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*Por que mulheres tém tantas queixas na esfera do amor? De se sent em ndo amadas, de nao receberem tanto afeto quanto gostariam ou Sa Ceuta ieee Cents Rune ee cc eae aes eae eee er eae Re etre eeeety Pe oie eeu ee een nee dos demais? E, de outro lado, por que os homens, diferentemente das a ee cee ea eee eee eto seco ae ea Peo scien et een et Perea ee eet tee eet rae Valeska Zanello, nortearam a escrita deste livro. Como ela mesma ressal- Pe ae eee eer ete rar Ce et es eee pele es cee a eee ainda estamos longe de desconstruir. Assim, como conceber categorias eee aac a a Gre eee eS a ok aM DSR uee a ace ces Sc oa ate as afetivas sao utilizadas?’. O presente livro é fruto de 20 anos de exper Pee etc Cen renee cuttin sob a perspectiva de genero, por parte da autora. Valeska Zanello, profes eee en eee ocr ic cnet eee rete etece ee eee et rete et icecream Rena como, atualmente, homens e mulheres se subjetivam, sofrem e se expres er ec eae NM Cais ——— Saide meatal, e generer Valeska Zanello EN CoCem rete inet género e dispositivos - SAUDE MENTAL, GENERO E DISPOSITIVOS Cultura e processos de subjetivacao ec enB 7870 “ant vale ‘Scie ment gdero edpostos: aura eprocezes de subeasso/ ‘esta ane = Cra: Apes, 208, soipi23em (si inca gras 1. Sade Memal 2. Alas de gtr 3. secterp The Sée Valeska Zanello SAUDE MENTAL, GENERO E DISPOSITIVOS Cultura e processos de subjetivacao Aeris Curitiba - PR 2018 tors Apes, eden Capyighne 208 aoe Diets de Elo seat Fs Ape ie, FICHATECNICA COMITE EDERAL Anis baa Gouves- USP FDTORAGAO. seen Sexe sheen DINGRAMACKO. Andes bed CGERENCIACOMERCIAL tlae de nance GERENCIADE FINANEAS Simo ra errand le GERENCIAAOMIUTRATIN, og COMUMEAGAO Caton ar ‘COMITE CIENTIFICO DA COLEGKO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAUDE E MUMANIOADES DIRECAO CIENTIFICA 0c Doors Mics Gonges(Unan) ‘ONSULTORES an Oe ead) ‘nmr Rayman UP) ‘we cls Pots ON ani Bra Ln ere) ter Ria (8) ona Ute asians 2a HC) nerd Ferns ees) ie aor ere (9) ‘A lmagem da capa deste lvro ndo fol escolhida aleatoriamente. Tata-se de um quadro ‘que pertenceu por muitos anos a meus avés maternos. Meu avd, que adorava objetos de arte, omprou-o em um mercado na Italia. Ee esteve pendurado, desde entao, ora na sala de visitas, oo perto da mesa na qual a grande familia que eles tiveram se reunla para {fazer suas refeigbes. Esse quadro tem uma histéria aparentemente engracada, mas no ‘fundo portadora de muitas evelagoes sobre a nossa cultura, eo espaco e os saberes das mulheres. Meu ave era um homem muito carinkoso, mas, de familia italiana e bastante ‘eligioso, encarnava, como quase tados os homens de ua época, o patriaca, Tudo dentro da prescrto, ndo fesse minha avé uma potencial revoluciondri, nascida em uma “fazenda, no Interior do Espirito Santo, Els se casaram no terceire encontro que tiveram, ‘No primeiro, minha avé era noiva, mas desmanchou 0 noivade para ficar com o homem que, nas palavras dela, arrebatou seu coragdo. Seu enxoval de casamento jéestava quase ‘pronto. Oex-nolva se chamava Alberto e em todas as roupas de coma e banho, minha ‘avé havia bardado A & M (Alberto e Mari). Com a guinada de destino que seu coracdo -2painonado the dev, ndo teve dvidas em remendar oA em O, transformando todo 0 ‘envoval em 0 & M (Oswaldo, nome do meu avé, e Mara). Isso jd é uma parte da historia, ‘Minha avé oprendeu, assim como varias ou a maior parte das mulheres de sua geracao, ‘a contornar mal-estares, a se responsabilizr em evitar qualquer descontentamento naquele que era seu parceiro amoreso, Voltando & histéria do quadre. Em uma das viagens a trabalho do meu ave, meus tios, entao adolescentes, pediram para minha avé para que os deixasse realizar uma festa dancante para os amigos, em casa. Meu avé era ‘um homem rigido, om valores moraissexistas e sua auséncia seria a oportunidade de 0s filhos se divertirem de forma mais livre. Minha avé, como quase sempre, consent, € ‘casa virow uma algazarra, Uma de minhastias retirou entao o quadro da parede, para imagem recuperate erm aforfzoy, de btipeihwon google com rserch?q-charcotshisterisBrlersCAh, NG enbii=28Rr2akespr-28bineb56bin6baBsoorce-Inmaktom-isceaeXEvedoahUKEW20¥OT IKRARUBLIAKHeaxAtOO_ AUIBIQBA#imgee=NyALKRSGRZMMA. 20 vasoeaznet9 criadas pelos homens, do casamento a lei, que confinaram e confinam as mulheres, e as deixam loucas. Segundo essa autora, nos uitimos sé- culos 0 homem foi identificado 4 racionalidade e a mulher & figura da insana, nesse caso em uma dupla polaridade: a loucura como um dos erros das mulheres e, por outro lado, como a prépria esséncia feminina. Neste ultimo sentido, Showalter (1987) aponta o quanto a loucura tem sido mais experenciada por mulheres do que por homens e que, mesmo quando a loucura € vivenciada pelos homens, é metaférica e simbolica- mente representada como feminina, Omomento histérico da criago dos manicémios iniciou os grandes, debates acerca da classificagao nosoldgica dos tipos de alienagao. Alm disso, 0 século XIX foi um periodo de grande transformago na epistemo- logia da clinica médica em geral, quando ocorrev a passagem da tradicgo classificatéria taxondmica para uma busca etiolégica (Foucault, 2004). A psiquiatria permaneceu como um filho bastardo, pois, naimpossibilidade de encontrar uma causalidade certa para as doengas da alma, fixou-se cada vez mais em uma pratica descritora e classificadora das supostas patologias, sendo que essa classificago pautava-se, muitas vezes, por valores morais. No Brasil, Engel (2004) realizou uma importante pesquisa sobre a pratica psiquidtrica e as mulheres no final do século XIX. Em seu tra- balho exegético de prontudrios de casos reais de internacao psiquidtrica nessa época, a autora encontrou situagées diferenciadas para o diag- néstico de doenga mental entre homens e mulheres. Para elas, as razOes agrupavam-se sobretudo na esfera da sexvalidade (fora do casamento, 1n3o contida, com fins ndo reprodutivos) e o rompimento de um ideal de maternidade; no caso deles, tratava-se de desvios relativos aos papéis sociais atribuidos aos homens, qual seja, ode trabalhador e provedor. No entanto, como destaca a autora, lugar de ambiguidades e espaco por exceléncia da loucura, 0 corpo €¢2 sexvalidade femininos inspirariam grande temor aos médicos & 205 alienistas, constituindo-se em alo prioritério das intervengBes, ‘normalizadoras de medicina eda psiquiatea" (Engel, 2004, p. 333). No organismo da mulher, em sua fisiologia especifica, estariam inscritas as predisposides ao adoecimento mental “ nferente, e553 & uma letra que ainda se faz muito presente na contemporaneldade, sobretudo nas AGC en cot oIsosos: Cts proces de base an Segundo autora, a constracio da imagem feminina a prt da naturezaedas suas es implicara em qualfiear a mulher como naturalmente fréal, bonta, sedutora, svbmissa, doce, etc. Aquelas que revelassem atributos copostos seria consideredasseresantinaturas Engel, 2004.32). Com 0 advento da criagdo dos neurolépticos, na década de 50 do século XX, fortaleceu-se ainda mais a pratica taxonémica, com 0 surgimento e a disperso cada vez maior dos Manuais de Transtornos Mentaist, os DSMs Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Rodrigues, 2003) ~ e 0s CIDs ~ Classificagdo Estatistica Internacional de Doencas e Problemas Relacionados com a Satide. Se antes 0 louco era confinado, agora a ideia de patologia, de “transtorno mental”, passa a ganhar campo dentro da prépria normalidade. Ou seja, hove uma pa- tologizagio da vida: no continuo entre 0 normal e 0 patolégico, ocorreu um processo de patologizacao do normal (Maluf, 2020)°. O discurso do sujeito em sofrimento passou a ser traduzido em termos de presenca/ auséncia de sintomas (identificados pelo especialista), tais como os des- critos nos manuais, caracterizando-se por uma légica binaria (Zanello, Macedo & Romero, 2023). Exemplos de perguntas realizadas nas entrevistas psiquiatricas e o que se busca aprender por meio delas Como voce se chama? (ou quem é vocé?) (auto-orientagdo, também deliio) Voct sabe que dia & hoje? M&s? Ano? (para ver orlentagao temporal) Vocé sabe onde esté? (orientagao espacial) Voeé escuta vozes? (alucinacao auditiva) Vé flminho passando pela parede? (alucinagao visval) Acredita que alguém queira te fazer mal? (delirio) Para perfazer um transtorno, 0 “paciente” deveria “apresentar” um ndmero minimo de sintomas, por certo periodo de tempo. No entanto pesgies em ranstoma de hurr aja fase €predorinantemente a de base iligc-hormona (Dates Zane, subret). Otero “tension” Eum tema técnica pra padres problemstices de comportamento tomate popula: pelo DSM, Sus unde &Uketamenterelaonada a sua ambigudade Est ene dos conceos ene Fen de doongae de sindrome mayer, 994), Subentendese am seu uso que fnalmente, os transtrnos Psquics sso mapeodos em deta Mas hoje o mopeamanto ete nossos modelos eis dep lage fiologl, Cenges culties evloes podem fazer via ou our fngao al procminente © os levaravecrganizr nasa nosoogia. com medealzaio, couse tom ota forme de controle do sujet, por mel da mordasa qui essa compilagio de sintomas, tal como descrita nos manuais, apresenta limitagGes, sob uma perspectiva de género. A primeira delas diz acerca do gendramento dos sintomas (Za- nello, 2014). Um exemplo classico & 0 choro, cuja expressio é inibida so- cialmente em homens, mas nao apenas permitida, como até incentivada em mulheres, em culturas sexistas. Destaca-se que “choro” é 0 exemplo dado nos principais manuais de classificac3o diagndstica para o sintoma “tristeza”, para diagnosticar o transtorno mental da “depressao”. Seria & toa que indices epidemiolégicos desse transtorno sejam mundialmente bem maiores em mulheres? Ao definir os sintomas que compéem certo transtorno, sem uma critica de género, pode-se criar um olhar enviesado que hiperdiagnostique transtornos em certo grupo e invisibilize-os em outros. Além disso, os resultados epidemiolégicos acabam por natura- lizar diferencas construidas culturalmente, as quais deveriam ter sido problematizadas na base mesmo de definicao do transtorno. Phillips e First (2008) e Widiger e First (2008) apontam duas ten- déncias teérico-praticas atuais, levando em consideracao a tentativa de superar essa limitaco (sem se desfazer dos manvais): de um lado, ha ‘quem sugira que haja descricao de sinais e sintomas de certas sindromes de forma diferenciada para homens e mulheres; por outro lado, ha quem aponte que a diferenca deveria ocorrer no nimero de sintomas neces- sérios para perfazer a sindrome, caso fosse um homem ou uma mulher. ‘Apesar da existéncia dessas criticas, realizadas, sobretudo, a0 DSM IV, no houve mudancas significativas nesses quesitos no DSMV. A segunda limitago toca o problema do questionamento do que é considerado como sintoma (e, portanto, 0 que aparece na queixa do pa- ciente): em geral, s80 aspectos que entram em conflito com certos scripts sociais/ideais calcados nos valores de género e por meio dos quais 0 su- jeito se constituiu (Zanello 2014a). 