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09/2023

O Portal

CREATINA
A anatomia de uma mentira

Y R regressão à média

ilusão estatística

s
extrapolação fisiológica

o
fragilidades
metodológicas
CREATINA
A anatomia de uma mentira

A creatina é um suplemento amplamente utilizado,


especialmente por entusiastas do meio fitness e
atletas. Existem muitas alegações sobre supostos
benefícios e malefícios do suplemento, além do bem
estabelecido efeito ergogênico na força muscular e
hipertrofia.

Uma crença popular sobre efeitos deletérios


associados à creatina envolve um suposto efeito
hormonal, alterando níveis de di-hidrotestosterona
(DHT), que seriam responsáveis por queda de cabelo
quando em níveis anormalmente elevados. Este é um
dos colaterais que muitos profissionais da saúde
ativamente defendem existir.

O estudo mais utilizado para embasar a alegação de


aumento de DHT e queda de cabelo será discutido
neste material.

1
Creatina e queda de cabelo

A história vem de um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, controlado


por placebo, publicado em 2009 no Clinical Journal of Sport Medicine. 

20 jogadores de rugby foram alocados aleatoriamente em dois grupos

Grupo Creatina
Receberam 25 gramas de creatina por dia durante uma semana, e
depois consumiram 5 gramas de creatina por dia durante duas semanas
(chamado tempo de manutenção).

Grupo Placebo
Receberam doses idênticas ao grupo creatina, mas de placebo, todos
os dias nas três semanas.

Ao final, os autores do artigo


concluem que aqueles que ingeriram
Revisões a creatina tiveram seus níveis de
sistemáticas DHT aumentados em 56% ao final
Ensaio clínico

da primeira semana, e em 40% ao


randomizado final da terceira semana. A queda de
cabelo é associada como um dos
Estudos de possíveis efeitos adversos da
Coorte
creatina, baseado neste pequeno
Estudos de
estudo realizado em 2009.

caso-controle O estudo foi aparentemente bem


conduzido, seguindo o desenho de
Relatos de caso/ estudo compreendido como "padrão
séries de casos ouro" dentro da área biomédica: o
ensaio clínico randomizado,
Opinião de experts/
estudos com animais controlado por placebo, duplo-
cego.

2
À primeira vista, pode parecer que a creatina realmente foi capaz de
aumentar os níveis de hormônios androgênicos - no entanto, a conclusão
mais adequada é um pouco diferente após uma inspeção minuciosa. Nessa
inspeção, vamos nos atentar a três pontos:
Interpretação dos resultado
Ilusão estatística (regressão à média
Extrapolação fisiológica

Interpretação dos Resultados


Princípio básico da leitura de qualquer artigo científico: dados não falam
por si só. Nunca. Jamais. Isso significa que os mesmos resultados podem ser
interpretados de forma diferente por pessoas diferentes.
A problemática é similar à
famosa charge do "6 ou 9", que
ilustra como diferentes pontos
de vista podem levar a diferentes
conclusões baseadas nos
mesmos fatos.

No estudo em questão, essa "divergência de opinião" está na escolha dos


resultados que foram utilizados para basear a conclusão dos autores. Em ensaios
clínicos randomizados, são comparados grupos de participantes entre si ao longo
do tempo. Sendo assim, existem essencialmente dois resultados diferentes:

Diferenças
entre grupos
Diferenças
intra-grupos
3
Diferenças
intra-grupos
É o resultado da subtração da média de alguma variável em um grupo no
final do estudo, pela média desta mesma variável neste mesmo grupo no
início do estudo. Em outras palavras: é uma mudança ao longo do tempo,
também chamado de "antes e depois" ou "pré e pós tratamento".

Exemplo:
Em um estudo comparando semaglutida e placebo, a diferença média de
peso corporal ao longo do tempo no grupo placebo foi de -2,6 kg e,
no grupo intervenção, de -15,3 kg.

-2,6

-15,3

Começo do
Final do
Começo do
Final do

estudo estudo estudo estudo

Diferenças
entre grupos
É a subtração do valor médio de alguma variável entre o grupo intervenção
e o grupo controle, em determinado momento no tempo. Em um ECR
controlado por placebo, o resultado desta subtração pode ser atribuído ao
efeito da intervenção sendo testada.

