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002301_impulso_36.

book Page 1 Thursday, July 22, 2004 4:20 PM

IMPULSO, Piracicaba, v. 15, n. 36, p. 1-163, jan./abr. 2004


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Revista de Ciências Sociais e Humanas


Journal of Social Sciences and Humanities

INSTITUTO EDUCACIONAL PIRACICABANO – IEP Bolsista-atividade: OLÍVIA SILVA CARMO RAMON


Edição de texto: MILENA DE CASTRO
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IMPULSO 36 (jan./abr. • 2004)
“Biotecnologia & Sociedade” / “Biotechnology and Society” Impulso é indexada por / Impulso is indexed by
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Editorial

BIOTECNOLOGIA E SEU
IMPACTO NA SOCIEDADE

Biotecnologia é, sem dúvida, tema central na agenda de debates


contemporâneos, sobretudo nas áreas das ciências da vida, engenharia
genética, agricultura e medicina. Não sem razão, ela compõe a pauta
de discussões políticas, sociais e econômicas em vários países. Dada sua
importância atual e futura, é de se esperar que a Impulso também se
voltasse a essa temática, alinhando-a aos demais assuntos tradicional-
mente tratados em suas páginas.
Este número da Impulso seleciona um aspecto pontual, mas de
suprema importância em tal problemática, embora muitas vezes rele-
gado: o impacto da biotecnologia na sociedade. Esse debate, ao qual
uma seção inteira deste volume é dedicada, é abrangente o suficiente
para incluir questões relativas à política, ao direito, à economia, ao
meio ambiente, à saúde e ao próprio auto-entendimento da espécie
humana – ganhando também profunda dimensão antropológica e
metafísica. Concentramo-nos, porém, em duas vertentes: as novas
controvérsias éticas e morais que surgem a partir do potencial da apli-
cação da biotecnologia a seres humanos e a polêmica com relação à
utilização da biotecnologia no processo de transformação e possível
melhoramento genético de plantas e alimentos.
O primeiro assunto é abordado de modo direto, polêmico e
perspicaz por Peter Singer e Martha Nussbaum. Singer – considerado
um dos pais da bioética e conhecido por suas posições radicais com re-
lação a pobreza, direitos dos animais, eutanásia e aborto – discute vá-
rias posições a favor e contrárias à interferência no processo de gesta-
ção humana, para enfim propor uma política pública de melhoramen-
to genético, como forma de socializar o potencial da biotecnologia.
Martha Nussbaum – também reconhecida internacionalmente por
suas interpretações da tradição filosófica grega, por sua defesa da igual-
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dade social e do papel fundante das emoções na vida humana – com-


plementa o debate, ao passar em revisão o livro From Chance to Choi-
ce e defender – a partir do exemplo de Bill e Katherine em sua con-
corrência por um emprego – a necessidade de políticas públicas que
garantam a igualdade sem perda da pluralidade. Em ambos os casos,
a preocupação fundamental colocada é: o que ocorre em uma socie-
dade na qual alguns de seus membros podem lançar mão da biotec-
nologia para seu melhoramento genético enquanto outros são priva-
dos de tal possibilidade?
O segundo tópico é tratado de modo não menos polêmico por
Vandana Shiva, Rafaela Guerrante, Eduardo Spers, Décio Zylbersztajn
e Claúdio Antônio Pinheiro Machado Filho, que discutem os aspectos
sociofilosóficos, políticos e econômicos inerentes aos organismos ge-
neticamente modificados e aplicados como solução ao problema da se-
gurança alimentar. Shiva – notória por sua aguda crítica a concepções
filosóficas eurocêntricas e sua denúncia da manipulação exercida por
grandes empresas multinacionais no campo ambiental – desvenda os
mitos da engenharia genética, questionando o argumento segundo o
qual a biotecnologia combateria a fome, a desnutrição e a pobreza no
mundo. Denuncia, também, o controle exercido por grandes corpo-
rações atuantes no chamado Terceiro Mundo, especialmente quando
monopolizam o conhecimento que deveria ser público. Guerrante
complementa e aprofunda essa perspectiva, ao mostrar em detalhe o
comportamento estratégico das cinco maiores empresas mundiais
atuantes no mercado de sementes geneticamente modificadas, concen-
trando-se sobretudo em questões de marketing e propriedade intelec-
tual que lhes vêm garantindo um monopólio na área. Por fim, Spers,
Zylbersztajn e Machado Filho revisam o papel desempenhado por ins-
trumentos públicos e privados para assegurar a qualidade dos alimen-
tos, sugerindo ações que elevem a percepção de qualidade por parte
do consumidor, no que se refere a possíveis riscos associados aos ali-
mentos.
Em “Conexões Gerais”, a seção dedicada a temas variados, esta
edição da Impulso traz artigos de Rogério Guerra, Francesco Borelli,
José Augusto Lindgren Alves e Sebastião Marques Cardoso. O traba-
lho de Guerra guarda certa relação com a abordagem da biotecnolo-
gia, ao tratar da história da utilização de animais na pesquisa científica
e mostrar a tensão entre os defensores dos direitos dos animais e as ne-
cessidades da ciência experimental. O texto de Borelli também não
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está longe do núcleo temático, pois lida justamente com Justiça, com
ênfase no princípio de igualdade, resgatando elementos da filosofia
grega que amparam o debate desenvolvido por Singer e Nussbaum.
Lindgren Alves apresenta um ensaio sobre a história e situação atual
dos Balcãs, material este que deverá ter continuidade em edição futura
da Impulso. Nesta primeira parte, mostra como a mídia negligencia a
situação política naquela região, propondo-se a resgatar sua história e
tirá-la da marginalidade, ao revelar-nos sua importância geopolítica e
cultural. No artigo final, Cardoso retoma um assunto caro à revista,
mas desde há muito não discutido, que é a crítica literária no Brasil. Ao
reavaliar a obra de Roberto Schwarz e Costa Lima, indica que, apesar
de suas diferenças, ambos não são casos isolados, mas se unem ao estar
inseridos numa tradição crítica comum e originalmente brasileira.
A seção “Comunicações” traz a polêmica de Daniel Jones com
relação a dois textos publicados anteriormente na Impulso, no número
34. Segundo Jones, o “status epistemológico” do tema então proposto
, “religião em diálogo”, não é cumprido. Em detalhada revisão de dois
dos textos da seção “Religião, Cultura e Gênero”, ele apresenta sua
argumentação.
“Resenhas e Impressões”, assinadas neste número por Eduardo
Mendieta e Maria Rita Marques de Oliveira, vinculam-se, por fim, aos
dois subtemas discutidos no início, na seção “Biotecnologia e Socieda-
de”. Mendieta se concentra na obra recente de Jürgen Habermas para,
por meio de uma leitura crítica, questionar algumas polêmicas posi-
ções da ética do discurso sobre o potencial da aplicação da biotecno-
logia a seres humanos. Marques de Oliveira traz, sob o prisma das ciên-
cias da saúde, o impacto da questão dos alimentos geneticamente modi-
ficados, ao avaliar duas obras: Transgênicos: bases científica da sua segu-
rança, de Franco Maria Lajolo & Marília Regini Nutti, e Biotecnologia
e Nutrição, de Neuza Maria B. Costa & Aluízio Borém.
Olhando retrospectivamente, podemos observar que as várias
seções mantêm uma congruência, a despeito de suas diferentes abor-
dagens. Sem dúvida, discutindo a biotecnologia, tratando de proble-
máticas políticas ou tecendo comentários sobre crítica literária, os ar-
tigos e as resenhas parecem haver tocado um ponto em comum: a
necessidade de políticas públicas que garantam a igualdade social e
que, ao mesmo tempo, respeitem o marco sociocultural que nos é
comum.
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Não há dúvida que as mudanças trazidas pelas várias áreas su-


bentendidas no âmbito da “biotecnologia” são ainda incipientes e suas
implicações, em grande parte, desconhecidas. Há novas perguntas,
para muitas das quais respostas ainda não foram vislumbradas. Espe-
ramos que as questões levantadas nesta edição da Impulso nos ajudem
a criar uma nova pauta de discussões a partir do novo paradigma das
ciências da vida – em seu sentido o mais amplo possível.

COMISSÃO EDITORIAL
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...............................
Biotecnologia & Sociedade
Biotechnology and Society
Fazendo Compras no Supermercado Genético
Shopping at the Genetic Supermarket
PETER SINGER (Princeton University/EUA) 13

Genética e Justiça: tratando a doença,


respeitando a diferença
Genetics and Justice: treating disease,
respecting difference
MARTHA C. NUSSBAUM (University of Chicago/EUA) 25

Biotecnologia e Organismos Geneticamente


Modificados – soluções ou novos problemas
Biotechnology and GMO’s – solutions or new problems
VANDANA SHIVA (Research Foundation for Science,
Technology and Ecology, Nova Déli/Índia) 35

O Papel Público e Privado na Percepção do


Consumidor sobre a Segurança dos Alimentos
The Public and Private Role in the Consumer
Perception over Food Safety
EDUARDO EUGÊNIO SPERS (UNIMEP, Brasil) Summary
DÉCIO ZYLBERSZTAJN (Universidade de São Paulo)
CLAÚDIO ANTÔNIO PINHEIRO MACHADO FILHO (UNIMEP, Brasil ) 45
Sumário
Comportamento Estratégico das Grandes
Empresas do Mercado de Sementes
Geneticamente Modificadas
Strategic Behaviour of the Large Companies Operating
in the Genetically Modified Seed Market
RAFAELA DI SABATO GUERRANTE
(Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI/RJ, Brasil) 59
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...............................
Conexões Gerais
General Connections
Conflitos e Justiça
Conflicts and Justice
FRANCESCO SAVERIO BORRELLI (procurador-chefe
dos Ministérios Públicos, Milão/Itália) 79

Sobre o Uso de Animais na


Investigação Científica
On the Use of Animals in Scientific Investigation
ROGERIO F. GUERRA
(Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil) 87

Os Bálcãs Novamente Esquecidos


The Balkans again Forgotten
J.A. LINDGREN ALVES (diplomata brasileiro
e membro do Comitê para a Eliminação da
Discriminação Racial, CERD, Suíça) 103

Caminhos da Crítica Literária Brasileira:


Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima
The Paths of Brazilian Literary Criticism:
Roberto Schwarz and Luiz Costa Lima
Summary

SEBASTIÃO MARQUES CARDOSO (Unicentro/PR, Brasil) 117


Sumário

...............................
Comunicações
Communications
Perguntas Epistemológicas de um
Homem Heterossexual. Comentários sobre
alguns artigos da Impulso 34
Epistemological Questions of a Heterosexual
Man. Comments on some articles of Impulso 34
DANIEL JONES (Universidad de Buenos Aires/Argentina) 131
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...............................
Resenhas & Impressões
Reviews & Impressions
Liberdade Comunicativa e Engenharia Genética
Communicative Freedom and Genetic Engineering
Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem
Weg zur einer liberalen Eugenik?,
de Jürgen Habermas
EDUARDO MENDIETA (State University of
New York at Stony Brook, Nova York/EUA) 143

Uma Leitura dos Alimentos Geneticamente


Modificados sob a Ótica da Complexidade
Approaching Genetically Modified Organisms
within the Scope of the Complexity Theory
MARIA RITA MARQUES DE OLIVEIRA (UNIMEP, Brasil) 155

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO


Editorial Norms 159

Summary
Sumário
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Biotecnologia & Sociedade


Biotechnology and Society
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Fazendo Compras no
Supermercado Genético
SHOPPING AT THE GENETIC SUPERMARKET*
Resumo Este artigo parte da afirmação do filósofo estadunidense Robert Nozick,
que, já em 1974, vislumbrara a possibilidade de um supermercado genético, e da po-
sição de Diane Beeson, contrária às atuais práticas de diagnóstico pré-natal. Tomando
por base essas duas posições, são discutidos os argumentos e dilemas relativos à defesa
ou ao ataque às possibilidades de melhoramento genético. Mantendo uma distância
crítica com relação a essas, mas, ao mesmo tempo, levando a sério suas probabilidades,
os processos de exclusão apoiados no melhoramento genético são aqui criticados e
enfatizado o princípio de igualdade de condições de escolha como alternativa ao pro-
blema. Por fim, apóia-se a idéia da ingerência do Estado nessa questão, na condição
de promotor de uma loteria que socializaria para toda a população as possibilidades do PETER SINGER
melhoramento genético, ao invés de deixá-la somente nas mãos do mercado. Princeton University/EUA
psinger@princeton.edu
Palavras-chave BIOÉTICA – MELHORAMENTO GENÉTICO – DIAGNÓSTICOS
PRÉ-NATAIS – SETOR PÚBLICO – INICIATIVA PRIVADA.

Abstract This essay starts from an affirmation of the American philosopher Robert
Nozick, that in 1974 foresaw the possibility of a genetic supermarket, and of Diane
Beeson’s position contrary to the current practices of prenatal diagnosis. Taking into
account these two positions, arguments and dilemmas as well as defenses or attacks
on the possibilities of genetic enhancement. Maintaining a critical distance from these
positions, but at the same time, taking their probabilities seriously, he reviews the
processes of exclusion supported by genetic enhancement, while emphasizing the
equality of choice conditions as an alternative to the problem. Finally, the State’s
intervention in this question is supported, as promoter of a lottery that would
socialize the possibilities of genetic enhancement for the whole population, instead of
leaving it exclusively on the hands of the market.

Keywords BIOETHICS – GENETIC ENHANCEMENT – PRENATAL DIAGNOSIS –


PUBLIC SECTOR – PRIVATE ENTERPRISE.

* Tradução do inglês para o português de AMÓS NASCIMENTO (AAI/UNIMEP).

Impulso, Piracicaba, 15(36): 13-23, 2004 13


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Considere o tema da engenharia genética. Muitos biólogos tendem a pensar


que o problema é uma questão de design, de se especificar os melhores tipos
de pessoas, de modo que eles possam vir a produzi-las. Assim, preocupam-se
com o(s) tipo(s) de pessoas que podem vir a ser criados e sobre quem deverá
controlar esse processo. Não são levados a pensar, talvez porque isso possa
diminuir a importância de seu papel, num sistema no qual eles venham a
gerenciar um supermercado genético que satisfaça as especificações indivi-
duais (dentro de certos limites morais) de pais em potencial (...). Esse sistema
de supermercado tem a grande virtude de não pressupor nenhuma decisão
centralizada que fixe o(s) tipo(s) humano(s) futuro(s).1
NOZICK, 1974, P. 315N

GENOCÍDIO DA CULTURA DOS SURDOS?

O
supermercado genético já parece ser uma realidade,
com propaganda publicitária em The Prince e outros
periódicos dos campi das melhores universidades dos
Estados Unidos [Ivy League], em que se oferecem
grandes somas de dinheiro para obter óvulos de mu-
lheres de alta estatura e com pontuação elevada nos
testes SAT.2 Mas isso ainda não quer dizer nada.
Obviamente a seleção genética já existe há muito, de for-
ma um tanto mais manifesta nos diagnósticos pré-natais anteriores à realiza-
ção de um aborto. Por isso, Diane Beeson tem se oposto às práticas atuais des-
ses diagnósticos, com base no seguinte argumento:
A suposição central por trás da realização de um diagnóstico pré-natal
é que a vida com algum tipo de deficiência não vale a pena e representa
sobretudo uma fonte de sofrimento (...). Visto da perspectiva dos di-
reitos das pessoas com necessidades especiais, o teste pré-natal para
averiguar anomalias fetais pressupõe uma forte mensagem no sentido
de que buscamos eliminar futuras pessoas com deficiências, sem re-
conhecer-lhes o valor social, além de transmitir a idéia de uma desva-
lorização daqueles que vivem atualmente com alguma deficiência ou
necessidade especial (...). Ao concentrar tantos recursos na eliminação
de possíveis pessoas deficientes, nos deixamos levar na direção do res-
surgimento de uma eugenia diversa apenas superficialmente de mo-
delos anteriores. Nesse processo, estamos distorcendo seriamente o
propósito histórico da medicina como cura. Estamos criando uma so-
ciedade na qual a deficiência é cada vez mais estigmatizada e, como re-

1 “Consider (…) the issue of genetic engineering. Many biologists tend to think the problem is one of
design, of specifying the best types of persons so that biologists can proceed to produce them. Thus
they worry over what sort(s) of person there is to be and who will control this process. They do not
tend to think, perhaps because it diminishes the importance of their role, of a system in which they run a
“genetic supermarket,” meeting the individual specifications (within certain moral limits) of prospective
parents (…). This supermarket system has the great virtue that it involves no centralized decision fixing
the future of human type(s).
2 Nota do Tradutor (N.T.): o SAT é um exame de acesso à universidade similar ao ENEM no Brasil, no qual
são avaliados os estudantes do Ensino Médio oriundos de diferentes escolas e Estados.

14 Impulso, Piracicaba, 15(36): 13-23, 2004


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sultado, a imperfeição humana, de qual- modo que, no futuro, suas crianças possam fre-
quer tipo, torna-se cada vez menos tolera- qüentar uma boa escola ou universidade.
da e suscetível de ser aceita como uma
Já no que se refere à segunda questão, co-
variação normal da humanidade.3
mecemos pelo fato de que, de acordo com a de-
O implante coclear no ouvido, o descobri- cisão do processo jurídico envolvendo Roe con-
mento do gene da acondroplasia e o uso do abor- tra Wade, uma mulher nos Estados Unidos pode
to seletivo, para evitar o nascimento de crianças interromper sua gravidez, por qualquer razão, en-
com Síndrome de Down, servem para testar os li- tre o primeiro e o segundo trimestre de gestação
mites do nosso apoio às políticas de igualdade e ou, pelo menos, até o momento em que o feto
diversidade. Afirmamos crer que todos os huma- seja viável [“or at least until the fetus is viable”].
nos são iguais e que valorizamos a diversidade. Logicamente isso não significa que ela esteja eti-
Mas será que a nossa crença na igualdade vai tão camente justificada para tomar tal decisão. Al-
longe a ponto de duvidarmos se é melhor não ter guns autores argumentam que nunca é possível
uma deficiência do que tê-la? Será que o valor que encontrar uma justificativa ética para interromper
atribuímos à diversidade significa que devemos uma gravidez, ao passo que outros admitem essa
nos opor a qualquer medida capaz de debilitar a possibilidade quando há perigo de vida e em caso
cultura dos surdos, ou reduzir o número de pes- de estupro ou incesto. Contudo, Beeson e vários
soas nascidas com Síndrome de Down ou com outros, preocupados com a questão do diag-
acondroplasia? Devemos limitar o uso de recur- nóstico pré-natal, não baseiam seus argumentos
sos públicos para diagnósticos pré-natais ou para no princípio de oposição ao aborto. Por esse mo-
implantes cocleares no ouvido? tivo, em vez de me dedicar aqui a discutir esse as-
pecto, afirmarei simplesmente, como já o fiz em
Para avaliar essas críticas ao diagnóstico
outro artigo, que não considero o feto uma classe
pré-natal, pode ser útil pensar por um instante
de ser que tenha direito à vida.4
sobre duas questões inter-relacionadas. Primeira-
mente, qual é a importância dada pela maioria dos Assim, não é difícil justificar a interrupção
pais e mães ao fato de brindar seus filhos e filhas de uma gravidez. Suponhamos, por exemplo, que
com o melhor início de vida possível? Em segun- um casal tenha planejado filhos, mas que uma
do lugar, qual a seriedade do motivo que uma gravidez inesperada tenha ocorrido antes de eles
mulher deve ter para justificar a interrupção de se sentirem preparados para tanto. Digamos que,
sua gravidez? naquele momento, eles dividiam o pequeno espa-
ço de uma kitchenette e que não tinham condições
A resposta à primeira pergunta é que, para
de assumir os gastos de uma moradia maior, mas
a maioria dos pais, dar a seus filhos o melhor iní-
que, em cinco anos, poderiam mudar-se para um
cio de vida possível consiste em algo extrema-
lugar mais espaçoso. Na minha opinião, não es-
mente importante. O desejo de que isso de fato
tariam agindo de modo imoral se decidissem fa-
ocorra leva mulheres grávidas que tenham fuma-
zer um aborto.
do ou bebido a lutar fortemente contra seu vício.
Milhões de livros são vendidos a fim de ensinar Imaginemos agora um casal cujo filho que
os pais sobre como ajudar seus filhos a alcançar o a mulher carrega no ventre terá alguma deficiên-
seu potencial – razão pela qual muitos casais mu- cia, por exemplo, a Síndrome de Down. Como a
dam-se para os subúrbios, onde as escolas são maioria dos pais, esses consideram importante
melhores, mesmo que eles tenham de empregar dar o melhor começo de vida possível ao filho e
boa parte de seu tempo diário viajando. Essa in- não acreditam que a Síndrome de Down o seja.
tenção estimula também a poupança familiar, de Será que esse casal deve aceitar que a vida com de-
ficiência não vale a pena e que é sobretudo uma
3BEESON, 2000, p. 2. Para alguns argumentos similares, cf.
NEWELL, 1999, p. 68; e ASCH, 1999, p. 1.649-1.657, esp. p. 1.650. 4 Cf. SINGER, 1993, cap. 5.

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fonte de sofrimento? As possíveis justificativas do aborto? Tal preocupação parece altamente se-
para a suposição desses pais não são melhores do letiva. Seguramente, ela está por trás da mensa-
que as dos pais que resolvem interromper a gra- gem de cada garrafa de bebida alcoólica vendida
videz por considerar que não têm como arcar nos Estados Unidos, que traz no rótulo as se-
com os custos de um apartamento maior. Isso se guintes palavras: “Advertência do governo: de
tomarmos por base a suposição de que a vida de acordo com o médico, mulheres não devem con-
uma criança num apartamento de um só cô- sumir bebidas alcoólicas durante a gravidez, por
modo, dividindo-o com seus pais, não vale a pena causa do risco de ocorrência de deformidades no
e é sobretudo uma fonte de sofrimento. recém-nascido”.
Em ambos os casos, tudo o que os pais ne- Será que essa advertência – bem mais visível
cessitam aceitar é que seria melhor ter um filho ao norte-americano comum do que o diagnóstico
sem Síndrome de Down ou um filho que possa pré-natal – não envia a forte mensagem de que se
ter o seu próprio quarto de dormir. Afinal de deve evitar o nascimento de crianças com defei-
contas, em nenhuma das duas situações os pais tos? E o que há por detrás das mensagens das
estão decidindo ou não ter um filho – o que estão campanhas de vacinação contra a rubéola? Al-
tendo é a opção de escolher entre ter esse filho ou guém poderia, com toda a seriedade, propor a re-
algum outro, que, com uma certa dose de confiança, tirada de tais advertências governamentais ou de-
eles guardam a esperança de poder gerar mais tar- fender o encerramento desses programas de va-
de, em circunstâncias mais auspiciosas.5 cinação?
Portanto, é possível justificar o aborto nes- O desejo do médico aqui é que as mulheres
sas circunstâncias e, ao mesmo tempo, como sus- não tenham filhos com deficiência em virtude do
tenta Beeson, aceitar que as pessoas com defi- consumo de álcool. E isso não implica, de modo
ciências congênitas freqüentemente alcançam o algum, que a preocupação dele com os interesses
mesmo nível de satisfação em sua vida que as pes- das pessoas com deficiências ou necessidades es-
soas sem deficiência.6 Um casal pode pensar, com peciais seja menor do que por aquelas sem qual-
razão, que o termo freqüentemente não é suficiente. quer deficiência. Como já argumentei anterior-
Da mesma forma, pode admitir – assim como eu mente, devemos ter igual consideração por todos
– que, muitas vezes, pessoas com Síndrome de os seres que tenham interesses,7 ainda que, no meu
Down são carinhosas e queridas, que têm vidas modo de ver, essa seja a base fundamental da igual-
felizes. Ainda assim, são capazes de pensar que dade, tanto no âmbito da nossa própria espécie
isso não é o melhor a fazer por seu filho. Talvez quanto entre ela e os seres de outras espécies que
queiram apenas ter um filho que, eventualmente, tenham seus interesses, razão pela qual essa mesma
se converta em seu par intelectual, alguém com base pode não satisfazer os defensores das pessoas
quem possam ter conversas interessantes ou que com deficiências. Mas que outro sentido defensá-
lhes dê netos e os ajude quando chegarem a uma vel pode ser dado à idéia da igualdade de valor?
idade mais avançada. Esses não são desejos pouco Mesmo nos casos em que os implantes co-
razoáveis a um pai ou uma mãe. cleares não são genocidas e os diagnósticos pré-
O que ocorre, então, com a forte mensa- natais combinados ao aborto seletivo não se pa-
gem de que buscamos eliminar futuras pessoas com reçam, em absoluto, com antigas práticas de eu-
deficiências, a qual, segundo Beeson, é efetivada genia, eles ainda poderiam ser considerados injus-
por meio das práticas do diagnóstico pré-natal e tos. Mas lembremos o seguinte princípio: em
qualquer condição X, se houvesse uma forma de
5 Allen Buchanan faz a mesma observação, utilizando o exemplo de abuso infantil imposta pelos pais a seus filhos
uma mulher que adia a decisão de ter uma criança por conta de estar logo após o nascimento, deveria, então, ser per-
vivendo num campo de refugiados. Cf. BUCHANAN, 1996, p. 18-
45, esp. p. 29.
6 BEESON, 2000. 7 SINGER, 1990, cap. 1.

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missível, em igualdade de circunstâncias, ao me- nidade dos surdos, sobretudo no que diz respeito
nos tomar medidas para evitar essa condição ao ao crescimento dela no grupo social ao qual per-
próprio filho. tencem seus pais. Entretanto, isso não lhes justi-
Não proponho esse princípio como uma fica a atitude.
verdade auto-evidente, nem como uma derivação No caso de responder a esse exemplo da
de algum fundamento moral particular, mas forma como eu acabo de fazê-lo, e se o princípio
como algo possivelmente atrativo a muita gente, por mim proposto vier a ser aceito, infere-se daí
independentemente de suas concepções morais. que ao menos se permita aos pais, em igualdade
Esse princípio preventivo, como tratarei de cha- de circunstâncias, tomar medidas para assegurar
má-lo, requer rechaçar o ponto de vista de que o que seus filhos não sejam surdos.
fato de que algo resulta da loteria genética é su- Esse argumento traz a dificuldade de se es-
ficiente para que seja correto. Por que alguém tabelecer até onde ir com tal discussão. Ser negro
acreditaria nisso? Acho que acreditaria apenas se é uma deficiência? Ser homossexual é uma defi-
pensasse, no fundo, que a loteria genética não é ciência? O caso racial pode ser facilmente dife-
realmente uma loteria, e sim uma obra da divina rençado do da surdez, pois embora seja certo que
Providência. Se fosse esse o caso, poderíamos en- as pessoas surdas devem superar algumas barrei-
tão pensar que é incorreto interferir na ordem na- ras sociais, é também indiscutível o fato de elas
tural das coisas. No entanto, deixando de lado não disporem da capacidade de audição. Os afro-
essa perspectiva, por falta de evidência que a americanos, por exemplo, não sentem falta de ne-
apóie, assumamos a posição de que a loteria ge- nhuma outra faculdade característica de pessoas
nética é realmente uma loteria. Assim, se não há de outras raças; o que há são padrões de discri-
nenhuma barreira moral a nos impedir de inter- minação ou preconceito. Portanto, ser negro não
ferir no modo como as coisas são, o princípio é uma deficiência.
preventivo parece sólido. E quanto a ser homossexual? Enquanto
Tentemos agora aplicar o princípio preven- gays e lésbicas não dispõem da faculdade de se
tivo aos casos aqui tratados. Suponhamos que um sentir sexualmente atraídos pelo sexo oposto, os
casal de surdos dê à luz uma filha que pode ouvir heterossexuais não têm tal disposição com rela-
normalmente. Em razão de os pais valorizarem ção a pessoas de seu próprio sexo. Essa linha de
sobremaneira sua própria pertinência à comuni- argumentação implica que, a menos que sejamos
dade de surdos, e temerem que sua filha não seja bissexuais, sofremos de deficiência erótica. É
parte dessa comunidade, eles fazem alguns arran- possível defender que os homossexuais não têm
jos com o cirurgião – nesse caso, uma pessoa capacidade porque não desfrutam de relações se-
compreensiva – para que ele destrua o ouvido da xuais ditas normais envolvendo um pênis e uma
garota. A intervenção, levada a cabo sob anestesia vagina? Essa questão exigiria sustentar que esse
geral, não causa nenhuma dor, mas seu objetivo é tipo de relação sexual é superior a aquelas dos
cumprido. A partir de agora, a menina será per- gays e lésbicas, mas ignoro a maneira como, na
manentemente surda. Será esse um caso de abuso ausência de um argumento apoiado na lei natural,
infantil? Creio que sim. O procedimento dos semelhante asseveração possa ser fundamentada
pais assegurará à garota nunca conseguir ouvir a satisfatoriamente.8
música de Beethoven, um riacho murmurante ou Talvez uma melhor forma de encarar a ho-
lições e debates falados, a não ser por meio de tra- mossexualidade como deficiência seria com base
dução. A menina se encontrará também em des- na concepção de que os homossexuais são inca-
vantagem em outras inumeráveis circunstâncias. pazes de ter filhos com quem se sentem atraídos
Mas, indubitavelmente, também deveremos con- sexualmente e, por conseguinte, de levar uma
siderar os benefícios a serem conquistados pela
menina em virtude de ela tomar parte na comu- 8 Cf. SINGER & WELLS, 1985, p. 24-29.