0 incémodo e o sofrimento surgem, muitas vezes, pelo descompasso com esses ideais’. Como terceira limitagao, precisamos considerar os valores e ideais de género do préprio médico (mas também do clinico ou profissional de sade), pois 0 sintoma, apesar de vir na queixa do paciente, é inter- 7 Segundo Brinkmann (208, conftosedscrepancis poder leva ao sorimento identi, em sus mit pls nies: socetaro atointerpetative exp soci esutowterpretatwo Impl; ndvidal utinterpretatve expo por fry nvidul eauoiteprtato mpl, Aoseo vs, pode aver va berture par passogem ao sofrment &conscineadegéneo, como veremas no dacover este ir. sA0DE EN CRO POSTS Ctr eprcnser de bee 2% pretado pelo profissional. Em savde mental, o diagnéstico do médico do 6, jamais, um ato neutro e nem baseado em um processo de mensu- rago. E um ato de julgamento moral, como afirma Thomas Szaz (2980) € como podemos ver em trabalhos de exegese de prontuarios psiquiatricos (Engel, 2004; Zanello & Silva, 2012; Campos & Zanello, 2026). Nesse sentido, 0 que seria uma “sexvalidade exacerbada” ou “um excesso de agressividade"? O parametro utilizado geralmente pelos médicos (e pro- fissionais de sade) seriam os mesmos para homens e mulheres? E esse pardmetro, invisivel, acritico, profundamente gendrado, que precisa ser questionado, refletido, problematizado; pois ele é a “ponte” entre os manvais de classificacdo, o efetivo diagnéstico e qualquer possibilidade de tratamento a vira ser oferecida. Chesler (2005) destaca, nesse sentido, por exemplo, que, na década de 70, as mulheres americanas confinadas em instituigdes de satide mental eram uma espécie de heroinas rebeldes contra os limites apertados de um ideal de feminilidade, condenadas por sva busca de poténcia, cujo estigma de insana se dava pela quebra das normas de género. Em outras palavras, “a loucura tem sido a etiqueta histérica para © protesto feminino e a revolugo” (Showalter, 1987, p. 5). A “loucura” poderia aqui ser compreendida como uma comunicagao desesperada de falta de poder, interpretada sob um prisma gendradolmoral acritico. ‘Além disso, 0 que se observa é que houve, historicamente, uma confusao semiolégica na Psiquiatria, na qual signos simbilicos passaram 2 ser tratados como signos indiciais (Martins, 2003; Zanello & Martins, 2010). A légica indicial funciona mediante a operago que concatena efeito e causa, ou seja, parte-se de um efeito para se implicar uma causa, © que funcionaria bem para 0 campo das doencas fisicas, corporais. Nesse caso, os sintomas séo imediatos, ou seja, sem mediagio da lin- guagem, da cultura, e do préprio processo de semiosis do sujeito. Sao mais facilmente universalizveis e podemos encontrar sintomas patog- noménicos, isto é, sintomas que, quando presentes, apontam necesséria e biunivocamente para uma Unica causa ou doenca, J légica simbélica ¢ aquela mediada pela linguagem e que lida com a arbitrariedade dos signos. Aqui encontramos a formag3o sim- bélica dos sintomas, to presente no campo especificamente da psico- patologia, tal como apontado pela psicanilise freudiana (Freud, 19743; 1» asa za Freud, 1974 b). Hd a necessidade de qualificar a linguagem e a cultura na mediagao da formacao de tais sintomas'. ‘Um exemplo de formacao simbélica do sintoma pode ser retirado da prépria obra freudians “Minha observacao de Frau Cecily M. proporcionou-me a oportunidade de fazer uma coletnea regular de tais simbolizacdes. Todo um grupo de sensagées fisicas que ordinariamente seria consideradas por causas or- ganicas eram, no seu caso, de origem psiquica, ov pelo menos possuiam ‘um significado psiquico. Uma série especifica de suas experincias foram acompanhadas por uma sensacio de apunhalamento na regio do coragéo (significando ‘apunhalou-me até o coracao’)(..) Dores dessa espécie eram ogo dissipadas, quando os problemas em jogo eram esclarecidos. Junto com a sensacao de uma ‘aura’ histérica na garganta, quando aquela sen- sagdo surgia apés um insulto, encontrava-se o pensamento ‘terei que en- goliristo’" (Freud, 1893-2895, p. 230). Diferentemente dos sintomas regidos pela légica indicial, 05 sin- tomas simbélicos podem se transformar no decorrer da hist6ria, so me- tabléticos (Van den Bergh, 1965).Além disso, esses tipos de sintomassio ‘também formas expressivas que refletem os mundos locais de sentido (Martinez-Herndez, 2000). Martinez-Hernéez (2000) ressalta, assim, a necessidade de se passar da pergunta “qual a causa do sintoma?” para “qual o sentido do sintoma?™. Para acessé-lo, & necessario qualificar tanto a experiéncia bio- gréfica do sujeito (e como ele entendefinterpreta seu sofrimento), a partir de uma escuta qualificada de sva fala, quanto os sentidos sociais, culturalmente partilhados pela comunidade da qual faz parte. Aqui é necessério destacar que a Psiquiatria possui varias linhagens, com en- foques e compreensio dos sintomas e do sofrimento bem diferenciadas, ‘0 que leva a praticas também distintas. Em um extremo, temos a psiquiatria biolégica, cuja epistemologia facilmente confunde semelhanga de sintomas com a universalidade do funcionamento anatémico/fisiolégico do corpo, atribuindo certas formas prevalentes de sofrimento (em homens e mulheres), na contem para se aprofundar nessa dicussi0, ver Zanllo (20078) « Martins (2013), que abordam essa temética em uma perspec pscaalec. SADE neyAL, cheno SPOSTTOS Cts pct debate 25 poraneidade, a seus sistemas orgSnicos. A propria linguagem ¢ tratada como objeto de escrutinio de alguma disfunc30, mais do que fruto do trabalho de semiosis do sujeito e, portanto, como repleta de sentido. No outro extremo, temos a psiquiatria cultural, a qual, a nosso ver, oferece subsidios para uma aproximaco e compreenséo cultural/social do sofrimento. A propria adocao da ideia da plasticidade corpéreo-cerebral, nessa vertente, apresenta pontos importantes para a reflexéo e a pes- quisa, que aqui nos interessa, do que é tornar-se pessoa homem e mulher ‘em sociedades nas quais 0 sexismo persiste em maior ou menor grav. A Psiquiatria Cultural aponta que hd um processo no qual o mundo social é transmutado na experiéncia corporal e/ou mental, sendo que a prépria eleigo do palco privilegiado para a formagio de sintomas (mais s0- maticosoumentais) depende do contexto culturale do momento histérico”. Nichter (1981) destaca que o sofrimento pode se expressar por meio de varias linguagens e que aquilo considerado classicamente como “sintoma” (em uma linguagem biopsiquistrica) é apenas uma delas™. Para esse autor, as linguagens do sofrimento (mal-estar) séo miitiplas e se constituem como respostas plausiveis, adaptativas, ou tentativas de resolver uma situacdo patolégica em uma dirego culturalmente signifi- cante: “Idiomas de aflicao (sofrimento/mal-estar) so meios social e cul- turalmente ressonantes de experenciar e expressar afligo(mal-estar em mundos locais" (Nichter, 2020, p. 405). Sua ideia de “idiomas da aflicgio” (sofrimento, mal-estar) serve para pensar nao apenas “os outros” no ocidentais, mas nossa prépria cultura (Nichter, 2010). Como ele mesmo afirma: “Diagnéstico e sistemas de tratamento nao se desenvolvem in- dependentemente da matriz cultural que dé forma & experiéncia e 8 ex- pressdo do mal-estar” (p. 402). * Aplquatria ural “e mantém ems uma encruzihada que concern 20 impacto dacaltura no comport sero ena expen” (mayer, 007, ps, algoFunéamerta o campo da psicopstologi. Para Kima {er lasoa pqtia clara eer de cnc sole da medina pr ear premoriamente quads Paloimpertive clinco. " Rpronmamanos aquida Piqua Tanscltural da Escola de McGil « Enemplos dados pelo ator, em sa pesquisa na socedade Inna, so: comensaldae, per de pes, Jejum, envenenamento, pres, obresrSoe ambivalent. O mada como apessoa seaconaleage certs "Sntomar’, quanto a enfatzaemaisfala, teaver coma padonzacao cultural com as rengasepste- roles ve podem sr egioss, centica et, Ham inerjogs entre catraesintomas, de acordo com "vinta de valores determunantes. Em artigo mairecente Meter, 2010), o autor lenou, a porte de fon expels cline, algon comportamentos que ten serido como iomas de afgSemal-ear: com portamento de tomar emésos sro «retormulagio da nomencatrabiomacca da Gowna; uso de estes ldagndsios burea de médicos ou setemas de saide; mudangas no padao de consumo 2 vars znu0 Assim, temos, de um lado, tanto a criago de quadros/modelos de compreensao e classificacao dos sofrimentos (e etnoterapias para tra- té-los), dentro de determinada cultura, quanto a configuragio e mani- festagdo da aflicdo psiquica em certos quadros passiveis de serem iden- tificados e reconhecidos (legitimados) culturalmente como sofrimento (Borch-Jacobsen, 