O Murmurio Do Mundo de Almeida Faria A R

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O murmúrio do mundo de Almeida Faria − a revisitação de uma Índia nunca conhecida

O murmúrio do mundo of Almeida Faria – a revisiting of a never known India

Gabriela Silva1
Abstract: O murmúrio do mundo2 of Almeida Faria consist of a new visit to India. The book is the result of a trip
made to the country in 2006, which was promoted by the National Center of Culture. On this trip, the author
visited Goa and Cochin, two former Portuguese colonies. The text written by Almeida Faria converges to a new
perspective of the Indian culture, one that seeks to diverge from what it has already been thought and written
about real and fictional trips to the country, narratives present in books such as Luís de Camões´s The Lusiads
to Goncalo M. Tavares`s Voyage to India. Almeida Faria´s book congregate either old or contemporary
intertextualities, creating a diary of the Portuguese imaginary mindset. It also points out to different visions of
the Portuguese culture. The work evokes voices a wide range of philosophers, poets, fictionists who traveled to
the East – either real trips or fictionally ones -, that resulted in the awakening of sensations and feelings. The
stories or narratives of those subjects helped to form the Portuguese Orientalism that still resonates in the
Portuguese contemporary literature, as one can spot in writings involving mythical ideas of an unknown East
which, although conquered, remains even more distant than before. India, with its exoticism and poverty
becomes a fundamental revisit to the Portuguese thought. The present work offers some reflections on the
disturbing experience of this Portuguese writer, as well as it allows the possibility of revisiting Portugal´s
mythical past; a path that simultaneously involves already known and mysterious facts. The analysis also adopts
texts by thinkers and scholars who devote time and effort to the study of questions, such as the lusophony and the
Portuguese need for the heading to the East, the special case of Eduardo Lourenço. In the prologue of Almeida
Faria´s book, Lourenço classifies the journey of O murmúrio do mundo “as a real and unique «pilgrimage », a
genuine desire to know the ones who are so different from us, Europeans, and, more specifically
Portuguese."(2013, page 15).
Keywords: Almeida Faria, trip, lusophone imaginary, portuguese orientalism, intertextuality.

Resumo: O murmúrio do mundo, de Almeida Faria, é uma revisitação à Índia. Resultado de uma viagem
realizada em 2006, promovida pelo Centro Nacional de Cultura, teve como percurso Goa e Cochim, antigas
colônias portuguesas. O texto de Almeida Faria converge para uma nova perspectiva da cultura indiana que
procura divergir do que já havia sido pensado e escrito sobre a possibilidade real e ficcional de viagens à Índia,
desde Luís de Camões e Os Lusíadas até Gonçalo M. Tavares em Viagem à Índia. Antigas ou contemporâneas as
intertextualidades que compõem o livro de Almeida Faria conjugam-se formando um diário do imaginário
português e apontam para as diferentes visões de uma mesma cultura. A obra evoca diferentes vozes de filósofos,
poetas, ficcionistas que viajaram ao Oriente de modo real ou ficcional conferindo-lhe sentidos e sensações. São
os relatos ou narrativas desses sujeitos que constituíram o orientalismo português e que ainda ressoam na
literatura contemporânea atribuindo-lhe as bases de uma escrita que se desenvolve a partir da ideia mítica desse
Oriente desconhecido, dominado e depois ainda mais distante do que antes de ser descoberto. De grande
exotismo e ao mesmo tempo miséria, a Índia torna-se uma revisitação necessária ao pensamento português. Este
trabalho apresenta algumas reflexões sobre a inquietante experiência do escritor português e a visitação ao
passado mítico de Portugal e à estranheza do que lhe é conhecido e esfíngico simultaneamente, através da leitura
das intertextualidades que lhe são peculiares. Também contribuem nessa análise textos de pensadores e
estudiosos sobre as questões de lusofonia e viagem, especificamente ao Oriente português, principalmente
Eduardo Lourenço. Em prefácio à narrativa de Almeida Faria, o pensador português comenta que a viagem de
O múrmurio do mundo é “uma real e singular «peregrinação», um desejo de conhecer realmente o Outro
diferente de nós, que culturalmente somos como europeus e, em particular, como portugueses.” (2013, p. 15).
Palavras-chave: Almeida Faria, viagem,imaginário lusófono,orientalismo português, intertextualidade.

