Download as docx, pdf, or txt
Download as docx, pdf, or txt
You are on page 1of 9

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

Contraste claro e obscuro em “O que será”: Chico Buarque à luz da


semiótica greimasiana

Trabalho de aproveitamento da
disciplina de Teoria e Análise de
textos: Semiótica Narrativa e
Discursiva, da Prof. Dra. Renata C.
Mancini, para atribuição de nota no
segundo semestre do ano de 2023.

Alunos: Pedro Soares Bueno, Thales


Gabriel Sampaio Menis

Nºs USP: 13650365; 13652242

SÃO PAULO
2023
INTRODUÇÃO

A música “O que será (à flor da terra)”, uma das três versões da obra, foi
composta em 1976 por Chico Buarque para o filme “Dona Flor e Seus Dois Maridos”
— inspirado no livro homônimo do Jorge Amado — e cantada por ele e Milton
Nascimento. A música trata de uma sequência de orações interrogativas que, uma a
uma, trata de nuances acerca do mundo percebido pelo interlocutor e sua relação com
liberdade, personagens mundanos, sexo, entre outros assuntos.
Chico Buarque é famoso por cifrar muito bem em suas músicas algumas críticas
quanto ao período que vivia, como em Apesar de você, Jorge Maravilha e Cálice, esta
que cantou com Milton Nascimento também, de modo que muitas de suas músicas com
esse teor conseguiram passar pela censura da ditadura que o Brasil vivia.

OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é traçar o percurso gerativo de sentido do texto na


canção, utilizando dos métodos semióticos de Greimas para identificar a semântica e a
sintaxe discursiva, de modo a encontrar um caminho de leitura nesse enunciado para
decifrar e encontrar uma possível resposta para “o que será?”, oração que perpassa por
toda a letra.

METODOLOGIA

Valeu-se do percurso gerativo de sentido, estipulado por Greimas, em todos os


seus níveis para realizar a análise da obra referida.
ANÁLISE: Contraste claro e obscuro em “O que será”: Chico Buarque à luz da
semiótica greimasiana

Uma característica da música a ser analisada são os primeiros versos de cada


estrofe: “o que será que será”, um elemento interrogativo e reflexivo, que lembra uma
brincadeira de adivinhação; uma charada. A partir desse movimento repetitivo na obra
de um conhecimento que se busca encontrar através dessas perguntas para decifrar algo,
podemos identificar a categoria fundamental de /obscuridade/ (remetendo ao que é
enigmático e desconhecido), que por consequência pressupõe a categoria de /claridade/
(remetendo ao que se tem conhecimento, está nítido), formando, então, a relação de
oposição entre as categorias fundamentais, que será a base da semântica discursiva da
obra. A partir disso, temos um universo temático de segredos e um anseio por parte do
sujeito de revelá-los.
Para construir esse nível narrativo, determinemos primeiro o sujeito, que, neste
caso, será o “eu” projetado no texto. A partir desse sujeito fica claro uma “angústia” por
parte dele em estar em conjunção com um não saber acerca de algo que também não é
explicitado no texto (isso fica claro pelo movimento repetitivo de refletir sobre isso),
incitando-o a tomar ações que possibilitem que ele entre em conjunção com um saber.
Assim, o destinador é o próprio sujeito que se incita a agir para conseguir o saber da
resposta.
Este não saber e saber mencionados acima podem ser configurados como as
próprias categorias fundamentais de /obscuridade/ e /claridade/, onde /obscuridade/
impede o sujeito de entrar em conjunção com /claridade/, por conta da própria natureza
opositora de ambos. Portanto, o antissujeito é não saber e o objeto-valor, ter a resposta.
O nível narrativo do texto não é o nível principal no percurso gerativo de sentido
desse, que se sustenta melhor no nível de manifestação, deixando a maioria das fases
narrativas apenas presumidas e implícitas no texto, já que é um texto relativamente
expositivo. A fase de manipulação parece estar anterior ao texto e o sujeito é
manipulado por seu destinador através da tentação, que o faz querer-fazer saber dar a
resposta.
Ocorre, no entanto, uma sequência de programas narrativos de uso que doam ao
sujeito, na primeira e segunda estrofes, competências (neste caso, são adjuvantes) para
poder deixar de perguntar e começar a afirmar nas duas estrofes finais da música; o
ajudam a entrar em conjunção com o objeto-valor. Portanto, o programa narrativo de
base tem como sujeito o eu, objeto-valor é ter a resposta, o destinador é ele mesmo que
se manipula através de uma tentação de querer-fazer saber dar a resposta e o antissujeito
o não saber dar a resposta. Na sequência, cada uma das perguntas que ele realiza no
texto, já que aparentam tê-lo ajudado a deixar de perguntar para saber dar a resposta ao
final, servem como programas narrativos de uso que o ajudam a entrar em conjunção
com seu objeto-valor.
A performance, porém, aparece sendo apenas pressuposta pela sanção a partir da
terceira estrofe, quando sujeito se mostra capaz de fazer afirmações, e não só
questionamentos. Há, portanto, uma mudança repentina no que o sujeito fez. O
programa narrativo pode ser assim representado:

Em relação ao nível da manifestação, o enfoque principal da presente análise


não será a melodia da música, todavia, não a descartará. A primeira estrofe, nos seis
primeiros versos, versifica elementos que tratam da temática de não liberdade lexemas
relacionados à algo silencioso, obscuro, secreto e que não pode ser dito a plenos
pulmões (“suspirando”, “sussurrando”, “combinando no breu”). Daí, traça-se uma
isotopia de silêncio. Além destes, ocorrem também lexemas que remetem a lugares
fechados, cerceados por um limite e apertados (“alcovas”, “versos”, “trovas”, “tocas”,
“cabeças”, “bocas”, “becos”), logo, verifica-se uma isotopia de lugares restritos. Além
das figuras, ocorre também aliteração com o fonema oclusivo /k/ (“que”, “alcovas”,
“combinando”, “tocas,” “cabeças”, “bocas”, “becos”, “conserto”) e o fonema
fricativo /s/ (“será”, “sussurrando”, “suspirando”, “versos”, “acendendo”, “certeza”,
“conserto”), ambos sendo sons com traços fonológicos [+obstruintes], ou seja, sons que
encontram mais dificuldade para saírem do aparelho fonológico por conta da obstrução,
que se assemelha nesse significado ao lugar restrito ou apertado supracitado. Nos
últimos seis versos da primeira estrofe, ocorre um tema de liberdade (contrário ao dos
seis primeiros) figurado por “falando alto” e “gritam”, que traçam a isotopia de
expressão em alto volume, e pela isotopia de locais públicos-abertos que aparece em
“botecos”, “mercados” e “natureza”. “Boteco” também é um lugar apertado e, portanto,
também é parte da isotopia de “lugares restritos”, sendo um conector entre essas duas
isotopias, começando a “abrir” e publicizar, no texto, o que estava antes mantido no
restrito.
Na segunda estrofe, o foco principal é a figurativização por meio de um tema de
seres mundanos. Os lexemas que contêm o sema /ação/ (“juram” e “cantam”) remetem
ao tema de liberdade da primeira estrofe, pois se relacionam a um significado associado
à livre expressão. Nessa seção, observa-se uma isotopia aos “sem valor social”:
incluem-se a este campo semântico “amantes”, “poetas”, “profetas embriagados”,
“mutilados”, “meretrizes”, “bandidos” e “desvalidos”; além de uma outra isotopia para
a “libertação dos prazeres”, que perpassa às seguintes estrofes através das palavras “não
tem decência”, “não tem censura”, “não tem governo” e “não tem vergonha”. A
temática da liberdade agora já começa a ascender para o que virá a seguir. Essa
oposição entre os dois temas das duas primeiras estrofes conversa diretamente com as
categorias fundamentais de /obscuridade/ e /claridade/, em relação à não liberdade que
nos impede o acesso ao conhecimento e a liberdade que permite o acesso.
A terceira estrofe, repetida duas vezes, é a que funciona de maneira mais
dissonante em comparação com as duas primeiras, pois o tom conclusivo é muito mais
recorrente em comparação às outras. Ela é repleta de lexemas referentes à isotopia de
religião cristã (“sinos”, “hinos”, “consagrar”, “padre”, “abençoar”, “inferno”,
“desembestar”), além disso, parece haver uma figurativização de um tema de
dogmatismo religioso, por meio de algo que pretende ser descoberto e presumidamente
deveria ser evitado e não será, pois a igreja estará a favor (“os sinos irão repicar”, “os
hinos irão consagrar”, “o Padre Eterno vai abençoar”). No nível fundamental, isso
dialoga à medida que o tema de dogmatismo religioso representaria a categoria de
/obscuridade/, pois carrega consigo um teor de “não clareza”, o qual seus seguidores
seguem cegamente o que a religião tornar válido (dado que, por exemplo, o “aquele
inferno” da música já modaliza uma visão negativa para o padre — ou à Igreja — sobre
o que se pretende responder, já que o ideal aos cristãos não é viver no inferno). Mas,