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vida familiar normal. É questionável que essa se os genes de pelo menos uma pessoa diferente.
trate de uma deficiência, assim como também o Nas próximas duas décadas, provavelmente tere-
seja a incapacidade de ouvir. No entanto, supo- mos uma quarta opção: o melhoramento genéti-
nhamos que ela represente, de fato, uma deficiên- co de nossos próprios embriões. Disponível essa
cia. Mesmo nesse caso, seria uma deficiência a ser possibilidade, muitos pais terão interesse em uti-
superada prontamente, na medida em que apren- lizá-la.
dêssemos a misturar gametas de pessoas do mes- Esforçamo-nos tanto em modelar o entor-
mo sexo e a injetá-las num óvulo sem núcleo. Ca- no de nossos filhos, para dar-lhes o melhor co-
sais de lésbicas teriam, então, que decidir somen- meço na vida, que, quando tivermos a habilidade
te qual delas levaria a criança, ao passo que os de escolher seus genes, é improvável que venha-
gays precisariam encontrar uma mãe substituta mos a abrir mão dessa possibilidade. O que po-
ou de aluguel, disposta a carregar-lhes um filho. deria refrear alguns pais potenciais são fatores
Tornando-se isso possível, seria difícil defender como o risco, o custo e a dúvida de que a criança
em que sentido os homossexuais poderiam ser seja-lhe realmente filha no sentido biológico. Até
considerados deficientes. agora, isso tem representado um obstáculo aos
Nesse sentido, ao se decidir por não ter fi- casais dispostos a utilizar óvulos e esperma doa-
lhos deficientes, os pais atestam que valorizam dos por terceiros. Mas o rápido crescimento de
muito mais a possibilidade de ter um filho sem nosso conhecimento sobre a genética humana
deficiências do que ter um filho com alguma de- fará com que logo seja possível ter filhos geneti-
ficiência, e que esse arrazoado pode, em princí- camente nossos e, mesmo assim, geneticamente
pio, ter fundamento. Contudo, o que ocorre superiores aos filhos possíveis de ser produzidos
quando se decide ter uma criança com caracterís- contando com a sorte dos processos normais de
ticas superiores à média, em vez de se evitar ter reprodução.
uma criança com deficiência? Tal método começará com um monitora-
mento genético cada vez mais sofisticado dos
COMPRANDO BELEZA E CÉREBRO embriões in vitro. Não há dúvida de que, em bre-
Como assinalamos anteriormente, os pais ve, será possível inserir novo material genético no
fazem tudo o que estiver ao seu alcance para in- embrião in vitro, e de maneira segura. Ambas as
fluenciar os fatores ambientais, que, sem dúvida, técnicas permitirão aos casais ter uma criança
também desempenham seu papel na formação cujas habilidades serão provavelmente superiores
dessas características da criança. Atualmente, eles às oferecidas pela loteria natural e, além do mais,
têm condições de influenciar tanto os fatores ge- um filho “deles”, no sentido de possuir seus ge-
néticos quanto os ambientais, por meio das se- nes, e não os de apenas um dos membros do ca-
guintes maneiras: requerer um monitoramento sal, tampouco os de uma terceira pessoa, exceto
dos embriões antes da implantação, ao se valer da quando (adotando a modificação genética, em
fertilização in vitro; utilizar o diagnóstico pré-na- vez da simples seleção genética) se produzam es-
tal e aborto seletivo; e conseguir também óvulos, pecificamente as características desejadas.
esperma ou embriões de pessoas que considerem Muitas pessoas afirmam aceitar a seleção,
geneticamente superiores. Todas essas três técnicas quanto se trata de usá-la contra enfermidades e
apresentam desvantagens. A primeira é cara, in- deficiências sérias, mas não para melhorar o que
conveniente e nem sempre resulta em gravidez. A se considera normal. Contudo, não há uma dis-
segunda técnica implica aborto, procedimento ja- tinção clara entre uma seleção para evitar defi-
mais prazeroso a uma mulher, independentemen- ciências e outra para obter características positi-
te de seu ponto de vista sobre o status moral do vas. Não existe grande distância entre a seleção
feto. E a terceira significa que a criança não será contra a enfermidade de Huntington e a seleção
um filho biológico do casal, mas levará consigo contra os genes produtores do risco, significati-

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vamente alto, de câncer de mama ou de cólon. questão. Não cabe a nós julgar se o resultado des-
Partindo-se desse caso, torna-se fácil dar um per- se processo será melhor ou pior. Numa sociedade
fil genético ao próprio filho, a fim de lhe oferecer livre, tudo o que podemos fazer legitimamente é
uma saúde acima da média. assegurar um processo que consista em transa-
Do mesmo modo, se quase todos nós nos ções individuais escolhidas livremente. Deixemos
dispuséssemos a abortar um feto com Síndrome o supermercado genético atuar livremente – não
de Down, a maioria estaria também inclinada a apenas o mercado, mas também os indivíduos
abortar um feto com genes indicativos da presen- altruístas, as organizações voluntárias ou aqueles
ça de outras limitações intelectuais, por exemplo, que desejarem, por qualquer motivo, oferecer
os genes associados a um nível de coeficiente in- serviços genéticos a quem queira aceitá-los, nos
telectual inferior a 80. Mas por que, então, nos termos em que forem colocados.
deteríamos nos 80 pontos? Por que não selecio- Não é um acidente o fato de os Estados
nar, pelo menos, um coeficiente intelectual mé- Unidos permitirem a existência de um mercado
dio? Ou, talvez, um pouco mais acima da média? de óvulos e esperma, que cumpre, de certo modo,
O atual mercado de óvulos humanos sugere que a profecia de Nozick. Em outros países, uma prá-
algumas pessoas escolheriam inclusive a estatura, tica que ameace converter o filho de um casal
correlacionada, em certa medida, com o seu nível num objeto comercial enfrentaria poderosa opo-
sociofinanceiro. sição por parte tanto de políticas conservadoras
de valores da família quanto de grupos de centro
OPÇÕES PRIVADAS E PÚBLICAS e esquerda horrorizados com a idéia de deixar o
Como devemos reagir perante esse cená- mercado livre decidir algo tão fundamental à so-
rio? Podemos tratá-lo de um ângulo escorregadio, ciedade, ou seja, o modo como serão concebidas
de maneira a provar que precisamos agir agora no as futuras gerações. Contudo, nos Estados Uni-
sentido de deter o monitoramento pré-natal. Isso dos a esquerda se restringe a grupos marginais da
porque, do contrário, estaremos nos movendo na vida política e os conservadores que dominam o
direção de um futuro de pesadelos, com os filhos Congresso afirmam seu apoio aos valores familia-
feitos por encomenda e desejados conforme suas res apenas quando se trata de impedir o emprego
especificações, e não amados pelo que são. Po- de recursos federais para fins que eles desapro-
rém, aceitar esse tipo de argumento nos força a vam. Além do mais, esses conservadores permi-
rejeitar as práticas atuais do diagnóstico pré-natal, tem que a sua crença no mercado livre se impo-
consideradas pela maioria como um grande nha como mais importante do que o seu apoio
benefício, ou a mostrar que nos é possível decidir aos tradicionais valores familiares.
parar em algum ponto, antes que as suposições Existem fortes argumentos contra a inter-
aqui descritas sejam implementadas. Mas nenhu- ferência do Estado nas decisões relativas à repro-
ma dessas alternativas é convincente. Outra pos- dução humana, pelo menos nas decisões de adul-
sibilidade é afirmar que esse futuro aqui esboçado tos competentes. Seguindo o princípio de Mill,
não representa um pesadelo, e sim a disposição de que o Estado somente é justificado a intervir
de uma sociedade melhor do que a de agora, uma nas ações de seus cidadãos para impedir danos a
sociedade repleta de pessoas mais saudáveis, mais outros, podemos considerar tais decisões como
inteligentes, mais altas, mais bonitas e – por que particulares, e que não fazem mal a ninguém, dei-
não? – até mais éticas. Não há, assim, um ângulo xando-as, assim, corretamente como algo a ser
escorregadio, pois ele não leva a um abismo, mas definido no âmbito privado.9 Quem seria afetado
se eleva na direção de um patamar de civilização pelo supermercado genético? Os pais não sofrem
mais alto do que o até hoje alcançado. dano algum ao ter seus filhos tão saudáveis, lin-
As palavras de Nozick, citadas no início
deste artigo, sugerem uma terceira resposta a essa 9 Cf. MILL, J.S. On Liberty (várias edições disponíveis).

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dos e inteligentes conforme eles mesmos dese- resultados é o mais provável. Portanto, não acre-
jam. Os filhos, por sua vez, sofrem algum dano? dito que tenhamos razões para concluir que um
Num artigo sobre a prática de comprar óvulos de supermercado genético causaria algum dano a
mulheres com as características desejadas, entre quem optasse por comprar nele ou a quem fosse
elas, alta estatura e inteligência, George Annas criado a partir dos materiais nele adquiridos.
comenta: “O que resulta preocupante é essa ob- Porém, passando da perspectiva individua-
jetivação, esse tratar as crianças como produtos. lista para uma visão social mais ampla, os aspectos
Encomendar filhos sob medida não pode ser negativos de um supermercado genético tornam-
bom para eles. Pode ser bom para os adultos a se mais sérios. Ainda que assumamos, com certo
curto prazo, mas não para as crianças pensadas otimismo, que os pais somente selecionarão ge-
dessa forma”.10 nes que tragam benefícios a seus filhos, há pelo
No entanto, dizer que não é bom para essas menos três razões independentes para admitir
crianças leva à seguinte questão: não é bom em conseqüências sociais adversas. A primeira é que
comparação com o quê? A criança, para a qual se algumas características buscadas pelas pessoas em
supõe que isso não seja bom, não poderia ter exis- seus filhos serão vantajosas comparativamente, e
tido por nenhum outro meio. Se o óvulo não fosse não em termos absolutos. Aumentar a longevida-
comprado para ser fertilizado pelo esperma do pai, de de nossas crianças é bom para elas, indepen-
ela nem estaria viva. Por acaso a vida dessa criança dentemente do fato de a vida dos demais ter sido
será tão má que ela deseje não haver nascido? Isso dilatada de modo similar. Contudo, aumentar a
me parece pouco provável. Assim, ao perguntar estatura de nossos filhos somente trará benefí-
sobre qual deveria ser o parâmetro para compara- cios se isso os elevar com relação à altura dos de-
ção, é evidente a falsidade da idéia de que a compra mais. Não haveria desvantagem numa estatura de
desses óvulos não seja algo bom para a criança.11 1,5 m, se a estatura média da comunidade fosse
Suponhamos entender o não é bom para as 1,49 m; tampouco existiria vantagem em medir
crianças como não é o melhor para o próximo filho 1,92 m, se a altura média fosse 2,01 m.
desse casal. Então, o fato de que a compra do óvu- Poderíamos argumentar que seria melhor
lo seja ou não boa para a criança dependerá de se todos fôssemos menores e mais baixos, pois
uma comparação com as outras maneiras por necessitaríamos menos alimento, viveríamos em
meio das quais o casal poderia ter procriado. Para espaços menores, dirigiríamos automóveis me-
facilitar essa comparação, imaginemos que os pais nores e com menos potência, de modo a produ-
não são estéreis – compraram um óvulo somente zir menor impacto ao meio ambiente. Assim, ter
para melhorar as possibilidades de ter uma crian- a capacidade de escolher a altura – algo que mui-
ça alta, atlética e com condições de ingressar tos casais já realizam em pequena escala, ao ofe-
numa ótima universidade. Se não tivessem agido recer mais dinheiro por óvulos de mulheres altas
assim, teriam gerado normalmente uma criança, – poderia iniciar algo como o equivalente huma-
que seria seu filho genético. Foi ruim para essa no da cauda do pavão real: uma corrida pela esta-
criança o fato de os pais comprarem o óvulo? Ela tura ascendente, em que a distinção entre altos e
até pode ter uma vida mais difícil, pois foi feita sob normais aumentaria a cada ano, sem trazer bene-
encomenda e talvez decepcione os pais. No en- fícios a ninguém, além de ocasionar um conside-
tanto, ela os teria decepcionado ainda mais por rável custo ambiental e, talvez, também à saúde
possuir menos possibilidades de ser aquilo que os dessas crianças.12
pais gostariam. Não vejo como saber qual desses O segundo motivo para se opor a um su-
permercado genético é o temor de reduzir a di-
10
11
GERSON, 1999. versidade entre os seres humanos. Nem todas as
Sobre a difícil questão a respeito da possibilidade de beneficiar uma
criança por trazê-la à existência, cf. PARFIT, 1984, p. 367; e SINGER,
1993, p. 123-125. 12 CRONIN, 1991, cap. 5.

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formas de diversidade são positivas. A diversida- cérebro a quem pagar mais no leilão – aponta um
de na longevidade é maior quando há mais pes- futuro no qual os ricos terão filhos lindos, sãos e
soas cujos genes as levem a uma morte prematu- inteligentes, ao passo que os pobres, ainda atados
ra. Nesse caso, a perda da diversidade é bem-vin- à velha loteria genética, ficarão mais e mais em
da. Mas o que acontece com a perda do que é me- desvantagem. Por conseguinte, as desigualdades
ramente não usual ou excêntrico? Antony Rao, econômicas se converterão em desigualdades ge-
especialista em terapia de comportamento infan- néticas e o relógio retrocederá séculos na luta
til, assinala que muitos pais de classes média e alta contra os privilégios da aristocracia.
recorrem a ele para medicar os filhos quando es- A atual geração de pessoas ricas terá a opor-
ses se comportam de maneira incomum, por “te- tunidade de embutir suas vantagens nos genes de
mer que qualquer desvio da norma [lhes] arruine sua descendência. Essa gozará, então, não apenas
o futuro”.13 Se isso ocorre com irregularidades de dos abundantes benefícios oferecidos pelos seus
conduta, que, para muitas crianças, não represen- pais, mas também das vantagens adicionais ofer-
tam nada mais do que uma fase passageira, é pro- tadas pelos últimos desenvolvimentos da genéti-
vável que o mesmo aconteça com anormalidades ca. Como resultado, o mais provável é que con-
genéticas. tinuem mais ricos, mais longevos e mais bem-su-
É fácil imaginar informações sobre monito- cedidos que os filhos dos pobres e, na hora certa,
ramentos genéticos indicando que os genes da passarão tais vantagens a seus filhos, que tirarão
criança são não usuais, ainda que a importância da bom proveito de técnicas genéticas ainda mais
anormalidade não seja bem entendida (abreviatu- sofisticadas a eles acessíveis. O livre mercado para
ra médica habitual para não temos idéia do que se o melhoramento genético aprofundará o abismo
trata). Será que muitos pais decidirão interrom- entre os estratos superiores e inferiores de nossa
per uma gravidez nessas circunstâncias? Nesse sociedade, minará a crença na igualdade de opor-
caso, haveria alguma perda na diversidade, de tunidades e fechará a válvula de segurança da mo-
modo a empobrecer a sociedade humana ou, bilidade social ascendente.15
mais do que isso, reduzir a longo prazo a capaci- Caso não desejemos aceitar essa situação,
dade da espécie de adaptar-se a circunstâncias que opções teremos? Podemos proibir todos os
mutantes? usos de seleção e engenharia genéticas que exce-
A terceira razão para ir contra o supermer- dam a eliminação do que claramente somos capa-
cado genético – a mais importante, na minha opi- zes de reconhecer como defeitos. Mas há algumas
nião – é a sua ameaça ao ideal de igualdade de dificuldades óbvias no que tange a esse procedi-
oportunidades. John Schaar escreveu: “Nenhuma mento. Quem decidirá o que é claramente um de-
fórmula política está melhor desenhada para for- feito? Presumivelmente, um painel governamental
talecer instituições, valores e fins dominantes na será criado com a função de informar sobre as
ordem social norte-americana do que a fórmula técnicas genéticas relevantes e decidir quais as le-
de igualdade de oportunidades, pois oferece a gais e quais as ilegais. Isso conferirá ao governo um
cada pessoa uma circunstância justa e igual de en- papel nas decisões reprodutivas, situação conside-
contrar um lugar nessa ordem”.14 Obviamente, rada por alguns estudiosos ainda mais perigosa do
essa crença de que a igualdade de oportunidades que a de deixá-las à mercê do mercado.
prevalece nos Estados Unidos é quase um mito, Existem também sérias interrogações sobre
uma vez que os pais ricos dão aos filhos enormes uma proibição da seleção e engenharia genéticas
vantagens na corrida pelo êxito. Além do mais, o com fins de melhoramento vir a funcionar de
slogan dos Ron’s Angels – oferecendo beleza e norte a sul e de leste a oeste nos Estados Unidos,
13
já que as regulamentações da concepção e do nas-
GROOPMAN, 2000, p. 55.
14SCHAAR, 1981, p. 195, apud MEHLMAN & BOTKIN, 1998, p.
100. 15 Ibid., cap. 6.

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cimento de crianças encontram-se nas mãos dos Se uma proibição nos Estados Unidos che-
Estados, e não do governo federal. No caso da gasse a ser irrealizável, ineficaz ou contrária aos
maternidade substituta, as tentativas de vários interesses vitais da economia norte-americana,
Estados norte-americanos de converter tal práti- talvez pudesse ser tentada uma estratégia mais ar-
ca em algo ilegal, ou invalidar os contratos que a riscada. Estabelecendo-se o objetivo de evitar
regulamentam, tiveram um efeito mínimo, pois uma sociedade dividida em duas partes genetica-
Estados como Arkansas, Califórnia e Ohio são mente diferenciadas, os serviços de melhoramen-
mais favoráveis a ela. Os casais que buscam uma to genético poderiam ser subsidiados, de modo
mãe de aluguel para seus filhos estão dispostos a que todos pudessem ter acesso a eles. Mas será
viajar para obter o que querem. que a sociedade teria condições de oferecer a to-
Supondo que conseguíssemos uma proibi- dos os seus membros os serviços que somente os
ção do Congresso dos Estados Unidos à seleção ricos poderiam pagar? Mehlman e Botkin pro-
e à engenharia genética com fins de melhoramen- põem uma solução engenhosa: o Estado deveria
to, além de persuadir a Corte Suprema de que tal estabelecer uma loteria na qual o prêmio fosse
legislação não viola os direitos dos Estados em le- igual ao pacote de serviços genéticos comprados
gislar sob sua jurisdição, nem os direitos consti- pelos ricos. Os bilhetes da loteria não estariam à
tucionais à privacidade na reprodução, impondo,
venda, e sim fornecidos – um bilhete para cada ci-
desse modo, com eficácia tal medida nesse país.
dadão adulto. O número de prêmios dependeria
Ainda assim, nos encontraríamos diante do fato
de quantos pacotes fossem financiados, variando
de viver numa economia global. Uma pequena
segundo os custos dos serviços genéticos e os re-
nação empobrecida poderia sentir-se tentada a
cursos disponíveis.
permitir o melhoramento genético e a construir
um nicho industrial para atender os casais ricos Para evitar impor uma alta carga financeira
dos Estados Unidos e de outros países que tives- ao Estado, Mehlman e Botkin sugerem a criação
sem proibido o melhoramento genético. de um imposto sobre o uso de tecnologias gené-
Mais além, levando em conta a natureza ticas e prevêem a destinação de sua arrecadação
competitiva da economia global, poderia até ser para o financiamento da loteria.17 Um seguro
benéfico para as nações industrializadas promo- universal seria claramente preferível, mas o uso
ver o melhoramento genético, dando-lhe uma de uma loteria pelo menos asseguraria a todos al-
vantagem sobre aquelas que não o fizessem. No guma esperança de seus filhos chegarem um dia à
Dia Nacional de Singapura, em 1983, o primei- elite. Além disso, a cobrança de um imposto da-
ro-ministro Lee Kuan Yew discursou acerca da queles que, mediante o melhoramento genético
hereditariedade da inteligência e de sua impor- de seus filhos, estão alterando o significado da re-
tância para o futuro desse país. Pouco depois, o produção humana parece um modo eqüitativo de
governo introduziu medidas explicitamente de- financiá-la.
senhadas para estimular os graduados universitá- Dessa maneira, fazer compras no super-
rios a ter mais filhos.16 Se Lee Kuan Yew tivesse mercado genético nos leva à surpreendente con-
condições de ter acesso ao melhoramento gené- clusão de que, talvez, o Estado deva envolver-se
tico, talvez o tivesse preferido, em lugar de pro- diretamente na promoção do melhoramento ge-
por serviços computadorizados de entrevistas nético. A justificativa para tal conclusão resume-
patrocinadas pelo governo e incentivos financei- se, simplesmente, a que ela é preferível à alterna-
ros para aqueles alvos de sua mensagem naquele tiva mais provável – de deixar o melhoramento
momento. genético nas mãos do mercado.

16 KHOON & LENG, 1984, p. 4-13. 17 MEHLMAN & BOTKIN, 1998, p. 126-128.

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SINGER, P. & WELLS, D. Making Babies. New York: Scribner, 1985.

Dados do autor
Considerado um dos pais da bioética, é
professor da cátedra Ira. W. DeCamp e membro
do University Center for Human Values, na
Princeton University/EUA. É co-editor da
revista Bioethics e fundador da International
Association of Bioethics. Entre suas obras mais
importantes encontram-se Animal Liberation
(1990, Practical Ethics (1979) e Rethinking Life
and Death (1996), que têm suscitado discussões
e polêmicas sobre os limites da ética e da
argumentação moral.

Recebimento artigo: 5/fev../04


Consultoria: 6/fev./04 a 27/fev./04
Aprovado: 18/mar./04

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Genética e Justiça: tratando


a doença, respeitando a
diferença
GENETICS AND JUSTICE: TREATING DISEASE,
RESPECTING DIFFERENCE *
Resumo Este artigo aborda os complexos dilemas éticos que o tópico da engenharia
genética sugere. A autora apresenta argumentos filosóficos presentes no trabalho de
quatro teóricos de ética médica. Uma discussão séria sobre decisões genéticas deve
considerar, de maneira global, instituições sociais justas e a igualdade de oportunida-
des. Dessa forma, o texto passa pelos principais desafios éticos suscitados pela possi-
bilidade de se melhorar geneticamente futuras gerações, como, por exemplo, os tra-
tamentos genéticos que devem ser permitidos, se devem ser subsidiados ou deixados
a escolha individual, a exigência de diagnósticos genéticos como medida de saúde pú- MARTHA C.
blica, a questão da liberdade reprodutiva e as implicações dessas novas possibilidades NUSSBAUM
genéticas para a posição social dos deficientes. University of Chicago/EUA
martha_nussbaum@
Palavras-chave ENGENHARIA GENÉTICA – JUSTIÇA – APERFEIÇOAMENTO GENÉ- law.uchicago.edu
TICO – BIOÉTICA.

Abstract This article approaches the complex ethical dilemmas that the topic of
genetic engineering suggests. The author puts forward philosophical arguments
presented by four philosophers of medical ethics. A serious discussion about genetic
decisions must include an overall consideration of just social institutions and equal
opportunity. Thus, the article approaches the main ethical challenges suggested by the
possibility of genetically enhancing future generations, such as which genetic
treatments should be allowed, if they should be subsidized or left to individual choice,
if screening for widespread genetic defects should be required as a public health
measure, the topic of reproductive liberty, and the implications of new genetic
possibilities for the social standing of the disabled.

Keywords GENETIC ENGINEERING – JUSTICE – GENETIC ENHANCEMENT –


BIOETHICS.

* Traduzido do inglês para o português por NUNO COIMBRA MESQUITA.

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K
atherine e Bill se candidatam à mesma função de ge-
rência numa grande companhia. A candidatura de
Katherine contém um certificado de aperfeiçoamen-
to genético da Opti-Gene, dizendo que o portador
comprou um pacote de serviços genéticos que me-
lhoram a memória e elevam o sistema imunológico.
Bill, que não pôde pagar por tais serviços, reclama
que contratar com base em aperfeiçoamento genéti-
co representa uma violação da igualdade de oportunidades: o emprego
deveria ser dado tomando como critério o mérito. Katherine responde
que mérito significa que o emprego irá para o melhor candidato, e ela é
o melhor candidato, então qual o problema?1
Nosso conhecimento crescente do genoma humano coloca enig-
mas éticos complexos. Alguns deles são extensões de dificuldades conhe-
cidas. Assim, de certo ponto de vista, a disputa entre Katherine e Bill não
difere de problemas de igualdade de oportunidades já debatidos há muito.
Se Katherine fosse saudável e mentalmente afiada, por conta de uma cria-
ção de classe média, e se Bill não chegasse a tanto, em razão da pobreza
e de circunstâncias desfavoráveis, cada um teria seus defensores no co-
nhecido debate sobre o significado de oportunidades iguais num contex-
to de desigualdade social. Se não houvesse dúvida de que Katherine her-
dou suas qualidades dos genes de seus pais e Bill, por sua vez, os defeitos
dos genes de seus pais, a maioria dos estadunidenses diria: “Bem, é o que
eles são”. Mas alguns igualitários decididos teriam insistido que eles não
merecem tirar nenhum proveito de características herdadas por sorte de
nascimento. Defenderiam que a vaga deveria, provavelmente, ficar com
Katherine, mas que o esquema geral de recompensas e oportunidades da
sociedade precisa ajustar-se para dar a Bill um apoio extra. Os talentos de
Katherine são recursos sociais a serem usados justamente para o benefí-
cio de todos.
Já o terreno moral revelado nesse exemplo não é inteiramente fa-
miliar. A disputa entre Katherine e Bill coloca também algumas questões
ainda não discutidas pelas teorias éticas existentes. Todas elas fazem al-
gum tipo de distinção entre o domínio da natureza, ou sorte, e o domínio
da justiça. Ainda que não esteja claro o traço dessa distinção em um caso
e outro, parece que todo o nosso sentido de vida apóia-se na existência
de tal diferença. Algumas coisas que ocorrem de errado com certas pes-
soas são apenas tragédias além da capacidade de controle humano; outras
poderiam ser previstas ou tratadas por arranjos sociais melhores, perten-
cendo, nesse sentido, ao domínio geral da justiça social. A natureza não
parece estar desaparecendo por ora, e um triste fim ainda nos espera. No

1 Exemplo tirado de BUCHANAN et al., 2000. O presente artigo originou-se como uma resenha desse
livro excelente, publicada em The New Republic (4/dez./00).