4
Exemplo:
Em um estudo comparando semaglutida e placebo, a diferença média
entre os grupos ao final do acompanhamento de 68 semanas foi de 12,7
kg (favorável ao grupo semaglutida). Semaglutida foi responsável por
uma redução de 12,7 kg a mais do que placebo em 68 semanas.

Placebo
Semaglutida

12,7 diferença

Começo do
Final do

estudo estudo

Você pode encontrar estes dois resultados na maioria dos artigos


científicos, como no estudo da semaglutida que utilizamos como exemplo
anteriormente. No estudo da creatina, entretanto, estes resultados não foram
apresentados.

Na tabela é possível encontrar a


média de DHT para cada grupo
em três momentos diferentes
(dia 0, dia 7 e dia 21), mas não
são apresentadas quaisquer
comparações - ou seja, as
subtrações. Portanto, não é
possível saber qual é a diferença
média ao longo do tempo em
cada grupo, ou a diferença média
entre os grupos creatina e
placebo no dia 7 ou dia 21.

5
Ora, então como os autores interpretaram os próprios resultados? Como
podem dizer que a creatina causou aumento de 56% no DHT? De onde surgiu
este número?

Simples:

Qual foi a média de DHT no grupo creatina no dia 0?

0,98 nmol/L.
Qual foi a média de DHT neste mesmo grupo, no dia 7?

1,53 nmol/L.
Faça a conta na calculadora para descobrir o aumento ao longo do
tempo (diferença intra-grupo) no grupo creatina.

Você deve chegar em 0,55 nmol/L.

Este foi o aumento de DHT no grupo creatina ao longo de uma semana.


Relevante? Provavelmente não. Mas transformando em um percentual,
talvez o resultado fique mais chamativo. Para isso, basta dividir o valor final
pelo valor inicial, e teremos o aumento em percentual ao longo do tempo.
Faça a conta, você deverá chegar em 1,56, representando aumento de 56%.

Certo, pelo menos descobrimos de onde o valor de 56% surgiu. Mas: será
que é este o resultado que realmente importa?

Se você prestou atenção ao exemplo da Semaglutida, deve ter notado que


o efeito causado pelo medicamento no peso corporal é equivalente à
diferença entre grupos: "Semaglutida foi responsável por uma redução de
12,7 kg a mais do que placebo em 68 semanas". Da mesma forma, no estudo
da creatina poderíamos falar de causa-e-efeito apenas com base na
comparação direta entre o grupo creatina e placebo - ou seja, a pergunta
que nos interessa é a diferença entre grupos nos níveis de DHT nos dias 7 e
21. Apesar de os autores não apresentarem este cálculo, podemos fazer uma
estimativa.

6
Qual foi a média de DHT no grupo creatina no dia 7?

1,53 nmol/L.

Qual foi a média de DHT no grupo placebo, no dia 7?

1,09 nmol/L.

Com uma simples subtração, chegamos a uma diferença média de


0,44 nmol/L.

Teoricamente, seria possível afirmar, com base nestes números, que a


creatina foi responsável por um aumento de 0,44 nmol/L nos níveis de DHT -
uma diferença de pequena magnitude, que não poderia plausivelmente
causar impacto clínico. Além disso, não sabemos se esta diferença
realmente existe ou foi observada pelo acaso, uma vez que não há um teste
estatístico formal para esta comparação (que poderíamos entender a partir
do p-valor e intervalo de confiança, que não estão presentes na tabela).

Em outras palavras, teoricamente, assumindo que não há nenhum tipo de


viés no estudo ou qualquer outra razão para desconfiar da validade deste
resultado, podemos concluir que a creatina "causou" um pequeno aumento,
sem importância clínica e estatisticamente incerto, nos níveis de DHT.

Mas bem, isso teoricamente.

O problema é que existe uma limitação importante que prejudica a


validade desta conclusão, que acontece por uma ilusão estatística chamada
regressão à média. Esse é nosso próximo tópico.

Ilusão Estatística
Todo estudo científico está sujeito a vieses e problemas que podem
prejudicar a validade de suas conclusões, até mesmo um estudo "padrão
ouro" como o ensaio clínico randomizado.

Um fenômeno estatístico comum que pode criar resultados ilusórios é a


regressão à média. Em essência, a regressão à média é a tendência natural
de valores extremos retornarem a valores mais próximos de valores normais
em mensurações subsequentes.

