção genérica.

a Christo instituta vel quod Christus instituit, vel quod Christiani faciunt, isto é, “o que
faz a Igreja instituída por Cristo, ou o que Cristo instituiu, ou o que os cristãos fa-
zem” (Aertnys, p. 6).
Outro exemplo comum nos manuais de casuística: você está na prisão e não
é batizado; é um catecúmeno, e vai ser morto. Se não houver nenhum padre para
batizá-lo, mas somente seu companheiro de cela, que é ateu e não é batizado, o que
você pode fazer? Você o ensina. Diz para ele derramar água na sua cabeça e pro-
nunciar: “Fulano, eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, com
a intenção de fazer o que os cristãos fazem. “Mas eu não acredito nisso”, pode dizer
o ateu. Ora, não precisa acreditar, só precisa ter a intenção de fazer o que os cristãos
fazem. Essa é a intenção mínima.

70
5 . A r ef o r m a li t ú rg i ca d e Pau l o VI

Se perguntarmos a qualquer protestante o que é o Batismo, ele


fatalmente vai dar uma explicação herética. Todavia, ele acha
que está fazendo o que a Igreja faz, acha que está fazendo o que
os Apóstolos faziam, acha que está fazendo aquilo que Nosso
Senhor instituiu.

Em outras palavras, essa pessoa, no ato de vontade da sua in-


tenção, quer fazer o que a Igreja sempre fez, embora ela tenha
uma ideia errada do que a Igreja sempre fez.

Há quem possa dizer que isso é muito laxo. Porém, se o laço fos-
se muito estreito nessa questão, o que seria da história da Igreja?

Na Idade Média, por exemplo, quando havia grandes confu-


sões teológicas, o que os bispos achavam que estavam fazendo
quando impunham as mãos e ordenavam os padres? Ora, se
tivessem a intenção mínima de fazer o que a Igreja sempre fez,
fazer o que todos os bispos fazem quando ordenam padres, o
sacramento era válido, embora houvesse ideias teológicas doi-
das circulando. Do contrário, nós já teríamos perdido a suces-
são apostólica.

E uma das provas de que nós não perdemos a sucessão apostó-


lica, apesar de tudo, são os milagres eucarísticos, que acontecem
tanto no missal antigo como no Missal de Paulo VI. Por esse
motivo, não tenho dúvida da validade das Missas e de que nós
não perdemos a sucessão apostólica, de que os bispos são verda-
deiros bispos, de que os padres são verdadeiros padres e de que
as Missas são verdadeiras Missas.

Que essas Missas possam ser celebradas com mais piedade,


com mais devoção, com mais fé, com mais dignidade etc., esta-
mos de acordo. Vamos trabalhar para isso.

Por esse motivo estou fazendo esse curso, para que Nosso Se-
nhor pare de ser ofendido. Pois, quando você sabe o que está

71
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

fazendo, tem ideia clara e distinta de que o padre está reno-


vando o sacrifício no Calvário, é evidente que o “palhacinho
fazendo mímica na Missa” não tem mais lugar. É evidente que
danças, jograis e o circo dentro da Missa não têm lugar. Porque
a Missa não é um mero ato de pedagogia.

III. Um testemunho pessoal


Os livros litúrgicos promulgados por Paulo VI trazem certa
lacuna em termos de rubricas, em termos de especificação de
como se vai executar aquele rito.

Quando se celebra Pio V, por exemplo, está dito o que se deve


fazer com as mãos. Não há espaço para uma criatividade litúr-
gica, para inventar. Tudo está previsto: o que o acólito faz, o
que o padre faz. Tanto é verdade que havia pequenas variações
culturais, e em pequenos detalhes. Eram coisas pequenas.

Basicamente, um fiel que ia à Missa na Itália se sentia perfeita-


mente em casa indo à Missa na França ou indo à Missa no Bra-
sil ou indo à Missa nos Estados Unidos ou no Japão. A Missa
era a mesma. Já o Missal de Paulo VI, com orientações básicas
nas rubricas, deixa ainda bastante espaço e de modo que não
se sabe exatamente como se deve executar aquele ato, nos de-
talhes. Por essa razão, pode-se inventar uma coisa para o bem
ou para o mal, uma coisa devota e uma coisa menos adequada.

O fato é que Paulo VI, depois, retirou Bugnini e colocou Mon-


senhor Virgílio Noè no lugar.

Para a escola litúrgica de Monsenhor Virgílio Noè, devíamos


executar o Missal de Paulo VI com todo o decoro, dignidade e,
digamos assim, respeito que poderíamos ter, ainda se houvesse
aquelas lacunas deixadas por Bugnini.

72
5 . A r ef o r m a li t ú rg i ca d e Pau l o VI

Desse modo, Virgílio Noè tinha a mentalidade de pegar o Mis-


sal de Paulo VI e vivê-lo da melhor maneira possível. Eu me
lembro de quando o Monsenhor Virgílio Noè pregou um retiro
aos cônegos da Basílica de São Pedro e depois esse retiro foi
publicado. Numa das palestras, ele dizia que todo padre de-
veria ter um pequeno caderno no qual anotasse os defeitos de
sua própria Missa, para depois corrigi-los. Sem dúvida, esse
homem não tinha a cabeça das invencionices litúrgicas. Ele
claramente queria viver o Missal de Paulo VI como continui-
dade e não como ruptura.

Foi por isso que ele, enquanto bispo secretário da Congrega-


ção do Culto Divino, trabalhou para publicar o Cerimonial
dos Bispos.