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entanto, a estória de Katherine e Bill mostra que maneira de se referir ao fato de que cada pessoa
vivemos numa época caracterizada pela coloniza- possui apenas uma vida para viver, e que políticas
ção do natural pelo justo.2 Muitas coisas que pare- tendo em vista um bem coletivo em detrimento
ciam acidentes permanentes figuram agora como do bem individual são, dessa maneira, injustas ou
coisas que as pessoas podem mudar, e, talvez, te- até nocivas à pessoa como indivíduo. Agora, o
nham ainda a obrigação de mudar. que isso tem a ver com clonagem? Uso igual-
Pensar sobre a justiça, além disso, terá a mente errado é feito do conceito, nesse caso real-
essa altura que tomar sutilmente uma nova for- mente inventado por Joel Feinberg, sobre o direi-
ma. Acostumamo-nos a pensar a justiça quanto à to a um futuro aberto, que tem a ver com o direito
distribuição de coisas às pessoas, mantidas como a uma gama de escolhas e de oportunidades, e
elas são de fato e como são imaginadas compar- não violada por consistir numa cópia genética de
tilhando uma série de necessidades e habilidades outra pessoa). Em geral, a autoridade filosófica é
humanas comuns. Ao nos tornarmos capazes de utilizada sem uma qualidade filosófica para dar
alterar as pessoas de modo fundamental, entre- apoio ao medo que as pessoas têm do novo.
tanto, deveremos considerar que a justiça talvez Mas alguns trabalhos recentes, bem melho-
lhes requeira alguma remodelação, já que, por res, mostram que a filosofia pode ser tanto rigo-
exemplo, a boa saúde e a rápida memória de Ka- rosa quanto publicamente acessível. From Chan-
therine não constituem apenas propriedades su- ce to Choice: genetics and justice (Da Chance à Esco-
perficiais, como um novo corte de cabelo. E, uma lha: genética e justiça),3 de quatro filósofos atuantes
vez que tomemos esse caminho, certamente per- na área de ética médica, é um exemplo de como
ceberemos a não clareza do que estamos fomen- um trabalho filosófico detalhado e rigoroso pode
tando, pois a idéia de uma natureza humana pe- nos ajudar a enfrentar as dificuldades sugeridas da
rene começa a escapar por nossos dedos. Idéias perspectiva da engenharia genética. Resumida-
como florescimento humano ou bens primários, mente, eles argumentam que deveríamos usar o
supostamente necessárias à sobrevivência de to- novo conhecimento genético para tratar deficiên-
dos os seres humanos, parecem estar no limiar de cias relativas a algumas funções e habilidades hu-
lhes escapar. manas definidas como básicas e centrais, e não
Algumas abordagens a essas questões éti- necessariamente (na maioria dos casos) oferecer
cas, feitas por filósofos por meio de conselhos melhoramentos acima desse patamar. Defendem
aos formuladores de políticas públicas, têm se re- a necessidade de protegermos zelosamente a li-
velado inteiramente inadequadas. A seção de fi- berdade de reprodução, criticando a maioria das
losofia do relatório sobre clonagem, da Comissão tentativas (ainda que não todas) de persuadir os
Nacional de Bioética, por exemplo, é uma desgra- pais a exigir um tipo determinado de criança, e
ça, uma miscelânea intransigente de idéias velhas que o aconselhamento e certos tipos de serviços
mal digeridas, ostentadas como se apoiassem o genéticos devem ser oferecidos em todos os pa-
banimento da clonagem, apesar de não fazê-lo. cotes de seguro-saúde. Por fim, sustentam que a
(Só para citar um caso, deram-me crédito por in- sociedade deve evoluir na direção de um respeito
ventar o conceito de separação das pessoas, defi- maior e da inclusão dos deficientes, embora tal
nição antiga, proeminente tanto no pensamento preocupação não signifique impedir o tratamento
de Aristóteles quanto no de Kant, e depois ale- de problemas genéticos sérios. Entretanto, esses
garam que ele demonstra que a clonagem é ruim. autores não são profissionais de políticas públi-
Porém, está claro que a separação das pessoas não cas, mas filósofos, e, no que diz respeito à filoso-
leva a tal raciocínio. A separação é apenas uma fia, conclusões contam pouco sem os argumen-
tos que levam a elas. A contribuição mais admirá-
2 Esses termos, novamente, foram cunhados por BUCHANAN et
al., 2000. 3 Ibid.

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vel de From Chance to Choice é a densidade e a obrigação de promover bons ambientes. Em tal
força de seus argumentos. visão, a resposta apropriada à biologia é a resig-
nação, e desigualdades são todas resultantes do
II destino. Já os autores de From Chance to Choice
Por que deveríamos nos preocupar com o gastam considerável quantidade de tempo abor-
que os argumentos filosóficos têm a dizer numa dando mal-entendidos de causa genética, com o
era de mudança científica? A resposta desses au- auxílio de um excelente apêndice científico do fi-
tores é que, sem eles, corremos o risco de pensar lósofo da ciência Elliot Sober.
mal. Enquanto nos confrontamos com as novas Sober faz um relato detalhado dos inter-re-
possibilidades desconcertantes abertas pelo pro- lacionamentos complexos entre genes e o ambien-
jeto genoma humano, três obstáculos ao bom ra- te, argumentando que a pergunta correta a ser
ciocínio nos aguardam. Primeiro, nos deparamos continuamente colocada é quais são as importân-
imediatamente com o nosso medo absoluto de cias relativas de fatores genéticos e de fatores am-
mudança. É muito fácil simplesmente nos horro- bientais em qualquer resultado, já que ambos es-
rizarmos com toda idéia de tratamento e de me- tão sempre causalmente envolvidos. “Uma con-
lhoramento genético por não sabermos ao certo dição tem um componente ambiental ou genéti-
o que dizer a esse respeito. Tal perspectiva, por si co significativo relativo apenas a uma gama de
só, já ameaça conceitos que nos têm servido de genes e a uma gama de ambientes.” Além do
alicerce moral há séculos. Em vez de pensar fria e mais, os genes com freqüência influenciam um
analiticamente, falamos com freqüência dos peri- resultado indiretamente, mudando o ambiente
gos de brincar de Deus ou de afastar-se da natu- do indivíduo: uma diferença física, por exemplo,
reza. pode levar uma pessoa a ser tratada de maneira
Ainda de acordo com Buchanan et al., esse diferente, produzindo diferenças de comporta-
tipo de frase não substitui o pensamento sistemá- mento. Sober é, particularmente, um crítico da
tico sério. Já brincamos de Deus de maneiras in- alegação de que um fenômeno psicológico e hu-
contáveis: fazemos inoculações, tratamos doen- mano complexo, como o desejo homossexual,
ças, encontramos novas estratégias educacionais possa ser plausivelmente atribuído a um único
para resolver problemas de aprendizagem. Em gene.
tantas áreas de nossas vidas, não somos passivos Não menos importante é a investida desses
diante da natureza. E o termo natureza dificil- autores na função ideológica do determinismo
mente significa uma norma moral para qualquer genético. “Se houvesse um ser todo poderoso e
pessoa sã. (Como observa J. S. Mill, “matar, o ato que soubesse tudo”, afirmam,
mais criminoso reconhecido pelas leis humanas, é Que estivesse comprometido de maneira
cometido pela natureza uma vez para cada ser”). determinada a proteger a ordem política e
Assim, em lugar do pânico ou da piedade diante social do escrutínio crítico, é improvável
das novas possibilidades de melhoramento aber- que esbarrasse numa estratégia melhor do
tas pelo novo conhecimento genético, é preciso, que implantar o pensamento do determi-
ao contrário, uma avaliação sóbria e sistemática nismo genético na cabeça das pessoas.
delas. Não existe, é claro, tal demônio. Há, en-
tretanto, cientistas que às vezes fomen-
O segundo empecilho para a deliberação
tam a genemania por meio de uma com-
correta nessa era de pesquisa genética é um tipo
binação de entusiasmo excessivo pelos
de fetichismo genético que sempre teve apelo seus próprios projetos com uma retórica
mas, ultimamente, tornou-se muito mais co- de relações públicas, de tirar o fôlego, di-
mum. As pessoas gostam de afirmar que está tudo recionada a assegurar apoio social e finan-
nos genes, querendo dizer que o meio realmente ceiro. E existem firmas de biotecnologia
não influi no resultado e, por isso, elas não têm a prontas para desencadear técnicas sofisti-

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cadas de marketing, que, sem dúvida, irão ser difícil, complexo e sistemático. Que ele deve
encorajar esperanças irreais para soluções considerar tanto o julgamento das pessoas quan-
genéticas a toda espécie de problema.4 to as teorias mais proeminentes que o organizam.
De fato, os autores mostram que as novas Ao ponderar sobre decisões genéticas, o pensa-
possibilidades genéticas devem tornar mais difícil dor sério tem de integrar essa discussão numa
às pessoas esconder-se atrás do gene como base consideração global de instituições sociais justas
lógica para o quietismo. Se, afinal de contas, po- e igualdade de oportunidades.
demos alterar genes, eles se tornam parte do am- Ainda que, inevitavelmente, um inquéri-
biente social como qualquer outra coisa, e temos to desse tipo tenha seu início em algum lugar –
de pensar seriamente sobre a mudança ambiental Buchanan et al., por sua vez, começam com um
e a sua relação com a justiça, estando ou não pro- tipo conhecido de teoria liberal da justiça, próxi-
pensos a isso. ma à de John Rawls –, eles demonstram, ao longo
O terceiro obstáculo ao pensamento apro- do livro, uma prontidão para considerar uma
priado a essa nova era – de longe o maior – são a gama de alternativas e testar teorias pelos julga-
debilidade, a superficialidade e a falta de esforço mentos por eles preconizados, assim como para
sistemático, características da maior parte do experimentar julgamentos pelas suas relações
pensamento humano, sobre a maioria dos tópi- com as teorias. Essa maneira de argumentação
cos, na maioria das vezes e dos lugares. A meto- holística, insistem eles, é ainda mais importante
dologia dos autores no referido livro é basica- nessa área do que em outras da filosofia política,
mente socrática: eles partem do pressuposto de pois é mais provável que nenhuma teoria atual te-
que as pessoas em geral têm muitas intuições éti- nha conceitos completamente adequados a ela. E
cas sólidas, pertinentes à resolução de tais dile- refletindo sobre o quanto são importantes as
mas. Mas acreditam que, sem um exame contí- considerações relativas à igualdade de oportuni-
nuo, um teste de teorias e princípios alternativos dades aplicadas ao dilema de Katherine e Bill, fica
e a construção de razões complexas a integrar de- claro que é igualmente indispensável entender
terminados julgamentos num todo coerente, não por que os nossos raciocínios não são adequados
há como encararmos bem o futuro. Se é assim e como eles precisam ser melhorados.
nas áreas de fatos e conceitos familiares, será ain- Esses autores discutem o aconselhamento
da mais, de acordo com eles, nas esferas em que genético e as decisões sobre a concepção, embora
novas possibilidades científicas exigem reformu- esse tópico, pela sua familiaridade, os ocupe me-
lar alguns dos conceitos e princípios mais básicos. nos do que vários aspectos até agora pouco tra-
É aqui, como reconhecem esses autores, tados, a maioria deles sobre possibilidades de ci-
que entra a filosofia. Escritores sobre ética médi- rurgia ou de alteração genética. Em outras pala-
ca, mas também pensadores mais amplos da jus- vras, levantam questões como: quais tratamentos
tiça social, eles distinguem cuidadosamente o seu genéticos deveriam ser oferecidos? Tais elemen-
projeto de uma abordagem, comumente encon- tos deveriam ser exigidos no tratamento básico
trada em ética médica, de que as pessoas simples- de saúde? Podemos distinguir significativamente
mente alardeiam um número pequeno de princí- tratamentos de melhoramento genético, e, se po-
pios familiares, desligados de qualquer teoria glo- demos, os melhoramentos deveriam ser subsidia-
bal, e apenas os associam a casos específicos. Essa dos ou deixados à escolha individual? Deve-se
visão não merece nem sequer ser chamada de fi- permitir a grupos com determinada visão positiva
losofia, como o desprezo deles sugere. Assim da vida humana perseguir projetos genéticos que
como Sócrates, Aristóteles, Sidgwick e John Rawls, objetivem perpetuar características por eles valo-
eles defendem que o bom trabalho filosófico deve rizadas, separando-os cada vez mais da sociedade
que os rodeia? A procura sistemática por defeitos
4 BUCHANAN et al., 2000. genéticos deve ser exigida como medida de saúde

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pública? Os pais devem ser considerados negli- mesma maneira que outros tratamentos médicos
gentes se falharem ao tirar proveito das possibi- são hoje proporcionados e geridos por normas si-
lidades de melhorar suas crianças? Como pode- milares de consentimento informado. Tais trata-
mos defender a liberdade reprodutiva significati- mentos ainda serão questionados na esfera da li-
va numa era em que sabemos tanto sobre a criança berdade – por exemplo, teremos de perguntar se
que irá nascer? E quais são as implicações de no- será exigido que os pais façam a cirurgia genética
vas possibilidades genéticas para a posição social na criança in utero ou não. No entanto, tais ques-
dos deficientes? Seria legítima a reivindicação de- tões serão semelhantes a outras que nós há muito
les de que programas de aperfeiçoamento genéti- encaramos, ao debater quais tratamentos médi-
co devem ser evitados, com base na afirmação de cos devem ser exigidos dos pais quanto a seus fi-
que tais mudanças na população irão cada vez lhos, sob pena de serem responsabilizados por
mais isolá-los e estigmatizá-los? abuso e negligência.
Nosso receio da intervenção genética não é A questão do preconceito contra certos ti-
motivado simplesmente por um medo irracional. pos de pessoa é muito mais difícil, e Buchanan et
Ele tem raízes históricas: lembramos os excessos al. insistem que qualquer sociedade justa deve ser
e as indignidades do movimento eugênico do iní- altamente respeitosa com relação a diferentes vi-
cio do século XX, com sua esterilização à força sões do que significam ser uma boa pessoa e ter
dos incapacitados, a objetificação e a vilipendiação uma vida que valha à pena. Também estão bastan-
dos deficientes, a classe arrogante e as práticas te atentos ao relacionamento sutil entre pessoa e
apoiadas em conceitos de raça mascarados de ambiente: uma deficiência, insistem eles, só se
ciência. A culminação natural desse movimento, torna uma incapacidade contrapondo-se a um de-
como é sabido, foi o horror da eugenia nazista. terminado ambiente social e geralmente é possí-
Então, para Buchanan et al., o primeiro passo é vel criar um ambiente em que qualquer defeito
fazer o que eles chamam de uma autópsia ética seja bem menos incapacitável (rampas e acessos
nesse movimento, perguntando quais as suas fa- para cadeiras de rodas em ônibus e outras medi-
lhas morais e se elas podem ser endêmicas a qual- das semelhantes tornam as deficiências de loco-
quer outro movimento que busque o tratamento moção muito menos incapacitáveis para aqueles
e melhoramento genético. que utilizam tais cadeiras). Logo, a escolha de um
Após uma análise complexa e reveladora ambiente social sempre comporta opções a favor
que nos lembra, entre outras coisas, que a eugenia de algumas pessoas e contra outras.
moderna foi popular em círculos social-democra- Ainda assim, tais fatos não significam que
tas progressistas, bem como na direita reacioná- todos os tratamentos e melhoramentos genéticos
ria, os autores concluem que podemos, em certa são inerentemente ligados a formas nocivas de
medida, separar a idéia de melhoramento genéti- preconceito e desrespeito. Mesmo numa socieda-
co dos ideais errôneos e hediondos da antiga eu- de liberal pluralística, precisamos concordar com
genia. Antes de mais nada, esses eugenistas não uma lista básica de bens primários, que geralmente
tinham nenhum respeito pela liberdade reprodu- é encarada como um pré-requisito valioso para
tiva das pessoas e qualquer movimento moderno desenvolver a maioria dos planos de vida. Nessa
deve começar com uma posição de respeito. Ao área, eles estão otimistas de que podemos encon-
mesmo tempo, entretanto, os antigos eugenistas trar uma lista de capacidades humanas básicas, às
não tinham nenhuma maneira de intervir no pro- quais todos os cidadãos têm direito, como pré-
cesso reprodutivo, exceto controlando quem ti- requisito de escolha e funcionamento significati-
nha filhos com quem. A eugenia moderna terá vos. Não se preocupar com tais capacidades é em
muito mais espaço para o melhoramento media- si iliberal, pois mina as chances reais das pessoas
do pela escolha individual: cirurgias genéticas e de optar pela vida que desejam. (Gostaria que es-
terapias germinativas podem ser oferecidas, da ses autores tivessem gasto mais tempo aplicando

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a abordagem das capacidades a questões de justiça to disso é redistribuir riqueza e renda, uma vez
social básica, que insiste na medição do bem-estar que não temos como tornar os talentos iguais.
sem olhar para os recursos rawlsianos, mas per- Mas suponhamos ter a capacidade de equalizar os
guntando o que as pessoas são realmente capazes talentos: a própria igualdade de oportunidades
de fazer e de ser.5 A lógica de suas preocupações exigiria uma engenharia genética em larga escala
os leva a usar a linguagem de capacidades, mas para produzir uma nação de pessoas igualmente
eles não ponderam as implicações dessa outra capacitadas?
abordagem teórica.) Buchanan et al. refletem sobre essa questão,
e suas conseqüências nas teorias de igualdade, de
III maneira fascinante. E deduzem que nós temos
Tomando por base a sua visão das capacida- sorte: não precisamos escolher entre essas duas
des humanas centrais, Buchanan et al. abordam a teorias, pois outra preocupação ética intervém
difícil questão de como proteger a igualdade de nesse ponto, de modo a fazer com que elas che-
oportunidades num tempo em que os ricos são guem a conclusões bem parecidas. Devemos con-
capazes de comprar não só mercadorias, mas frontar essa concepção radical com o fato do va-
também melhores versões de si. Igualdade de lor-pluralismo: as pessoas possuem pontos de
oportunidades é um conceito confuso em qual- vista diferentes quanto aos objetivos derradeiros
quer época, mas torna-se ainda mais quando se da existência humana e, portanto, perspectivas di-
tem o poder de alterar pessoas. Esses autores versas do que uma pessoa capaz seria idealmente.
consideram duas concepções conhecidas de Se respeitarmos as diferentes concepções de nos-
igualdade de oportunidades. Uma delas, associa- sos concidadãos, religiosas ou não, sobre o que é
da à tradição ética kantiana, traça uma linha entre o bem, não poderemos construir pessoas de ma-
a pessoa e o mundo, insistindo em que a igualda- neira a desconsiderar tais diferenças. Nesse sen-
de de oportunidades será satisfeita quando todos tido, voltamos ao menu de capacidades humanas
os aspectos políticos e sociais do ambiente ajus- básicas, que aparecem em todos os planos de vi-
tarem-se para respeitar a dignidade de todas as da: pode-se justificar que a concepção mais radi-
pessoas. Tal concepção talvez ainda exija alguma cal procure somente essas capacidades e, mesmo
redistribuição de riqueza e renda dos mais aos me- assim, até um limiar básico. Mas, então, ela acaba
nos talentosos, como certamente defende Rawls. sendo similar à teoria kantiana, por concentrar-se
Permite, entretanto, que os talentos permaneçam sobre uma lista de habilidades básicas como bens
parte da pessoa, por assim dizer, não havendo primários, que permitem a todos os cidadãos per-
seguir seus diferentes projetos de vida.
pressão para redistribuir as habilidades valiosas
em si, já que todas as pessoas são tidas como fun- O que isso tem a ver com o que o governo
damentalmente iguais em dignidade, por conta deveria proporcionar às pessoas? Buchanan et al.
de suas capacidades morais básicas. consideram a distinção problemática entre o tra-
tamento de deficiências genéticas e o melhora-
Existe, contudo, outra visão mais radical de
mento do equipamento genético normal. Não es-
igualdade de oportunidades. Ela insiste na idéia
tão satisfeitos com tal distinção, pois é fácil en-
de que os talentos são simplesmente recursos: as
contrar casos questionáveis. A pessoa A é baixa,
pessoas não têm direito a eles mais do que o te-
porque um tumor cerebral de causa genética im-
riam a vantagens de riqueza ou de classe. No
pede o seu funcionamento pituitário. Já a pessoa
mundo atual, tudo o que podemos fazer a respei-
B é baixa, porque seus pais eram baixos. Parece
5 Sobre minha versão dessa abordagem, cf. NUSSBAUM, 2000a. Dis-
que A possui uma deficiência, cuja correção de-
cuto também as implicações da abordagem das capacidades com relação mandaria um tratamento; B, por sua vez, não
a questões de incapacidade, em NUSSBAUM, 2000b. Uma tradução
para o espanhol foi publicada como “El futuro del liberalismo femi-
apresenta deficiência e o tratamento de sua baixa
nista”. Arete, Lima, 13: 59-101, 2001. estatura seria um melhoramento. No entanto, as

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duas condições têm causas genéticas e podem ser como no cenário principal desses autores, sejam
fonte de tristeza e discriminação. consertadas basicamente deficiências no útero ou
Ainda que, em alguns casos, a distinção seja após o nascimento –, há ainda algo alarmante na
problemática, esses autores acreditam justificar- idéia de que a Síndrome de Down, a surdez e a
se o fato de que nos utilizemos dela para desco- cegueira deixem gradualmente de existir. Pessoas
brir o que um esquema justo de tratamento de nessas condições não temem apenas a estigmati-
saúde daria a todos os cidadãos: um tratamento zação crescente e a falta de apoio social. Também
para todas as deficiências genéticas que os deixem sustentam vigorosamente (sobretudo os surdos)
significativamente abaixo do nível de seres nor- possuir uma cultura valiosa, que será obliterada se
malmente ativos, como o especificado na pers- uma única norma de capacidades humanas bási-
pectiva de capacidades centrais. Eles também de- cas for aplicada completamente.
fendem que o seguro-saúde deveria oferecer esses Buchanan et al. expõem sensivelmente es-
tratamentos, seja cirurgias genéticas in utero seja ses argumentos, mas, finalmente, os rejeitam.
procedimentos após o nascimento. É muito mais Não encontram motivos para apoiar a continui-
problemático, segundo eles, oferecer melhora- dade de deficiências que afetam seriamente as ha-
mentos e alguns, como a compra de inteligência bilidades humanas centrais figurativas de sua
extra ou talento musical, deveriam até ser ilegais, consideração básica. Para eles, a discriminação e a
uma vez que constituem meios pelos quais os pri- estigmatização devem ser combatidas, é claro,
vilegiados criarão filhos melhores do que os ou- mas duvidam que isso deveria ser feito à custa de
tros, violando o espírito de igualdade de oportu- condenar futuras crianças a uma vida de surdez
nidades. ou cegueira, quando teremos aprendido a curá-
Tal abordagem sobre a igualdade de opor- las. Não nos recusemos a inocular nossas crianças
tunidades, como quase todas as considerações ou dar a elas o tratamento médico necessário
filosóficas anteriores, apóia-se na noção de huma- com base em que nossas ações possam estigma-
nidade comum. Por outro lado, seus autores estão tizar os doentes ou os movidos por doença. Tam-
bem cientes de que a nova genética pode, mais bém não hesitemos em fazer uma criança ver e
cedo ou mais tarde, questioná-la. Como seria o escutar, se, de outra maneira, isso não pudesse ser
mundo, perguntam eles, se grupos étnicos ou re- feito.
ligiosos provassem sua capacidade de construir Muitas condições devem ser discutidas, por
descendentes para desenvolver características por envolver valores controversos; no entanto, existe
eles estimadas, até que, a certa altura, tipos diver- um núcleo central de habilidades humanas bási-
sos de humanos fossem gerados, de modo a nos cas, e não possuir qualquer uma delas é estar em
deixar sem noção das habilidades e necessidades desvantagem em qualquer mundo, seja ele o mais
comuns como recurso ético? Acreditam, com ra- remoto. A sociedade pode abrir oportunidades
zão, que essa eventualidade ameaçaria a própria aos deficientes, mas não há como a surdez ou a
base da moralidade e, no que diz respeito a esse cegueira deixarem de ser uma incapacitação.
aspecto, que temos bons motivos para temer o Além do mais, mudanças desse tipo seriam muito
futuro, ainda que não haja clareza de como nos caras e cabe perguntar por que todos teriam de
precaver dele. pagar a conta só pelo fato de alguns pais valori-
zarem a cultura especial promovida por determi-
IV nada deficiência.
Inevitavelmente, discussões sobre a escolha Essa é a seqüência de questões mais delica-
dos pais em relação a filhos geneticamente defi- das e difíceis lançadas por Buchanan et al. e, acre-
cientes são muito ameaçadoras às pessoas com dito, tal consideração admiravelmente inteligente
deficiências. Mesmo que elas não envolvam o deixa o leitor perplexo. A vida humana sempre
aborto de crianças deficientes já existentes – e, constituiu uma luta contra os limites da natureza,

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e qualquer ser humano verdadeiro é o resultado bém que muitas formas de injustiça produzem
desse processo. Além disso, muitas das vidas hu- intensidade e insight na personalidade. E. M. Fos-
manas mais criativas e valiosas derivam de lutas ter estava certo, em Maurice, ao descrever seu
particularmente difíceis, que forçaram as pessoas protagonista como um homem que teria sido um
para fora do mainstream, tornando-as alvo de entediante corretor de classe média, se não fosse
desrespeito e abuso. Qualquer um que já tenha pela sua homossexualidade e o preconceito con-
sido um esportista inábil, ou tido o corpo discor- tra ela. A adversidade e a diferença o levaram à
dante de algum estereótipo sexual, conhece o introspecção, ao insight e à individualidade genu-
verdadeiro sofrimento associado a essas deficiên- ína. Mas, é claro, não pretendemos manter a ho-
cias. Dessa forma, pais zelosos bem poderiam fa- mofobia só para que corretores entediantes pos-
zer alterações genéticas para preveni-las, produ- sam ser aperfeiçoados pelo sofrimento.
zindo uma nação de mulheres de seios grandes e Acredito ser muito positivo o fato de a nos-
homens musculosos. sa sociedade ter decidido (se é que o fez) que a
Mas não deveríamos mudar a cultura, ao in- homossexualidade não é uma doença a ser trata-
vés da natureza? E de onde, num mundo cultural- da, e sim uma condição que tem sido alvo de pre-
mente não reconstruído e geneticamente modifi- conceito – que ela tenha optado por combater o
cado de estereótipos de gênero, viriam os artistas e preconceito, em vez de erradicar a homossexua-
os intelectuais? E, se todas as crianças pudessem lidade. Em outra época e outro lugar, obviamente
ser aquilo que as normas sociais dominantes qui- isso poderia se dar de outra forma. (Realmente,
sessem que elas fossem, a vida não seria mais pobre alguns eugenistas tinham tal esperança e muitos
por conta disso? gays e lésbicas ainda temem que o conhecimento
Minha filha nasceu com uma deficiência genético possa, algum dia, ser usado para erradi-
motora perceptiva (não claramente genética, mas cá-los.) O problema é que eu não confio na so-
vamos supor que seja) que notadamente a coloca ciedade para lidar, dessa mesma maneira, com os
abaixo da linha base defendida por esses autores preconceitos contra os baixos, os descoordena-
sobre seres normalmente ativos. É uma deficiência dos, as de seios pequenos e os atleticamente de-
grave o suficiente para qualquer mãe decente ter ficientes. É provável que bons pais se sintam
optado, ex ante, por um conserto genético. (Ela obrigados não a trabalhar contra os preconceitos
aprendeu a ler aos dois anos de idade e a amarrar sociais que fazem as vidas de tais crianças difíceis,
o cadarço, aos oito.) Teve de agüentar maus tra- mas, ao contrário, a consertar essas condições, se
tos e aborrecimentos a vida toda. Sua personali- possível, antes do nascimento.
dade idiossincrásica, dinâmica, bem-humorada e Nosso mundo, já diminuído pela tirania da
absolutamente independente é inseparável dessas conformidade, seria mais pobre com tal mudan-
lutas. Não só não desejo, ex post, ter tido outra ça. O que diria Mill, se pudesse ter contemplado
criança diferente, como tampouco anseio que ela um mundo em que o conformismo de classe mé-
mesma tivesse sido consertada. Amor materno à dia pudesse afetar não só a felicidade de pessoas
parte (se isso existe), eu simplesmente gosto des- incomuns, mas a própria existência delas em fu-
sa pessoa incomum, muito mais do que teria gos- turas gerações? Que desafios a normas sociais
tado (acredito eu) da chefe das cheerleaders que dominantes, que experiências de vida teríamos
eu poderia ter tido. Certamente não ambiciono num mundo desses? “Eles desejam que eu nunca
um mundo em que pais consertem seus filhos para tivesse nascido”, disse minha filha, ao ouvir que
que ninguém se sinta deslocado, ainda que todos os autores desse livro eram a favor de tratamen-
saibamos que as vidas dos deslocados não são fá- tos genéticos de defeitos que se desviam do fun-
ceis. cionamento humano normal. Sim, realmente eles
No entanto, como dizem os obstinados au- o desejam. Mas quem, dada a opção de poder
tores de From Chance to Choice, é sabido tam- poupar o sofrimento de um filho, poderia segu-

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ramente discordar deles? É que só o fato de ter tal da pelo tratamento genético normalizador. Mes-
escolha já parece ameaçador e, de algum modo, mo não proibindo as cirurgias genéticas reco-
trágico. mendadas por tais autores, fomentemos uma cul-
Não proponho uma alternativa às recomenda- tura pública na qual uma gama ampla de supostas
ções sensíveis de Buchanan et al. Eles estão certos ao deficiências seja respeitada, entendida e encarada
usar como linha base, para a medicina genética, com imaginação, como forma valiosa de vida hu-
um pequeno núcleo de habilidades humanas co- mana – para que os pais ansiosos pelo normal
muns e proteger o pluralismo dos modos de vida pensem uma vez mais. Os autores de From
acima dessa linha. Mas é provável que os pais se-
Chance to Choice estão certos em não romantizar
jam maus árbitros para decidir o que faz parte do
a diferença, quando ela vem acompanhada de um
núcleo do humanamente normal; da mesma for-
ma, eles talvez também sejam zelosos demais grande sofrimento e uma deficiência significativa.
pelo normal, ao custo de muitas coisas boas na No entanto, as pessoas que foram formadas, for-
vida humana. tificadas e incentivadas a realizações, pela sua pró-
Estamos apenas começando a criar uma so- pria diferença – tornando-se pensadores, diga-
ciedade na qual crianças com Síndrome de Down mos, pois não conseguiram ser cheerleaders –, de-
são respeitadas como indivíduos e os surdos são vem ponderar seu destino complicado, porém fe-
vistos como tendo uma cultura. Devemos apoiar liz, e tentar preservar um mundo onde isso ainda
esses avanços, contra a onda previsível de deman- possa acontecer com outros.

