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Saramago - Democracia
Saramago - Democracia
Saramago - Democracia
1991
Uma breve e primária incursão pela história das ideias políticas vai servir-me para
trazer à colação duas questões simples que, sendo do conhecimento de toda a
gente, são também, não obstante, e com o costumado argumento de que os
tempos mudaram, postos de lado e desconsiderados sempre que se apresente a
ocasião de reflectir, não já sobre meras definições de democracia, mas sobre a sua
substância concreta. A primeira questão recordar-me-á que a democracia
apareceu na Grécia clássica, mais exactamente em Atenas, por alturas do século
V antes de Cristo; que essa democracia pressupunha a participação de todos os
homens livres no governo da cidade; que se baseava na forma directa, sendo
efectivos todos os cargos, ou atribuídos segundo um sistema misto de sorteio e
eleição; que os cidadãos tinham direito a votar e a apresentar propostas nas
assembleias populares.
Uma democracia que não se auto-observe, que não se auto-examine, que não se
autocritique, estará fatalmente condenada a anquilosar-se. Não se conclua do que
acabo de dizer que estou contra a existência dos partidos: sou militante de um
deles. Não se pense que aborreço os parlamentos: querê-los-ia, isso sim, mais
laboriosos e menos faladores. E tão-pouco se imagine que sou o inventor de uma
receita mágica que, doravante, permitirá aos povos viverem felizes sem governos:
apenas me recuso a admitir que só seja possível governar e desejar ser governado
de acordo com os modelos democráticos em uso, a meu ver incompletos e
incoerentes, esses modelos que, numa espécie de assustada fuga para a frente,
pretendemos tornar universais, como se, no fundo, só quiséssemos fugir dos
nossos próprios fantasmas, em vez de os reconhecer como o que são e trabalhar
para vencê-los. Chamei “incompletos” e “incoerentes” aos modelos democráticos
em uso porque realmente não vejo como se possa designá-los de outra maneira.
Uma democracia bem entendida, inteira, redonda, irradiante, como um sol que
por igual a todos ilumine deverá, em nome da pura lógica, começar por aquilo
que temos mais à mão, isto é, o país onde nascemos, a sociedade em que vivemos,
a rua onde moramos. Se esta condição primária não for observada, e a
experiência de todos os os dias diz-nos que não o é, todos os raciocínios e práticas
anteriores, quer dizer, a fundamentação teórica e o funcionamento experimental
do sistema, estarão, desde o início, viciados e corrompidos. De nada adiantará
limpar as águas do rio à sua passagem pela cidade se o foco contaminador estiver
na nascente. Vimos já como se tornou obsoleto, fora de moda, e até mesmo
ridículo, invocar os objectivos humanistas de uma democracia económica e de
uma democracia cultural, sem os quais o que designamos por democracia política
ficou limitado à fragilidade de uma casca, acaso brilhante e colorida de bandeiras,
cartazes e palavras de ordem, mas vazia de conteúdo civicamente nutritivo.
Querem, porém, as circunstâncias da vida actual que até mesmo essa delgada e
quebradiça casca das aparências democráticas, ainda preservadas pelo
impenitente conservadorismo do espírito humano, ao qual costumam bastar as
formas exteriores, os símbolos e os rituais para continuar a acreditar na existência
de uma materialidade já carecida de coesão ou de uma transcendência que deixou
perdidos pelo caminho o sentido e o nome — querem as circunstâncias da vida
actual, repito, que as cintilações e as cores que até agora têm adornado, diante
dos nossos resignados olhos, as desgastadas formas da democracia política, se
estejam a tornar rapidamente baças, sombrias, inquietantes, quando não
impiedosamente grotescas como a caricatura de uma decadência que se vai
arrastando entre chufas de desprezo e uns últimos aplausos irónicos ou de
interessada conveniência.
Por sua própria natureza e definição, o poder democrático será sempre provisório
e conjuntural, dependerá da instabilidade do voto, da flutuação das ideologias e
dos interesses das classes, e, como tal, pode até ser visto como uma espécie de
barómetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da
sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior,
abundam os casos de alterações políticas aparentemente radicais que tiveram
como efeito radicais alterações de governo, mas a que não se seguiram as
alterações sociais, económicas e culturais igualmente radicais que o resultado do
sufrágio havia prometido.
por trás das tramas e das malhas institucionais, mas que invariavelmente se nos
escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e que inevitavelmente
contra-atacará se alguma vez tivermos a louca veleidade de reduzir ou disciplinar
o seu domínio, subordinando-o às pautas reguladoras do interesse geral. Por
outras e mais claras palavras, afirmo que os povos não elegeram os seus governos
para que eles os “levassem” ao mercado, e que é o mercado que condiciona por
todos os modos os governos para que lhe “levem” os povos.
E, se assim falo do Mercado (agora com maiúscula), é por ser ele, nos tempos
modernos, o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder
realmente digno desse nome que existe no mundo, o poder económico e
financeiro transnacional e pluricontinental, esse que não é democrático porque
não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que
finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.