1
Doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS. Bolsista PNPD – Capes, URI. E-mail:
<gabrielasilvalit@gmail.com>.
2
Mantivemos o título em português por não haver uma tradução para o inglês. Assim, para evitar quaisquer
problemas quanto à referência da obra, o título está em seu idioma original.
252
Eduardo Lourenço, sobre O murmúrio do mundo de Almeida Faria, comenta que é
uma viagem-diário com dois textos: um que retrata a Índia de hoje, mostrando o que nela é
tão fascinante e diferente do ocidente e um segundo momento, em que existe o antigo
encontro com o Outro, no instante de sua invenção pelos portugueses: “Uma viagem à Índia
real ou suposta é sempre da ordem da ficção superlativa, um desafio único à nossa tradição
ficcional de europeus.”(LOURENÇO, 2013, p. 11). Recorrente tema da literatura portuguesa,
as viagens, desde Luís de Camões, habitam o imaginário luso - num passado literário de
esforço memorialista para mimetizar o sonho grandioso de Portugal de tornar-se uma grande
nação-evocada em Os Lusíadas3(1572). Da mesma forma, Fernando Pessoa-que retoma o
espírito português audacioso no livro Mensagem (1934) em sua máxima potência ao
aventurar-se no mar que os navegadores julgam pertencer ao seu destino para alcançar as
glórias divinas e humanas-, e Gonçalo M. Tavares (à guisa de paródia) que na figura de
Bloom-protagonista de Viagem à Índia (2010)-visita uma Índia que não é mais a terra
idealizada.
Vale-nos comentar que não se trata de uma paródia, como em Gonçalo M. Tavares ou
uma evocação do espírito nacionalista como em Pessoa. A imagem a que recorre Almeida
Faria é a do viajante em busca de si mesmo, ou um viajante em busca de elementos para
entender a sua própria natureza - “Um só texto de original poética, interseccionista. 4 ”
(LOURENÇO, 2013, p. 9). Nessa ideia ele coloca toda a diferença da áspera viagem,
empreitada de Vasco da Gama – “Quando Camões aqui desembarcou, vir à Índia exigia (nas
suas palavras) uma travessia longa e áspera. Hoje viajar até tão longe apenas exige alguns
insignificantes sacrifícios5.” (FARIA, 2013, p. 21)-repleta de problemas e desafios naturais e
pessoais, realizada sob a égide da necessidade portuguesa e calcada nas mais difíceis
condições humanas de salubridade e convivência, mais tarde dissolvida num imaginário
melancólico e que exaltava a nobreza dos portugueses navegadores: “Original crônica de uma
menos singular viagem que é, sobretudo, viagem ao nosso próprio passado de gloriosos
conquistadores, agora só a braços com monumentos sem mais vida e leitura do que a da nossa
própria imperial nostalgia” (2013, p. 15), lembra Eduardo Lourenço.
Almeida Faria não apresenta nenhum herói já inventado ou descrito, é ele mesmo,
viajante que se desloca de Portugal (o “viajante ocidental”, como denomina) à Índia, visitando
Goa e Cochim. Simultaneamente recorre ao imaginário reconhecido por nós: Luís de Camões,
Gil Vicente, Sá de Miranda, Antero de Quental, Cecília Meireles, Fernando Pessoa e Gonçalo
M. Tavares entre outros evocados cada um à sua época, visão do mar e do espírito português
cantado em versos ou ficcionalizado em diversas narrativas - “Já foi à Índia antes de lá ter
ido, familiar da legenda imperial insólita que a viagem do Gama nos criou.” (LOURENÇO,
2013, p. 13). Esse imaginário coletado através das citações que compõem o diálogo proposto
pelo autor- revisitando passado e instaurando as imagens no presente-formam a identidade
de um sujeito múltiplo originado de todas as vozes que formularam a poética luso-orientalista.
Silvina Lopes Rodrigues, em Literatura, defesa do atrito, comenta da questão da identidade
de quem escreve e como ela é absorvida pelo texto quase que desaparecendo-“Enquanto
experiência, que nada tem de pessoal, nem de impessoal, a literatura ignora os limites estritos