Referências Bibliográficas
BUCHANAN, A. et al. From Chance to Choice: genetics and justice. New York/Cambridge/England: Cambridge Uni-
versity Press, 2000.
NUSSBAUM, M.C. Women and Human Development: the capabilities approach. New York: Cambridge University
Press, 2000a.
______. “The Future of Feminist Liberalism”. Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association.
Auburn, 74, p. 47-79, 2000b.

Dados da autora
Considerada uma das mais conhecidas filósofas
norte-americanas, Martha C. Nussbaum tem
como principais áreas de pesquisa a filosofia do
direito e a ética. Entre seus livros, encontra-se o premiado Cultivating Humanity.
Upheavals of Thought (Cambridge University,
2003).

Recebimento artigo: 5/jan./04


Consultoria: 2/fev./04 a 25/fev./04
Aprovado: 18/mar./04

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Biotecnologia e Organismos
Geneticamente Modificados
– Soluções ou Novos
Problemas
BIOTECHNOLOGY AND GMO’s –
SOLUTIONS OR NEW PROBLEMS *
Resumo Neste ensaio, dois grandes mitos da engenharia genética são confrontados:
o de que ela aponta para o fim da fome e da desnutrição no Terceiro Mundo e o de
que os organismos geneticamente modificados se equivalem aos produtos de lavouras
que resultam de cruzamento convencional. As promessas de mais alimento e de não-
existência de riscos, daí advindas, são aqui severamente combatidas. Para a autora, ten-
do por base a realidade da Índia, os organismos geneticamente modificados represen-
tam um componente do controle corporativo sobre a agricultura, particularmente so-
bre os pequenos agricultores, engajados que estão na produção controlada por cor-
porações globais como Cargill, Monsanto e Syngentaa. Suas críticas perpassam a eco-
nomia de globalização corporativa, as novas tecnologias, o monopólio do
conhecimento e os direitos de propriedade intelectual. VANDANA SHIVA
Research Foundation for
Palavras-chave BIOTECNOLOGIA – ENGENHARIA GENÉTICA – NOVAS TECNOLO- Science, Technology and
GIAS – ECONOMIA GLOBALIZADA – PROPRIEDADE INTELECTUAL – FOME. Ecology, Nova Déli/Índia
vshiva@giasdl01.vsnl.net.in
Abstract In this essay, two major myths related to genetic engineering are
confronted: the one that says that it will solve the problem of hunger and nutrition
in the Third World, and the one that Genetically Modified Organisms are the same
as crops produced through conventional breeding. The promises of more food and
of no risks that come from these myths are here severely contested. For the author,
taking into account India’s reality, Genetically Modified Organisms present a
corporate control component over agriculture, especially over small farmers, engaged
in the production controlled by global corporations like Cargill, Monsanto and
Syngenta. Her critiques pass by the economy of corporate globalization, the new
technologies, the monopoly of knowledge, and intellectual property rights.

Keywords BIOTECHNOLOGY – GENETIC ENGINEERING – NEW TECHNOLOGIES –


GLOBALIZED ECONOMY – INTELECTUALL PROPERTY – SHUNGER.

* Traduzido do inglês para o português por NUNO COIMBRA MESQUITA.

Nota do Tradutor (N.T.): genetically modified organism (organismo geneticamente modificado) englo-
bam os transgênicos, não se restringindo a eles. Os transgênicos são um tipo específico de GMO que
inclui material genético de outras espécies.

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E
xistem dois grandes mitos relacionados à engenharia ge-
nética. O primeiro é que ela resolverá o problema da
fome e da desnutrição no Terceiro Mundo; o segundo
consiste em os organismos geneticamente modificados
(genetically modified organisms-GMO) serem iguais aos
produtos de lavouras originados por cruzamento con-
vencional. O primeiro mito cria a promessa falsa de mais
alimento e o segundo, a da não-existência de riscos.

OS GMOS AGRAVARÃO FOME, DESNUTRIÇÃO E POBREZA


A fome e a pobreza resultam de sistemas econômicos exploradores,
que negam, a pequenos agricultores e comunidades rurais, seu espaço na
cota total e justa dos produtos de seu trabalho. Afastados da produção,
os lavradores perdem o sustento, a renda e, por conseguinte, os direitos
à comida. Isso porque pequenos agricultores que continuam engajados
na produção controlada por corporações terminam inevitavelmente en-
dividando-se, já que elas lhes vendem caro as matérias-primas, como se-
mentes e produtos químicos, e compram barato os alimentos. Nesse sen-
tido, os GMOs representam um componente do controle corporativo so-
bre a agricultura.
A economia suicida da globalização corporativa
Os camponeses indianos, maior grupo de pequenos agricultores
sobreviventes no mundo, enfrentam, hoje em dia, uma crise de extinção.
Dois terços da Índia ganham seu sustento da terra. A terra é o emprega-
dor mais generoso nesse país de um bilhão de pessoas, que a têm lavrado
há mais de cinco mil anos.
Entretanto, enquanto a plantação se desliga da terra, do solo, da bio-
diversidade e do clima, e se associa a corporações e mercados globais,
substituindo-se a generosidade da terra pela ganância de corporações, a
viabilidade de pequenos agricultores e pequenas fazendas é destruída.
Suicídios de agricultores são o sintoma mais trágico e dramático da crise
de sobrevivência encarada pelos camponeses indianos.
O ano de 1997 testemunhou o surgimento de suicídios de agricul-
tores na Índia. O rápido crescimento do endividamento foi o motivo de
os agricultores tirarem suas vidas. A dívida reflete uma economia nega-
tiva, uma economia solta. Dois fatores têm transformado a economia po-
sitiva da agricultura numa economia negativa para agricultores: os custos
crescentes da produção e os preços em queda de produtos agrícolas. Am-
bos estão enraizados nas políticas de liberalização do comércio e na
globalização corporativa.
Em 1998, as políticas de ajustes estruturais do Banco Mundial for-
çaram a Índia a abrir seu setor de sementes a corporações globais, como
a Cargill, a Monsanto e a Syngenta. Tais corporações mudaram a econo-
mia de insumos da noite para o dia. As sementes colhidas por agricultores
foram substituídas por sementes corporativas, que necessitavam de fer-
tilizantes e pesticidas e não podiam ser colhidas.

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Como a colheita de sementes é prevenida lho colhida de fazendas, a plantação inteira fa-
por patentes, bem como pela engenharia da se- lhou, gerando perda de 4 bilhões de rúpias e au-
mente com características não renováveis, ela tem mentando, portanto, a pobreza e o desespero de
de ser comprada a cada safra pelos camponeses agricultores. Camponeses pobres do Sul não
pobres. Um recurso gratuito disponível em fa- conseguem sobreviver aos monopólios de se-
zendas torna-se, assim, uma mercadoria que os mentes. A crise dos suicídios mostra como a so-
agricultores são forçados a comprar todos os brevivência de pequenos agricultores é incompa-
anos. Isso aumenta a pobreza e leva ao endivida- tível com os monopólios de sementes de corpo-
mento. Uma vez que as dívidas aumentam e tor- rações globais.
nam-se impagáveis, os agricultores são levados a A segunda pressão sofrida pelos agriculto-
vender seus rins ou, até mesmo, cometer suicídio. res indianos refere-se à dramática queda nos pre-
Mais de 25 mil camponeses na Índia suicidaram- ços de produtos agrícolas, como resultado das
se desde 1997, quando a prática da colheita de se- políticas de livre-comércio, da Organização
mentes transformou-se por pressões globalizan- Mundial do Comércio (OMC). As regras da OMC
tes e as corporações multinacionais passaram a para o comércio na agricultura, essencialmente de
controlar o suprimento delas. A colheita de se- dumping, permitiram um aumento nos subsídios
mentes dá a vida aos agricultores. Já os monopó- do agronegócio, ao mesmo tempo em que não dei-
lios de sementes roubam-lhes a vida. xam países proteger seus agricultores do dumping
A mudança da semente de colheita para os de produtos artificialmente baratos. Subsídios al-
monopólios de suprimento de sementes significa tos de 400 bilhões de dólares, aliados à remoção
também a substituição da biodiversidade pela forçada de restrições na importação, representam
monocultura agrícola. O distrito de Warangal, uma receita pronta para o suicídio de agriculto-
em Andhra Pradesh, costumava plantar diversos res. Entre 1995 e 2001, os preços globais do trigo
legumes, painço e sementes utilizadas para fabri- caíram de 216 para 133 dólares/tonelada; os do
car óleo. Os monopólios de semente criaram algodão, de 98,2 para 49,1 dólares/tonelada; e os
monoculturas de algodão, levando ao desapareci- da soja, de 273 para 178 dólares/tonelada. Essa
mento de milhões de anos de evolução da natu- redução para a metade do preço não provém de
reza e da produção dos agricultores. um aumento em dobro da produtividade, mas da
elevação dos subsídios e do incremento dos
As monoculturas e a uniformidade aumen-
monopólios de mercado controlados por um pu-
tam os riscos de falhas na plantação, já que diver-
nhado de corporações do agronegócio.
sas sementes adaptadas a inúmeros ecossistemas
são substituídas pela introdução apressada de se- O governo dos EUA paga 193 dólares/to-
mentes não adaptadas, e freqüentemente não tes- nelada aos agricultores de soja estadunidenses,
tadas, no mercado. Quando a Monsanto introdu- baixando artificialmente o seu preço. Em conse-
ziu inicialmente o algodão Bt,1 na Índia, em 2002, qüência da remoção de restrições quantitativas e
os agricultores perderam 1 bilhão de rúpias por do decréscimo das tarifas, a soja barata destruiu o
conta de falhas nas plantações. Ao invés de 1.500 sustento de plantadores de coco, agricultores de
kg/acre, prometidos pela companhia, a safra foi mostarda e produtores de gergelim, amendoim e
de apenas 200 kg/acre. Ao invés de rendas mais soja.
altas de 10 mil de rúpias por acre, os agricultores Da mesma forma, 25 mil produtores de al-
tiveram prejuízos de 6,4 mil de rúpias por acre. godão nos EUA recebem anualmente um subsídio
de 4 bilhões de dólares. Isso baixou o preço do al-
No estado de Bihar, quando o milho hí-
godão artificialmente, permitindo a esse país al-
brido da Monsanto substituiu a semente de mi-
cançar mercados mundiais, acessíveis anterior-
1 N.T.: relativo à Bacillus thuringiensis, bactéria utilizada para controlar mente a países pobres africanos, como Burkina
certas pestes de insetos. Fasso, Benin e Mali. O subsídio de 230 dólares/

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acre nos EUA é um genocídio para os agricultores produziu mais nutrição por acre, os milagres da
africanos, que estão perdendo 250 milhões de dó- engenharia genética, como o arroz dourado e as
lares por ano. Por isso, pequenos países africanos batatas protéicas, não resolverão o problema da
abandonaram as negociações de Cancun, levando deficiência dessa vitamina e da desnutrição de
à queda do comitê executivo da OMC. proteínas.
Os preços fraudulentos dos produtos agrí- O arroz dourado é geneticamente projeta-
colas comercializados globalmente estão rouban- do para produzir 30 mg/100 g de beta-caroteno
do renda de agricultores pobres do Sul. Uma aná- depois de desenvolvido. Mas os níveis de beta-ca-
lise feita pela Fundação de Pesquisa para a Ciên- roteno nesse produto são bem mais baixos. En-
cia, Tecnologia e Ecologia mostra que, em razão quanto isso, as variedades cultivadas pelos agri-
da queda de preços agrícolas, os camponeses in- cultores, como o arroz vermelho himalaico, apre-
dianos estão perdendo, anualmente, 26 bilhões de sentam níveis muito mais altos de vitamina A.
dólares ou 1,2 trilhões de rúpias. Isso é um fardo Plantações de alimentos e plantas comestíveis,
que a pobreza deles não lhes permite carregar. como folhas de amaranto, de coentro, de curry e
Daí a epidemia de suicídios de agricultores. drumstick, têm entre mil e 1,4 mil mg de vitamina
A, 70 vezes mais do que o arroz dourado. Logo,
NOVAS TECNOLOGIAS, NOVOS RISCOS esse último reduzirá a disponibilidade de vitami-
As tecnologias de produção de alimentos na A, aumentando a deficiência dela e a cegueira.
passaram por duas gerações de mudança nas úl- Da mesma maneira, a batata protéica dimi-
timas décadas. A primeira foi a introdução de nuirá a disponibilidade de proteína, ao tirar genes
produtos químicos na agricultura, sob a bandeira do amaranto, que possui 11 g/100 g de proteína,
da Revolução Verde. Produtos químicos tóxicos e colocá-los na batata para conseguir de 1,5 g a 2
utilizados na guerra acabaram estendidos à agri- g de proteína. Isso levará, ainda, ao desapareci-
cultura, em tempos de paz, como fertilizantes e mento do ferro (11 mg/100 g) e do cálcio (510
pesticidas sintéticos. A agricultura e a produção mg/100 g) presentes no amaranto e ausentes na
de alimentos tornaram-se dependentes de armas batata protéica. Essas receitas destinam-se a cria-
de destruição em massa. O desastre de Bhopal, em ção de monoculturas e desnutrição, e não à re-
que um vazamento de uma indústria de pesticidas moção da desnutrição.
matou milhares de pessoas, em 1984, e continua Além de não produzir mais nutrição, a en-
tirando a vida de quase 30 mil pessoas desde en- genharia genética cria novos riscos à saúde públi-
tão, é a lembrança mais trágica de como a agri- ca. Seus promotores dizem que essa engenharia
cultura tem se tornado dependente de tecnologias não difere do cruzamento convencional, não re-
de guerra, projetadas para matar. Recentemente, presentando, portanto, novos riscos ecológicos
uma comissão parlamentar conjunta confirmou a ou de saúde. Também argumentam que ela é mais
contaminação por pesticidas dos refrigerantes da precisa e previsível do que o cruzamento conven-
Coca-Cola e da Pepsi. cional. Porém, esse último não transfere genes de
A agricultura química e a da Revolução bactérias e de animais para as plantas, não coloca
Verde desenvolveram-se conjuntamente com genes de peixes em batatas ou de escorpiões em
monoculturas, daí a destruição de diversas fontes repolhos. Ele cruza arroz com arroz, trigo com
de nutrição da biodiversidade agrícola. Fontes de trigo. Já a engenharia genética distingue-se do
proteínas em forma de grãos desapareceram, as- cruzamento convencional pelas razões dispostas
sim como as de ferro e de vitamina A em planta- a seguir.
ções de vegetais. A crise nutricional resultante 1. Diferentemente do cruzamento conven-
das monoculturas da Revolução Verde está agora cional, ela junta material genético de espécies di-
sendo tratada pela engenharia genética. Entretan- ferentes e não relacionadas, que não se cruzam na
to, da mesma forma que a Revolução Verde não natureza e para as quais não há, ou quase, a pro-

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babilidade de progênie natural. Isso tem efeitos um rompedor endócrino. A Syngenta, produtora
imprevisíveis na fisiologia, na bioquímica e nas do Atrazine, tentou primeiro bloquear a pesqui-
funções ecológicas dos organismos transgênicos. sa. Depois, quando Hayes continuou a desenvol-
2. Novos genes exóticos são introduzidos vê-la com recursos próprios, ofereceu a ele 2 mi-
no genoma em locais imprevisíveis, ao passo que lhões de dólares para continuá-la num ambiente
o cruzamento convencional mistura versões dife- particular. A oferta foi recusada e pesquisa publi-
rentes dos mesmos genes cujas estruturas do ge- cada na Ata da Academia Nacional de Ciências.
noma foram dadas pela evolução. A introdução A Syngenta prosseguiu atacando o estudo e re-
incalculável de genes exóticos pode levar a resul- primindo o seu uso em políticas de proteção à
tados inconjecturáveis no metabolismo, na fisio- saúde pública e ambiental.
logia e na bioquímica do organismo transgênico Por sua vez, Arpard Pusztai foi reconheci-
recipiente. do como o maior especialista do mundo em lec-
3. A engenharia genética utiliza vetores de- tina, quando trabalhava no Instituto Rowett, em
rivados de vírus e de plasmódios que causam doen- Aberdeen, Escócia. Tendo recebido um financia-
ças. Já que esses vetores são projetados para lan- mento do governo britânico para verificar o im-
çar genes entre uma margem razoável de espécies, pacto, na saúde, de batatas geneticamente modi-
eles têm uma amplitude grande de hospedeiros e ficadas, Pusztai as ofereceu como alimento a ra-
podem infectar uma vasta gama de plantas e ani- tos. Como resultado, esses animais apresentaram
mais. Além do mais, por serem esses vetores danos imunológicos e em seus tecidos. Ao tentar
construídos para superar os mecanismos de defe- tornar pública tal pesquisa, com o consentimento
sa dos organismos recipientes contra a invasão de do seu instituto, ele acabou demitido, e defla-
um DNA externo, a engenharia genética carrega o grou-se, com o envolvimento das mais altas au-
risco da resistência e da imunidade, e de tornar as toridades, uma campanha para desacreditá-lo.
plantas mais vulneráveis a infecções. Depois que suas descobertas foram publicadas na
Lancet, a casa do cientista foi invadida e ele teve
A AMEAÇA À CIÊNCIA E A CIENTISTAS seus documentos roubados.
PÚBLICOS Em outro instituto de renome, a Universi-
O surgimento de riscos associados às novas dade de Cornell, John Losey pesquisou o impac-
tecnologias exige mais pesquisa pública intensa, de to do milho Bt geneticamente modificado em es-
modo a verificá-los e a informar sistemas para re- pécies não alvejadas. Alimentou larvas de borbo-
gulamentação da biossegurança e da saúde pública. leta monarca com folhas de asclepiadáceas acres-
Entretanto, precisamente quando a ciência pública cidas de pólen do milho Bt. Elas morreram em
mostra-se cada vez mais necessária para salvaguar- grande quantidade, ao passo que, no grupo de
dar a saúde pública, cientistas autônomos desen- controle, alimentado com pólen não modificado
volvendo pesquisas independentes estão se tor- geneticamente, todas sobreviveram. Esse simples
nando novos galileus. Afastam-se de seus empre- estudo atraiu a fúria da Monsanto e da Novartis,
gos e instituições, sob pressão de interesses estrei- as quais alegaram que espécies não alvejadas não
tos que comercializam alimentos prejudiciais a são afetadas por plantações Bt geneticamente
qualquer custo e tentam criar um ambiente em que modificadas, projetadas para matar pestes, como
a ignorância dos riscos à saúde pública seja tratada as lagartas que atacam algodoeiros e milharais.
como uma garantia à segurança. O cientista Ignacio Chapela, da Universida-
Tyrene Hayes, endocrinologista da Univer- de da Califórnia, em Berkeley, descobriu, em seu
sidade da Califórnia, em Berkeley, expôs jovens centro de diversidade situado no México, que o
sapos, em seu laboratório, a pequenas doses do pólen de milho geneticamente modificado poluiu
herbicida Atrazine. Os machos tornaram-se her- esse grão. Seu estudo, publicado na Nature, em
mafroditas, sugerindo que tal substância pode ser novembro de 2001, deveria ter servido de alerta de

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que a contaminação de plantações geneticamente prias investigações. A ciência está sendo reduzida
modificadas poderia potencialmente comprome- à informação pela corporação, da corporação, para
ter a biodiversidade para sempre. Ao invés disso, a a corporação. Sem liberdade e independência não
Monsanto lançou grande campanha pública, por há ciência, e sim relações públicas e propaganda.
meio do Grupo Bivings, empresa global de rela- Em 13 de maio de 2003, o governo dos EUA
ções públicas, utilizando nomes fictícios de cien- propôs uma objeção na Organização Mundial do
tistas. Os editores da Nature, não acostumados a Comércio, acusando que a política de plantações
essa forma de exigência agressiva, fizeram algo geneticamente modificadas da União Européia
inédito em 133 anos do periódico científico: pu- violava tratados internacionais. No dia em que a
blicaram uma retratação parcial cuidadosa do rela- objeção foi apresentada, o representante comer-
tório de Chapela. Como resultado, foi negada a cial desse país, Robert Zoellick, declarou que a es-
permanência de Chapela em Berkeley. magadora maioria das pesquisas científicas mos-
Nos encontros protocolares de biossegu- tra que alimentos biotecnológicos seriam seguros
rança concluídos recentemente em Kuala Lum- e saudáveis. Exatamente dez dias depois, o presi-
pur, o cientista norueguês Terje Traavik apresen- dente Bush propôs uma iniciativa para combater
tou estudos mostrando que os promoters empre- a fome na África, utilizando alimentos genetica-
gados em engenharia genética foram transferidos mente modificados. Culpou os medos infunda-
para os intestinos de ratos. Isso cria riscos de esses dos e não científicos da Europa, com relação a es-
vírus interagirem e hibridarem-se com vírus laten- ses alimentos, por obstruir os esforços para aca-
tes, gerando novas doenças. Ainda que genes in- bar com a fome.
terajam entre organismos, os GMOs estão sendo Esses ataques continuaram mesmo depois
vendidos sob a suposição falsa e não científica de de a União Européia ter removido o de facto mo-
que não há interação e, portanto, não existe risco. ratorium e legislado sobre os GMOs. A comissária
No entanto, a manipulação feita por eles de pes- de Meio Ambiente da União Européia, Margot
quisas e sistemas reguladores pode ameaçar seria- Wallstrom, foi obrigada a dizer, sobre as compa-
mente a ciência independente e a saúde pública. nhias de biotecnologia estadunidenses e sobre o
Em 2002, a Monsanto manipulou o sistema presidente Bush, que eles tentaram mentir para as
regulador indiano com o objetivo de conseguir pessoas e que tal abordagem é errada. Ela ridicu-
autorização para plantar algodão geneticamente larizou os argumentos dos EUA quanto à enge-
modificado. O algodão não teve êxito. Mais de 12 nharia genética dizer respeito à alimentação dos
estudos independentes, incluindo relatórios go- famintos, considerando que isso resolverá o pro-
vernamentais, demonstraram que, em vez dos blema da fome entre acionistas, mas não a fome
prometidos 1,5 mil kg/acre, o rendimento do al- do mundo em desenvolvimento.
godão foi apenas 200 kg/acre. Ao contrário de os Na área alimentar, desafios fundamentais
agricultores terem um aumento de renda de 10 relacionados ao conhecimento e à democracia, à
mil rúpias/acre, eles perderam 6,4 mil rúpias/acre. saúde pública e à segurança ecológica estão sur-
Tais estudos terminaram ignorados. Con- gindo. A humanidade tem diante de si duas
tudo, Martin Qaim, da Universidade de Bonn, e opções: uma delas é um sistema de alimentos e de
David Ziberman, da Universidade da Califórnia, saúde no qual a biodiversidade e a biotecnologia
em Berkeley, que não tinham visitado os campos pertencem e são controladas por um ou dois gi-
dos agricultores na época de plantação comercial, gantes do gene, que negam aos cidadãos liberda-
publicaram artigo, na Science, afirmando que a de para escolher, sufocam a ciência independente
experiência indiana com o algodão Bt é positiva e e acabam com o bem comum da biodiversidade e
que os rendimentos aumentaram 80%. Qaim e com o conhecimento por meio de patentes e di-
Ziberman utilizaram dados fornecidos pela reitos de propriedade intelectual. A outra consis-
Mahyco-Monsanto em lugar de fazer suas pró- te num sistema alimentar e de saúde em que o