apesar de conter a categoria de /obscuridade/, a estrofe reafirma e, então, floresce de
fato o tema das liberdades, já que a isotopia do sexo aparece de forma a ser modalizada
como algo irrefreável, pois nela contém “os meninos vão desembestar” e “não tem
vergonha”. Esta última se conecta à isotopia da libertação dos prazeres e pode-se
considerá-la como um dos componentes dela. Intercorre no texto uma isotopia de
imoralidade em “desembestar”, “inferno”, “não tem vergonha”, “plano dos bandidos”,
“amantes”, “embriagados”, “delirantes” e “dia a dia das meretrizes”, que entra em
choque com a isotopia da religião cristã ao final da música, pois esta última aparenta
não ter traço /imoral/ daquela, mas o /moral/.
Outro ponto que se ressalva nessa estrofe é que os versos têm mais duração nas
palavras finais, de modo que, alongando-as nas tônicas (por exemplo, em “E todos os
meninos vão desembesta::r/ [...]”), prevalece uma sensação de fluidez, diferente da
brevidade que era presente nos versos da primeira e segunda estrofe, dando a entender
que, ao mesmo tempo que a isotopia do sexo e da libertação dos prazeres aparecem no
texto, no mundo real, tendo esses conteúdos manifestados, tudo começa a fluir.
No que tange ao nível da sintaxe discursiva, encontramos predominantemente
um interlocutor “eu” falando em primeira pessoa para um interlocutário “tu” inscrito no
discurso, como se esperasse resposta da outra parte. O narrador está implícito no texto,
pois não aparece explicitamente como quem descreve algo objetivamente nos tempos
verbais típicos da narração, por exemplo.
Na categoria de tempo, prefere-se separar essa canção em duas, até por questões
de melodias semelhantes: uma no presente e outra no futuro do presente, embora
ambas, nos três versos finais de cada estrofe que as compõem, apresentem presentes
gnômicos. Na primeira parte (que abrange a primeira e a segunda estrofe), enuncia com
efeito de aproximação, pois quase sempre trata de um presente concomitante ao agora
enunciativo, como se observa em “que anda nas cabeças, anda nas bocas” e “que vive
nas ideias desses amantes” e, ademais, o verso “O que será, que será?” é usado como
uma embreagem enunciativa de tempo, pois é usada uma forma verbal que expressa
futuro, mas que está ligada a um presente, podendo ser reformulada para “O que é, o
que é? / Que andam suspirando pelas alcovas?”, por exemplo. Na segunda parte
(composta pela estrofe repetida ao final), o tempo é transpassado pelo futuro, onde a
embreagem deixa de existir para ser, de fato, um lexema que expresse e contenha a ideia
de futuro, tal qual é visto em “O que será que será? / Que todos os avisos não vão
evitar? / Porque todos os risos vão desafiar”. Esse transpassado é acompanhado pela
mudança na melodia e na altura das vozes, que somados à repetição da estrofe e a
duração longa das sílabas tônicas das últimas palavras de cada verso, que passam a ser
mais agudas, gera um efeito de ressonância dessas palavras com algo que deve ser
reiterado e causa distanciamento, sendo enuncivo.
Na categoria de pessoa, o enunciador fala sobre ele/eles, dado que todos os
verbos do texto têm em comum a terceira pessoa. Por essa objetividade, ocorre uma
debreagem enunciva de pessoa.
Separando-se o texto nas mesmas duas partes identificadas na categoria de
tempo, a debreagem de espaço é enunciva na primeira parte, dada a espacialização
marcada pelos adjuntos, por exemplo, em “Que andam sussurrando pelas alcovas?”,
“Que andam acendendo velas nos becos?” e “Que está na romaria dos mutilados?”; e
enunciativa na segunda, pois “lá” e “aquele inferno” (marcos de lugar) são sinônimos e
referenciam um “aqui”.