2023). Trata-se de dois lados da mesma moeda. Para entender a ligagdo entre esses fendmenos, devemos levar em consideragio os aportes tedricos trazidos por Shweder (1988). Se- gundo esse autor, faz-se mister diferenciar dois tipos de fenémenos: os de tipo natural e outros que so categorias intencionais. Os primeiros apresentam uma causa que independe do sentido que possuem para nés ou de nosso envolvimento, avaliagao ou experiéncia com o fe- némeno. As categorias intencionais, diferentemente, tém uma relagso causal ligada 8s nossas representacdes, concepgées e aos significados/ sentidos construidos. lan Hacking (ag95) propée, a partir desta diferenciacdo, acategoria tipo “interativo humano”. Esta, diferentemente dos “tipos naturais” (li- gados a fatos), seria carregada de valores. Esses valores acabam por pro- duzir uma ideia de “normalidade” (desenvolvimento “normal”, reacéo “normal’, sentimentos “normais", comportamento “normal” etc.) e, no caso de alguns grupos alvos de “descrigio cientifica”, criam-se os “des- viantes" (geralmente compreendidos como “maus”) Um exemplo da categoria “tipo natural” seria a molécula de dgua: independentemente do que vocé pense ou seja afirmado sobre ela, ela manteré a mesma estrutura quimica, aqui ou em outro planeta com qua- lidades atmosféricas semelhantes. Por outro lado, um exemplo da ca- tegoria de “tipo hurnano” seria a “criag3o” da pessoa do autista ov do homosexual, em determinado momento histérico. No caso do “homos- sexyal", trata-se de pensar que certo comportamento sexual (dentre tantos outros possiveis) passou a definir um tipo humano (a partir do fim do século XIX), 0 qual passou a ser objeto de estudo e de descrigo cientifica peculiar. Essa descrigo teve influncia na constituigio da au- tocompreensao das préprias pessoas descritas, de sua vivéncia identi- téria®, ressentida, em muitos casos, como patolégica. ™ Parindo ds contibuigbes da flosofa de Foucault, become da Hermentutia emuma vetete ees {giana egadamerana (par os quas 0 Dasen sempre se encoira numa pré-compreansioavtoimplatv, fue se descoahece), Siaknann (2008) aponta que no nicleo da la de eentidade exste a autonterpre ‘dpe noni, chen EspocTiGs can pce slehte 7 © que ocorre & 0 looping effect (Hacking, 1995): uma tendéncia de que categorias criadas utilizadas para entender e pensar comporta- mentos, atos e temperamentos humanos (pelas ciéncias sociais e hu- ‘manas) se tornem reificadas ¢ institucionalizadas como fatos sociais. Se- gundo Hacking, so criagdes humanas que dao sentido a determinadas experiéncias, e que tém como consequéncia alterar a prépria vivéncia delas. Trata-se de uma ficcdo, porém performativa. Criar novas formas de classificagao é, assim, mudar também a forma como nés pensamos em nés mesmos, mudar nosso senso de autovalor e a maneira como lembramos/descrevemos nosso passado. Como Hacking (1995) mesmo afirma, tipos humanos bem estabelecidos pelas ciéncias sociais e hu- 'manas afetam intensamente nossas preocupagées sociais (e pessoais). Segundo Hacking (2995), as caracteristicas da categoria dos “tipos humanos” seriam: a) tipos que séo relevantes para alguns de nés; b) tipos que primariamente ordenam pessoas, suas ages, seus comporta- ‘mentos; c) tipos que sdo estudados nas ciéncias humanas e sociais, ou seja, que esperamos ter conhecimento sobre; d) destaca-se, ainda, 0 efeito que estas categorias tém sobre os sujeitos por elas descritos. Por outro lado, ao criar “identidades" para certos grupos, looping effect também traz a possibilidade de que eles possam “lutar” contra a descrico cientifica em tela e modificé-la, como foi o caso da extingdo do “transtorno mental’ “homossexvalismo", do DSM, fruto das lutas dos mo- vimentos LGBTs. Também traz a possibilidade da luta por certos direitos politicos. Nesse sentido, o looping effect no é necessariamente algo ruim. Movimentos que lutam por avancos sociais, que aprovamos, fazem parte do jogo (Brinkmann, 2005). Quanto maior a conotagdo moral da classifi- ‘cacao do “tipo humano", maior 0 potencial para o looping effect. lan Hacking (ag95) deixa em suspenso o quanto género e raca so categorias do tipo “interativo humano”” Seu argumento é de que as estu- diosas de género se atém pouco as discussdes da drea biolégica, aquela ‘aslo. Nio sb so, segundo ele, 58 podemos ter Wenidad se estamos comprometidey,sibamos ov 80, ‘om questées de valor moral-Ou sa, com o que ns apsca a defni-o que & nportante pore nos Tet \dentiade nesse sentido, concere nertanto so qe oct ox, mar a0 Toga’ use erence O set Ssntido de quem nés somos igo ao todo que nos € dado solamente, baseado er trades, pitas ompartinads,nsttugce, magia sociale nfo apenas em escaha pesioelsow por meio autre xo, Asin, como pessoas, "ne teros apenas eseos, mas dees sobre unt Sees te (09) Desse Forma, a autinterpretagiowenttdna nao seis algosomentecnscente Tefen, mas incr ambien ‘lmentos de saber, prices corpora «emagSes, Ness sertide crate de “tos humnenes” tem come tum dosloging effects interpelarideridadesAo mesma tempo, pracasineicionose madangas mates podem mbar aso que se dedica aos fenémenos da categoria tipo natural. O autor parece ter permanecido na segunda onda de debates feministas (a qual ve- remos no préximo capitulo), na qual sexo é entendido como categoria irredutivel corporal e género como construcao social. Aqui é necessério apontarmos nossa divergéncia em relaco a esse autor. A prépria com- preensao bindria do sexo ja é uma leitura de género, histérica e cultural- mente localizada, cujos efeitos se fazem sentir na prdpria construcao da corporeidade vivida e de suas performances. Ou seja, género deveria ser pensado como categoria do tipo “interativo humano", cujo looping effect atua desde os primérdios da concepcao, passando pela escolha do nome a0 imaginario gendrado que recobre o advir daquele futuro bebé. Volta- remos a esse ponto mais adiante no livro. Na definigio de Hacking, diagnésticos psiquiatricos em geral per- tencem, portanto, & categoria do “tipo humano", assim como os ob- Jetos psicolégicos, da Psicologia” (Brinkmann, 2005). Tanto diagnésticos quanto conceitos psicolégicos dao sentido &s vivéncias e ao sofrimento da pessoa, ao mesmo tempo em que validam esse sofrimento ("isso me acontece por que sou bipolar, obsessiva"; "é meu superego” etc.), alte- rando a vivéncia do sujeito em relagao a ele ea si mesmo. Em outras palavras, os “transtornos mentais” sdo criagdes culturais que possuem efeitos performativos: prescrevem formas de sofrimento que sao passiveis de serem reconhecidas, validadas e amenizadas com terapéuticas também culturais, ou etnoterapias" (Zanello & Martins, 2012; Zanello, Hésel, Soares, Alfonso & Santos, 2025). Nao se trata de negara biologia, mas de pensar em uma interface complexa entre mente, cérebro, corpo, cultura. Como apontam Gone e Kirmayer (2010, p. 35), “os transtornos psiquiatricos refletem o resultado de interagdes, entre 608 processos biolégicos e 0 meio social, mediadas por mecanismos psi- coldgicos sobre a trajetéria de desenvolvimento de uma vida humana’. Cultura aqui deve ser entendida em termos semiéticos. Nas pa- lavras de Geertz (2008), ‘© homem & um animal amarrado @ teias de signiicados que ele ‘mesmo teceu, assume acultura como sendo essa telas e sua andlise; Portanto, nfo como uma ciéncia experimental em busca de leis, mas ‘como uma ciéncia interpretativa, a pracura do significado" (p. 4). ® Segundo Brinkmann (2005), Freud foo rel dos loopes! 2“ Aspalcoterpias formas de etnoterspise VerZenallo etal (2038) aye 2 Um exemplo, utilizado pelo autor, a partir da leitura de Ryle (flbsofo briténico), trata da diferenca entre um tique involuntario e uma piscadela conspiratéria a um amigo. Ou ainda, a imitag3o de uma piscadela conspi- ratéria com a intengo de enganar alguém. A descrigao fenomenolégica “superficial” (de superficie) nao bastaria para diferenciar uma das demai Confundi-las seria incorrer em um erro no qual o sentido especificamente simbélico, semiético, humano, escaparia: é necesséria uma “descrigao densa”. O autor conclui: “Contrair as pélpebras de propésito, quando existe um cédigo publico no qual agir assim significa um sinal conspira~ t6rio, € piscar. E tudo que haa respeito: uma particula de comportamento, um sinal de cultura e—voild- um gesto” (Geertz, 2008, p. 5). E necessario, portanto, descrever, conhecer as estruturas de significacao. Isso vale também paraas expresses humanas consideradas ‘ou nao como sintomas pela psiquiatria. "O que devemos indagar é qual & ua importncia: o que esté sendo transmitido com a sua ocorréncia e através de sua agéncia” (Geertz, 2008, p. 8). Como aponta Ryder, Ban e Chentsova-Duttonl (2022), ha um némero finito de sintomas disponiveis para expressar 0 sofrimento ou a aflicao, legitimamente validados e re- conhecidos, passiveis de serem “decodificados” e tratados em deter- minada cultura. Essa expressao é, portanto, mediada, configurada pela/ nna cultura, ancorada no corpo vivido. Gone e Kirmayer (2010) apontam as seguintes caracteristicas para cultura: & social, € configurada, é historicamente reproduzida e é sim- bélica, A cultura compreende padrées compartilhados de atividades, interacdes e interpretacdes, sendo a linguagem o principal sistema se- midtico mediador da reprodugao cultural transgeracional. Outro aspecto a se destacar é que as culturas séo investidas e in- vvestem certos grupos com poderes e autoridade de forma desigual (Gone & Kirmayer, 2010). As hierarquias s80 configuradas na histéria daquele povo: © poder ligado a sistemas culturais especificos e comunidades deriva de uma histéria de dominagdo e controle préprios, 2 qual deve continuar a exercer efeitos na forma de pensar mesmo depois que a maquinaria de dominagSo tenha sido desafiada ou ddesmantelada" (Gone & Kirmayer, 2010, p. 