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domínio público é protegido para servir ao bem O TRIPS não foi realmente negociado pelos
público, por meio da biodiversidade e do conhe- membros do General Agreement on Tariffs and
cimento protegidos como um bem comum, e a li- Trade (GATT, Acordo Geral sobre Tarifas e Co-
berdade das pessoas para escolher e saber é de- mércio). Foi imposto por multinacionais, que
fendida como aspecto essencial da democracia. utilizaram o governo dos EUA para forçá-lo a ou-
Ainda que o primeiro modelo guie as regras da tros membros. É o exemplo mais espalhafatoso
globalização e das políticas governamentais, em da natureza não democrática e não transparente
muitas partes do mundo, em direção à privatiza- da OMC. A estrutura básica para o sistema de pa-
ção total, outro está nascendo das diversas inicia- tentes da TRIPS foi concebida e modelada numa
tivas que vêm se encontrando numa nova cone- declaração conjunta apresentada ao secretariado
xão emergente de um equilíbrio entre domínios do GATT, em junho de 1988, pelo Intelectuall
privados e públicos. Property Committee (IPC, Comitê de Proprieda-
O futuro da saúde pública e do bem público de Intelectual) dos EUA e por associações de in-
depende da nossa capacidade de defender, resga- dústrias do Japão e da Europa. O IPC é uma coa-
tar, recuperar e reinventar o conceito e os espaços lizão de 13 grandes corporações dos EUA dedica-
do público, enquanto o domínio público encara a das à finalização do TRIPS em seu favor. Os mem-
sua diminuição sob o ataque descuidado da bros do IPC eram Bristol Myers, Dupont,
globalização privatizante. Sem a segurança do do- General Electric, General Motors, Hewlett Pa-
mínio público, a saúde pública não pode ser ga- ckard, IBM, Johnson and Johnson, Merck, Mon-
rantida. Sem a ciência pública, não há como se ter santo, Pfizer, Rockwell e Warmer.
saúde pública, nem segurança pública. A ameaça à O IPC consultou muitos grupos de interes-
ciência pública põe em risco a saúde pública. se durante todo o processo. Já que nenhum gru-
po comercial ou associação preenchiam os requi-
MONOPÓLIOS DO CONHECIMENTO E sitos exigidos, criou-se o comitê cuja tarefa pri-
DIREITOS DE PROPRIEDADE meira no IPC era convencer as associações indus-
INTELECTUAL triais da Europa e do Japão sobre a possibilidade
A ciência pública e o domínio público do de um código. Os princípios fundamentais para a
conhecimento estão sob ataque direto dos novos proteção de todas as formas de propriedade inte-
regimes de direito de propriedade intelectual, que lectual foram destilados das leis dos países mais
têm removido todos os limites da patenteação. avançados. Além de vender tais conceitos aos
Sob o Trade Related Intellectual Property Rights EUA, o IPC apresentou em Genebra o documento
Agreement (TRIPS, Acordo dos Direitos de Pro- aos membros do secretariado do GATT e a repre-
priedade Intelectual Relacionados ao Comércio), sentantes de um grande número de países nela es-
tudo é patenteável, inclusive formas de vida. O tabelecidos.
TRIPS é o tratado internacional para a proteção da Isso foi absolutamente sem precedentes. A
propriedade intelectual; entretanto, toma por indústria identificou um grande problema no co-
base um conceito muito restrito de inovação. Por mércio internacional, desenvolveu uma solução,
definição, ele favorece corporações transnacio- reduziu-a a uma proposta concreta e vendeu-a ao
nais e desfavorece os cidadãos em geral, particu- nosso e a outros governos. As indústrias e co-
larmente agricultores do Terceiro Mundo e habi- merciantes do comércio mundial tiveram simul-
tantes de florestas. As pessoas inovam e criam taneamente o papel de pacientes, diagnosticado-
por toda a parte. De fato, os mais pobres devem res e médicos prontos a prescrever receitas. Essa
ser os mais inovadores, já que têm de trabalhar usurpação de todos os papéis dos direitos de di-
pela sobrevivência, diariamente ameaçada. Além versos grupos sociais por interesses comerciais
disso, o TRIPS desfavorece as necessidades básicas tem levado ao deslocamento da preocupação so-
e a sobrevivência e favorece o comércio. cial ética e ecológica da essência desse acordo. O

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TRIPS não resulta de negociações democráticas nativo. E os mesmos interesses que encaram as
entre o público maior e os interesses comerciais, inovações processuais como desprovidas de in-
ou entre os países industrializados e o Terceiro ventividade tentam reclamar patentes nos proces-
Mundo. Ao contrário, é a imposição de valores e sos da natureza e nos conhecimentos nativos
interesses das multinacionais do Norte a diversas como invenção.
sociedades e culturas do mundo. O artigo 27.5.3(b) do TRIPS refere-se à pa-
A maior pressão para internacionalizar as tenteação da vida:
leis do Direito de Propriedade Intelectual (DPI)
As partes interessadas podem excluir da
foi feita, então, pelas multinacionais. Ainda que o
patenteação plantas e animais à exceção
DPI não seja um direito natural, mas estatutário,
dos micro-organismos e, essencialmente,
as multinacionais o têm naturalizado e usado o processos biológicos para a produção de
GATT para proteger o que elas definiram como plantas e animais que não sejam não-bioló-
seus direitos na condição de donas de propriedade gicos e microbiológicos. Entretanto, elas
intelectual. Já que a maioria da inovação no domí- devem garantir a proteção de variedades
nio público é para uso doméstico, local e público, de planta por patentes, por um sistema
e não para o comércio internacional, o TRIPS re- efetivo sui generis ou por uma combina-
presenta somente um reforço dos direitos das ção dos dois. Essa garantia deverá ser re-
multinacionais para monopolizar toda a produ- vista quatro anos após a entrada em vigor
ção, distribuição e lucros, a custo de todos os ci- do acordo.2
dadãos e pequenos produtores no mundo todo, Esse artigo da OMC força países a mudar
sobretudo em países do Terceiro Mundo. suas leis de patentes de modo a introduzir paten-
Anteriormente à Série do Uruguai, os DPIs tes para formas de vida e também uma legislação
não foram cobertos pelo GATT. Cada país tinha de variedade de plantas.
suas próprias leis de DPI para servir a suas próprias Esses regimes perversos de DPI, postos em
condições éticas e sociais. A mudança mais signi- ação por corporações globais, têm lhes permitido
ficativa nos DPIs no TRIPS consiste em expandir o piratear e patentear a nossa biodiversidade e o co-
domínio do que é patenteável. O artigo 27.1 do nhecimento tradicional. A Ricetec, companhia
TRIPS, sobre a matéria patenteável, afirma que pa- estabelecida no Texas, alegou falsamente ter in-
tentes devem se tornar disponíveis para qualquer ventado as propriedades de nosso tradicional
invenção, de produtos ou de processos, em todos Basmati. A Monsanto patenteou plantas e produ-
os campos da tecnologia, desde que sejam novos, tos derivados de nosso trigo tradicional. Corpo-
envolvam uma etapa inventiva e se mostrem ca- rações como a Monsanto não estão introduzindo
pazes de aplicação industrial. os GMOs por caridade aos pobres e famintos, mas
A remoção de todos os limites na patentea- empurrando-os para controlar o nosso supri-
ção foi uma exigência das multinacionais. Isso mento de sementes e de alimentos. O objetivo é
anula a exclusão na lei de patentes da Índia, que a propriedade e o controle, e não a remoção da
não as concedia para alimentos e medicamentos, fome e da pobreza. Os GMOs e as patentes de
mas permitia apenas aquelas de processo aos me- vida caminham lado a lado.
dicamentos. A construção da capacidade nativa, a Aliadas aos GMOs, as patentes de sementes
auto-suficiência em medicamentos e a habilidade podem levar ao fim de todos os direitos dos agri-
de controlar preços e mantê-los baixos, possíveis cultores, como no caso de Percy Schmeiser. Pri-
pelo ato de 1970, são vistos pelas multinacionais meiro a Monsanto poluiu-lhe o campo, depois
como perda de lucros. reivindicou-lhe a plantação inteira como sua pro-
O TRIPS também expandiu a abrangência priedade intelectual. Os camponeses pobres do
da patenteação para cobrir formas de vida. Isso
permite, portanto, a piratagem de conhecimento 2 Artigo 27.5.3(b), TRIPS/OMC.

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Sul não podem sobreviver aos monopólios de se- que a poluição compensa tem se transformado no
mentes. Por isso, o caso de Percy Schmeiser de- princípio de que o poluidor é pago.
cidirá o futuro não só de um agricultor canaden- Essa jurisprudência perversa deve ser corri-
se, mas de milhares de camponeses. gida por todos os agricultores e todas as espécies.
O exemplo injusto e antiético da Monsanto As liberdades dos agricultores devem prevalecer
contra Percy é um duplo crime contra agricultores. ao monopólio corporativo. A sobrevivência deles
Ao criar e reforçar direitos ilegítimos de patentes deve ter primazia à ganância corporativa. O futu-
de sementes, primeiramente ela nos rouba o direi- ro de Percy é o nosso futuro. A liberdade de se-
to e o dever humanos de colher sementes. Em se- mente de Percy é a nossa liberdade. Os direitos
gundo lugar, recompensa o poluidor com direitos de Percy como agricultor são simbólicos dos di-
de propriedade melhorada e lucros. O princípio de reitos humanos de todos os agricultores.

Dados da autora
Física, ecologista e filósofa, figura entre os mais
respeitados cientistas e ativistas da Índia. É
diretora da Research Foundation for Science,
Technology and Natural Resource Policy (Fundação de
Pesquisa para a Política da Ciência, Tecnologia e Recursos Naturais),
em Deradaan, Índia. Escreveu inúmeros livros, incluindo
Water Wars (2001), Patents, Myths and Reality (2001),
Monocultures of the Mind (1993) e Staying Alive: women,
ecology, and development (1989).

Recebimento artigo: 24/jan./04


Consultoria: 6/fev./04 a 27/fev./04
Aprovado: 18/mar./04

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O Papel Público e
Privado na Percepção do
Consumidor sobre a
Segurança dos Alimentos
THE PUBLIC AND PRIVATE ROLE IN THE
CONSUMER PERCEPTION OVER FOOD SAFETY
Resumo Assegurar a qualidade dos alimentos é um crescente objetivo de governos,
companhias e agentes de padronização e certificação do comércio internacional. Seus
esforços são direcionados a influenciar a percepção do consumidor quanto aos mui-
tos atributos de um produto alimentar, com cuidado particular em relação aos vincu-
lados com a segurança. A garantia da qualidade está ganhando proeminência, porque
seus atributos estão sendo melhor monitorados por governantes, consumidores e
companhias. Essa melhor avaliação sugere o aparecimento de garantias de qualidade
voluntárias proporcionadas por companhias e de maior regulação pelo governo. Os ins-
trumentos públicos e privados têm sido analisados separadamente na literatura sobre re-
gulação e marketing. O objetivo geral deste trabalho foi realizar uma revisão teórica do
papel desempenhado por cada um na percepção de segurança do consumidor. São su-
geridas ações públicas e privadas que podem elevar a percepção de qualidade do con-
sumidor no que se refere a possíveis riscos associados aos alimentos. O estudo das es-
tratégias privadas e políticas públicas pode ser útil para induzir ações de regulação e EDUARDO EUGÊNIO
comunicação que gerem uma melhor transparência e confiança do mercado. SPERS
Universidade Metodista de
Palavras-chave SEGURANÇA DO ALIMENTO – CONSUMIDOR – ESTRATÉGIAS Piracicaba (UNIMEP)
PRIVADAS – POLÍTICAS PÚBLICAS. eespers@unimep.br

DÉCIO ZYLBERSZTAJN
Abstract The guarantee of food safety is a growing concern for the governments Universidade de São Paulo (USP)
and company decision makers. Their efforts are addressed to influence the dezylber@usp.br
consumer's perception over the many attributes of a food product, with special
attention to the nutrition and safety aspects. The guarantee of quality is becoming CLÁUDIO ANTÔNIO
important because their attributes are better evaluated and monitored by PINHEIRO MACHADO
government, consumers and companies. This better evaluation suggests the FILHO
appearance of voluntary systems of quality provided by companies and more Universidade Metodista de
regulation by governments. These public and private instruments have been Piracicaba (UNIMEP)
analyzed separately in the literature of regulation and marketing. The main goal of cpmachad@unimep.br
this study was to make a theoretical review of the role played by the public and
private strategies instruments used to improve consumer's perception over food
safety. Some public and private actions are suggested to improve the consumers’
perception of quality regarding the risks associated with food consumption. The
study of the private strategies and public policies can be useful to set regulations
and communication strategies that give a better transparency and confidence to
the market.

Keywords FOOD SAFETY – CONSUMER – PRIVATE STRATEGIES – PUBLIC POLICY.

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INTRODUÇÃO

P
ara avaliar economicamente a segurança do alimento sobre
o sistema agroalimentar e as alternativas de estratégias pú-
blicas e privadas com relação ao problema, é preciso respon-
der, segundo Caswell et al., a várias questões: quanta regu-
lamentação os consumidores desejam; qual será o impacto
de se banirem um ou mais pesticidas, drogas animais ou adi-
tivos alimentares; qual é o potencial de mercado para pro-
dutos irradiados, orgânicos ou transgênicos; quanto o con-
sumidor está disposto a pagar por esses produtos; de que modo os consu-
midores respondem às propagandas de produtos alimentares que não causam
danos à saúde e ao conteúdo informativo dos rótulos de embalagens; se um
alimento contém um certo resíduo com risco à saúde, quem vai consumi-lo
e em que nível de segurança; como o consumidor responde a informações
sobre segurança e quais são as mais importantes.1
A segurança do alimento, ou seja, a garantia de o consumidor ad-
quirir um alimento com atributos de qualidade que sejam do seu interes-
se, entre os quais se destacam os atributos ligados à sua saúde,2 tem cres-
cido em importância, juntamente com os novos processos de
industrialização e com as novas tendências de comportamento do con-
sumidor. Ela vem sendo objeto de interesse por parte de diversos agentes
econômicos. Dos consumidores e de algumas organizações não-governa-
mentais, que surgem como agentes de pressão sobre o ambiente institu-
cional, dada a percepção de risco de prejuízo à saúde no consumo de ali-
mentos. Também do Estado, em razão da necessidade de assegurar o di-
reito de propriedade do bem público e a segurança no consumo de produ-
tos alimentícios, por intermédio da eficiente utilização dos mecanismos
públicos. Por fim, das empresas privadas, que necessitam desenvolver ações
individuais e coletivas de utilização de mecanismos privados, como a cria-
ção de marcas e selos que servem para se adequar às pressões da sociedade
e às normas estabelecidas pelo Estado, além de asseverar ganhos adicio-
nais com um prêmio recebido pelo produto ou pela segurança de recom-
pra futura do produto condicionada, entre outras variáveis, à sua reputa-
ção.

I. O PAPEL PÚBLICO
As instituições e os seus regulamentos são atuantes e necessários
para a decisão do consumidor e para um melhor desempenho econômi-
co.3 O Estado está presente na economia para assegurar os direitos de
propriedade e o cumprimento dos contratos.4 Ele tem a função de afian-
çar, por meio da inspeção e da punição, o cumprimento das atividades ne-

1 CASWELL et al., 1991.


2 SPERS, 1993.
3 SMITH & WHITE, 1999.
4 KLEIN & LEFFLER, 1981.

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cessárias que permitem alcançar um nível de se- traçar as estratégias públicas, privadas e coletivas
gurança imposto pela sociedade.5 Ao estabelecer que proporcionem um nível adequado e desejado
regulamentos e normas, dois tipos de custos in- pela sociedade, sobretudo pelos consumidores.
cidem: o de fazer cumprir (enforcement) e o de Dependendo da maneira como está estru-
monitorar. Portanto, para minimizar seus custos, turado o ambiente institucional, existe uma com-
deve decidir qual a estrutura de governança6 mais petição desleal e, portanto, um desestímulo para
eficiente,7 ou a um menor custo de transação,8 quem proporciona um padrão superior de quali-
faz essas normas serem obedecidas pela socieda- dade e segurança em seus produtos, gerando al-
de, por consumidores e por empresas privadas. tos custos para o governo e para as empresas. A
Entender a dinâmica e o comportamento, implementação de processos certificados de ga-
em nível macro, dos agentes que caracterizam o rantia da qualidade e investimentos em marketing
ambiente institucional e, em nível micro, das es- social e ético pode ocasionar mudanças de com-
truturas de governança, é importante para as em- portamento do consumidor (ou, pelo menos,
presas de alimentos e organismos públicos, os parte dele), gerando um ambiente de maior com-
quais necessitam tomar decisões e gerenciar a petitividade. Entra aí a importância da variável
questão da qualidade e da segurança de seus pro- ética e da responsabilidade moral com seus clien-
dutos e políticas. “As instituições na sociedade tes, em determinado ambiente institucional.
provêem as regras do jogo que determinam os in- É crescente o surgimento de leis relaciona-
centivos aos indivíduos em se engajar no aumen- das à segurança do alimento. Entre as tendências
to, crescimento ou redistribuição das atividades. futuras estão as que definem regras para a rotula-
Instituições são formais e informais. Instituições gem dos produtos, limites mínimos e máximos de
formais são as leis e regulamentos de uma socie- vitaminas e minerais, uso de aditivos, presença de
resíduos e contaminantes, estrutura de fiscaliza-
dade. Instituições informais são as normas e cos-
ção, criação de agências reguladoras e instauração
tumes de uma sociedade.”9
de processos judiciais.11
Para North, “o maior papel das instituições
Aspectos comerciais, como a existência de
na sociedade é reduzir a incerteza, estabelecendo
barreiras não tarifárias e o bioterrorismo, exigem
uma estável (porém não necessariamente eficien-
a definição e a adoção de normas que regulamen-
te) estrutura para interação humana”.10 O ambien-
tem, por exemplo, as práticas de controle do pro-
te institucional é definido como as regras que di- cesso de produção e conservação de alimentos ou
tam as estratégias das organizações. No caso da que identifiquem a origem do produto, como a
segurança dos alimentos, entender a forma como rastreabilidade sobre produtos geneticamente
esse ambiente se estrutura é fundamental para modificados.
5
Segundo Cohen, o poder de fazer cumprir
A sociedade também pode desempenhar a função de monitora-
mento, na medida em que se organiza por meio de organizações não- do Estado e o seu monitoramento são definidos
governamentais, como as de defesa dos consumidores. da seguinte maneira:
6 “Governança também é um exercício em acessar a eficácia dos
modos (meios) alternativos da organização. Uma estrutura de gover-
nança é, portanto, um pensamento útil de uma estrutura institucional monitorar e fazer cumprir incluem o
na qual a integridade de uma transação ou um determindado grupo de monitoramento e a inspeção pelo fazer
transações são decididos” (WILLIAMSON, 1996, p. 11). Tradução
dos autores.
cumprir das autoridades bem como as
7 Para uma discussão mais aprofundada sobre eficiência, cf. MER- sanções, ações corretivas e outros mecan-
CURO & MEDEMA, 1997, cap. 4 (“Institutional law and economics: ismos designados para punir e/ou trazer a
the problematic nature of efficiency”), p. 118-121.
8 “O custo de transação ocorre quando uma mercadoria ou serviço é firma em conformidade com as regras es-
transferido por meio de uma interface tecnologicamente sepadara” tabelecidas. Inclui também as ações não-
(WILLIAMSON, 1985, p. 1). Tradução dos autores. governamentais, tais como litígios de ci-
9 ALSTON, EGGERTSSON & NORTH, 1998, p. 92 (tradução dos
autores).
10 NORTH, 1990, p. 6 (tradução dos autores). 11 TURNER, 2000.

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dadãos autorizados pelo governo e a mudanças no nível de segurança do alimento; 4.


pressão pública.12 inaceitável distribuição, na sociedade, dos custos
e benefícios relacionados a mudanças no âmbito
Regular13 significa definir normas que
de segurança do alimento.
visam a um melhor nível de segurança do alimen-
to e monitorar,14 avaliar o cumprimento dessas Independentemente de leis ou de imposi-
normas. Ambos são produtos ofertados e exigi- ções quanto à questão da segurança dos produtos
dos pelo mercado. alimentares, a conscientização e a informação do
consumidor, do governo e das empresas, relativas
A Ótica das Falhas de Mercado aos perigos da insegurança alimentar, é, sem dú-
Existem quatro componentes principais da vida, imprescindível para a obtenção de produtos
regulamentação que distinguem o papel público de qualidade.
dos outros setores da economia: 1. controle de A complexidade (quantidade de regras, por
entrada; 2. fixação de preços; 3. imposição de exemplo), a mudança tecnológica necessária, o
uma obrigação para servir todas aplicações sobre custo de adequação, a necessidade de contratar
razoáveis condições; 4. prescrição da qualidade e competências fora da organização, a origem, os
condições do serviço.15 interesses dos próprios agentes econômicos e a
Diversos autores justificam a necessidade imposição do Estado podem ser considerados
da intervenção do Estado.16 Para avaliar a inter- como características do instrumento público.19
venção governamental, é preciso relacionar a ne- Law defende que a intervenção governa-
cessidade e o tipo de demanda a um ou mais tipos mental americana no setor de alimentos surgiu
de falhas de mercado que podem advir de com- como resposta aos altos custos de transação de-
petição imperfeita, bens públicos, externalidades, corrente do aumento da necessidade de informa-
mercados incompletos e informação incorreta. ção e que a regulamentação passou da esfera es-
Identificar se há ou não uma falha de mercado é tadual para a federal em virtude, também, de in-
uma etapa essencial para determinar o escopo centivos advindos da diminuição de custos de
apropriado à ação governamental.17 É fato que a transação pela substituição das várias regulamen-
segurança do alimento, dependendo do seu caso, tações estaduais vigentes e pelo crescimento do
pode estar relacionada a uma ou mais dessas fa- comércio interestadual.20 Ele ressalta ainda que a
lhas de mercado. incerteza do consumidor cresceu, ao longo do
Henson e Traill argumentam que, na práti- tempo, por conta da passagem da produção ca-
ca, o funcionamento perfeito do mercado para seira de alimentos para a de mercado, do cresci-
produtos envolvendo risco não existe e há uma mento da troca impessoal e do desenvolvimento
divergência entre os níveis ótimos privados e so- de novos produtos alimentares. A razão principal
ciais de segurança alimentar.18 As principais cau- para a entrada do Estado nesse setor, no final do
sas são: 1. percepção de risco do consumidor di- século XIX, relaciona-se às adulterações nos ali-
ferente da dos especialistas; 2. imperfeições na mentos ocorridas nesse período. Nos Estados
oferta de informações sobre segurança do ali- Unidos, iniciou-se com a dificuldade de assegurar
mento; 3. falha do sistema de preços em refletir a conformidade do produto e evitar adulterações.
os custos e benefícios totais associados com as A adição de água em leite e de glucose em mel são
alguns exemplos que incentivaram a inserção do
12 COHEN, 1998, p. 3 (tradução dos autores).
13
Estado na regulamentação sobre alimentos.
Relativo a regra. Que é ou que age conforme as regras, as normas, as
leis, as praxes.
14 Acompanhar e avaliar. 19 LEWINSOHN-ZAMIR (1998) relaciona a diferença entre as estru-
15 KAHN, 1998.
turas de preferências de consumidores e cidadãos. Neste estudo, pode-
16 MERCURO & MEDEMA, 1997; VISCUSI, 1985; e BUZBY, mos argumentar, da mesma forma, que existem diferenças entre as
1998. preferências pelas normas que beneficiam o regulado e aquelas que
17 STIGLITZ, 2000. beneficiam terceiros ou a sociedade como um todo.
18 HENSON & TRAILL, 1993. 20 LAW, 2001.

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Enfatizando o papel do Estado na geração priedade, com relação à segurança sobre o con-
de reputação, Law faz ressalvas com relação ao sumo de um alimento, mostra a necessidade da
papel privado nesse processo: “É claro que a re- atuação do Estado.26 A preocupação com a ade-
gulamentação governamental não é somente o quada e saudável alimentação da população é um
único mecanismo disponível para induzir os pro- componente essencial para as metas de saúde dos
dutores a prover informação confiável sobre a países para o futuro. Cada meta vai depender do
qualidade do produto aos consumidores, e, com estágio de desenvolvimento e do interesse de
isso, reduzir custos de transação. Existem muitas cada país em desenvolver programas que assegu-
soluções privadas potenciais para o problema da rarão a segurança do alimento.
assimetria informacional. As firmas podem ofe- Segundo Stiglitz, um bem público possui
recer garantias”.21 O autor destaca, também, o
um consumo não rival (non-rival consumption),27
papel das auditorias e certificações (terceira par-
ou seja, pode ser consumido simultaneamente
te) e do importante incentivo das repetições de
por vários indivíduos da sociedade, sem o poder
compra dos consumidores em relação à geração
de exclusão. Nesse caso, a segurança do alimen-
de qualidade pelas organizações.
to é um bem público e sujeito às imperfeições
A Ótica da Oferta de Direito de Pro- do mercado ocorridas pelo pouco consumo
priedade (underconsumption) ou pelo pouco fornecimen-
De acordo com Barzel,22 o direito de pro- to (undersupply).28 O autor também salienta o
priedade assume dois significados distintos na li- problema do carona (free rider), na medida em
teratura econômica. Um deles, desenvolvido por que existem alguns indivíduos relutantes em não
Alchian,23 significa, essencialmente, a habilidade contribuir voluntariamente para dar suporte ao
de desfrutar de uma propriedade. O outro se re- bem público. Ao não pagar impostos e em situa-
fere ao que o Estado cede para uma pessoa. O ção de ilegalidade, a empresa de alimentos não
próprio autor define como “o direito de proprie- contribui para a manutenção dos órgãos regula-
dade que um indivíduo possui sobre uma commo- dores e fiscalizadores, por exemplo.
dity ou ativo sendo a habilidade do indivíduo, em
Se entendermos que, em alguns casos, a se-
termos de expectativas, de consumir a mercado-
gurança do alimento é definida como um serviço
ria ou o serviço de um ativo diretamente ou con-
oferecido por uma empresa, pela sua variabilida-
sumi-lo indiretamente por meio de uma troca”.24
de, a responsabilidade pela oferta de boa qualida-
Já o direito legal é definido como “o que o go-
de recai praticamente sobre a empresa, e não so-
verno delineia e faz cumprir como uma propriedade
bre o órgão regulador. Os padrões de qualidade
das pessoas”.25 Entendendo a segurança do ali-
em serviços são muito difíceis de serem especifi-
mento não somente como um atributo, mas
como uma mercadoria a ser ofertada no mercado cados por meio de regras e, quando o são, podem
em determinado nível, o Estado pode garantir gerar controvérsias. Particularmente isso se agra-
um padrão mínimo desejado pela sociedade e, va com a introdução de novos serviços, como é o
com isso, oferecer um patamar adequado de caso das inovações constantes relacionadas à pro-
bem-estar. dução e à conservação dos alimentos. No sistema
A determinação do direito de propriedade é em que a empresa realiza a gestão e o governo faz
questão fundamental para se determinar o papel a supervisão, o papel do órgão regulador é definir
do Estado. A indefinição do direito de pro-
26 Definição de quem deve pagar a quem a utilização ou a garantia de
determinado recurso ou serviço. No caso, quem deve garantir e arcar
21 Ibid., p. 7. com os custos de um nível adequado de segurança do alimento? Para
22 BARZEL, 1997. um aprofundamento do tema, ler ZYLBERSZTAJN (1995, c. 2). Cf.
23 ALCHIAN, 1965. também DEMSETZ, 1967.
24 Ibid., p. 31 (tradução dos autores). 27 STIGLITZ, 2000.
25 BARZEL, 1997, p. 90 (tradução dos autores). 28 Ibid.