7
Trocando em miúdos: se um exame está muito alterado (tanto pra cima
quanto para baixo), a tendência é que a próxima aferição seja mais próxima
da normalidade.

Esse fenômeno acontece porque no mundo real, nada é fixo: nossa


biologia inteira é extremamente variável - alguns parâmetros variam em
questão de horas, outros em questão de dias, e outros em questão de meses.
A variabilidade é natural, e é justamente por isso que não podemos
extrapolar ou generalizar a partir de uma medida isolada de qualquer exame
que seja, na grande maioria das vezes.

Nos estudos científicos, é comum que alguns participantes apresentem


valores extremos de seus exames (tanto para cima, quanto para baixo), e
posteriormente regridam à média. Isso acontece normalmente, em diversos
participantes, em todos os trabalhos científicos, e não necessariamente
causa problema algum. Desde que essas regressões à média estejam
acontecendo igualmente em ambos grupos estudados (intervenção e
placebo), tudo certo.

Mas não estava tudo certo no estudo da creatina.

Temos uma forte razão para


suspeitar que a regressão à
média ocorreu de forma
diferente entre os grupos, o que
cria resultados ilusórios. A
razão está apresentada na
tabela 2, que mostra
claramente como os grupos
(creatina e placebo) começaram
o estudo, em média, com níveis
substancialmente diferentes de
DHT e testosterona.

8
A média aritmética da amostra inteira (incluindo participantes do
grupo creatina + placebo) ao início do estudo seria de 15,76 nmol/L
(testosterona) e 1,12 nmol/L (DHT).

As médias do grupo placebo são superiores à média geral da amostra,


enquanto as médias do grupo creatina são inferiores à média geral da
amostra:

Testosterona

(nmol/L) 17.02 | Média (placebo)


18
Média da amostra inteira (15.76 nmol/L)
15
14.44 | Média (creatina)
0
DIA 0

DHT (nmol/L)
2 1.26 | Média (placebo)
Média da amostra inteira (1.12 nmol/L)
1
0.98 | Média (creatina)
0
DIA 0

Pela simples tendência natural, você já sabe que os valores extremos


vistos no dia 0 devem se aproximar da normalidade em medidas
subsequentes.

E é justamente isso que acontece: a média do grupo placebo cai (pois


estava muito alta), enquanto a média do grupo creatina sobe (pois estava
muito baixa). Duas regressões à média ocorrendo em direções opostas, que
dão impressão de que existe uma diferença real entre creatina e placebo.

Voilá. Eis aqui um resultado criado artificialmente, por um fenômeno


estatístico conhecido há mais de cem anos - e que ainda continua nos
enganando até os dias de hoje.

9
Os gráficos para níveis média de Testosterona e DHT após 0, 7 e 21 dias
de suplementação com creatina ficariam assim:

Testosterona

(nmol/L)
18 16.69
16.08
Média da amostra
inteira.

15 (15.76 nmol/L)
14.44 regressão à média

0
DIA 0 DIA 7 DIA 21
DHT (nmol/L)
2
1.53 1.38
Média da amostra
inteira.

1 (1.12 nmol/L)
regressão à média
0.98

0
DIA 0 DIA 7 DIA 21

"Então o estudo é inútil?"

Sim. Infelizmente, o grande desbalanço no Dia 0 nos níveis de DHT e


testosterona indicam um problema subjacente maior: a randomização
provavelmente não foi bem executada. Ou até foi, mas pelo simples acaso
ela criou grupos muito dissimilares no início do estudo (o que é comum em
trabalhos com tamanho amostral muito reduzido, como este - foram apenas
20 participantes no estudo!).

10
De todo modo, os grupos são
muito diferentes em média no
início do estudo. Seria análogo
a uma corrida de 100 metros
rasos, em que um atleta
começa com uma vantagem de
10 metros do outro no
momento em que o tempo
começa a contar.

Existe uma grande incomparabilidade no baseline e, portanto, qualquer


inferência que a gente faça a partir dessa comparação será potencialmente
enganosa - é impossível dizer se qualquer diferença hormonal nos dias 7 e 21
foram causadas pela creatina, ou por mera regressão à média, ou ainda por
outras discrepâncias em características clínicas e sociodemográficas entre
os participantes dos dois grupos.