40) 0 desempoderamento, em certo grupo social, tem sido apontado por autores tais como Good e Kleinman (1985) e Littlewood (2002) como um dos principais fatores relacionados ao que comumente denominamos x0 usa ana de transtornos mentais comuns (TMCs- depressio e ansiedade). Segundo co autores, a incidéncia desses quadros é bem mator (mundo afora) entre mulheres, individuos que ocupam status sociais de relativa falta de podere (05 economicamente marginais. Seus comportamentos e sentimentos de veriam assim ser compreendidos mais como respostas plausiveis, quando contextualizados, do que como sintomas psiquidtricos. Ha “dindmicas de protesto e de resisténcia” (Kirmayer, 2007, p. 25). ‘Além disso, a prépria nogdo de “pessoa” é cuituralmente variavel No ocidente, hd uma tendéncia a compreender a pessoa de modo indivi- dualista, nos limites de seu préprio corpo e com uma constancia identitaria ‘temporal. Em sociedades indigenas, aqui mesmo no Brasil, encontramos rnog6es diferentes, mais coletivistas e fluidas (Viveiros de Castro, 1996; Vi- vveiros de Castro, 2002; Seeger, Da Matta & Vivelros de Castro, 1987). Esse tema foge ao escopo deste livro. No entanto faz-se mister destacar que ‘essa concepcao de pessoa, presente em cada cultura, ¢ imbuida de valores € ideais prescritos socialmente e constantes em varias camadas, desde as mais explicitas (como leis etc.) aos ritvais e a0s valores invisibilisados*. Kitayama e Park (2007) apontam que, ao longo da histéria cons- truida transgeracionalmente, so selecionadas praticas culturais (tais como scripts) e significados publicos em referéncia a certa visio privile- giada do que é/deve ser uma pessoa. Configuram-se assim tendéncias motivacionais nos sujeitos, influenciando substantivamente suas emogies, bem-estar e saiide. Priticas e sentidos que sao congruentes com a visio predominante de self, valorizada em determinada cultura, tendema ser preservados ¢ os que sao conflitantes, eliminados. Um tema muito debatido nesse campo diz respeito ao valor da independéncia ov da interdependéncia na configuragio e afirmacao do self Ryder et al. (2022) sublinham o papel de intermediacdo que esses scripts culturais possuem. Eles tanto refletem as estruturas de sentido/ significado na mente quanto agem como guias priticos comporta- mentais no mundo: SS ee ee rn pant go hi tanbiratcondéncarficanas em rego ao hardeas braslero qe posse Une ‘oxo coltvta de pessoa, Seginco els pode er consatado rosters “esa expen ene Indo dos terior preserva noo celetvae praise pessoa (SI. "etre americana sea mom exemplod per cao, aracerzando-e como. acidade ai individuals rerpelando valorando eroghes as como autodeo, ealuaeo, pode ava erg) 2 passa queos aponesesrepresentaram osegundo, una sodedade mas ollivstafinterpand emogBe, {atscomocanformidde,terdependénca, harmon secal-tais com Semimentasarstosor= Ul) sA0D€ WENT CERO EDSPOSTIOS: Cate pracss esbhngso 3s (0) scripts se referem a unidades organizadas de conhecimento {que codificam e propagam significadosisentidos e praticas. Eles servem como mecanismos que permite uma recuperacio automitica rdpida e 0 uso da informagio adquirida a partir do ‘mundo enquanto configuram 0 modo como a informacio & per- cebida, Prescritos como comportamentos, scripts so observavels 295 outros e vem a ser parte do contexto cultural, configurando ‘suposigdes sobre o que os outros pensam, e expectativas sobre ‘como eles se comportarao.(p. 264-265) Em sociedades em que 0 género ¢ fator estruturante (nas quais tomnar-se pessoa significa tomar-se homem ou mulher, marcado pelo binarismo), podemos questionar sobre os scripts e as expectativas nor- mativas diferentes sobre o que é ser uma “pessoa”, seja homem (ser um homem “de verdade"), seja mulher (ser uma mulher “de verdade”) Dimen (1997) afirma, nessa direcdo, que hi uma diviséo de tra- bbalho emocional em sociedades patriarcais. O patriarcado” “denota uma estrutura de poder politico disfargado em sistema de diferenga natural” (Dimen, 1997, p. 46). Segundo a autora, a divisao de trabalho emocional sugere que aos homens é interpelada a individualizago e a autonomia, ov a independéncia; ja &s mulheres, a ligago e 0 cvidado, ov seja, a in- terdependéncia. Aquiénecessério pensarnos processos por meio dos quais.a cultura participa e configura certos tracos, perfomances e afetos, socialmente valorizados, inibindo outros que, quando expressos, causam conflitos sociais para o sujeito. Trata-se de uma pedagogia dos afetos ou coloni- zaco afetiva, pois os contextos culturais provém também as pessoas com scripts sobre como devem sentir e expressar emogGes. Apesar de sempre haver a agéncia e possibilidades de contestagio dos valores dominantes, o prego a se pagar pode ser caro. A ideia chave & que toda experiéncia humana é culturalmente constituida. £ mesmo ‘as emogées so respostas culturalmente condicionadas, configuram-se na interface entre o sentido, as sensagBes corporais e 0s significados cul- turais (Leavitt, 1996). {Todararvezes que uileros temo *ptracede" na decorer dest i, estamos nos eerindo a um sistema seveignere no qual ha uma forma especies do dominio masculine (enzo ecessaamente da ‘ura pater), Como sponta Paterna 9), abanonso terme “paarcado” representa perda pla ‘ora lis ferinata do isa conceit gus oe eer expeccamente bsjelgSo da mulher «que single ‘a forma de ie police qv todos os homens exer pal fata deserem homens” p39), 2 aseazaeo Nesse campo precisamos fazer um adendo, pois ha um grande debate sobre se as emocdes so “naturais", fruto apenas do processo evo- lutivo (seriam internas e expressao direta da evolucio filogenética), ou se configuram-se e expressam-se de acordo com a constituiggo da cultura. A perspectiva naturalistica, derivada do estudo da expresséo das ‘emogdes em animais, por Darwin, pensa as emoges como inatas, uni- versais ¢ invariantes. Primeiramente elas esto “no” sujeito e somente depois se expressariam nas interagdes. Um importante exemplo dessa perspectiva so os estudos de Paul Eckman (2021). Segundo esse autor, cada emocdo gera um padro Unico de sensagdes em nosso corpo, 0 qual apresentaria “sinais Unicos, principalmente na fisionomia e na voz" (Eckman, 2021, p. 15)". Esses sinais seriam universais. Eckman descreve da seguinte maneira a relagao entre emogdes e palavras: ‘As palavras sio representagbes das emogies endo as proprias, lemogies. A emaglo é um proceso, um tipo especifico de avalia- 80 automitica, influenciado por nosso passado evolucionista e pessoal, em que sentimos que algo importante para nosso bem- ‘estar esta acontecendo e um conjunto de mudangas fsioldgicas e comportamentas emocionaisinflvencia a situagso. As palavras so uma maneira de lidar com as emogBes. (Eckman, 2033, p. 33) ‘As emogGes existiriam em e por si mesmas, independentemente da cultura, Segundo o autor, haveria temas universais (que constituem gatilhos emocionais) e, por outro lado, variagdes desses temas que se desenvolvern nas experiéncias individuais. Os primeiros seriam dados, os demais adquiridos. As formas para lidar com essas expresses também seriam mediadas pela cultura. O autor conclui: “Ficamios emocionados a respeito de questdes relevantes para nossos antepassados e a respeito do que achamos importantes em nossas préprias vidas” (Eckman, 2023, p. 242). Esse modelo explanatério de base biolégica assume que a lin- {Par Eman a0), o expresses acs sb 0 mais reve ds sinasemaconas. lm dso, prale,0 Sistema de sina pimario pan emote telzesseianvoxenio face. Aquiserainerssantecitara camp ‘de estos das emo com aqueles da pscafondtic, realizado por Foray (2571983). Ness at, fre mister deracar om exempodad pel pp autor-o controle de expressio das ro {es por prt dos omens. "tla entana ato de um homem no querer demonstar ses sentiments ‘io gnes qos ele ters sce, Propostadamerte, uae um homem no paseo anton poe 0 (cata sentiments) mas camum entre os homens embora na sea deforma enum, una reg erie ‘shortens ov desconbecid de mulheres” (cksran, az, 308). Eckman desace que at receterente, Las de rena ov angina eraminal de fraqacza em homens autor es Tusa Em scadades ex ‘tas, poreals como abaslea ess sents parece no terse engu. — 3 {guagem e outros sistemas simbélicos tém uma fungio puramente refe- rencial, sendo as emocdes experiéncias transculturais. Ja paraa perspectiva construtivista, préxima a que adotamos neste livro, as emogées s8o configuradas nas interagées sociais e, portanto, dependem do contexto cultural, da linguagem e da construgio de signi- ficados. Leavitt (2996, p. 526), afirma que: (..) deveriamos ver as emogées nem como sendo primariamente significado, nem como sensacSes psicobiolégicas, mas como expe- riéncias aprendidas e expressas no corpo em interacéessocias atra- vés da mediagio de signos, verbals e ndo-verbais. Nés deveriamos vé-las como fundamentalmente socais, ao invés de simplesmente de natureza individual; como expressas ordinariamente, ao invés de inefavels;e como culturasesitvacionais. Mas deveriamos igual- ‘mente reconhecer na teoria 0 que todos nds assumimos em nossos cotidianos: que as emocées sSo sentidas na experiéncia corpora, ‘no somente conhecida, pensada ov avaliada Para Leavitt (1996), 0 debate sobre as emoces nao caberia na di- cotomia corpo e palavra, significado e psicobiologia, pois elas envolvem sentido e sensagao, mente e corpo, e cultura e biologia. Um exemplo dado pelo autor é a experiéncia de um “remexido" no sistema digestivo. Como consigo diferenciar que é ansiedade e no apenas o resultado de um lanche infeliz que fiz agora ha pouco? O autor responde: “estar an- sioso é ter uma sensagao associada a um sentido/significado” (Leavitt, 1996, p. 535). A cultura cria assim experiéncias reconhecidas que en- volver sentido/significado e sensac3o corporal. A linguagem usada no cotidiano é extremamente esclarecedora