Impulso, Piracicaba, 15(36): 45-57, 2004 49


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o mínimo de padrão de qualidade e realizar perió- um presente (...). Não há tal coisa como o
dicas inspeções.29 método justo e leal de exercer o tremen-
do poder que o intervencionismo põe nas
A Ótica da Escolha Pública mãos dos legisladores e executivos. Nós
Entender a origem da regulação de alimentos também vemos mesmo no prenúncio da
é importante. A teoria da escolha pública (public renda econômica e da escolha pública
choice) é a aplicação do método e do aparato analí- quando ele resume sua discussão de cor-
rupção como um inevitável efeito do in-
tico da economia moderna ao estudo do processo
tervencionismo. Então, a teoria da esco-
político.30
lha é muito mais do que o lado econômi-
Nem sempre as leis podem ser formuladas co do empenho humano, ela é central so-
de acordo com o desejo dos consumidores. Ape- bre todas as ações humanas.33
sar disso, “os interesses dos consumidores não
são necessariamente equivalentes aos de toda a Portanto, é importante salientar que, mes-
comunidade. As agências reguladoras, as quais mo com a formulação de leis, a existência de cor-
respondem, exclusivamente, aos interesses dos rupção pode afetar o seu fazer cumprir e, conse-
grupos de consumidores, podem produzir resul- qüentemente, a sua eficiência em gerar bem-estar.
tados relativamente mais eficientes que as agên- Uma organização pode ser detectada por um
cias que respondem exclusivamente às demandas órgão fiscalizador, mas não ser punida por conta
das firmas reguladas”.31 da existência de corrupção. Law comenta que há,
O crescente poder de influência proporcio- por parte de determinadas organizações privadas,
nado pela mídia e pelas associações de defesa dos atitudes de lobby para a adoção de regulamenta-
consumidores faz com que a maioria dos seus in- ções de padrões de qualidade superior, pois pos-
teresses seja atendida, podendo, em alguns casos, suem maior vantagem competitiva na produção
inviabilizar economicamente uma atividade. A desses produtos.34
progressiva tendência de aumento no rigor na le- A escolha de normas não diretamente en-
gislação européia quanto a produção e comercia- volvidas com a regulação da qualidade e seguran-
lização de alimentos é um exemplo. ça do alimento também é relevante. Incentivos
Mercuro e Medema evidenciam o proble- relacionados a ganhos fiscais, por exemplo, po-
ma da prática da política pela busca de renda eco- dem induzir a ilegalidade da organização, sendo
nômica (rent seeking), usada para descrever o re- ela, portanto, não sujeita à autuação. Akerlof en-
curso gasto por um indivíduo em disponibilizar fatiza que “os negócios nos países em desenvol-
seu tempo para transferir valor sob a égide do Es- vimento são difíceis, em particular, a estrutura é
tado.32 A transferência de recursos do Estado dada pelo determinismo do custo econômico e
para a iniciativa privada, com vista a investimen- desonestidade”.35
tos em programas de melhoria da segurança do Outros órgãos vêm complementando o pa-
alimento, pode ser mal utilizada ou desviada para pel de fiscalização e, portanto, devem ser levados
outras finalidades. Segundo Mises, em consideração na escolha pública. O Instituto
de Defesa do Consumidor (IDEC) e a Fundação
Dificilmente não há qualquer intervenção Procon (Procon) são exemplos nacionais de
governamental no processo de mercado
organizações que podem influenciar a reputação
que, olhado do ponto de vista das preo-
cupações dos cidadãos, não terá de ser
da empresa e a compra do consumidor. Essas as-
qualificada como um confisco ou como sociações ou organizações sem fins lucrativos
(ONGs) de consumidores e de entidades de inte-
29 KAHN, 1998.
30 BUCHANAN, 2000. 33 MISES apud SMITH & WHITE, 1999, p. 195 (tradução dos autores).
31 Ibid., p. 331 (tradução dos autores). 34 LAW, 2001.
32 MERCURO & MEDEMA, 1997. 35 AKERLOF, 1970, p. 499.

50 Impulso, Piracicaba, 15(36): 45-57, 2004


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resse exercem o monitoramento e a pressão por altamente competitivo. Algumas evidências em-
regulamentações mais severas. As empresas, por píricas testam os efeitos positivos da comunica-
sua vez, para defender seus interesses, organi- ção como forma de sinalizar ao consumidor a
zam-se por meio de entidades como a Associação maior qualidade do produto.
Brasileira das Indústrias de Alimentos. Empresas privadas, sobretudo as de grande
Torna-se necessário definir normas, regula- porte, têm atuado por intermédio da produção de
mentos e instrumentos de inspeção no mercado, alimentos de alta qualidade e da fiscalização, ao
em razão da presença de assimetria informacio- longo do sistema agroindustrial, para ter certeza
nal36 entre comprador e vendedor. No consumo de que seu produto chegará com a qualidade de-
de alimentos, existe a dificuldade de constatar sejada ao consumidor, sem contaminações que
muitos dos seus atributos intrínsecos de seguran- prejudiquem a imagem de sua marca.
ça, entre eles, a produção orgânica e a presença de O que se pretende é revisar as estratégias pri-
resíduos acima do tolerado. Além disso, pode vadas que têm por objetivo aumentar a confiança e
não haver consenso entre os consumidores, o Es- o índice de recompra ou lealdade ao produto. Nes-
tado e as empresas privadas sobre quais deveriam se sentido, são abordadas estratégias como uso de
ser os níveis de segurança do alimento. marca, selos de qualidade, comunicação e sistemas
de qualidade.
II. O PAPEL PRIVADO
Marca e Reputação
O problema da segurança e da qualidade as-
Na abordagem de Klein e Leffler, a marca
sume importância do ponto de vista das
serve para evitar a entrada de competidores, uma
organizações. A gestão da qualidade torna-se es-
vez que impõe custos irrecuperáveis ao ingresso
sencial, na medida em que existem custos, embo-
em certo mercado.37 A marca pode sinalizar qua-
ra não facilmente mensuráveis, mas que afetam
lidade, numa situação em que o consumidor po-
diretamente a rentabilidade das empresas de ali-
deria formar expectativas sobre o produto, por
mentos. Entre os prejuízos ocasionados por
meio de uma estratégia de comunicação e propa-
contaminações estão a perda do produto, os cus-
ganda da empresa.38 Se a firma vende o produto
tos de ações legais e indenizações aos consumi-
com mais propaganda, um preço maior é neces-
dores, o desgaste da imagem da empresa e/ou
sário para garantir a qualidade.39 Já segundo
marca do produto, o impacto negativo nas de-
Horstmann e MacDonald, nem o preço introdu-
mais empresas que produzem ou comercializam
tório nem a propaganda servem como sinais da
produtos semelhantes, a perda de confiança do
qualidade do produto.40
consumidor, os custos de uma administração de
No momento da decisão do consumidor,
crise e, por fim, os investimentos necessários à
em muitos casos a qualidade do produto não é
recuperação da imagem da empresa.
conhecida até que ele seja consumido ou, por
As empresas alimentares vêm se preocu-
problemas de percepção, seja difícil estabelecer a
pando e investindo na gestão da qualidade de seus
reputação. Produtores de bens de alta qualidade
produtos. Além dos aspectos prejudiciais mencio-
podem sinalizar os benefícios por meio da pro-
nados anteriormente, destacamos alguns benefí-
paganda antes do momento da compra.41 Um
cios que incentivam esse investimento: o aumen-
baixo investimento em marca significa que a em-
to da credibilidade do consumidor e dos forne-
presa ou o produto têm uma miopia em obter lu-
cedores perante a empresa e seus produtos, a
cro rapidamente. As empresas que realizam gran-
proteção à marca e a necessidade de sobreviver e
crescer continuamente no mercado de alimentos 37 KLEIN & LEFFLER, 1981.
38 TIROLE, 2002.
36 As instituições, segundo Akerlof (1970), são formadas para garantir 39 KLEIN & LEFFLER, 1981.
um mínimo de qualidade no produto graças à quantidade desigual de 40 HORSTMANN & MACDONALD, 1994.
informação que vendedor e comprador possuem. 41 WEIGELT & CAMERER, 1988.

Impulso, Piracicaba, 15(36): 45-57, 2004 51


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des investimentos, considerados irrecuperáveis geração de reputação, o selo pode ser utilizado na
por meio da propaganda, ajudam o consumidor a política pública, como comprovação da inspeção
formar expectativas. do órgão regulador, por exemplo, o Sistema de
Embora não diretamente relacionada à pos- Inspeção Federal (SIF).
sibilidade de repetição da transação, a marca in- Por conta de a presença de características
forma a procedência do produto e, com isso, o de qualidade num alimento não ser de fácil ob-
consumidor terá a possibilidade de relacionar e servação, como a ausência de resíduos ou aditivos
realizar novamente a compra ou transação pela ou a garantia de um processo higiênico de pro-
intensidade de conhecimento e expectativas man- dução, outro fator que vem marcando o desen-
tidos sobre ela.42 Algumas empresas privadas de- volvimento da qualidade, no setor de alimentos
finem direitos de propriedade sobre bens regula- na Europa, são os certificados que asseguram
mentados que identificam padrões de qualidade atributos de qualidade.45
aceitos e percebidos pelo mercado como as mar- A adoção do padrão, do selo ou da marca
cas registradas. como ferramenta promocional pode variar em re-
O aumento da complexidade dos merca- lação ao tamanho da firma e dos incentivos ex-
dos e a intensificação da competição são ternos como o poder de mercado de fornecedo-
fatores que, usualmente, figuram na lista res e consumidores, do ambiente legal e do grau
de justificativas para o declínio dos con- de envolvimento no mercado internacional.
sumidores leais. Clientes de certos seg- Questões técnicas relacionadas à prática de pa-
mentos, pouco fiéis às marcas, exigirão drões nos negócios também podem incentivar o
mais gastos das organizações em comuni- seu uso.
cação em busca de maximizar seu valor.43 Ações coletivas são ainda importantes para
No caso da carne, isso se torna mais com- aumentar a credibilidade do consumidor e impor
plexo ainda pelo fato de ser considerada uma o papel de exclusão, separando os produtos ou
commodity e, sendo assim, os consumidores en- processos que geram alta daqueles causadores de
contram dificuldades cognitivas de percepção en- baixa qualidade. Exemplos são o selo de pureza e
tre os diferentes níveis de atributos de qualidade. a certificação de origem, utilizados no café pela
Entre as motivações dos agentes privados Associação Brasileira das Indústrias de Café
no sentido da criação de uma marca, destaca-se a (ABIC).
de gerar nos consumidores confiança o suficiente Os certificados de qualidade atestam dife-
para que eles sejam leais ao seu produto, aumen- rentes características do produto e ajudam o con-
tando a expectativa de ganhos futuros. O objeti- sumidor a entender tais características ou atribu-
vo é destacar-se em mercados altamente compe- tos particulares nele presentes. São adotados vo-
titivos, em que existem consumidores que valo- luntariamente ou compulsoriamente, funcionan-
rizam atributos de qualidade. do também como um instrumento público.
Eles são fornecidos por um organismo cer-
Selos e Certificados de Qualidade tificador, que verifica e controla o produto, atesta
A diferenciação do produto, a maior confian- os seus atributos de valor e os deixa visíveis para
ça do consumidor e a conformidade com os ór- o consumidor pela presença de um logotipo ou
gãos e padrões internacionais de qualidade exigi- símbolo, divulgando suas diferenças em relação a
dos são alguns dos benefícios da utilização dos outros. Cada certificado ou rótulo de qualidade
selos de qualidade.44 Embora discutido como pa- possui sua especificidade e transmite uma men-
pel privado, pois relacionado intimamente com a sagem ao consumidor. Eles estão regulados oficial-
42
mente com a participação de entidades, tanto pri-
WANSINK & RAY, 1996.
43 ELIAS, 2000, p. 1-4 (tradução dos autores).
44 OYARZÚN, 2001. 45 Ibid.

52 Impulso, Piracicaba, 15(36): 45-57, 2004


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vadas quanto públicas, na execução do sistema e Embora algumas das estratégias de comu-
no seu controle. nicação também possam estar associadas com o
Os selos podem ser uma ferramenta efetiva papel do Estado, por exemplo na definição de
de comercialização para promover produtos ali- normas sobre níveis adequados de informação
mentícios em mercados de consumidores infor- nutricional nos rótulos dos alimentos,50 a grande
mados e conscientes, que valorizam e se dispõem maioria das ações de comunicação é do tipo pro-
a pagar mais pelos seus atributos. O consumidor paganda, que visa a melhorar a sinalização da qua-
consciente é seletivo e toma suas decisões com lidade percebida.
base nas informações sobre natureza, produção e A comunicação dos sistemas produtor e
especificidades do produto.46 distribuidor com o consumidor final torna-se
Garantir os atributos de valor exige criar es- mais dinâmica e complexa. No caso de alimentos,
truturas de governança. Existem sistemas volun- a demanda de informações por parte do consu-
tários de controle que consistem em estabelecer midor é alta, por se tratar de produto consumido
uma entidade independente da empresa e deno- diariamente e sujeito a constantes mudanças nos
minada certificador.47 Esses organismos podem processos tanto de produção quanto de conser-
ser públicos ou privados. Quando o selo tem o vação. A adoção de técnicas de bioengenharia ge-
seu logotipo como a sua marca registrada, deno- nética na produção de organismos geneticamente
mina-se marca de qualidade. modificados, entre outros, pode causar ruídos na
Para uma estratégia de adoção de um selo comunicação da empresa com o consumidor, e,
de qualidade ser factível é preciso o reconheci- conseqüentemente, incompreensão e desconfian-
mento do selo pelo mercado, a segurança de que ça nesse último, o qual, em muitos casos, superes-
o organismo independente seja uma autoridade tima seus efeitos.
reconhecida, controlando e verificando as carac- Soma-se a esse fato a desconfiança quanto
terísticas de qualidade, e que o consumidor seja ao papel do Estado na garantia do direito à saúde
educado, sabendo diferenciar e ter condições de e ao consumo de alimentos saudáveis, agravada na
arcar com o valor adicionado. Europa com a crise da vaca louca. Algumas indús-
trias e distribuidores de alimentos tentam elevar a
Informação e Estratégias de Comu-
confiança do consumidor por meio da não pro-
nicação
dução ou da não comercialização de produtos ge-
Uma das estratégias a serem empregadas neticamente modificados, por exemplo. Certas
pelas organizações é a comunicação. A empresa empresas são acusadas de não informar adequada-
pode utilizar-se das mídias disponíveis para pro- mente o consumidor sobre seus avanços cientí-
mover a qualidade do produto e, com isso, au- ficos e respectivos riscos, criando uma percepção
mentar a percepção de valor pelo consumidor.
negativa e uma antipatia aos seus produtos.
Klein e Leffler argumentam que “uma análise da
propaganda implica que os consumidores, neces- As empresas com uma estratégia apoiada na
sariamente, recebem algo quando pagam um pre- diferenciação, com o oferecimento de produtos
ço maior por uma propaganda da marca” e ainda de qualidade, têm prejuízos com as imperfeições
que “a propaganda da marca do produto indica a informacionais do mercado, por conta da dificul-
presença de um preço prêmio atual e futuro”.48 dade de discernimento do consumidor. Tais
Evidências sobre a eficiência da propaganda na si- imperfeições, nascidas da falta de confiança, tra-
nalização da maior qualidade do produto têm zem sérias conseqüências, como a desvantagem
sido constatadas.49 competitiva. Para as organizações privadas, a se-
gurança do alimento precisa refletir-se no preço,
46 CANTARELLI, 2000.
47 SPERS & ZYLBERSZTAJN, 1999. 49 HORSTMANN & MACDONALD, 2003.
48 KLEIN & LEFFLER, 1981, p. 632 (tradução dos autores). 50 MOJDUSZKA & CASWELL, 2000.

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de modo que as companhias que investem em buição, consumidores, associações de consumi-


qualidade persistam no mercado, embora num dores, associações de proteção ambiental – trans-
ambiente no qual todos sejam responsáveis não firam a informação bruta numa série de mensa-
exista vantagem competitiva e as variáveis de gens, sujeitando-as a vários graus de correção,
diferenciação mostrem-se mais difíceis de ser im- completude, compreensão e credibilidade.54
plantadas.
Alba e Hutchinson examinam o que os
Uma das conclusões do trabalho de Frewer
consumidores conhecem e o que eles pensam co-
et al. é que a confiança nas fontes privadas de in-
nhecer.55 Em geral, acreditam saber mais do que
formação pode variar de um país para outro ou
realmente sabem e o que e como decidem variam
conforme o ambiente institucional: “a indústria é
percebida como mais desonesta em prover infor- em conseqüência desse conhecimento. Para isso,
mação, sobre alimentos geneticamente modifica- utilizam a metodologia de pesquisa de calibração
dos, na Dinamarca, Itália e Reino Unido, mas (calibration research). Nesse caso, evidencia-se a
não na Alemanha, onde revelou-se a mais confiá- racionalidade limitada do consumidor quanto aos
vel em relação às demais fontes”.51 conhecimentos sobre algo complexo e envolven-
Para Lurie, os psicólogos têm estudado de do aspectos emocionais, como o entendimento
que modo a quantidade de informação afeta o sobre os impactos dos atributos ligados à segu-
processo psicológico, tal como reconhecimento rança do alimento.
do objeto e memória, ao passo que as pesquisas Frewer et al. investigaram o impacto de di-
de marketing explicam o processo de decisão.52 ferentes estratégias de informação sobre dois
Dada a crescente complexidade das informações produtos alimentares em quatro países euro-
sobre os atributos de qualidade e segurança do
peus.56 Entre as conclusões está a de que, depen-
alimento, tanto o número de atributos quanto a
dendo da honestidade da fonte de informação, o
estrutura dessas informações, e a maneira como
consumidor dispõe-se mais ou menos a consumir
são transmitidas, afetam o consumidor. Nesse ca-
so, tanto o público como o privado podem ajudar um produto geneticamente modificado. Essa ati-
a diminuir essa complexidade, transmitindo eficien- tude só vale para as culturas em que a informação
temente informações que auxiliem a compreensão sobre alimentos geneticamente modificados está
do consumidor. bem consolidada. Outra conclusão é que a gera-
O comportamento da aquisição de infor- ção de informação não resulta na maior aceitação
mação sobre a saúde refere-se ao grau de infor- de alimentos geneticamente modificados, embora
mações recebidas pelo consumidor de várias fon- o inverso seja verdadeiro. A transparência mos-
tes, incluindo mídia, rótulos, amigos, familiares e trou-se um importante atributo para melhorar a
profissionais dessa área. Segundo Moorman e confiança (trust) da organização perante o con-
Matulich, são diversos os modelos utilizados para sumidor.
verificar a aquisição da informação pelo consumidor A confiança na ciência, no sistema regula-
descritos na literatura, agrupados em: comunica- tório e nos fornecedores da informação pode ser
ção social, cognitiva, comportamental, marketing tão importante quanto a geração da informação,
e combinado.53 Smink e Hamstra propõem um no sentido de influenciar as respostas do público
modelo de comunicação em que os principais e com relação aos alimentos geneticamente modi-
relevantes atores – governo, pesquisadores, pro- ficados.57
dutores rurais, indústria de alimentos, distri-
54 SMINK & HAMSTRA, 1995.
51 FREWER et al., 2000, p. 23 (tradução dos autores). 55 ALBA & HUTCHINSON, 2000.
52 LURIE, 1999. 56 FREWER et. al., 2000.
53 MOORMAN & MATULICH, 1993. 57 Ibid.

54 Impulso, Piracicaba, 15(36): 45-57, 2004


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III. CONSIDERAÇÕES FINAIS O aprofundamento das questões aqui dis-


A segurança dos alimentos envolve direta- cutidas sugere estudos que definam elementos de
mente vários agentes: o Estado, as organizações e incentivo à elevação do nível de segurança do ali-
o consumidor. A relação entre eles é dinâmica. O mento, por intermédio de uma melhor estrutura
aumento da exigência de qualidade por parte do de governança pública e privada. Exemplos disso
consumidor força reações do Estado, no sentido são estudos que descrevam a real percepção dos
de aumentar o seu rigor na formulação de nor- consumidores diante dos riscos e dos benefícios
mas e na atuação da fiscalização, e das organiza- da introdução de produtos oriundos de engenha-
ções, na definição de instrumentos mais eficien- ria genética e os trabalhos que contribuam para as
tes de diferenciação e adição de valor a seus pro- definições de estratégias privadas com vista a au-
dutos. Por outro lado, o Estado é capaz de au- mentar a competitividade da indústria brasileira
mentar a sensibilidade do consumidor, quanto à nacional perante as novas demandas e padrões in-
sua preocupação com aspectos de segurança em ternacionais.
alimentos, por meio de programas educativos.

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Dados dos autores


EDUARDO EUGÊNIO SPERS
Prof. dr. do Mestrado Profissional em
Administração/UNIMEP e pesquisador do
Programa de Estudos dos Negócios do Sistema
Agroindustrial (PENSA/USP).
DÉCIO ZYLBERSZTAJN
Prof. titular da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade (FEA/USP).
Desenvolve trabalhos sobre coordenação de
sistemas agroindustriais, tendo criado o
PENSA/USP, centrado no estudo da coordenação
de cadeias agoindustriais.
CLÁUDIO ANTÔNIO PINHEIRO MACHADO FILHO
Prof. dr. do Mestrado Profissional em
Administração/UNIMEP e coordenador de
projetos e pesquisador do PENSA/USP.

Recebimento artigo: 12/jan./04


Consultoria: 19/jan./04 a 19/fev./04
Aprovado: 28/mar./04

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Comportamento Estratégico
das Grandes Empresas do
Mercado de Sementes
Geneticamente Modificadas
STRATEGIC BEHAVIOUR OF THE LARGE
COMPANIES OPERATING IN THE
GENETICALLY MODIFIED SEED MARKET
Resumo O presente ensaio tem por objetivo central mostrar a similaridade no com-
portamento estratégico e na trajetória das cinco maiores empresas que hoje atuam no
mercado de sementes geneticamente modificadas (GMs): Monsanto, Syngenta, Bayer
CropScience (ex-Aventis), DuPont e Dow AgroSciences. A entrada dessas multina-
cionais atuantes nos setores agroquímico, farmacêutico e alimentar no mercado de se-
mentes GMs se deu por meio de fusões, aquisições e alianças com empresas desses três
setores e, predominantemente, com empresas sementeiras e outras companhias es-
pecializadas em biotecnologia. As multinacionais do setor acabaram por se deparar
com certa dificuldade na expansão de seus negócios, devido à baixa aceitação da po-
pulação com relação ao consumo de alimentos derivados da transgenia e também à di-
ficuldade em garantir a apropriação dos benefícios decorrentes da comercialização da
tecnologia embutida nessas sementes. Dessa forma, o plano de ação das empresas no
mercado teve de ser remodelado e novas alternativas estratégicas foram buscadas, RAFAELA DI SABATO
como o marketing e os direitos de propriedade intelectual, como forma de garantia do GUERRANTE
monopólio tecnológico. Instituto Nacional da
Palavras-chave SEMENTES GENETICAMENTE MODIFICADAS – TRAJETÓRIA – MER- Propriedade Industrial, INPI/RJ
rafaela@inpi.gov.br
CADO – MARKETING – COMPORTAMENTO ESTRATÉGICO.

Abstract The aim of the present essay is to demonstrate the similarity in the strategic
behaviour and in the routes taken by the five largest companies operating today in the
genetically modified (GM) seed market: Monsanto, Syngenta, Bayer CropScience
(former-Aventis), DuPont and Dow AgroSciences. These multinationals, that also
operate in the agrochemical, pharmaceutical and food (alimentary) sectors, entered
into the GM seed market by fusions, acquisitions and alliances with companies
belonging to these three sectors and, predominantly, with seed companies and other
biotechnology specialized companies. After the entrance into the global GM seed
market, the five multinationals began having certain difficulties in expanding their
businesses due to society’s low acceptance of the consumption of GM food and also
because of the problems related to guaranteeing the benefits associated with the
commercialization of the technology built-into GM seeds. Therefore, the companies
had to remodel their plans of action in the market as well as look for new strategic
alternatives, as in marketing and intellectual property rights, as a way of guaranteeing
the technological monopoly.
Keywords GENETICALLY MODIFIED SEEDS – ROUTE – MARKET – MARKETING –
STRATEGIC BEHAVIOUR.

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002301_impulso_36.book Page 60 Thursday, July 22, 2004 4:20 PM

N
o mercado mundial de sementes geneticamente modi-
ficadas (GMs), cujo valor em 2003 foi estimado em
US$ 4,5 bilhões (15% do mercado mundial de semen-
tes), constata-se a formação de grandes conglomera-
dos. O setor é caracterizado por um oligopólio, no
qual apenas cinco empresas detêm 91% das vendas to-
tais. O lançamento de novas variedades de sementes
GMs é a tônica da tomada de liderança ou da manuten-
ção da posição nesse mercado. A previsão é de que, à medida que novas
variedades de sementes transgênicas sejam plantadas em diferentes países
do mundo, o ranking das empresas no setor sofra algumas alterações. A
tabela 1 apresenta as cinco maiores empresas produtoras de sementes
GMs e seus principais produtos.

Tabela 1. Principais sementes GMs comercializadas pelas cinco maiores empresas


do mercado.
EMPRESA /
Algodão Arroz Batata Canola Milho Soja Tomate
SEMENTE
Monsanto X X X X X X
Syngenta X X
Bayer CropScience
X X X X X
(Aventis)
DuPont (Pioneer) X X X X
Dow AgroSciences X X
Fonte: ETC Group Communiqué – jul./ago. 2001; BIOBIN– dez. 2001.

MULTINACIONAIS DOS RAMOS FARMACÊUTICO, QUÍMICO E


AGROALIMENTAR NO MERCADO DE SEMENTES GMS
Em meados da década de 80, surgiram os primeiros avanços cientí-
ficos na área da moderna biotecnologia, principalmente com relação à
recombinação genética. As novas tecnologias foram desenvolvidas em
empresas de pequeno e médio porte, vinculadas a universidades e centros
de pesquisa. Considerando-se a natureza dessas pesquisas, seu período de
maturação e, também, a incerteza com relação a seus resultados, as em-
presas passaram a enxergar a necessidade de buscar capital de risco. Dessa
forma, os promissores resultados apresentados pelas tecnologias em de-
senvolvimento, aliados à necessidade de financiamento das empresas para
que as pesquisas em curso não fossem interrompidas, despertaram gran-
de interesse nas companhias já estabelecidas nos ramos agroquímico, far-
macêutico e de produção de alimentos.
Entre as tecnologias em desenvolvimento na época,1 estava a de modi-
ficação genética de células vegetais, por meio da qual se tornava possível a
produção de sementes GMs. Assim sendo, o mercado de sementes, bem
como todos os demais afetados pelos novos paradigmas biotecnológicos,

1A clonagem de animais, a modificação genética de microorganismos e vírus e o mapeamento genético


humano constituem outros exemplos de avanços da moderna biotecnologia.