3
Concluído em 1556 e publicado apenas três anos após o retorno de Luís de Camões do Oriente onde havia
permanecido por algum tempo.
4
Entrecruzamento de percepções e sensações. O interseccionismo teve em Fernando Pessoa um entusiasta em
1914, quando é publicado “Chuva oblíqua, poemas interseccionistas” de Fernando Pessoa, na revista Orpheu.
5
Almeida Faria contrapõe em O murmúrio do mundo a ideia do desconforto dos aviões (espaço, alimentação e o
mal estar pela viagem longa) à total insalubridade das viagens do tempo de Vasco da Gama e também cantadas
por Camões. Quando inicia a narrativa já comenta que “eram gente limpa” ao contrário dos portugueses que
desembarcaram das caravelas depois de uma tão longa viagem, tomados de doenças e parasitas.
253
da unicidade do sujeito e dá à experiência a natureza de uma multiplicidade incontrolável, em
devir.” (LOPES, 2013, p. 27). A obra, então, pode ir além da intenção do autor, e uma vez que
ele traz diversas vozes em consonância, pois tem como tema preambular a Índia, embora
sejam divergentes nos modos e componentes das suas visões, tornam-se tautócronas -
convergentes na fala do próprio narrador. E é essa narração que se modifica ao longo do
tempo, ela é o próprio processo do devir, da constante mutação da palavra, do objeto, do
sentimento. O murmúrio do mundo a que atende Almeida Faria é o chamamento de uma nova
perspectiva, distante da religião a ser implementada à custa de violência e opressão; das
propostas comerciais e exploratórias e da apropriação territorial e cultural. É uma experiência
física concomitante à montagem que propõe à própria memória: “ (...) os ouvidos tornam-se
mais atentos, as narinas mais sensíveis, reparo melhor em cada ser, em cada som ou cheiro,
sem saber se fico mais consciente de mim mesmo ou se o espírito do lugar toma conta de mim
e me dissolvo nele.” (FARIA, 2013, p. 20). A partir desse contato palpável com a cultura
indiana, num movimento sensacionista (perceber e sentir), uma nova Índia se configura no
pensamento de Almeida Faria: de uma variedade grande de religiões (que são necessárias para
sustentar o espírito frente às condições miseráveis da sociedade), também do sincretismo
religioso, do comércio inusitado e rápido, da peculiar gastronomia e das cores-elementos
que formam o quadro do sagrado-profano que alicerça a visão do viajante. Eduardo Lourenço
comenta em prefácio ao texto de Almeida Faria:

A viagem à Índia é para nós portugueses uma viagem a nenhuma outra comparável.
Para nós inaugurou um tempo para sempre fora do tempo. Um tempo destinado a ser
o único tempo da nossa História com a configuração de mito universal. Foi-o na
hora mesma em que lá chegámos. Como a viagem à lua, há meio século foi no
círculo desse acontecimento que nos demos então um passado grego e romano
idealizado que nunca tínhamos tido. Aquele que um poema converteu na única
memória que, desde então, nos serve de presente imemorável e eterno, ao mesmo
tempo. (LOURENÇO, 2013, p. 7)

Ao viajar por Goa e Cochim, o autor evoca a história da própria geografia local e a
relação com a dominação religiosa com a catequisação do gentio pela Companhia de Jesus e
também o tribunal do Santo Ofício com seus julgamentos e penas hediondas que se
contrapunham à beleza das construções dos prédios sacros e as imagens do santos: “Tive
dificuldade em imaginar que ali tivessem tido lugar julgamentos conduncetes à morte na
fogueira, segundo uma gravura em que esta igreja aparece apinhada de gente sentada em
bancadas, presenciando a sorte dos condenados, como num circo de crueldade.” (FARIA,
2013, p. 55).Ao longo de todo o texto, dividido em quatro partes, “Partida”, “Goa”, “Cochim”
e “Regresso”, ele passa à guisa de itinerário de passeio, pela memória portuguesa e indiana
conjugadas à força pela primeira:

O visitante ocidental que pela primeira vez chega a Goa e Cochim enfrentará
provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro de si. Quando começa a
familiarizar-se com a estonteante exuberância e com as contradições coexistentes,
quando julga começar a entender a complexidade das castas, dos cultos e dos
costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes, imagens, atributos aos
deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo confuso, como se o véu de
Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da Índia real. (FARIA, 2013,
p. 11)

Resultado da viagem de Almeida Faria à Índia em 2006, a obra conjuga os relatos de


cronistas portugueses da época das navegações, os textos de escritores e pensadores já citados
aqui, entre outros, para enunciar a diferença entre a revelação de uma nova Índia e a
254
comparação à Índia de séculos atrás.Todas essas visões ressaltam idiossincrasias exponenciais
da cultura hindu, tentam dissociar a visão atual - construída por Almeida Faria - da
perspectiva colonialista. O autor constrói a sua escrita a partir da ideia de um diário escrito de
maneira quase que em “fluxo de consciência” com anotações feitas de maneira rápida e
confusa:

Um outro olhar, a certeza de não pertencer aquele tipo de viajante que não fala do
que vê, mas do que imagina ou deseja ver. Trouxe comigo um bloco
confusamente escrivinhado, uma curiosidade acrescentada, uma crescente
descrença da elegância da descrença. E tornei-me mais atento à infindável
memória do mundo, mais capaz de escutar o incansável murmúrio do mundo.
(FARIA, 2013, p. 11)

Viagem composta de viagens (antigas, reais ou imaginárias), O murmúrio do mundo é


o resgate da memória colonizadora portuguesa, agora desvencilhada do peso da história e
disposta a ver e ouvir o mundo, que outrora era constituído de um desejo de dominação
incansável-“num difuso pulsar de existências passadas, pela memória cumulada daqueles
que antes de nós ali passaram” (2013, p. 20)- nas palavras de Almeida Faria. Conforme
Eduardo Lourenço:

Com a chegada e a estadia de séculos na Índia começava então a mais paradoxal


metamorfose que a história do Ocidente conhecera. Por misteriosa alquimia a
nossa ocidental praia lusitana conhecera, o mais paradoxal destino, o seu destino -
Álvaro de Campos, a de ser por dentro e pessoanamente, um «oriente a oriente do
Oriente». (LOURENÇO, 2013, p. 8)

Exemplo desse imaginário português, o próprio Fernando Pessoa apresenta em sua


obra influências e intertextualidades com o universo indiano, embora não tenha (supostamente)
visitado a Ìndia. Da ordem do simbólico e do mítico, diversas são as recorrências desse
orientalismo em Pessoa.
Toda a riqueza de uma Índia idealizada, de um Oriente sonhado em sua riqueza
cultural e mítica – “[...] de onde tudo nos veio e que tanto atraía tanta gente.” (FARIA, 2013,
p. 57) – agora percebida pelos sentidos de um viajante livre, mas consciente de seu lugar
histórico, ainda de acordo com Eduardo Lourenço, Almeida Faria visita esse mesmo espaço,
consciente de que já o conhece, sem ter lá ido – “[...] visitar o presente e procurar perceber o
passado” (FARIA,2013, p. 38), na legitimação da herança imperial da viagem de Vasco da
Gama e que em muito nos remete ao pensamento de Edward Said em Orientalismo – ao
reduzirmos uma nação a um determinado campo semântico ou imagens que servem de acordo
com a necessidade da representação – “[...] o Oriente adquiriu por assim dizer, representantes
e representações, cada um mais concreto, mais internamente congruente com alguma
exigência ocidental do que os precedentes.” (SAID, 2007, p. 101). Ao revisistar essa Índia,
Almeida Faria revisita a sua própria representação revestida de um estranhamento de algo que
lhe é familiar por aproximação do imaginário, mas que não é conhecida em profundidade.
“Mas que é uma cultura que mais que qualquer outra é tão autocentrada, tão densa de
temporalidades diversas, tão unificadas por dentro como se sozinha fosse para ela mesma e,
sobretudo para nós, um outro planeta.” (LOURENÇO, 2013, p. 12). Para os portugueses
contemporâneos, mesmo ainda que se proponham a uma reivenção ou renovação desse
imaginário, o que é de comum conhecimento ainda representa a Índia:

Mahatma Gandhi, Ganges, Gama, Goa, Buda, guru, Vedas, Ayurveda, karma,
Kama Sutra, Mahabarata, encantodores de cobras, faquires, elefantes, tigres de
bengala, vacas sagradas, fogueiras crematórias, yoga, mantra, dharma, castas,
255
párias, Taj Mahal, Akbar, palácios de rajás turbantes e joias, pedras preciosas,
diamantes rosa, colares, pingentes, braceletes, sedas, saris, caxemiras, açafrão,
Assam, Darjeeling, caril, gergelim, hinduísmo, hightech, Meca, Calcutá,
Bollywood, Bombaim, Benares. (FARIA, 2013, p. 20)