e aponta para uma ponte entre co dominio corporal ¢ 0 conceitual™ Nessa perspectiva, a linguagem é entendida nao apenas como mera etiqueta sobre uma experiéncia universal, mas como processo mediador, simbélico, que permite que certas experiéncias (corporais e mentais) venham a se configurar e ocorrer de determinada forma. O préprio corpo é compreendido, portanto, como sendo situado e socia~ lizado, diferentemente de uma visio do corpo como o “iltimo nivel” biolégico e universal, indiferente & cultura. O corpo, apesar de limitado, 6 pléstico. Os corpos existem em interago, mais do que entidades iso- * As metforasexercem acui um papel fundamental tal como jé desenvolvemos em nossa tese doutoral (Zane, 2007). ver tang Lalo Jonson S86) 3A usta ano ladas. Nesse sentido, a base biolégica seriaresponsavel ndo apenas pelas similaridades entre diferentes culturas, mas também o que tornaria pos- sivel a enorme vatiedade de linguagens, culturas, padres sociais. Geertz (2008) pode ser aqui esclarecedor: Entre o padrao cultural, 0 corpo eo cérebro, fol criado um sistema de realimentacéo (Feedback) positiva, no qual cada um made- lava o progresso do outro, um sistema no qual a interagao entre (0 uso crescente de ferramentas, a mudanga da anatomia da mao @ a representacio expandida do polegar no cértex é apenas um dos exemplos mais gréficos. Submetendo-se ao governo de pro- 4gramas simbolicamente mediados para a produsao de artefatos, forganizando a vida social ov expressando emosées, 0 homem determinou, embora inconscientemente, os estagios culminantes do seu proprio destino biolégico. Literalmente, emnbora inadvert- ddamente, ele préprio se criou(..).As mudangas muito maisimpor tantes e dramaticas foram as que tiveram lugar, evidentemente, ro sistema nervoso central. Esse foi o periodo em que o cérebro hhumano (Homo Sapiens), principalmente sua parte anterior, alcan- ou as pesadas proporcies atuais(..). O que separa aparente: mente os verdadeiros homens dos proto-homens no é a forma corpérea total, mas a complexidade da organizacio nervose, O periodo superposto de mudanca cultural e biolégica parece ter Consistido numa intensa concentracio do desenvolvimento neu- ral (.). Grosso modo, iso sugere nao existir o que chamamos de rnatureza humana independente da cultura. Os homens sem cul- tura (..) Seriam monstruosidades incontrolaveis, com muito pou- os instintos dteis, menos sentimentos reconheciveis e nenhum Intelecto (..)". Como nosso sistema nervoso central -e principal- mente a maldigdo e gléria que 0 coroam, 0 néocortex- cresceu, ‘em sua maior parte, em interago.com a cultura, ele &incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experléncia sem «a orientacio fornecida por sistemas de simbolos signifcantes, Geertz, 2008, p.35) Para ele, tantos as ideias, quanto “as préprias emogGes sio, no homer, artefatos culturais” (Geertz, 2008, p. §9). Leavitt (1996), nesse mesmo sentido, afirma que as emogdes no so, portanto, primaria- ® Suprimimos “verdes casos priquitrcor” por acedtumeos ter sido uma inflidade do ator our deve expose eda vst que ness captlodefenderorjrtarents qe moto pacientes pases ce serem paquataados produzam singomar corposise ate plenos de sentido. pepsin de sbeinge 3s mente nem sentidos (meanings) nem sensacbes (feelings), "mas experi- éncias aprendidas e expressadas no corpo, nas interaces sociais através da mediacao dos sistemas de signos, verbal e nao-verbal” (p. 526). Como aponta autor, associagées afetivas, assim como semanticas, sao tanto coletivas como individvais; elas operam por meio de experincias comuns ou similares de membros de um grupo vivendo em circunsténcias pare- cidas, mediante esteredtipos culturais da experiéncia, e a partir de ex- pectativas, memérias e fantasias partilhadas. Nessa mesma perspectiva, Boiger e Mesquita (2026) ressaltam que as emocGes so engajamentos em relagdes sociais que estao continva- mente em mudanga. Mais do que entidades internas, “separadas”, trata- -se de processos em curso, dindmicos, interativos, e que s0 social mente construidos. Ou seja, as emogdes quase sempre ocorrem em interagées sociais € relagées. Dessa feita, o contexto social constitui, molda e define as emogées, as quais retroalimentam as interaces e as relagées. Segundo os autores, é a avaliagio da situaco interacional/socil vivida pela pessoa que organiza sua emogGo, ou seja, qual sentido esta possui Pelos menos trés contextos precisam ser levados em consideracso na formacao/configuracéo das emocées (Boiger & Mesquita, 2022): as in- teragdes momento a momento; as relacdes estabelecidas; e 0s contextos socioculturais. Os autores sublinham que a construgao social da emogao é um processo iterativo e em curso “que se desdobra desde as interagdes relacées, ederivam sua forma e sentido das deias epraticas prevalentes do largo contexto cultural” (p. 222). Assim, “interagdes e relacdes sao sempre enquadradas pelas ideias, significados e praticas prevalentes sobre o que 6 uma pessoa e como se relacionar com os outros, que também est re- ferido a modelos culturais" (Boiger & Mesquita, 2012, p.225). Como ja sublinhamos, em uma cultura sexista, 0 tornar-se pessoa & sempre estruturado pelo binarismo do tornar-se homem ou mulher. Como 0 género marca este enquadramento cultural, no qual as inte- rages ocorrem e so sempre gendradas? Ainda que essa nao seja, em ‘momento algum, a questdo para os autores, eles mesmos apontam para respostas possiveis: "Modelos culturais informam valores centrais, pro- pésitos, preocupagdes fundamentais da pessoa e isso constitui o pano de fundo contra o qual as avaliagbes (dela pelos outros e por si mesma) = interessante apota aplsemia do termo "sentido: pode ser no aspect cognitive, corporate de dies. \Wirbika (994) subina que ax das prmeasacepgdes so vidas para vacua. 36 ‘uss zao so formadas” (Boiger & Mesquita, 2022, p. 237). Se as qualidades das emogdes derivam das interacdes em que elas ocorrem, as quais sao elas mesmas significadas em um quadro/contexto cultural, ese as interagées so gendradas, faz-se necessério pensar se hd e quais seriam as emocées interpeladas diferentemente em homens e mulheres. Em suma, que emogées sao permitidas e legitimadas como sendo de mulheres e de homens? Como afirmam Kitayama e Park (2007), as tendéncias pessoais motivacionais sdo adquiridas mediante anos de so- cializago, as quais comecam muito cedo, desde os primeiros anos de vida, e S80, em consequéncia, automatizadas, performadas e incorpo- radas. A cultura € tacita e, portanto, altamente poderosa no proceso de configuragao da experiéncia emocional, dos processos psicolégicos e mecanismos subjacentes a eles. No préximo capitulo vamos discutir os processos gendrados de subjetivacdo. ‘sAdoe en cen Ess cata presees debnvcte ” CAPITULO 2 ESTUDOS DE GENERO, DISPOSITIVOS E CAMINHOS PRIVILEGIADOS DE SUBIETIVAGAO Segundo Laqueur (2002), a ideia/teoria de uma diferenca sexual substantiva e bindria-oposta (homemjmulher) nem sempre existiv. Desde Aristételes até o século XVill houve a predomindncia da teoria do sexo Unico. Segundo essa teoria, entre homens e mulheres haveria apenas uma diferenca de grau, sendo as mulheres consideradas como homens menores. Figs. 30-31. On the left are the peniske female organs of generation from Georg Bartsch, Kinstluehe (1575). On the eight he font of the uterus x ay to reveal its contents Figura 2- Exemplo de retratagio dos érgos genitais femininos, por Georg Bartsch, em 3575. Percebe-se claramente ofoco Sobre a semelhanga com ans maseulino® » Retirado de htp:ljalyangscrapbook blogspot.com f2012,02. 06 archve.hem em asoa/2037, 39 A explicagao etiolégica estaria no nao desenvolvimento completo das mulheres por falta de calor durante a gestacéo de uma menina. No entanto existiam relatos de estorias de meninas que, em certas situagdes de esforco fisico e transpirac3o, transformavam-se em meninos. A des- crigdo anatémica de homens e mulheres se esforgava em demonstrar a semethanga dos érgaos sexuais, sendo que a grande diferenca seria a no saida desses Srgaos para o exterior, nas mulheres. Nesse sentido, Laqueur (2001) aponta que 0 sexo néo era uma categoria ontolégica, mas sociolégica, antes do século XVII O sexo “oposto” é um produto criado no final do século XVIII. Para © autor, s6 houve interesse em buscar evidéncia de dois sexos distintos, com diferencas anatémicas e fisiolégicas concretas em homens e mu- Iheres, quando essas diferencas se tornaram politicamente importantes: A histéria da representagio das diferengas anatémicas entre mulheres e homens é independente das verdadelras estruturas destes drgios (.). A ideologia, ndo a exatido da observacio, determina como eles foram vistos e quais as diferengas importan- tes" (Laqueur, 2003, p. 112). AGestalt pode nos ajudar a entender as ideias de Laqueur. Um dos processos mais importantes apontados por essa escola é a eleigao de um foco, com a subsequente eleigso de um fundo, para que seja possivel a percepcao de um objeto. Abaixo um dos varios exemplos para ilustrar ‘esse processo, o vaso de Rubin: Figura 3 "Vaso de Rubin, da Gestalt Retro de tps. google.combrlsaorch?gstasordesrubinsl=aCsAVNG_enda28R7a38th “0 as e.0 Dependendo de onde se foca o olhar, serd percebido um vaso ou duas faces. € impossivel perceber as duas coisas, ao mesmo tempo. O que Laqueur aponta, em sua pesquisa, é que, historicamente houve uma mudanca da eleicao do foco de interesse das semelhancas entre 0s drgios genitais masculinos e femininos (como pudemos ver na re- tratagdo feita em 1575), para suas diferencas. Essa mudanga se deu por motivos ideolégicos, em funcao de importantes transformagées sociais esse momento. Como sabido, foi no século XVIIIYXIX que ocorreu a consolidacao do capitalismo (com a revolugo industrial). Esse sistema trouxe profundas mudangas