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passou por significativas transformações nos últi- Entre as cinco maiores empresas atuantes
mos vinte anos. Nesse período, deram a emergên- no mercado de sementes GMs, destacam-se: a
cia, o crescimento e a internacionalização de Monsanto; a suíça Novartis, nascida em 1996 da
grandes empresas sementeiras e a penetração de fusão entre as empresas farmacêuticas Ciba (an-
grupos industriais vindos dos setores farmacêuti- tes Ciba Geigy) e Sandoz, e que, em 2000, uniu
co, químico e agroalimentar. suas divisões agroquímica e de sementes à anglo-
Além das razões anteriormente citadas, ou- sueca Zeneca Agrícola, dando origem à Syngenta;
tros atrativos levaram as grandes corporações a se a Aventis, fruto da fusão, em 1998, entre a fran-
introduzirem no negócio de sementes GMs, co- cesa Rhône-Poulenc e a alemã Hoechst, e que,
mo: em fevereiro de 2002, vendeu por US$ 7,25 bi-
• a diversificação das áreas de atuação; lhões para a Bayer a sua divisão de sementes – a
Aventis CropScience –, originando a Bayer
• a possibilidade de utilização dos mesmos
CropScience; a DuPont, empresa americana que,
canais de distribuição de seus produtos
em 1999, comprou a Pioneer Hi-Bred Internatio-
agroquímicos;
nal Inc., a maior empresa de sementes do mundo;
• a possibilidade de vincular o desenvolvi- e a Dow AgroSciences, subsidiária da norte-ame-
mento e a comercialização dos produtos ricana Dow Chemical Company.
químicos às sementes GMs, vendendo
mais sementes e mais produtos quími- TRAJETÓRIA DAS EMPRESAS
cos; e
• o deslocamento de ramos tecnológicos Monsanto
tradicionais para ramos tecnológicos de Fundada em 1901, a Monsanto é uma em-
ponta, que se acelerou nos anos 80. presa norte-americana com sede em St. Louis,
A entrada das multinacionais atuantes nos Missouri. Sua trajetória de diversificação acabou
setores agroquímico, farmacêutico e alimentar no por relegar seu principal ramo de atividade – o
mercado de sementes geneticamente modificadas químico – a segundo plano, em proveito de ati-
se deu por meio de fusões, aquisições e alianças vidades mais rentáveis e mais dinâmicas do ponto
com empresas desses três setores e, predominan- de vista inovador, as chamadas ciências da vida.2
temente, com empresas sementeiras e outras Essa substituição não enfraqueceu, contudo, os
companhias especializadas em biotecnologia. conhecimentos já adquiridos pela empresa. Ao
contrário, o processo de diversificação foi desen-
No Brasil, o mesmo processo pôde ser ob-
cadeado a partir de competências existentes, bus-
servado sob responsabilidade das mesmas empre-
cando, com isso, consolidar e até mesmo esten-
sas européias e norte-americanas. Até meados
der a competitividade da firma. A engenharia ge-
dos anos 90, havia mais de mil empresas multi-
nética foi assimilada como ativo complementar à
plicadoras e vendedoras de sementes melhoradas.
agroquímica e a empresa passou a produzir se-
Com exceção do milho híbrido (dominado ape-
mentes geneticamente modificadas.
nas por três grandes empresas privadas), quase
Na verdade, o grande estímulo à entrada da
todo o melhoramento vegetal e o lançamento de
Monsanto no campo da engenharia genética foi o
novas variedades era feito por empresas públicas,
interesse da empresa em aumentar o espectro de
como a Embrapa, empresas estatais de pesquisa e
utilização de seu produto, o herbicida Roundup,
universidades. Por meio da compra de empresas
cuja patente estava em vias de expirar. A preocu-
de capital nacional e estrangeiro com experiência
no melhoramento de sementes de soja, milho, 2 As ciências da vida representam uma área do conhecimento cienti-
sorgo, algodão e arroz, a entrada dessas multi- fico que resulta da união de disciplinas tradicionais – biologia, zoologia
e botânica – e áreas especializadas do conhecimento como biofísica,
nacionais no setor de sementes GMs foi concre- sociobiologia, biotecnologia, biofarmacêutica, engenharia de tecidos,
tizada. bioestatística, bioinformática etc.

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pação da empresa era de, que uma vez que a tec- Syngenta
nologia para a fabricação do Roundup caísse em A Syngenta, com sede em Basel, Suíça, sur-
domínio público, outras empresas do complexo giu da fusão entre duas empresas já atuantes no
agroquímico passariam a produzir a versão gené- setor de agroquímicos. Tanto a Zeneca Agrícola,
rica do defensivo.3 como a Novartis Agribusiness e a Novartis Seeds
Dessa forma, a alternativa encontrada pela tinham suas atividades voltadas para a produção
empresa para garantir a venda do herbicida foi a de sementes – GMs e convencionais – e de defen-
de investir em pesquisa voltada para o desenvol- sivos agrícolas. Com exceção das alianças com
vimento de plantas geneticamente modificadas empresas especializadas em biotecnologia, a maior
que fossem capazes de resistir a insetos, doenças parte das aquisições, fusões e alianças da Zeneca
e, principalmente, ao Roundup. Inicialmente, a e da Novartis com empresas dos setores farma-
Monsanto desenvolveu variedades de tomate ge- cêutico, agroquímico, alimentar e, principalmen-
neticamente modificadas, resistentes a insetos, te, de sementes ocorreu antes da fusão para for-
doenças e também ao Roundup. As etapas sub- mar a Syngenta em 2000.
seqüentes envolveram a produção de sementes de A Novartis, por exemplo, surgiu da fusão
soja, algodão, milho e canola GMs, resistentes ao de duas empresas suíças, a Ciba e a Sandoz, que,
Roundup; o desenvolvimento de plantas transgê- apesar de terem suas origens no ramo farmacêu-
nicas resistentes ao ataque de insetos predado- tico, também atuavam no mercado de sementes e
res;4 bem como a produção de biopesticidas. de defensivos agrícolas. A Ciba foi a primeira
O pacote tecnológico criado pela multina- companhia a comercializar sementes de milho
cional associava as vendas do Roundup à aquisi- geneticamente modificado nos Estados Unidos.
ção, pelos agricultores, de sementes GMs resisten- A Astra Zeneca, que até 2000 controlava a
tes ao herbicida. Uma vez que estas sementes só Zeneca Agrícola, seguiu trajetória semelhante à
poderiam ser eficientemente protegidas do ata- Novartis. Nascida em 1998, como resultado da
que de ervas-daninhas na etapa de pós-emergên- fusão entre duas empresas do ramo farmacêutico,
cia por meio da aplicação do herbicida Roundup, a inglesa Zeneca Group PLC e a sueca Astra A.B.,
os agricultores, ao adquirirem as sementes da a AstraZeneca adquiriu, juntamente com a se-
multinacional, não tinham saída senão adquirir o menteira holandesa Royal VanderHave, a Advan-
herbicida específico para a proteção de sua lavou- ta,5 empresa que ocupa a sexta posição no
ra. Para tornar viável tal estratégia, foram neces- ranking das maiores companhias de sementes do
sários acordos de cooperação com equipes de mundo.
pesquisa de universidades, alianças com empresas Em 1999, um dos diretores da antiga No-
especializadas em biotecnologia e a compra de se- vartis Seeds do Brasil, hoje Syngenta, justificou
menteiras. assim a estratégia da companhia na aquisição de
empresas sementeiras: “Boa parte do que se fazia
3 A estratégia de comercialização do Roundup, anos antes da expira- com agroquímicos é possível fazer com genética
ção de sua patente (2000), baseou-se na valorização e difusão de sua de plantas. A empresa que pretende continuar na
marca, bem como em uma política de redução de seu preço de venda.
Essa estratégia foi implementada, sobretudo, nos Estados Unidos, área tem, portanto, que trabalhar com semen-
uma vez que nos demais países a patente do produto já havia expirado tes”.6 Em resumo, os fatores que levaram a No-
desde 1991. A redução do preço do herbicida no mercado tinha por
objetivo dificultar a entrada de concorrentes que desejassem produzir vartis e a Zeneca a entrarem no mercado de se-
a versão genérica do defensivo, enquanto a Monsanto investia em pes- mentes GMs foram os mesmos da Monsanto.
quisa e desenvolvimento buscando encontrar novas aplicações para o
Roundup. Na época, para cada redução de 1% no preço do herbicida, a
Monsanto teve o volume de vendas do Roundup acrescido entre 2,5% 5 Em novembro de 2000, quando oficializada a fusão entre a Novartis
e 3%, compensando, com o aumento nas vendas, a redução no preço. e a AstraZeneca, a Advanta não fez parte da negociação. Estabeleceu-
Segundo dados da própria empresa, entre 1994 e 2000, o preço do se que a AstraZeneca ficaria com 50% do controle da Advanta, esta,
Roundup foi reduzido em 45%, enquanto o lucro bruto da empresa entretanto, não teria direito às ações da nova empresa formada, a Syn-
teve acréscimo de 90% (BARBOZA, 2001). genta.
4 Tais como batata, milho, algodão e tomate. 6 GUIMARÃES, 1999, p. 54.

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Dessa forma, as duas empresas desenvolveram época, era introduzir a tecnologia de modificação
sementes geneticamente modificadas, resistentes genética LibertyLink em sementes de arroz, de
a herbicidas produzidos por elas mesmas. Um modo a torná-las resistentes ao herbicida Liberty,
exemplo é a beterraba resistente a um herbicida à produzido pela AgrEvo. Em novembro de 1999,
base de glifosato, produzido pela Novartis Seeds. a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio) autorizou o primeiro plantio experi-
Bayer CropScience
mental de arroz LibertyLink da Aventis CropS-
Para este estudo, considerou-se a trajetória cience do Brasil. Ainda no Brasil, a companhia
da Aventis e não a da Bayer CropScience, dado aumentou sua participação no mercado de se-
que todas as fusões, aquisições e alianças da
mentes híbridas de milho por meio da aquisição
Aventis, que permitiram sua entrada no mercado
de três empresas: Sementes Ribeiral, Sementes
de sementes GMs, são anteriores ao surgimento
Fartura e Mitla Pesquisa Agrícola.
da Bayer CropScience, em fevereiro de 2002, re-
sultado da venda da divisão de sementes da Aven- A expansão da Aventis no mercado de se-
tis, a Aventis CropScience, para a Bayer. mentes ocorreu também em escala mundial. Na
Índia, por exemplo, a multinacional comprou a
A Aventis, com sede em Strasbourg, Fran-
ça, também surgiu da fusão de duas empresas que Proagro Group, a segunda maior sementeira do
já tinham atividades voltadas para a produção de país, produtora de híbridos de milho, arroz, ca-
sementes – GMs e convencionais – e de defensi- nola, algodão, sorgo etc. Entretanto, após o epi-
vos agrícolas. A Rhône-Poulenc tinha uma divi- sódio ocorrido em setembro de 2000, em que tra-
são chamada Rhône-Poulenc Agro e a Hoescht ços de milho StarLink8 – somente aprovado para
detinha a maior parte do controle acionário da uso em ração animal e na fabricação de etanol –
AgrEvo, uma das líderes mundiais em produção foram detectados em produtos alimentícios co-
de sementes e de defensivos agrícolas e respon- mercializados no mercado norte-americano, a
sável por levar grande parte da tecnologia de oposição da população mundial, em especial a eu-
modificação genética de sementes para a nova ropéia, com relação aos alimentos derivados de
empresa. organismos geneticamente modificados cresceu e
Em 1998, a AgrEvo, já sob domínio da levou a Aventis a remodelar seu plano estratégi-
Aventis, anunciou que compraria a divisão de se- co. Como conseqüência, a empresa deu início às
mentes da Cargill no mercado norte-americano negociações para a venda de seus 76% de partici-
por US$ 650 milhões. Entretanto, em virtude da pação9 na Aventis CropScience. Dessa forma, a
divulgação, neste mesmo ano, por parte da Pio- empresa buscava dedicar-se exclusivamente ao
neer Hi-bred, de que a Cargill estaria usando, de mercado farmacêutico, ampliar seus investimen-
forma inapropriada, o banco de germoplasmas7 tos em biotecnologia e melhorar sua imagem na
da empresa, as negociações em torno da compra mídia, desvinculando-se da divisão envolvida no
da Cargill foram encerradas. Em 1999, foi criada caso StarLink, a Aventis CropScience.
a Aventis CropScience, a divisão agroquímica da Como candidatos à compra, apareceram a
Aventis que concentrava, até fevereiro de 2002, a Monsanto, a DuPont, a Dow, a Basf e a Bayer.
produção de sementes geneticamente modifica- Somente em fevereiro de 2002, a Aventis fechou
das. Nesse mesmo ano, a AgrEvo comprou o com a Bayer a venda da Aventis CropScience,
programa de produção de sementes de arroz da por US$ 7,25 bilhões, surgindo a Bayer CropS-
Granja 4 Irmãos, a maior empresa brasileira pro- cience.
dutora desse grão. O objetivo da empresa, na
8 Esse milho foi geneticamente modificado para ser resistente a insetos
7 É o conjunto de toda a variabilidade genética de um organismo, predadores.
representado por todas as células germinativas ou sementes disponí- 9 A Schering, detentora dos outros 24%, seguiu a mesma estratégia da
veis. Aventis.

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DuPont micos e de produtos biotecnológicos voltados


A DuPont, com sede em Wilmington, De- para o melhoramento qualitativo e quantitativo
laware, é, hoje, a maior empresa de sementes do dos alimentos. A Dow AgroSciences tem suas
mundo, com vendas anuais em torno de US$ 2 origens na joint venture formada em 1985, entre
bilhões. A multinacional atua também em outras o Departamento de Produtos Agrícolas da Dow
áreas, como na produção de agroquímicos, de vi- Chemical e a divisão Plant Sciences da Eli Lilly.
dros resistentes a furacão e de medicamentos A aliança resultou na criação da Dow Elanco,
para tratamento da osteoporose. que, em 1997, foi comprada pela Dow Chemical
Em maio de 1995, a DuPont anunciou que e, em 1998, passou a se chamar Dow AgroScien-
iria se desvincular da Conoco, subsidiária petro- ces. Nesse mesmo ano, a Dow Chemical com-
lífera da empresa que ocupava a nona posição no prou a Mycogen Seeds, uma das empresas pio-
neiras na aplicação da biotecnologia à agricultu-
ranking das maiores companhias de petróleo do
ra, em especial na inserção de genes da bactéria
mundo. A venda da Conoco, por US$ 4,4 bi-
Bacillus thuringiensis (Bt) em plantas, com o
lhões, foi essencial para que a DuPont investisse
objetivo de torná-las resistentes a insetos. Na
agressivamente nas ciências da vida. A primeira
época da aquisição, a empresa possuía mais de
aquisição da empresa, que se sucedeu à venda da 6.000 linhagens dessa bactéria e 40 patentes en-
Conoco, foi a compra de 50% das ações da em- volvendo técnicas para a produção de plantas re-
presa farmacêutica Merck & Co., por US$ 2,6 bi- sistentes a insetos.
lhões, dando origem à joint venture DuPont Dessa forma, a empresa deu início à estra-
Merck Pharmaceutical. Em 1997, a DuPont for- tégia de criar vínculos entre a divisão produtora
mou uma joint venture com a Pioneer Hi-Bred, de defensivos agrícolas e a divisão de sementes.
chamada Optimum Quality Products, para de- Esses vínculos foram criados por meio da pro-
senvolver sementes híbridas de milho com carac- dução de sementes geneticamente modificadas
terísticas qualitativas e quantitativas melhoradas. resistentes aos herbicidas fabricados pela em-
Devido ao sucesso do empreendimento, em 1999 presa.
a DuPont comprou, por US$ 7,7 bilhões, os 80% Buscando ampliar sua atuação no mercado
restantes das ações da Pioneer Hi-bred. A empre- de produtos biotecnológicos voltados para a agri-
sa tem, entre seus produtos, o milho GM resisten- cultura, a Dow Chemical comprou, por intermé-
te a glifosato, a soja transgênica com perfil de dio de sua subsidiária Mycogen, em novembro de
óleo alterado, o algodão GM resistente ao herbi- 2000, as divisões norte-americana e canadense de
cida do grupo das sulfonilureas, o milho resisten- sementes híbridas da Cargill. Por meio dessa
te a insetos e a canola resistente ao herbicida do aquisição, a Dow AgroSciences pretendia comer-
grupo das imidazolinonas. cializar suas técnicas de produção de sementes
GMs resistentes a insetos.
A DuPont já investiu mais de US$ 14 bi-
lhões na aquisição de sementeiras e empresas de Em 2001, a Dow AgroSciences anunciou a
compra da divisão agroquímica da Rohm and
biotecnologia. Anualmente, a multinacional des-
Haas por US$ 1 bilhão, que envolveu as linhas de
tina US$ 1 bilhão para pesquisa e desenvolvimen-
produção de herbicidas, inseticidas e fungicidas,
to, dos quais cerca de 60% diretamente nessa
bem como o acesso a todas as técnicas biotecnoló-
área.10
gicas de aplicação na agricultura.
Dow AgroSciences
A Dow AgroSciences, sediada em India- AS ESTRATÉGIAS DAS EMPRESAS
nópolis, Indiana, atua na produção de agroquí- Após os primeiros anos de comercialização
de sementes geneticamente modificadas no mer-
10 KNAPP & GONÇALVEZ, 2000, p. C1. cado mundial, as multinacionais do setor se de-

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pararam com certa dificuldade na expansão de Tabela 2. Custo e duração dos programas de pesquisa
seus negócios, devido à baixa aceitação da popu- e desenvolvimento.
lação com relação ao consumo de alimentos de- US$
SETOR ANOS
(milhões)
rivados da transgenia11 e também à dificuldade
em garantir a apropriação dos benefícios decor- Farmacêutico 10 a 15 231 a 500
rentes da comercialização da tecnologia12 embu-
Medicina Botânica 2a5 0,15 a 7
tida nas sementes GMs.
Diante disso, o plano de ação das empresas Sementes Agrícolas 8 a 12 1 a 2,5
no mercado teve de ser remodelado e novas al-
Sementes Geneticamente Modificadas 4 35 a 75
ternativas estratégicas foram buscadas, como o
marketing e os direitos de propriedade intelectual, Plantas Ornamentais 1 a 20 0,05 a 5
como forma de garantia do monopólio tecnoló-
Biodefensivos Agrícolas 2a5 1a5
gico.
Analisam-se, a seguir, as estratégias adota- Defensivos Agrícolas 8 a 14 40 a 100
das, no Brasil e no mundo, pelas cinco maiores
Enzimas Industriais 2a5 0,15 a 7
empresas atuantes no mercado de sementes gene-
ticamente modificadas: Syngenta, Monsanto, Fonte: ARNT, 2001
Aventis13 (Bayer CropScience), DuPont (Pioneer)
e Dow AgroSciences. a) Patenteamento
Nesse caso, a lei americana de patentes per-
Garantia do Monopólio Tecnológico mite que a empresa peça a proteção dos genes in-
A possibilidade de apropriação dos bene- troduzidos na semente, bem como das técnicas de
fícios advindos da comercialização de sementes modificação genética empregadas. No Brasil, so-
GMs constitui poderoso incentivo para as em- mente as técnicas de inserção de genes no genoma
presas que operam nesse mercado. Entretanto, a de plantas são passíveis de proteção. A figura 1 in-
apropriabilidade é, e sempre foi, o problema dica que, até 1998, das 1.370 patentes em biotec-
nologia agrícola concedidas pelo US Patent and
central na constituição e na evolução da indús-
Trade Mark Office – o escritório norte-americano
tria de sementes. Em decorrência desse fato e de
de marcas e patentes – aos trinta maiores requisi-
que os custos de pesquisa e desenvolvimento tantes, 74% se concentravam sob o domínio de
(P&D) dessas sementes são muito superiores seis empresas atuantes no mercado de sementes
aos custos de P&D de sementes convencionais GMs. Entre as seis empresas estão a Monsanto,
(tab. 2), as empresas desse mercado foram leva- com 287 patentes; a Dupont, com 279; a Syngenta,
das a buscar a proteção dos direitos de proprie- com 173; a Dow, com 157; e a Aventis, com 77.
dade intelectual, os DPIs, para suas inovações.
Figura 1. Patentes em agrobiotecnologia concedidas
No caso das sementes GMs, a apropriação pelo US Patent and Trade Mark Office até 1998.
dos benefícios pode se dar de três formas, empre-
gadas isoladamente ou em conjunto.

11 Essa oposição pôde ser evidenciada em todo o mundo, concen-


trando-se, na Europa, o grande foco de rejeição aos transgênicos.
12 Os genes inseridos e as técnicas de modificação genética.
13 Serão analisadas as estratégias da Aventis e não as da Bayer CropS-
cience, dado que grande parte deste estudo foi desenvolvida antes do
surgimento da Bayer CropScience, em fevereiro de 2002, resultado
da venda da divisão de sementes da Aventis, a Aventis CropScience,
para a Bayer. Fonte: ETC Group Communiqué – jul./ago. 2001

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A proteção patentária da tecnologia embu- tino de sementes GMs, foi o do fazendeiro cana-
tida nas sementes GMs obriga o agricultor, toda dense Percy Schmeiser, acusado de ter plantado,
vez que adquirir uma semente GM, a pagar uma ilegalmente, sementes de canola Roundup Ready,
taxa de transferência tecnológica, ou royalty, à em- na qual o transgene inserido está protegido por
presa detentora dos direitos de propriedade inte- patente da Monsanto.
lectual sobre aquela semente. Nos Estados Uni- O imbróglio com a Monsanto teve início
dos, quando um agricultor compra uma saca de em 1997, quando Schmeiser recebeu em sua fa-
25 kg de soja Roundup Ready (RR), quantidade zenda a visita de um ‘fiscal’ que, ao aspergir o her-
suficiente para plantar 1 acre (0,4 ha), ele deve pa- bicida Roundup sobre a plantação de canola para
gar à Monsanto uma quantia extra, referente à eliminar eventuais ervas daninhas, percebeu que
taxa tecnológica, no valor de US$ 6,50. No Ca- parte da canola plantada havia resistido à aplica-
nadá, agricultores devem pagar o equivalente a ção do defensivo. Isso só seria possível se a canola
US$ 10 por acre (C$14 15) para plantar a canola plantada por Schmeiser tivesse um tipo de modi-
Roundup Ready15 da Monsanto.16 No Brasil, o ficação genética capaz de torná-la resistente ao
primeiro pagamento de royalties pelo plantio de herbicida de propriedade da Monsanto.
soja RR se deu na comercialização da safra de Em 1998, Schmeiser utilizou as sementes
2003/2004, na qual os agricultores do Rio Gran- da safra anterior, algumas já resistentes ao Roun-
de do Sul tiveram de pagar R$ 0,60 por saca do dup, para o replantio em seus 1.000 acres (~ 400
produto (ou R$ 10 por tonelada). Para a próxima ha) de terra. Percy percebeu queda considerável
safra, a empresa já estabeleceu reajuste na cobran- de produtividade na safra de 1998, concluindo
ça do valor, que deverá passar para R$ 1,20 por que seus campos haviam sido contaminados por
saca (ou R$ 20 por tonelada). sementes de canola geneticamente modificadas.
A cobrança de royalties não se restringe so- Naquele mesmo ano, a Monsanto ajuizou uma
mente ao plantio de sementes de soja Roundup ação contra Percy, sob a alegação de que o agri-
Ready. Em 1996, quase dois milhões de acres fo- cultor teria obtido as sementes de forma ilegal e
ram plantados nos Estados Unidos com a varie- se beneficiado disso. A Monsanto exigiu que Per-
dade Bt do algodão geneticamente modificado, cy pagasse à empresa a quantia equivalente aos lu-
produzido pela Monsanto. Na época, a multina- cros auferidos pelo plantio das sementes de ca-
cional cobrou dos agricultores taxa tecnológica nola RR.
no valor de US$ 79 por hectare, além do preço da
Percy se recusou a pagar, argumentando
semente, para o plantio dessa variedade de algo-
que as sementes de canola geneticamente modi-
dão, denominada Bollgard. Somente com a co-
ficadas haviam entrado em sua propriedade de
brança da taxa, a empresa arrecadou, em um ano,
forma acidental.17 Alegou, ainda, que não tinha
US$ 51 milhões.
nenhum interesse em plantar sementes de canola
Na prática, as empresas enfrentam grandes
RR, uma vez que a produtividade dessas sementes
dificuldades em garantir que os agricultores que
era menor e que durante muitos anos ele havia
plantam sementes GMs paguem essa taxa de
trabalhado no melhoramento convencional de
transferência tecnológica. São muito comuns os
sementes de canola, sem nunca ter tido qualquer
contrabandos de sementes e o armazenamento
tipo de problema. Argumentou, contra a Mon-
de parte da safra GM para o replantio na safra pos-
santo, em relação aos 20% de contaminação em
terior, o que evita o pagamento de royalties.
Um caso que recebeu grande destaque na 17 Nesse caso, dois tipos de contaminação poderiam ter ocorrido: a
mídia, com relação a um possível plantio clandes- polinização cruzada – troca de pólen entre variedades de plantas da
mesma espécie – entre sua plantação de canola não modificada e even-
tuais plantios de canola RR próximos à sua fazenda, ou a contaminação
14 Dólar canadense. por meio de sementes de canola RR que, ao serem transportadas por
15 Resistente ao herbicida Roundup. caminhões, teriam escapado e contaminado a propriedade de Schmei-
16 SIMON, 2001; HOLMES, 2001. ser em regiões próximas à beira da estrada.

66 Impulso, Piracicaba, 15(36): 59-76, 2004


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sua safra de 2000 e à sua dificuldade em eliminar pagandas de rádio, os nomes dos agricultores que
as sementes de canola RR. violam os contratos.
A contrapartida da multinacional resumiu- Somente nos Estados Unidos e no Canadá,
se em não aceitar os argumentos de Percy – ale- a Monsanto já registrou de 100 a 525 casos de
gando que a polinização cruzada não seria capaz infrações contratuais. Em sua maioria, foram re-
de levar aos índices de contaminação encontra- solvidos mediante pagamento de multa. Entre-
dos – e exigir do agricultor o pagamento de US$ tanto, a empresa já levou vários casos à Justiça.
300 mil pelo prejuízo causado à empresa. Até agosto de 2001, já eram 500 as ações ingres-
Em junho de 2000, houve o julgamento, sadas por ela nos tribunais norte-americanos con-
porém o veredicto foi adiado. Em seguida, Percy tra agricultores que haviam infringido os ‘contra-
ingressou com uma ação contra a Monsanto por tos de patente’ com a empresa.20
difamação e sob a alegação de que as sementes de c) Tecnologias Terminator e Traitor
canola RR teriam alterado o equilíbrio ecológico Diante da dificuldade em controlar o paga-
de sua fazenda.18 mento das taxas tecnológicas e de fazer cumprir
Somente em abril de 2001 saiu a decisão fi- as exigências impostas pelos contratos, as empre-
nal da Justiça norte-americana para o caso e Percy sas desenvolveram duas tecnologias genéticas, a
foi condenado a pagar US$ 20 mil à multinacio- Terminator e a Traitor, capazes de tornar impos-
nal. A Suprema Corte entendeu que o agricultor sível, ou muito difícil, o armazenamento de se-
teria roubado e plantado sementes de canola ge- mentes de uma safra para a outra, ou também, de
neticamente modificada desenvolvidas pela em- condicionar a expressão de determinadas caracte-
presa.19 rísticas do vegetal à aplicação de uma substância
química, produzida pela mesma empresa deten-
b) Estabelecimento de Contratos com Agri-
tora da tecnologia genética embutida na semente.
cultores
A tecnologia apelidada de Terminator pela
Como forma de garantir que os agriculto- Rural Advancement Foundation International
res pagassem as taxas de transferência tecnológica (RAFI)21 foi desenvolvida por meio de uma alian-
e não armazenassem as sementes de uma safra ça público-privada entre o Departamento de
para o replantio na safra seguinte, as empresas Agricultura do governo norte-americano, o US-
passaram a exigir que a venda de sementes GMs DA, e a empresa norte-americana de sementes
fosse feita mediante contrato. Dessa forma, a Delta & PineLand. Essa tecnologia consiste na
cada compra de sementes, o agricultor deveria se introdução de três genes, de ações distintas, no
comprometer a atender a todas as normas esta- genoma de sementes de interesse, com o objetivo
belecidas pelo contratante, ficando estabelecido de tornar estéril a segunda geração de sementes
que a violação de qualquer cláusula do contrato dessa planta. Na verdade, é uma técnica que im-
implicaria o pagamento de multas. pede que o fruto ou grão de uma variedade co-
Para garantir o cumprimento dos contratos mercial se torne uma semente, exterminando, as-
assinados pelos agricultores, a Monsanto, por sim, o potencial reprodutivo da planta.
exemplo, instalou uma espécie de disque-denún- Já a tecnologia Traitor, cujo nome também
cia, conhecido pelos agricultores como Polícia da foi atribuído pela Rural Advancement Foundati-
Soja, para coletar informações sobre possíveis on International, consiste em alterar genetica-
agricultores infratores. Além disso, contratou au- mente uma planta para que a expressão de deter-
ditores para ajudarem na investigação. Atualmen-
te, é pratica comum da empresa divulgar, em pro- 20 MONBIOT, 2001.
21 Organização internacional da sociedade civil, com sede no Canadá,
que tem suas atividades voltadas para o uso sustentável e a conservação
18 BROYDO, 2000. da biodiversidade, bem como para o desenvolvimento responsável de
19 WHEN..., 2001. tecnologias de aplicação rural.