Eu me lembro disso, da época em que era seminarista novo


e estava na Filosofia. Após a publicação do Cerimonial dos
Bispos, que só havia em latim, nós, no seminário em Campo
Grande (MS), passamos horas traduzindo as cerimônias do la-
tim. Eu ensinei ao pessoal e, assim, nós começamos a colocar
em prática aquilo que estava no Cerimonial dos Bispos para
incrementar a falta de rubricas do Missal de Paulo VI.

Nós olhávamos as fotografias de Roma, pois não havia inter-


net naquela época, e olhávamos cada posicionamento, cada
movimento. Nós víamos aquilo tudo e tentávamos copiar as
cerimônias papais da melhor maneira, com aquela dignidade,
com aquele respeito. Então, com esses detalhes todos que o
Monsenhor Virgílio foi acrescentando através do Cerimonial
dos Bispos, nós não sentíamos a necessidade de retornar ao
Missal de Pio V.

Monsenhor Virgílio tinha formação em História da Igreja. As-


sim, nós estávamos convencidos de que o Missal de Paulo VI
era mais próximo à Missa celebrada por São Gregório Magno,

73
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

por São Leão Magno etc., sem aqueles acréscimos que vieram
ao longo dos séculos.

Tínhamos a impressão de que estávamos celebrando uma coisa


mais pura, que estávamos fazendo aquilo que o próprio Con-
cílio de Trento tinha pedido, ou seja, a restitutio da Missa ad
normam Sanctorum Patrum, ou seja, “a volta [...] à norma dos
Santos Padres”.

A mentalidade era esta (atenção: eu estou explicando a men-


talidade, não estou dizendo que penso assim hoje): a nossa
Missa tem de ser mais parecida com aquela de São Gregó-
rio Magno, com aquela de São Leão Magno. Portanto, todas
essas coisas barrocas que foram acrescentadas, todas essas
coisas medievais, deveriam ser retiradas. Tudo aquilo que
fosse acréscimo, por exemplo, do renascimento carolíngio,
nós olhávamos como uma degradação. Para nós, a liturgia
romana autêntica era aquela dos sacramentários antigos de
Roma. Os sacramentários que já vinham com acréscimos da
reforma carolíngia etc., tudo isso era visto como degradação,
como acréscimos posteriores.

Hoje, porém, vejo que há coisas mais complicadas, e consigo


enxergar isso muito por causa do ministério e do pensamen-
to de um teólogo chamado Joseph Ratzinger (Bento XVI). Foi
ele quem me acordou do meu sono arqueológico. Fui forma-
do nesse arqueologismo patrístico-litúrgico de Virgílio Noè, a
quem eu sou muito agradecido, mas Ratzinger, com o seu livro
Introdução ao Espírito da Liturgia e vários outros escritos dele,
47

47. Tome-se como exemplo sobretudo o capítulo III desta obra, sobre “o altar e a
orientação da oração na liturgia”. É nele que o Cardeal Ratzinger dá a sua conheci-
da sugestão: “Onde não é possível voltar-se colectivamente para o Oriente, pode
a cruz servir como o Oriente interior da fé. Ela deveria encontrar-se no meio do

74
5 . A r ef o r m a li t ú rg i ca d e Pau l o VI

me acordou com sua opinião de que há algumas coisas dentro


da reforma litúrgica de Paulo VI que precisam ser corrigidas. 48

Assim, fica a disputa: o que temos de fazer? Restaurar o rito


antigo ou fazer uma reforma da reforma? Essa é a disputa.

Enfim, fica o meu testemunho. Sei que levantei muitas ques-


tões que precisam ser resolvidas, e é por isso que teremos ou-
tras formações para esclarecer melhor as ideias.

IV. Conclusão
Como vamos sair dessa situação embaralhada na qual a Igreja
se encontra, com esses dois ritos, o Missal de Paulo VI e o Mis-
sal de Pio V? Como vamos sair dessa confusão?

Isso tudo vai depender da prudência dos fiéis cristãos e da nos-


sa paciência histórica. Mas uma coisa é certa: há coisas que
não precisamos mais debater, que já estão decididas, e essa é
a razão de ser desse módulo. Trata-se de enxergar que existe
um dogma e esse dogma fundamental é aquele em cima do
qual está edificada a Igreja: o santo sacrifício da Eucaristia é o
sacrifício do Calvário renovado na Santa Missa por ministros
ordenados que receberam a sucessão apostólica. 49

altar, sendo o ponto de vista comum para o sacerdote e para a comunidade orante”
(Introdução ao Espírito da Liturgia. 5. ed. Prior Velho: Paulinas, 2012, p. 62).
48. Na continuação deste estudo, eu explico que a liturgia romana teve um cres-
cimento orgânico, um desenvolvimento orgânico ao longo dos séculos. Está tudo
no curso História da Missa, disponível em <https://padrepauloricardo.org/cursos/
historia-da-missa>.
49. A finalidade principal deste estudo, com efeito, não é fazer uma guerra de pu-
rismo litúrgico. É claro, temos o ideal litúrgico, e não estou fazendo pouco caso da
dignidade da liturgia celebrada pelos santos. Não é isso. Mas estamos num caos tão
grande, tão tremendo, que se conseguirmos fazer os padres celebrarem com mais

75
A BATALHA D OS MISSAIS I: O SACRI FÍCIO DA MISSA

Isso não é questionável e precisa estar bem sólido, precisa estar


bem presente na nossa forma de celebrar, na forma de realizar-
mos esse ato do qual brota toda a vitalidade da Igreja: afinal,
Ecclesia de Eucharistia vivit, “a Igreja vive da Eucaristia”, e aí
está contido todo o bem da Igreja.

dignidade, com mais consciência e mais devoção, com mais clareza do que estão
celebrando, isso já será uma coisa extraordinária.

76
BIBLIOGRAFIA

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