sociais, mas talvez umas das principais tenha sido a ideia da possibilidade de mobilidade social. Ou seja, no inicio do século XV, nascer em certa familia tinha um caréter quase destinal, dai a repetic3o de oficios (ou a propria servidao) por varias, geragées. Havia uma separacao social bem clara e delimitada. Porém, oadvento crescente do capitalismo trouxe o sonho da possibilidade de mobilidade social para todos, e nao para todas*. Trouxe também uma distingo, histérica e cultural, entre o 2mbito publico e privado. Como justificar que uma parte da populagao (feminina, branca) nao tivesse acesso a essa mobilidade? E ainda, como justificar que essa mesma parte ficasse dedicada aos trabalhos do agora ambito privado? Foi por meio da afirmacao da diferenga fisica (colocada como foco) que as di- ferengas sociais puderam ser “naturalizadas”. Segundo Kehl (2007), com a consolidacao do capitalismo, houve uma transformagao social na qual se constituiu um lugar especifico para algumas mulheres: a familia nuclear e o lar burgués. Segundo a autora, esse lugar € tributério “da criagdo de um padrao de femini- lidade que sobrevive ainda hoje, cuja principal fungao (...) é promover o casamento, nao entre a mulher eo homem, mas entre as mulheres € 0 lar” (p. 44). Para ela, a “fungo da feminilidade, nos moldes modernos, foi a adequacao entre a mulher e o homem a partir da producao de uma posicao feminina que sustentasse a virilidade do homem burgués" (Kehl, 2007, p. 44). Assim, aos ideais de submissio feminina, con- trapunham-se os ideais de autonomia do sujeito moderno, apregoados ‘Schtsoorcesilipomtictadir-oTSaxL_qo loss AbiagaCMajexogabOmaMPasaC_Rusgr_Z88- 'NhdGSa2HPCCez=PGkUmmeaaDkse-Ntved-oshUKEwaguml 2p3XahWHF ZAKMSCDSYOSCEROA, Gtimgr=uTSL2_qo-h em 3ea07. + Nem paraescravoreexecravos eres multas vezes no eram consierads nem como pees, humans, rmasanimas VerDavs 2015). ‘S400 TAL CERO SPSS: Carneros a pelos ares do capitalismo. Além disso, “aos ideais de domesticidade contrapunham-se o de liberdade; 8 ideia de uma vida predestinada a0 casamento e & maternidade contrapunha-se a ideia, também mo- derna, de que cada sujeito deve escrever seu préprio destino, de acordo com sua prépria vontade” (Kehl, 2007, p. 44). Nao foi a toa, portanto, a grande quantidade de mulheres burguesas adoecidas psiquicamente na era vitoriana. “Histeria”* foi o nome privilegiado dado a esse sofri- mento, nesse momento histérico. Nao se trata aqui de negar a diferenca corporal, mas de apontar que certas diferengas foram eleitas em determinado momento histérico para justificar desigualdades sociais. Além de provocar adoecimento em parte das mulheres, esse espaco restrito trouxe outros dois fatores im- portantes: de um lado, um mal-estar que foi canalizado em movimentos sociais que fortaleceram, posteriormente, as lutas feministas (que ii cialmente eram compostas por mulheres brancas de classe média e alta). E, por outro lado, esse espaco, restrito & domesticidade, foi apresentado ‘como uma forma de empoderamento calonizado 8s mulheres. Por ter corpo de *mulher’, as mulheres foram exaltadas como mies, as forma- doras do “futuro da nacéo” (Soihet, 1989; Matos, 2003). Essa ambiva- Iéncia, marca caracteristica dese espaco social, construido, é essencial, pois se faz presente até os dias atuais, ainda que com novas roupagens. Houve a construgao de um ideal de maternidade, o qual recebeu impor- tantes contribuiges “cientificas’, tanto da medicina quanto da psica- niélise, no comego do século Xx (Edmonds, 2022; Freire, 2008; Jeremiah, 2006; Moura & Ara¥jo, 2004; Smith & Morrow, 2022). O desconforto de algumas mulheres em relaco a esses papeis for- taleceu a possibilidade de contesté-los. Isso ocorreu em varias esferas: em pesquisas académicas, como as realizadas por Mead, na Filosofia, a partir das contribuigdes de Beauvoir, e nos movimentos socials, eviden- temente presentes a partir da década de 60 do século pasado. Apesar dessas contribuigdes para a desconstrugao da suposta naturalidade das diferencas entre 05 sexos, foi a psicologia, em sua vertente médica (por intermédio dos trabalhos de Robert Stoller) quem cunhou a palavra 50 terme surgis ma Gréca antig, na teoria poeta, cua expleagio ellen para certos quads “feinios” de lnscora era a motmentagio tena (yr) mover * Segundo esse aut, nea seria ua idenidade genie esencal™-O ator aramente defends aides de ua “einige” "maccinidade” que no fzem flere necessria 8 anatomis ov fesloga (Stl, 2968), Para el Kentidade genanca rao & apenas primera qu se adgue, mes tam 8 de a ‘csc zano i | i ‘género” (Lamas, 1986): tratava-se da construcdo social do “feminino” e do*masculino”, Desde uma perspectiva psicolégica, “género” articulava trés ins tancias basicas: a) a assinalacao (rotulagio, atribuigdo) de género; b) a identidade de género;c) o papel de género. Nesse momento, considerado por alguns estudiosos como a segunda ondajfase do feminismo* (a pri- meira teria sido a luta pelo sufragio universal*), 0 conceito de “género” foi introduzido para suplementar 0 de “sexo” e ndo para substitui-lo: © biolégico foi assumido como a base sobre a qual os significados cul- turais s80 constituidos (Nicholson, 2000). Dois pilares epistemolégicos se fizeram importantes, portanto, na segunda onda: a diferenca sexual como um “fato" (sendo o género a construgao social a partir dessas di- ferengas) ¢ a nogao de identidade como algo substancial, marcado pela constancia. Além disso, a categoria utilizada nesse momento histérico foi o de “mulher”, entendida como uma esséncia comum &s mulheres. Nesse sentido, foi escamoteada a diversidade de realidades de varias mulheres que nao as brancas de classe média e alta. Um importante exemplo desse momento histéricolepistemolégico &a obra genial de Gayle Rubin (2975), The traffic in women. Rubin aponta a construcao cultural do que ela denomina de “sistema sexo/género”. A autora parte do argumento de que "um negro é um negro, ele 6 vem a ser escravo em certas relacdes”. Da mesma maneira, “uma mulher é uma mulher, ela s6 vem a ser uma domestica, esposa, coelhinha da Playboy, prostituta etc. sob certas relagdes”. Em sua definigSo, o sistema sexo! género seria 0 “conjunto de arranjos pelos quais uma sociedade trans- forma a sexualidade biolégica em produtos da atividade humana, e na imaraleanee«dreo. : "Segond Fase (959, apna fein" fo ad primeramente pra ufc rap com ber ‘close qe apresertavesigos deride; poserarment, ise para desigrarmuees craps {ue tntam crocterstas vis Segunda, Fern” & aque) que no et em evga, rouge de Sesro que est fore seu sexo OU sel €aguelea que preblematzaojoge do mesclno edo erin * Das (2036) aborda os encontose desencontrs entre ata poo stg das eminitasbrancas rer Canas eo movment pela abolgse da esravatra negra. As neessidaes Gas mulheres negro efam bem Aconstrugo do géneroacorre por meio das vias tecnologia do gina e dcursosinsttucinsis que produzem, promover einpantam certs epresentagoes, ncuindo ao prepiesdscursos “entice” te acadtmcen 48 _. revistas. Para esclarecer a ideia de tecnologia de género, darei aos (as) leitores(as) alguns exemplos banais, e apontarei quais performances podem ser interpeladas por intermédio deles. O primeiro exemplo trata-se de um sucesso de bilheteria da Disney (Monteiro & Zanello, 2015): A pequena sereia”. Ariel é uma sereia curiosa e dvida pela vida. Nao se submete as interdicdes paternas sobre que lu- gares ir e 0 que fazerindo fazer. Em uma de suas exploragdes, avista um homem e se apaixona por ele. Decide entao tomar forma de humana, para ter chances de seduzir seu objeto de amor. Para isso, negocia com a bruxa (Ursula), a qual pede em troca de retirar-Ihe 0 rabo (e dar-Ihe pernas), a vor. Ariel: "Mas sem minha voz... como posso?” Ursula: “Terd sua aparéncia, seu belo rosto. portancia da linguagem do corpo {diz a vila enquanto move os quadris, rebolando-os]". ‘Além disso, os serezinhos que acompanham Ariel cantam para ela: “0 homem abomina tagarela /Garota caladinha ele adora/ Se a mulher ficar falando/ O dia inteiro e fofocando/ O homem se zanga,/ diz adeus e vai embora./ Nao! Nao va querer jogar conversa fora/ Que os homens fazem tudo pra evitar/ Sabe quem é mais querida?/ E a garota re- traida/ sé as bem quietinhas vo casar”. primeiro ponto que se destaca nesse desenho é algo bem recor- rente em quase todos os produtos culturais direcionados as mulheres: a ideia de que a coisa mais importante que pode Ihes acontecer na vida & encontrar um homem e que ele é/deve ser o centro motivador organi- zador de sua vida. Ou sea, naturaliza-se a ideia de que o sonho de toda mulher & se casar. Trata-se, como diz Monique Wittig (1992), de what goes without saying (0 que vai sem ser dito). A tecnologia de género, além de interpelar performances, constitui-se em uma pedagogia dos afetos, uma colonizagio afetiva. Além de ensinar asmeninas a verdadeira "ben¢So” pela qual devem buscar em suas vidas (0 amor por/de um homem), esse desenho mostra também os sacrificios esperados para ser possivel obté-la: de todos, 0 que mais se destaca é a afirmago do siléncio, como algo desejavel para e niio subestime a im- 5 Cament Morkare Ashman, H.Apaquena sere. [Fme-vdeol Prodi de John Muskere Howard Ah mane degao de Ron Clements elohn Muska, 2985, SOE MONTH, NEO EDSPOSTHOS cate a prceerde jase a as mulheres. Como trabalho ha anos na area de sade mental, no me escapa o quanto 0 adoecimento psiquico de muitas mulheres, de classes sociais diferentes, brancas e negras, est relacionado ao valor do si- lncio que aprenderam*. € necessario destacar a mensagem claramente passada: a de que osiléncio é 0 preco a se pagar para manter uma relago heterosexual. Ndo é incomum que mulheres que se expressem sejam tachadas de chatas, reclamonas, ou termos pejorativos equivalentes. Se vocé quer manter seu “homer, silencie-se! (muitas vezes, mesmo que ele faga coisas que vocé considere abomindvel). E aprenda a mexer 05 quadris. Veremos no préximo capitulo o quanto essa pedagogia dos afetos é importante para a interpelacao de perfornances relacionadas a0 dispositive amoroso (e & objetificaco sexual)- um dos principais fatores de desempoderamento, a meu ver, das mulheres, em nossa cultura. Outro exemplo: sugiro aos(8s) leitores(as) que passeiem em alguma banca de jornal e prestem atencéo nas capas e chamadas das revistas. Em geral, homens sdo destacados como economistas, pen- sadores, politicos etc. J8 mulheres ganham destaque por emagrecerem emagreci 2 kilos em uma semana!) por realizarem cirurgias plésticas (*Fulana colocou tantos litros de silicone”), por encontrarem algum “grande amor”. As revistas a elas direcionadas s30 bons exemplos de tec- nologias de género com forte pedagogia e colonizaco afetiva. Abaixo darei exemplos invertidos para explicitar (pelo contrério) o quanto as performances interpeladas podem ser risiveis, quando so problemati- zadas, apesar de serem bem efetivas: > Enecessvo pensar nos pose senior deslécios ea que jogs oresvosinterecconis obedecem, Maisctatetratare dese tema, sobretudoa dilerega do sentido da performance do sco pare mulheres homens. » Asrestas sf dreconadae a cases sci determinadse.Porém, podemos encontrar program tele vos com recrtes parecids: enshando a emaprece, a enduece s misclos pare fa “gosta, como resolver problemas elaconais com os homens, como Seda ec Programas teens (tv aberta) tinge ‘grande pblicaem um ecorte transversal e dase soc a asec mne0 filhos ¢ casa, ame ra Mj sais? Co! a AES Figura 4- Capas fcticlas de revistas masculinas, para exemplifiar, pela inversio, como elas serlam, casoas performances interpeladas&s mulheres fossem interpeladas aos homens. Lendo essas capas, com dizeres direcionados comumente 35 mu- Iheres, podemos destacar, novamente, a prescrico da importancia de ter um relacionamento amoroso com um homem e a responsabilidade por manté-o (por meio de varias performances). Esse é um ideal apregoado por varios meios, tais como novelas, filmes de Hollywood, propagandas etc. Nao é de se espantar, portanto, o dado apontado no relatério realizado pelo IPEA (2024), de que, no Brasil, 78,7% dos respondentes que participaram dessa pesquisa (de todas as regides, sexos, classes sociais) concordaram, total ou parcialmente, com a afirmacao de que “toda mulher sonha em se casar”. Certo ideal estético feminino, outro aspecto bastante explorado, 6 pautado mesmo em revistas de noticias nacionais e internacionais, de grande circulacao no Brasil, comoaVeja (Portela, 2026). Ser“bonita” (dentro desse ideal) é relacionado a ideia, para as mulheres, de ser“bem-sucedida”. ost que cul arement esemautaa no Facebook. primeira capa encontra-se também em tp ‘wn. google com brisarehriz=xCaAVNG. enB 72287226 =s366UbI6s3BtbMlschSsansBeloodys lbkyOlabwaTNgkUgkq-coparederevisos+mascuinasclaudlakogacapasedevrevstasymasculinasCo tiotge np ab3,.23527 24972 915308 88.00.0074 051.0)170.-0.-23.54pyrob.22328.-agko ‘gm gehvkdingisfaNbZD0V0ZIPM; em 20/2037, ‘ODE, ENCED Cae pce de bethae ” Por fim, gostaria de dar oexemplo das propagandasdecerveja. Uma ‘moca morena, bonita (dentro dos padres ideais de beleza), corpo tor- neado, serve, como garconete, homens sentados em uma mesa, 0s quais pedem “Vem, verdo!”. Hé um trocadilho sobre o verdadeiro pedido: se a cerveja ou a mulher... propagandas desse tipo sao recorrentes e estamos to acostumadas a assisti-las que jé no Ihes ressentimos como sendo Violentas e relacionadas a uma cultura de objetificag3o das mulheres. Ha aqui uma pedagogia/colonizacao afetiva de mulheres e homens. Aos homens se ensina certa forma de virilidade tipica, como veremos, da masculinidade hegeménica (na qual um dos pilares identitarios de um “verdadeiro” homem seria “consumir” mulheres). Em relacdo as mu- theres, ha a construcdo de um ideal estético, para que elas possam se fazer desejar. Voltarei a esse ponto no proximo capitulo. £ uma pena que eu nao possa me prolongar em mais exemplos (teria varios), muitos dos quais se encontram disponiveis em palestras que j ministrei, e de facil acesso na internet. Uma pergunta precisa entéo ser langada em relacdo as tecno- logias de género e seus impactos nos processos de subjetivacao: Quais as relagdes entre as tecnologias de género' e o looping effect (0 qual abordamos na introdugo)? Ou seja, como as tecnologias de género (enquantojcomo processo de gendramento do sujeito, no binarismo homem/mulher), tem efeito nos processos de subjetivagao, na inter- pelacdo das performances (dentro de scripts culturais), e também na criago— ainda que iluséria — de identidades e de autodescrigies? Essa é uma seara que merece amplos e diversificados estudos. Pode-se sugerir que a identidade de género exclusiva (essa, fruto da repeticao estilizada de performances e ressentida ilusoriamente como constante), mais do que a expressao das diferencas naturais, é a supressao de similaridades potenciais, de performances que poderiam ter sido interpeladas e no foram. Ou ainda, que foram encenadas € foram punidas, extintas. Aqui as tecnologias de género (para interpelar) a microfisica do poder, em suas varias facetas, que vo das punicées sociais (como xingamentos, exclusao etc.) 8s leis € instituigdes (justica, manicémios ov medicalizagao, prisdes), exibem toda sua eficacia, ‘ Necesiio desacar que as prépieteoras clea cnstituen-s, muts vzes, em tecnlogias de ‘géner, como €o cao da aturaizago do sentimanto materno nas mulheres, opefada por teas mcs ps Sobretuto no seclo XX, come vemos adarte "com » eriago dos neurolpicos howve uma subetitvigbo da merdaga sca para a mardaga qulnic, © Apresentamos até aqui, didaticamente e de forma sintética, uma histéria das mudancas pelas quais os enfoques dos estudos de género passaram e como podem ser entendidos, hoje, 0s mecanismos de (en) gendramento do tornar-se pessoa homem ou mulher. No entanto faz-se mister destacar que, atualmente, a palavra "género” é usada em varias acepgGes e pode apontar para ideias diferentes, a depender de seu uso (Wittgenstein, 1992). Hoje em dia, essa palavra tem sido utilizada em pelo menos trés sentidos distintos (Zanello, 2017): 4) para apontar o binarismo®, o qual mantém umaideia de masculinosfemi- nino, masculinidade/feminilidade como esséncias, entendidas tanto no sentido metafisico, como também de forma "naturalizante”. Por exem- plo, que mulheres tém instinto matemo, so naturalmente cuidadoras @ homens, naturalmente agressivos. O binarismo ou forma bingria de ._ compreensio do mundo e da vida é uma construcao social, criada, rea- firmada e mantida por diversos mecanismos, dentre eles as tecnologias de género, as quais interpelam performances diferentes a sujeitos con- siderados homens e mulheres. A oposicSo é construida e nao inerente e fixa, e € necessério historicizé-la, explicitando a hierarquia presente nessa polarizacio (Louro, 2000); 2) para sublinhar a relacio (que deveria ser biunivoca) entre performances de género (mas também valores e esterestipos) ditas femininas/ mas- culinas e certas especificidades corporais (binarismo do sexo‘). Assim, a anatomia ~ ter um pénis ou uma vagina ~ deveria aparecer sempre ligada, no primeiro caso, & masculinidade, e no segundo, a feminilidade. Nesse campo se da a discussdo das questdes cise trans; jue ado dea de ser otra Tor de reorganzagio de pode ede contol Geum saber especiaizado, 9 Fula, Rohden (2009) ene da segue forma a "mecieatzaio" é um “endmeno bastante ampio complexe que envove desde a definigeo em termos mécieos de um competamarto com deste mt ts desobertasclentfcas que ageimar, os watamentos proposes denen rede de ineresres 2006, palicoseecondmicos em fogo” (90) Segunda Conrad (2007) ates dum process0 no gual problemas omddeos vim ase defiriss tratados corn problemas dios em terms de doenga ewansteros * Faust String (2000) far mpartantes ics eo bnariamo,demnetrando que, mesma de um panto de ‘sta anatSmicofilgic, nao existe um so ov aqui”, e im nuances de efeenga Segundo oor, ‘otdar lguée como oem au mulher é ura dela so. “Leas "de pesto consideradas eolcadasem ogores de homens emulheres de acord com toda dias desensohacns anteronmente. «mesmo de um pont de visa bilgi fca dle sstentar 0 binarsmo, pais hot cats de intersex {wagarmentedenominados de hermafodts). A letura prevalent ques fa esses eases 6 que 30 “ane mala’ 0 qu sare a "normaidade” do nasa (a ives de serem tomades como dasafis 3 essa ‘Gasfcago), Ov sel trata-e de una fora de eafmagdo das estates de poder “cisseriamas pessoas nas quasaldentdade de genero crresponde quel imposta autualment 0 seo Eremplosuma pessoa que ascev com pense ae deta com orvelorese performances dias masculine” 3) para apontar a orientagio sexval, a qual se baseia em um pressuposto de heterossexvalidade compulséria, Ou seja, na idela de que seres conside- rados mulheres devem por natureza desejar homens, e vice-versa. Uma das premissas aqui é a idela do sexo procriativo e uma naturalizagio da sexvalidade”. Precisamos sublinhar que a subversio do dispositive da sexvalidade (mediante praticas heterodestoantes) ndo necessariamente implica em uma subversio dos dispositivos de género, os quais ireios apresentar nos préximos capitulos e que esto relacionados, sobretudo, 8 primeira acepgao e, em parte, com a segunda. Em nossas pesqui- sas com grupos que se autodenominam gays e lésbicas, por exemplo, encontramos, pelo contrério, uma potencializagao dos dispositivos de género. Discutiremos mais adiante esse ponto. Além disso, &necessario destacar que “atos sexuais fisicamente idénticos podem ter variada sig- nificagao social e variado sentido subjetivo, dependendo de como eles so definidos e compreendidos em diferentes culturas e periodos