CONCLUSÃO

Viu-se a oposição fundamental no texto relacionado ao obscuro (enigmático) e o


claro (visível, nítido), pois a maior parte da música é perpassada pela charada e o anseio
de solucioná-la, fazendo o interlocutor “eu” da música se questionar até a metade dela
sobre o tal enigma.
O desenvolvimento do nível narrativo nos revela um programa narrativo de base
onde esse interlocutor procura ter uma resposta para essa adivinhação, a qual o seu
destinador é ninguém mais que ele mesmo. Ansioso por sabê-la, defronta-se com um
antissujeito definido pelo não saber a resposta, que o faz ter que superar uma “fase de
perguntação” para poder, enfim, se encontrar com o objeto-valor. Essas perguntas
realizadas ao longo do texto servem de programas narrativos de uso, que, apesar de não
se ter respostas imediatas para esses questionamentos, pressupõe-se uma conjunção com
o programa de base — e, portanto, agem como adjuvantes ao sujeito em busca do seu
objeto-valor —, pelo fato do tom conclusivo predominante dado na terceira estrofe em
diante, que permitem inferir que o sujeito já chegou a uma capacidade de dar a resposta
ao que se questionava.
Ao analisar o nível discursivo, percebe-se que as isotopias perpassam o texto
inteiro associadas à oposição fundamental da obra, de modo que a imoralidade, os
lugares apertados, o silêncio e a não liberdade são associadas ao campo /obscuro/,
enquanto as isotopias de expressão em alto volume, dos lugares aberto-públicos, da
libertação dos prazeres (que se relaciona à da imoralidade, a do sexo, a dos sem valor
social). A actorialização nos permite identificar que o narrador está implícito antes do
texto, como quem dá a voz para o interlocutor, que decorre a falar por toda a música,
questionando em boa parte, como alguém que espera resposta de um “tu” inscrito no
discurso. As categorias de pessoa-espaço-tempo permitem visualizar na primeira parte
um interlocutor falando sobre eles-alhures-agora, e eles-lá-então na segunda parte.
No nível da manifestação, aliterações de oclusivas e fricativas nas duas
primeiras estrofes revelam, para além do conteúdo, que a expressão também está com
sentido de estar “difícil de liberar”; algo que se quer sair, mas encontra certa
dificuldade.
Com a presença do tema da libertação dos prazeres e do sexo, do campo da
/clareza/, esses níveis do percurso gerativo de sentido e a atribuição de valores eufóricos
e disfóricos aos temas apresentados, nesta leitura realizada, revelam um apreço pela
libertação, sobretudo sexual e moral. Dada a fama do autor de cifrar temas polêmicos de
maneiras tão sutis, vê-se a necessidade desse tipo de libertação numa sociedade onde a
moral exacerbada e a liberdade eram restritas, que também é retratada no filme.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOLLANDA, F. B. de. O que será (à flor da terra). In: Meus Caros Amigos. Rio de
Janeiro: Phonogram/Philips. 1976. (2 min 47 s)
FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. 15ª edição. 6ª reimpressão
São Paulo: Editora Contexto, 2022.
GREIMAS, A. J. Semântica Estrutural. [S. l.]: Cultrix, 1973.

You might also like