Todavia, da mesma forma que os portugueses modificaram-se ao longo de séculos, os


indianos também o fizeram, embora suas crenças ainda sejam as mesmas (fundamentos
religiosos, culturais e sociais), a Índia sofreu uma grande invasão ocidental, que perpetua nas
antigas construções destinadas à Igreja que convive com o ambiente cosmopolita. À história
de Portugal e suas personagens gloriosas restaram as prateleiras empoeiradas de uma livraria
antiga-“portugueses que há muito ninguém lê, postais maltratados pela humidade e pelo sol
intenso” (FARIA, 2013, p. 69). A toponímia das cidades, Goa e Cochim, também identifica o
passado da convivência lusa: “Na toponímia e nas tabuletas de profissões e oficinas abundam
nomes conhecidos: Rua Luís de Menezes, Rua 31 de Janeiro, Rua Gomes Pereira, bairro de
São Tomé, das Fontainhas, Casa Pino, Monte Altinho, Ponte dos Patos, Regato de Ourém.”
(FARIA, 2013, p. 69). A língua portuguesa também tem seu estatuto modificado, já não era
falada pouco depois da libertação de Goa. Portugal também tornara-se memória.
Maria de Fátima Outerinho, em seu ensaio “Do lugar do(s) mapa (s) e seu relato ou
muito para além de um atlas oficial”, comenta: “a experiência da espacialidade se faz pela
evocação-invocação de leituras múltiplas, de outros textos, de camadas de múltiplas
leituras”(2016, p. 196). Essa experiência de espacialidade que acontece em O murmúrio do
mundo é uma experiência pré-organizada pelo imaginário português. É o espelhismo a que se
refere Eduardo Lourenço-“ espelhismo singular e capital da consciência e a leitura do nosso
destino de portugueses na história do Ocidente.” (2013, p. 13). Ao recorrer, numa proposta
intertextual, a demais autores de diferentes épocas, Almeida Faria organiza um mosaico de
imagens, sensações (e expectativas) e informações para construir um novo imaginário, no
papel de um sujeito movido pela curiosidade e não pelo empenho conquistador e colonialista.
A carta do mundo de que nos fala o mesmo Eduardo Lourenço em A nau de Ícaro,
pensada pelos portugueses como mapeadora do português como língua, cultura e ficção é
construída agora de uma outra maneira: pela temporalidade que trouxe ao homem português
contemporâneo a capacidade de visualizar a Índia fora dos seus domínios ancestrais. Em
ensaio “Errância e busca num imaginário português” na mesma obra, Eduardo Lourenço
comenta da ficção portuguesa e o sentido dessa revisitação à Índia:

É natural que seja no espaço da nossa ficção, quero dizer, da portuguesa, que
mais fundo se manifeste uma espécie de nostalgia imperial, uma exigência da
unidade, ou melhor, de uma universalidade simbólica, suscetível de nos inventar,
em termos novos, aquela Atlântida submersa, ou mesmo perdida, que
imaginávamos possuir e habitar nos tempos em que chamavámos “o mundo
português”. (LOURENÇO, 2001, p. 111)

Maria de Fátima Outerinho afirma, no artigo citado anteriormente, sobre a obra de


Almeida Faria e sua revisitação à Índia, resultado de uma experiência cultural financiada pelo
Centro Nacional de Cultura – projeto que preoconizava a ideia Os portugueses ao encontro da
sua história:

Assente em processos dialógicos, a construção textual deste texto de viagens de


Almeida Faria aciona diferentes movimentos: do hoje para ontem ou do ontem para
o hoje, do texto do narrador-viajante para o texto do (s) outro (s) – ou no seu
movimento inverso – quase sempre não identificado, o itálico como modo de
apontar uma autoria outra, resultando afinal num diálogo de várias vozes, numa
escrita à várias mãos, numa aproximação de experiências ligadas à temporalidades
distintas. (2016, p. 198)
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Catarina Nunes de Almeida, em seu texto Goa no itinerário íntimo dos poetas
portugueses contemporâneos, aborda a questão da Índia como ocupante do imaginário
português desde muito tempo, num lugar privilegiado, pelo fato de ter sido o primeiro lugar
conquistado pelos portugueses:

Apesar de a Índia figurar no imaginário poético da primeira metade do século XX


português, nenhuma referência àquele espaço parece ser consequência de
experiências de viagem concretas, factuais: nestes casos, o eterno retorno à Índia
assume um carácter simbólico, associando-se sobretudo a um processo regular e
contínuo de interpretação de Portugal e de uma ideia de Nação ou de Império, que
atravessa a poesia portuguesa. (2016, p. 202)