histé- ricos" (Weeks, 2003, p. 47). Portanto, a prdpria nogao de “homossexvali- dade" & uma construgao histérica, com periodo definido e relacionada a certa forma de pensar e produzira sexvalidade. E necessério ainda destacar que, além de ser “engendrado” nas relagdes de género, o sujeito também o nas relacdes de classe e raga (Lauretis, 1984). Ele seria assim marcado pela multiplicidade e con- tradigo. Como vimos com Laqueur, hé uma leitura histérica que pri- vilegia certas diferencas fisicas para justificar desigualdades sociais e hierarquias de poder. Nesse sentido, o sexismo encontra-se muito mais préximo do racismo do que da homofobia, pois nesse Ultimo caso cabe a politica do armario (Sedgwick, 2007), ou seja, algum autocontrole sobre as performances (em que se abre ou ndo 0 armario), 0 que nao & possivel em relagio ao sexo e, menos ainda, & cor da pele. Como afirmou uma das mulheres entrevistadas por Neusa Souza (2983, p. 62): "Uma amiga minha, judia, me dizia que nés tinhamos os mesmos problemas (0 do preconceito e discriminagio). Eu dizia que era muito diferente: 0 judeu, 80 se sabe se ele mostrar a Estrela de Davi. E o negro, no. Esté na cara’. ‘rinoss cultura Ns estas tron esa corempondéncia no acre ou & Raa ~ Asowaldade humana é medias pia clu, o que pode ser bservade no magni rio presente nas mals diversas stungSe pats de caar eet. Stole (298) faz Uma interesante letra aces dese tema, Umponte importante sobre essa cecseio&asvbwersio qv hs, nocaro damn, do propa “stint presente no anima) pela pulse sexual humana). Aes, grande parte da sexo paticado, palo, menos ne ecdente, nao tem como fnaiade a proctiado, mas smplesmente 0 paae ja com exo humanos, sea com ojetosfetichizadosete) _ Portanto, no caso do racismo, de forma ainda mais cruel que ‘osexismo, ha uma exclusdo e uma leitura simbdlica violenta sobre os corpos negros, Como apontamos na introdugéo, lugares desempode- rados e de pouco prestigio levam ao sofrimento psiquico e se correla- cionam (vulnerabilizam) a transtornos mentais comuns, os quais, em rnossas pesquisas, parecem ser mais recorrentes — e ndo sem razio—em mulheres negras. A interseccionalidade traz, assim, especificidades im- portantes para a compreensao do sofrimento psiquico, as quais devem ser levadas em consideragdo em todo e qualquer atendimento e inter- ‘vencao em saéde mental e/ou psicossocial Braidotti (994) sublinha, dessa forma, como a subjetividade é uma rede de formagdes de poder simulténeas. A autora propée um projeto de uma subjetividade némade, na qual se faz necessério apontar as di- ferengas em pelo menos trés niveis: a) a diferenca entre homens e mu- Iheres; b) a diferenca entre as mulheres; c) as diferencas dentro de cada mulher. Trata-se, novamente, de enfatizar a ideia de interseccionalidade e da atengSo a um conhecimento/discurso situado, o que foi nomeado por algumas feministas como “politica da localizag3o", se opondo ao discurso metafisico presente nas ciéncias, de modo geral, que falam da “mulher” e do “homem” como esséncias em si mesmas (Mohanty, 1992; Phillips, 2992). Essa & uma discussao importante nos estudos feministas e de género atuais. De um lado, a necessidade de no afirmar um “préprio da mulher” que seja essencial (Rodrigues, 2009); de outro a necessidade de haver “algo em comum", ainda que transitoriamente®, para ser pos- sivel qualquer pensamento e estratégia politica, visto que as desigual- dades, apesar dos avancos, ainda persistem em muitas reas, como a econémica — desemprego, emprego informal, feminizacao da pobreza = Comoafiema Souza (28h"A secedadeescrovista ao rarsformaraaeano em esrav, defini 9 negro comma aga derarcovo su ley, armed atr esr tatade, os pans Ge iteryac comrobrancse insu paralelmo entre or negra eporigi socal inferior (p29) Aid, sgunso a ator, quand 8 saute toms o garda istna, quand acontingéncia se wransfrma em eteidade” (25) se nstaura ‘nto daldeclagia acl. O wraconl ovum oe, osuo, ext, ohpersexuaosuperpatente 0 sen Sito pare misialdanga seam represertagbesessoclodss a esse mio. Con a atoa: "Ser negranio€ ‘uma concgio dads, prot um vase Sernegro tomar negro (7) ‘Um autor fundamental par» dscusto do raciamo ea sei mental ¢ Frantz Fanon (2008), Em seu io “ele negra, méscaras banca, um dss 0 autor dscuteo impact do acme ea colonzafaosobve a subjetidde dos negros > Mohanty prope o temo *ceakso% ‘toe ea, cone €OSPOSTHG: ca eps jane — ov a violéncia psicolégica, fisica e sexual, sé para dar dois exemplos cujo impacto podemos ver claramente na satide mental das mulheres*. Spivak (2998) aponta, nesse sentido, a necessidade de mantermos um essencialismoybinarismo estratégico. E essa 2 posicdo que ado- taremos neste livro, quando tratarmos dos dispositivos. Temos uma leitura feminista das relagdes de gnero. Quando falamos de “mulher” e*homem" néo se trata de uma leitura essencialista, ingénua (caracte- ristica da segunda onda), mas de um binarismo essencialista estratégico, que nos auxilia a revelar certas estruturas presentes nos processos de subjetivagao de mulheres e homens em nossa cultura’, nesse momento histérico. Em sua aplicacdo, na prética, devem ser levadas em conside- ago, sempre, as idiossincrasias das interseccionalidades, principal- mente a de raca e classe social, as quals do, a esses dispositivos, facetas especificas, que merecem ser pesquisadas e compreendidas®, Algumas ideias e vivéncias fora do padrao branco, heteronormativo, me foram sugeridas por ouvintes em palestras que ja ministrei, ou em pesquisas nas quais entrevistei pessoas de sexos, racasfetnias e classes sociais dis- tintas. Apresenté-las-ei no momento oportuno. O intuito deste livro é, portanto, lancar mais questées do que resolvé-las. Abrir possibilidades de conversagao com especificidades de vivéncias que, em reposta leitura do livro, possarn nomear essas configuragdes. N3o conseguirei fazer uma anélise interseccional dos dispositivos, mas compartilharei ideias, intuigdes e reflexdes sobre ela. Minha anilise se baseard dessa forma na primeira distingo apontada por Braidotti, usando para isso de um essencialismo/binarismo estratégico. Hook (asa) apresenta importantes reflxes sobre essa quests, A autora apanta que a press podem nao sera mesmas equ & neces Metificase ormebas, para age laos pltcas cam hierzauas de urganca. Pobreta, rack e géero cam ogetessocas de desempoderamento as por razbes «de formas ferenten St primi segundo a ator, sgfearis no ter exahes Contarsamoe plenamente com a autora, mas cers dcitiresas excolhas hi van aeestemas quanto anor as As externas eapresentam como mats urgentes (ated acesso ao esi, falta de oportunades de ‘censio socal, dretos bios ee} mas o ftenes nde podem se xqueddas, poe tocar no tere do Colonizagao aft © Come aponta Pedro (0s, p 275h"O que serena a etomada da categoria ‘mulhe’ale mss na especie anterio, universe determina pels blog. Argumenta gue agar, ous0 dese categoria Sera ber-uind, ois se tataia de um eeenciaamo esratégico, ou ume ‘ategrastvada, van & ‘mobiiasie polite’ 5 Enacessii evar em conta, também fase do desenvohimerto. Como if apentamos em artigos publ cad, ferent aspecos tanta das performances quar da Weide a sersapio lena) de gerd podem er terpelas ecolocados tm neque en cadaYase” do deservakarent, Vale lear que es03 ses io cages eal etre, chancladas pals ccs soca pel scoop, cand of piigeffect. Case claro Sa nogio desnfineaeadlescinaa,Verem Aes (978). sé varseazano Fr Partindo das contribuigdes de Butler, Lauretis e Braidotti, pro- pomos entao explicitar, pela diferenca entre mulheres e homens, algo que subjaz, no momento histérico atual e em nossa cultura, como ca- minhos privilegiados de subjetivacio, construidos, mantidos, reafir- mados pelas tecnologias de género. Esses caminhos privilegiados de subjetivago s80 proporcionados, mantidos, interpelados, criados pelos “dispositivos", tais quais Foucault os compreendeu. Foucault (1996) define o dispositive como um conjunto decidida- mente heterogéneo que engloba discursos, instituigées, organizacées arquiteténicas, decisdes regulamentares, leis, medidas administra- tivas, enunciados cientificos, proposigdes filoséficas, morais, filantr: picas" (p. 244). Para ele, “o dito e 0 nao dito sao os elementos do dispo- sitivo, O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos” (Foucault, 2996, p. 244). Foucault distingue trés dimensdes em um dispositive: saber, poder e subjetividade. Na dimensio do saber, encontramos as curvas de visibilidade e de enunciagao. Os dispositivos configuram-se assim ‘em maquinas de fazer ver e de fazer falar. Em relaco ao poder, 0s dis- positivos implicam linhas de forga, distribuigo e tensao de forcas. E, por Ultimo, hd um processo de subjetivagao, uma producao de subjeti- vidades (Deleuze, 1990). Trata-se da “relagdo entre os individuos como seres viventes e 0 elemento histérico, entendendo com este termo 0 conjunto das insti- tuigdes, dos processos de subjetivagao e das regras em que se concre- tizam as relacdes de poder” (Agamben, 2009, p. 32). O dispositivo teria assim sempre uma fungao estratégica, resultante das relacdes de poder e de saber, a qual “parece remeter a um conjunto de praticas e meca- nismos (20 mesmo tempo linguisticos e nao lingufsticos, juridicos, téc- nicos e militares) que tm o objetivo de fazer frente a uma urgéncia e de obter efeito mais ov menos imediato” (Agamben, 2009, p. 35). Os dispositivos implicam sempre, portanto, um processo de sub- jetivacao, ou seja, devem produziro seu sujeito. Como aponta Agamben (2009, p. 40): "chamareiliteralmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptat, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opinides e os discursos dos seres viventes”. E “todo dispositivo implica ‘UD MENTAL CNR ISOS cree rece bean ss

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