Extrapolação Fisiológica

Já está mais do que claro que os resultados do estudo simplesmente não


nos convencem de que a creatina realmente causa alteração nos níveis de
DHT ou testosterona. Isso já é suficiente para descartar totalmente este
trabalho científico. 

Mas, e se os resultados realmente mostrassem esse aumento?

E se os grupos fossem perfeitamente comparáveis entre si no Dia 0, e


realmente houvesse uma diferença de DHT no Dia 7 e Dia 21, que não
poderia ser plausivelmente explicada por acaso, regressão à média ou
outros fatores?

Será que isso comprovaria a hipótese de que creatina causa alopecia? 

11
A resposta, curta e grossa: não.

"Ah, mas altos níveis de DHT podem causar queda de cabelo!"

Podem. Mas não sabemos exatamente se qualquer aumento de DHT de


fato aumenta o risco de calvície clinicamente aparente. Será que a creatina
está promovendo um aumento tão grande de DHT a ponto de causar impacto
clinicamente importante nos folículos e consequentemente na queda de
cabelo? Se sim, será que a creatina não poderia agir através de outros
mecanismos compensatórios, que fariam com que ela não impactasse na
queda de cabelo mesmo aumentando DHT significativamente?

Todas essas perguntas e suposições são apenas especulações, e


sinceramente dificilmente teríamos qualquer resposta certeira.

Isso não significa que é impossível saber se a creatina realmente aumenta


risco de queda de cabelo ou alopecia. Muito pelo contrário - é plenamente
possível. Basta que o estudo seja conduzido avaliando justamente… a queda
de cabelo. O que não foi feito pelo estudo mais citado (nas redes sociais, pelo
menos) sobre essa suposta relação.

Em vez de analisar hormônios ou quaisquer outros parâmetros que


poderiam estar associados à alopecia, o mais adequado é avaliar a alopecia
diretamente. Existem diversas formas de medir este desfecho, seja em
ensaios clínicos randomizados ou estudos observacionais, analisando a
incidência do diagnóstico de alopecia androgenética ou escalas validadas
como Severity of Alopecia Tool (SALT).

Resumão
O mito da creatina e queda de cabelo é baseado em um único ensaio
clínico, pequeno e com fragilidades metodológicas. É o estudo mais citado
sobre o impacto da creatina nos hormônios androgênicos, e ao mesmo tempo
está longe de comprovar o que as pessoas veementemente (e repetidamente)
alegam existir. Não, a evidência não demonstra que creatina impacta nos
níveis de DHT ou testosterona, e muito menos impacto direto nos folículos
capilares ou queda de cabelo.

12
Um mito criado e perpetuado por graves problemas de interpretação
estatística básica, sobretudo pela conclusão dos autores, que se baseia na
comparação entre creatina no dia 7 e creatina no dia 0, ignorando totalmente
o grupo controle. Essa é uma prática comum de spin (módulo 10 do
Interpretando Evidência), em que os autores enfatizam uma diferença intra-
grupo ao longo do tempo, enquanto ignoram os resultados da comparação
entre grupos (creatina vs. placebo).

E mesmo que a creatina de fato levasse a algum aumento de hormônios


androgênicos, seria precipitado concluir que a queda de cabelo seria uma
consequência. Pode até fazer sentido, mas sem mensurar diretamente
alopecia seria apenas uma mera especulação. 

O que vimos aqui não é um exemplo isolado.

Tudo isso é corriqueiro na literatura biomédica.

A grande maioria dos estudos apresentam resultados falsos,


superestimados ou mal interpretados - em padrões que se repetem.
Exaustivamente. Neste caso, fomos iludidos por regressão à média,
incomparabilidade no baseline e a omissão da comparação entre grupos.
Os mesmíssimos problemas aparecem em diversos outros estudos, de
diversas outras áreas. É universal.

O fato de você ter chegado até aqui significa que você faz parte de um
grupo seleto de pessoas, que não estão satisfeitas com conversinha de "um
estudo mostrou" e "na prática clínica eu vejo que funciona".

O que te interessa são os fatos. Sem rodeios, ciência de verdade.

E é exatamente isso que você aprende no Interpretando Evidência.

Só toma atenção: em pouco tempo, a turma vai virar e o preço vai mudar.
Aproveite a oportunidade.

13
Clique aqui e faça sua inscrição.

Te encontro no IE. :)

Um abraço,

Igor.

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