Aqui, recorremos ao sentido de literatura como prosa e poesia, uma vez que as
narrativas também recorrem a esse imaginário, do orientalismo português, e que faz arte da
nova descoberta da Índia ou a revelação de uma nova Índia-a do século XXI. Para Eduardo
Lourenço, a interpretação “viagens à Índia” é: “Como europeus, todas as viagens à Índia,
desde a nossa de primeiros buscadores por mar das suas maravilhas de engenho, de raridades
naturais para nós desconhecidas são sempre regresso ao que não sabíamos que éramos [...]”
(LOURENÇO, 2013, p. 10). Ainda, Catarina Nunes de Almeida comenta:

A chegada à Índia impôs (e impõe) um novo entendimento do espaço, mas


também um novo entedimento de tempo, no sentido que assinala o nascimento do
Novo Mundo e a retificação do Velho Mundo-representa mais do que um marco
para História, ela funda uma medida na descoberta do homem pelo homem e,
mais do que nunca, volta a unir o percurso do humano à instância do divino.
(2016, p. 211)

Eduardo Lourenço, em O novo espaço lusófono ou imaginários lusófonos, ensaio de A


nau de Ícaro, assinala:

É certo que todo o patriotismo, o mais legítimo, comporta uma parte de adesão
irracional à nação que é anterior a nós e nos define antes que nós a definamos. De
uma nação faz parte a diferença que a constitui como tal em relação às outras. A
perversão consiste em outorgar amor a uma perpetuação dessa diferença um
estatuto mítico que a estabelece numa espécie de exemplaridade ou modelo de
que o outro ou todos os outros, povos ou nações não seriam mais que imperfeitos
ou lamentáveis esboços. (2010, p. 188)

É nesse novo mundo ou imaginário que Almeida Faria faz a sua viagem. Silvina
Rodrigues Lopes, em Literatura, defesa do atrito, fala da interpretação e do sentido que
queremos dar à determinada obra: “As consequências das obras literárias e das suas
interpretações são sempre indirectas, as das primeiras mais incalculáveis que as das segundas
(é, como vimos, uma questão de destinação e de retórica).” (LOPES, 2012, p. 44). A partir do
pensamento de Silvina, ancoramos a pergunta sobre O murmúrio do mundo: é uma obra
destinada a reconhecer um espaço físico como manutenção de um imaginário arcaico e
ultrapassado? Há uma determinada consequência esperada como resultado da leitura do texto
de Almeida Faria? A intenção se clarifica quando percebemos a arquitetura do texto que
“reaproveita” ou conversa com as outras Índias portuguesas e os seus simbolismos. “As
ficções tem a sua própria lógica” (2007, p. 101), lembra Edward Said em Orientalismo.
Existem diversas Índias em Almeida Faria. Existem diversas Índias na literatura portuguesa e
podemos dizer, norteados pelas palavras de Eduardo Lourenço, que a nostalgia sempre irá
resgatar alguma dessas visões do Oriente. “Mas há Índias e Índias, cada um vê a sua. Talvez
257
nenhum de nós, nesta viagem, tenha visto as mesmas coisas” (2012, p. 108) - enuncia
Almeida Faria em O murmúrio do mundo, evocando Fernando Pessoa, ao lembrar que a vida
é o que fazemos dela, e que as viagens são construídas pelos seus viajantes: somos o que
vemos. Para terminar sobre a ideia de imaginário lusófono e ideia contemporânea do passado
de Portugal, recorremos a Camões-a origem de tudo o que hoje se percebe como memória
das navegações e das conquistas: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.” Nem a
viagem, nem os viajantes são os mesmos, talvez o lugar de destino também nunca o tenha
sido.

Referências:
ALMEIDA, Catarina Nunes de. Goa no itinerário íntimo dos poetas portugueses
contemporâneos. Via Atlântica, São Paulo, n. 30, p. 201-212, 2016. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/114813/121969>. Acesso em: 26 oct. 2017.
FARIA, Almeida. O murmúrio do mundo. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2013.
LOPES, Silvina Rodrigues. Literatura, defesa do atrito. Belo Horizonte: Chão da Feira:
2012.
LOURENÇO, Eduardo. A nau de Ícaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______. Duas viagens. Prefácio de O murmúrio do mundo. In: FARIA, Almeida. O
murmúrio do mundo. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2013.
OUTEIRINHO, Maria de Fátima. Do lugar do(s) mapa (s) e seu relato ou muito para além de
um atlas oficial. Cadernos de Literatura Comparada, Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa, n. 34, 2016, p. 191-203. Disponível em: <http://www.http://ilc-
cadernos.com/index.php/cadernos/article/view/353/357>. Acesso em: 26 oct. 2017.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de
Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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