Impulso, Piracicaba, 15(36): 59-76, 2004 67


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minadas proteínas no vegetal esteja condicionada Tabela 3. Grupos detentores de patentes Terminator e Traitor.
à aplicação de uma substância química capaz de Data da
Nº da
ativar ou desativar características específicas da Empresa/Instituição Publi-
Patente
cação
planta expressas pela atividade dessas proteínas.
Syngenta (Novartis) US 6,147,282 11/14/00
Entre as características de vegetais passíveis de se-
rem controladas pela ação de um indutor quími- Syngenta (Novartis) US 5,880,333 3/9/99
co externo estão: resistência a insetos, doenças e Syngenta (Novartis) US 5,847,258 12/8/98
herbicidas; germinação, florescimento e amadu- Syngenta (Novartis) US 5,804,693 9/8/98
recimento; sabor e qualidades nutricionais da
Syngenta (Novartis) WO 9839462 9/11/98
planta; bem como a esterilidade vegetal.
É importante compreender que as tecnolo- Syngenta (Novartis) US 5,789,214 8/4/98
gias Terminator e Traitor podem ser aplicadas a Syngenta (Novartis) US 5,777,200 7/7/98
qualquer tipo de semente e são independentes Syngenta (Novartis) US 5,767,369 6/16/98
dos outros processos de manipulação genética,
Syngenta (Novartis) WO 9803536 1/29/98
que conferem à planta resistência a herbicidas e
pragas, além de introduzirem outras característi- Syngenta (Novartis) US 5,654,414 8/5/97
cas. Ou seja, essas duas tecnologias não são es- Syngenta (Novartis) US 5,650,505 7/22/97
senciais à introdução de características de interes- Syngenta (Novartis) US 5,614395 3/25/97
se em sementes.22
Syngenta (Zeneca) US 5,808,034 9/15/98
Como indica a tabela 3, patentes relaciona-
Syngenta (Zeneca) WO 9738106A 10/16/97
das às tecnologias Terminator e Traitor são con-
cedidas no mundo desde 1994 e estão sob o po- Syngenta (Zeneca) WO 9735983A2 10/2/97
der de universidades, centros de pesquisa e de Syngenta (Zeneca) WO 9403619A2 e A3 2/17/94
grandes empresas do setor agroquímico-farma- Delta&Pine Land / USDA US 5,977,441 11/2/99
cêutico, entre as quais quatro das cinco maiores
Delta&Pine Land / USDA US 5,925,808 7/20/99
companhias atuantes no mercado de sementes
geneticamente modificadas: Syngenta, DuPont, Delta&Pine Land / USDA US 5,723,765 3/3/98
BASF (ex-Seed Genetics,
Monsanto e Aventis (Bayer CropScience). L.L.C./Iowa State University) WO 9907211 2/18/99
Em 1994, a DuPont depositou seu primeiro BASF (ex-Seed Genetics, US 5,859,310 1/12/99
L.L.C./Iowa State University)
pedido de patente (posteriormente concedida – BASF (ex-Seed Genetics, US 5,814,618 9/29/98
US 5,364,780), nos Estados Unidos, referente à L.L.C./Iowa State University)
DuPont (Pioneer Hi-Breed) US 5,859,341 1/12/99
tecnologia Traitor. O documento intitulava-se
Regulação Externa da Expressão de Genes. Mais DuPont (Pioneer Hi-Breed) US 5,608,143 3/4/97
tarde, em 1997, a mesma empresa depositou seu DuPont (Pioneer Hi-Breed) US 5,364,780 11/15/94
segundo pedido de patente – posteriormente Monsanto (Pharmacia) US 5,723,765 3/3/98
concedida como US 5,608,143 –, cujo tema se as-
Monsanto (Pharmacia) WO9744465 11/27/97
semelhava ao da anterior. O pedido de patente
mais recente da DuPont para plantas nas quais foi Aventis (Rhone-Poulenc) / Bayer US 5,837,820 11/17/98
empregada a tecnologia Traitor é a WO 0070059, Cornell Research Foundation US 5,859,328 1/12/99
concedida em 23 de novembro de 2000: está re- Purdue Research Foundation WO 9911807 3/11/99
(with support from USDA)
lacionada a uma planta que teve seu mecanismo
John Innes Centre WO 9828431 7/2/98
de resistência a doenças alterado, por meio de
modificação genética. Max Planck Institute WO 9828430 7/2/98

Fonte: RAFI Communiqué – Abr. 2001; RAFI Communiqué – jan./99.


Obs.: entre parêntesis, estão os nomes das empresas que depo-
22 GUERRANTE, 2003. sitaram o pedido de patente.

68 Impulso, Piracicaba, 15(36): 59-76, 2004


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Já a patente mais recente da Syngenta – a de dificadas e produtos delas derivados de-


número US 6,147,282 – protege um método de veriam receber especial atenção por par-
controle da fertilidade da planta, que utiliza a te do governo, as empresas atuantes no
aplicação de uma substância química para elimi- mercado de sementes GMs conseguiram
nar ou restabelecer a fertilidade do vegetal. Foi que fosse instituído, nos Estados Uni-
concedida à Novartis, porém, após a fusão com a dos e na Europa, um sistema regulatório
AstraZeneca, os direitos de propriedade intelec- rígido para as questões concernentes aos
tual passaram a pertencer à Syngenta. OGMs, sistema este que teve como con-
Entre março de 1997 e dezembro de 1998, seqüência imediata a redução da compe-
a Novartis, hoje Syngenta, depositou doze pedi- titividade entre empresas e do fluxo de
dos de patentes referentes a uma combinação en- novos produtos no mercado.23 Durante
tre as tecnologias Terminator e Traitor. As paten- toda uma década, a Biotechnology In-
tes se referiam a sementes com genes Terminator, dustry Organization (BIO), com sede
que seriam ativados ou desativados pela aplicação em Washington, fez, em todo o mundo,
de herbicidas ou de fertilizantes, ou seja, pela intenso lobby a favor da regulamentação
ação de um outro gene do tipo Traitor. Esse é um rígida dos organismos geneticamente
exemplo da estratégia dessas empresas – detento- modificados. Em 1994, a BIO solicitou
ras não somente de patentes Terminator e Traitor, ao FDA que a agência desenvolvesse uma
mas também de patentes de defensivos – de de- metodologia específica para análise e re-
senvolver novas aplicações para seus agroquími- gistro de alimentos geneticamente mo-
cos, que seriam empregados como indutores (ati- dificados, que, na época, já estavam sen-
vadores/desativadores) químicos de sementes ge- do submetidos à rotina de avaliação do
neticamente modificadas, permitindo ampliar o FDA. Em resposta, a agência elaborou
prazo de vigência das patentes desses defensivos um procedimento específico para OGMs.
ou, até mesmo, adquirir outras patentes para os Em janeiro de 2001, a proposta de mu-
novos produtos químicos desenvolvidos. dança na política do FDA perante os
OGMs foi formalmente publicada. O
ESTRATÉGIAS DE MARKETING acontecimento foi recebido com come-
Buscando melhorar sua imagem e a de seus moração pela Biotechnology Industry
produtos frente ao mercado consumidor, que Organization, que esperava, com a nova
passou a exercer grande influência na aprovação forma de operação do FDA, conquistar a
para pesquisa e comercialização de variedades confiança dos consumidores americanos
agrícolas geneticamente modificadas, as grandes em relação à segurança dos alimentos
empresas desse setor direcionaram um de seus geneticamente modificados e ao sistema
focos estratégicos para a opinião pública. Os pla- regulatório responsável. Entretanto, na
nos de ação foram redesenhados, utilizando o prática, a repercussão de tal mudança foi
marketing como ferramenta principal. o oposto do que o que se previra. Ao in-
As possíveis causas para o crescimento da vés de aumentar a credibilidade do con-
oposição da população em relação aos organis- sumidor norte-americano, a mudança na
mos geneticamente modificados (OGMs) e às metodologia de ação do FDA levantou
multinacionais envolvidas nesse mercado podem ainda mais dúvidas e suspeitas. Os con-
ser sintetizadas em três episódios: sumidores encararam a regulamentação
• O excesso de regulação da tecnologia rígida e o forte envolvimento do gover-
dos OGMs – Alguns estudiosos do as- no nas questões relacionadas aos OGMs
sunto alegam que, após insistir durante
anos em que plantas geneticamente mo- 23 MILLER, 2001.

Impulso, Piracicaba, 15(36): 59-76, 2004 69


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como sinal de que uma tecnologia muito desses agroquímicos –, e sua produtivi-
pouco segura estava para ser oferecida à dade por hectare aumentada. Mais indi-
população. retamente, o consumidor poderia se be-
• Os maus exemplos anteriores: doença neficiar dessa redução nos custos de
da vaca louca, febre aftosa, dioxina em produção, comprando produtos mais
frangos, entre outros – Os governos de baratos e, possivelmente, mais saudáveis.
muitos países da Europa têm reputação Na prática, nem todos esses benefícios
recente pouco recomendável com rela- foram observados. O aumento da pro-
ção à preocupação de manter o consu- dutividade de sementes ocorreu apenas
midor informado. Exemplos são o caso em alguns países, variando com o clima,
da doença da vaca louca, cuja transmis- o tipo de solo da região e a variedade da
sibilidade para humanos foi primeira- semente plantada. Com relação à redu-
mente negada por autoridades inglesas, ção na quantidade de defensivo empre-
depois omitida até prova cabal em con- gada, ainda não existe consenso entre os
trário; a comercialização de carne conta- agricultores quanto à constatação prática
minada com bactérias patogênicas ao desse fato, entretanto a maioria dos tra-
homem e com dioxina, substância sabi- balhos referentes ao tema confirma essa
damente cancerígena; a performance dos vantagem dos plantios GMs. O fato é
bancos de sangue na França, no episódio que mesmo havendo redução nos custos
da transfusão de sangue contaminado de produção dessas sementes, para que
com HIV; a febre aftosa, que atacou os elas sejam vendidas, o mercado exige
rebanhos europeus etc. Em função des- que sejam certificadas, o que acaba one-
ses fatos, a sociedade européia foi toma- rando o processo e compensando toda
da por um clima de insegurança e passou ou parte da economia obtida. Diante
a desconfiar das instituições governa-
dessa situação, o consumidor não se viu
mentais e a temer a entrada de novas tec-
beneficiado pela primeira geração de se-
nologias.
mentes GMs, ficando claro, para ele, que
• A ausência de benefícios diretos ao os grandes beneficiados por tal tecnolo-
consumidor provenientes da primeira gia seriam, em princípio, as multinacio-
geração de plantas GMs – As primeiras nais detentoras das patentes.
sementes GMs comercializadas no mun-
A seguir, serão listadas as principais ações
do apresentavam, como vantagens em
das cinco maiores empresas atuantes no mercado
relação às sementes convencionais, ca-
racterísticas agronômicas de resistência a de sementes GMs, comprovando seu direciona-
herbicidas, insetos, fungos e vírus. Os mento para o marketing estratégico.
benefícios previstos para essa geração a) Lançamento de sementes das segunda
eram para as empresas produtoras de se- e terceira gerações
mentes GMs, que receberiam royalties Como as sementes de primeira geração24
pelo uso de sua tecnologia patenteada e não apresentaram, na prática, benefícios diretos
lucrariam com a venda casada da semen- ao consumidor, a saída encontrada pelas empre-
te GM e do herbicida correspondente; e sas do mercado foi a de desenvolver outros tipos
para o agricultor teria seus custos de de semente, que pudessem trazer vantagens mais
produção reduzidos – em conseqüência concretas ao consumidor. Dessa forma, surgiram
do emprego de menor quantidade de de- as sementes de segunda e de terceira geração.
fensivos agrícolas e do menor uso de
maquinário empregado na pulverização 24 Resistentes a herbicidas, a pestes (insetos e fungos) e a vírus.

70 Impulso, Piracicaba, 15(36): 59-76, 2004


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A segunda geração de sementes GMs reúne poderia ser uma das alternativas viáveis de supri-
plantas cujas características nutricionais foram mento desses micronutrientes.
melhoradas qualitativa e/ou quantitativamente. Em julho de 2001, um dos chefes de ope-
Entre os exemplos estão o algodão capaz de pro- ração da Syngenta Seeds revelou que, além do mi-
duzir fibras mais resistentes, coloridas e unifor- lho Bt – estrela da Syngenta no ramo de sementes
mes, a canola com óleo enriquecido em betaca- GMs –, o foco da empresa estaria voltado para a
roteno e a soja cujo óleo tem características do produção de sementes das segunda e terceira
azeite de oliva. gerações. Anunciou, para um futuro próximo, o
Já a terceira geração reúne plantas destina- lançamento de uma linha completa de milho GM
das à síntese de produtos especiais, como vacinas, com maior teor protéico, direcionado à produção
hormônios, anticorpos e plásticos. A alface capaz de ração animal.25
de produzir uma vacina contra a hepatite B, o es- O foco na produção de sementes GMs das
pinafre que pode sintetizar um antígeno contra a segunda e terceira gerações pode ser observado
raiva, o milho que produz hormônio de cresci- na recente compra da Johnson & Johnson Cen-
mento masculino, a mostarda capaz de sintetizar tocor,26 em setembro de 2001, pela Dow Chemi-
um tipo de plástico, bem como uma variedade de cal. O objetivo central dessa aquisição é o de pro-
soja que produz substância anticancerígena são duzir proteínas humanas e, posteriormente,
alguns dos exemplos dessas sementes. unindo as habilidades das duas empresas, o de
Cabe destacar que, até o presente momen- utilizar sementes GMs para a produção de medi-
to, boa parte das sementes da segunda geração e camentos.27
todas as da terceira ainda não foram aprovadas Em dezembro de 2001, a DuPont anunciou
para comercialização, encontrando-se em fase de o projeto da empresa de se tornar grife de produ-
experimentação. Isso se deve ao fato de que o tos alimentícios geneticamente modificados. Para
surgimento dessas sementes é mais recente. isso, a multinacional pretende desenvolver se-
mentes de soja GM contendo óleo não prejudicial
Analisando-se os exemplos de sementes
à saúde, outras variedades capazes de combater a
GMs de segunda e terceira geração aqui citados, é
osteoporose e, em parcerias com universidades e
possível entender por que o consumidor observa
cooperativas, desenvolver sementes de milho e
vantagens nesses produtos em relação às varian-
cana-de-açúcar geneticamente modificadas, das
tes convencionais. Na verdade, o que ocorre é
quais seriam extraídos polímeros, resinas e óleos.28
que como as aplicações das sementes das segunda
e terceira gerações estão diretamente relacionadas b) Compromissos com a sociedade
às áreas biomédica e nutricional, elas são emocio- Em setembro de 1999, a Dupont anunciou
nalmente mais atrativas. a criação do Biotechnology Advisory Panel, um
comitê independente de aconselhamento em bio-
Pode-se acrescentar uma divulgação recen-
tecnologia, composto por especialistas de univer-
te da Monsanto com relação à pesquisa que está
sidades, ONGs e órgãos governamentais de diver-
sendo desenvolvida, em conjunto com o centro
sos países. Esse comitê tem como objetivo cen-
de pesquisa Tata Energy Reseach (TER), na Índia,
tral tratar das responsabilidades sociais e ambien-
cujo objetivo é produzir a mostarda dourada, des-
tais da DuPont, particularmente no que diz
tinada à síntese de óleo de cozinha com alto teor
respeito à biodiversidade, à bioética e aos direitos
de betacaroteno. A proposta da empresa é ofere-
do consumidor. Entre outras atribuições, cabe ao
cer a semente, gratuitamente, a agricultores po-
bres que sobrevivem da agricultura de subsistên- 25 LOPES, 2001.
cia. Considerando-se que cerca de 40% da popu- 26 Empresa que desenvolve medicamentos direcionados ao tratamento
de pacientes com câncer, artrite-reumatóide, problemas cardíacos etc.
lação mundial sofre de insuficiência de micronu- 27 DOW..., 2001.

trientes, a mostarda geneticamente modificada 28 KISCHINHEVSKY, 2001.

Impulso, Piracicaba, 15(36): 59-76, 2004 71


002301_impulso_36.book Page 72 Thursday, July 22, 2004 4:20 PM

comitê auxiliar a multinacional a se posicionar em logo – a Monsanto criou o Biotechnology Advi-


mercados estratégicos e inspecionar as etapas de sory Council, órgão de aconselhamento indepen-
desenvolvimento, teste e comercialização de no- dente composto por especialistas de diferentes
vos produtos biotecnológicos.29 áreas. O objetivo do conselho é auxiliar a empre-
Em novembro de 2000, seguindo os mes- sa a traçar suas diretrizes de atuação perante a so-
mos moldes do comitê de aconselhamento da ciedade, no que diz respeito à identificação das
DuPont, a Monsanto tornou público o “New questões relevantes relacionadas à biotecnologia,
Monsanto Pledge”, um documento contendo as ao diálogo em torno das decisões políticas toma-
diretrizes para orientar o comportamento da em- das pela empresa, às perspectivas da empresa
presa diante da sociedade e, por meio do qual, a etc.30
Monsanto se comprometeria a desenvolver e co- Em mais uma tentativa de diminuir a resis-
mercializar seus produtos de forma segura e so- tência aos alimentos GMs mediante fornecimento
cialmente responsável. Em seu conteúdo, o “New de informações sobre o tema, as empresas atuan-
Monsanto Pledge” discrimina cinco áreas com as tes no mercado de agrobiotecnologia no Brasil
quais a empresa deveria se comprometer, no que anunciaram, em outubro de 2001, a criação do
diz respeito às suas atividades com organismos Conselho de Informações sobre Biotecnologia
geneticamente modificados. São elas: o diálogo (CIB), que tem entre seus membros: a Associação
entre a partes; a transparência da informação; a Brasileira das Indústrias de Alimentos (ABIA), a
disponibilização do conhecimento e da tecnolo- Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Ve-
gia; o respeito pelos aspectos religiosos, culturais getais (Abiove), a Associação Brasileira dos Pro-
e éticos; e a distribuição dos benefícios entre os dutores de Sementes (Abrasem), a Basf Brasil, a
agricultores e o meio ambiente. Bayer CropScience, a Cargill Agrícola, a Coope-
Em 30 de julho de 2001, atendendo a uma rativa Central Agropecuária de Desenvolvimento
das cinco promessas do “New Monsanto Pledge”, Tecnológico e Econômico (Coodetec), a Dow
a da transparência, a empresa anunciou que passa- AgroSciences, a DuPont do Brasil, a Monsanto
ria a divulgar em seu site <www.monsanto.com> do Brasil, a Organização das Cooperativas Brasi-
informações referentes à segurança de seus pro- leiras (OCB) e a Syngenta Seeds. O CIB brasileiro
dutos agrícolas obtidos por meio da biotecnolo- fará parte de uma rede internacional de conselhos
gia. Foram divulgados detalhes sobre alguns tipos desse tipo, com ramificações na Argentina, no
de alimentos e rações, além de informações relati- México, nos Estados Unidos e no Canadá.
vas à segurança ambiental da soja Roundup Ready, Esse conselho tem como função a divulga-
do milho YieldGard, do milho Roundup Ready e ção de informações científicas, de forma clara e
do algodão Roundup Ready. Para cada um desses simples, por meio do site <www.cib.org.br>.
produtos, foram apresentadas informações sobre Para o vice-presidente de Produtos Agrícolas da
a composição molecular das sementes e os testes DuPont, Ricardo Vellutini, o fornecimento de in-
de segurança alimentar e ambiental para sementes formações de qualidade é o único meio de rever-
e rações. Foram disponibilizados, também, um ter o quadro que se criou no Brasil, “onde a libe-
banco de dados contendo publicações científicas, ração ou não da produção de transgênicos passou
referentes aos benefícios da biotecnologia para a a ser uma discussão eminentemente passional”.31
agricultura, e uma lista contendo publicações re- c) Financiamento de programas educati-
lacionadas a cada tipo de produto da Monsanto vos em biotecnologia
obtido por meio da biotecnologia.
Em abril de 2001, a Aventis divulgou um
Em maio de 2001, ainda atendendo a um programa da empresa, cujo objetivo é estimular a
dos cinco compromissos da empresa – o de diá-
30 MONSANTO..., 2001.
29 DIAS, 2001. 31 BELLINGHINI, 2001, p. A12.

72 Impulso, Piracicaba, 15(36): 59-76, 2004


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pesquisa em biotecnologia entre alunos do 2.º de resistência a antibióticos, inseridos em células


grau, no Canadá. O programa se chama Aventis GMs como meio de selecioná-las entre células que
Biotech Challenge e consiste em uma competição não sofreram modificação genética. Na época, a
entre grupos de alunos, que devem desenvolver empresa anunciou que forneceria a tecnologia a
projetos de pesquisa em biotecnologia. Os pro- pequenos agricultores de países em desenvolvi-
jetos selecionados recebem US$ 200 da Aventis, mento, sem a cobrança de royalties.35
além de toda a infra-estrutura tecnológica neces- Em agosto de 2000, foi anunciada a libera-
sária para que sejam desenvolvidos.32
ção da patente do arroz dourado36 para a Mon-
Simultaneamente ao lançamento do Aven- santo, que na ocasião garantiu que abriria mão da
tis Biotech Challenge, foi divulgado na mídia que patente, concedendo licenças, sem a cobrança de
mais de 140 mil livros de biotecnologia, patroci-
royalties, para a plantação do arroz dourado e de
nados por algumas das grandes empresas do
outros tipos de grãos enriquecidos com vitamina
complexo agroquímico-farmacêutico – Monsan-
A pela engenharia genética. Anunciou, também,
to, Syngenta, Pfizer, Rhône-Poulenc, Merck e
o lançamento do site <www.riceresearch.org>,
Amgen –, foram distribuídos em escolas de ensi-
que poderia ser acessado por pesquisadores para
no médio na Escócia. Your World – Biotechnology
And You é uma publicação colorida de dezesseis consulta a dados referentes às seqüências genéti-
páginas, produzida nos Estados Unidos pelo Ins- cas do arroz geneticamente modificado.
tituto de Biotecnologia, do qual são membros as Na prática, verifica-se uma série de restri-
multinacionais citadas anteriormente. Esse livro ções ao acesso à base de dados genéticos do arroz
trata dos alimentos geneticamente modificados, GM. A Monsanto impõe que qualquer patente
sugerindo, entre muitos outros conselhos, que os que resulte de informações obtidas a partir desse
alunos experimentem plantar as sementes de soja banco de genes seja requerida em conjunto com
geneticamente modificada da Monsanto. a multinacional. A empresa determina, ainda, o
O impacto inicial que se pretendia com a número máximo de genes aos quais se pode ter
divulgação dessas brochuras em escolas do ensi- acesso, caso as informações venham a ser publi-
no médio não foi plenamente alcançado, uma vez cadas.37
que tal episódio gerou grande oposição por parte Em junho de 2001, a mesma multinacional
dos pais dos alunos, que alegaram que as empre- divulgou seu interesse em compartilhar, com o
sas patrocinadoras estariam utilizando materiais United Soybean Board,38 parte das informações
educativos como meio de divulgação de seus pró- genéticas da soja, com o objetivo de acelerar o de-
prios produtos.33 senvolvimento de variedades GMs dessa cultivar,
d) Disponibilização do conhecimento e mais saudáveis39 para o consumo humano. Essa
da tecnologia instituição, por sua vez, ficaria encarregada de
Em março de 2000, a Syngenta tornou pú- abrir as informações genéticas para agricultores
blico o patenteamento de sua tecnologia Positech,34 da organização Better Bean Initiative.40
que consiste em um sistema alternativo aos genes
35 MONSANTO’S..., 2001.
32 36 Geneticamente modificado para produzir betacaroteno em maiores
AVENTIS..., 2001.
33 EDWARDS, 2001. quantidades.
34 O sistema de marcadores genéticos Positech confere a células vege- 37 GM & CORPORATE..., 2001.
38 Organização norte-americana, coordenada por produtores de soja,
tais a habilidade de metabolizar a manose, uma fonte de carbono.
Assim, somente as células vegetais GMs, que contêm gene Positech, que investe em atividades de marketing e pesquisa, voltadas para o
são capazes de sobreviver em um meio cuja única fonte de carbono é auxílio a produtores de soja.
manose. Por outro lado, as células vegetais não geneticamente modifi- 39 Sementes de soja com perfil de óleo enriquecido e com maior con-

cadas, e que por isso não contêm o gene Positech, não sobrevivem teúdo protéico.
quando cultivadas nesse mesmo meio. 40 USA..., 2001.

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Em agosto de 2001, a Monsanto anunciou Hoje, já são 67 as produtoras de sementes e 31 as


que colocaria à disposição do público as infor- empresas e institutos de pesquisa especializados
mações referentes ao genoma da bactéria Agro- em biotecnologia sob o controle das cinco maio-
bacterium tumefasciens,41 seqüenciado em con- res empresas do mercado de sementes GMs ou a
junto com a University of Richmond, Virgínia. elas associadas por meio da formação de parcerias.
Para a Monsanto, a política da empresa de colocar Existe a expectativa de que a Monsanto siga
à disposição a seqüência de DNA auxiliaria pesqui- uma das seguintes trajetórias: firme-se como uma
sadores da área a compreenderem melhor o me- empresa independente, seja adquirida por outro
canismo de interação entre a bactéria e as células grupo ou parta para uma fusão. Nesta última op-
vegetais, e a aperfeiçoarem o processo de produ- ção, Du Pont e Dow AgroSciences seriam as can-
ção de novas variedades de plantas GMs, por didatas mais fortes ao processo de fusão com a
exemplo, evitando que genes que não interessem Monsanto, levando vantagem a Dow por ser mais
sejam introduzidos na planta.
incipiente nas áreas de sementes e biotecnologia,
O DNA seqüenciado foi transferido para o pontos fortes da Monsanto.
GenBank, o banco de genes do National Center
Observa-se, pela análise da relação de mo-
for Biotechnology Information (NCBI) no Ins-
vimentos empresariais, certa tendência de inte-
tituto Nacional de Saúde de Bethesda (Ma-
gração plena da cadeia alimentícia, que iria desde
ryland) e já está disponível no site do NCBI
o gene até o supermercado, ou seja, as empresas
(<www.ncbi.nlm.nih.gov>).
teriam o controle das informações genéticas de
No mesmo dia em que a Monsanto apre-
organismos vivos de interesse, o que já acontece
sentou seus resultados de Agrobacterium tumefas-
por meio do patenteamento de genes; atuariam
ciens, a DuPont, em conjunto com a Universida-
na manipulação genética de sementes; na produ-
de de Washington (EUA) e a Universidade Fede-
ção de insumos agrícolas, como fertilizantes e de-
ral de Campinas (Unicamp), divulgou, também,
fensivos; no processamento de grãos; e, por fim,
os resultados da equipe para o seqüenciamento
genético da bactéria. na produção e distribuição de gêneros alimentí-
cios.
e) A renúncia ao uso da tecnologia Ter-
minator A integração desses mercados conduz aos
riscos inerentes a processos de tal ordem, entre
Como resultado da grande oposição da popu-
eles a formação de monopólios ou oligopólios, a
lação, de organizações não governamentais e dos
agricultores à tecnologia Terminator, a Monsanto e redução da base genética da agricultura, a eleva-
a AstraZeneca (hoje pertencente à Syngenta) anun- ção dos preços das sementes, o desenvolvimento
ciaram, em 1999, que não comercializariam mais se- de cultivares cuja utilização está vinculada ao uso
mentes Terminator. Entretanto, sabe-se que as exclusivo de determinado produto (herbicidas,
pesquisas das duas empresas nessa tecnologia con- nos casos presentes) e o aumento da influência
tinuam em desenvolvimento. política dos grandes grupos empresariais.
Tais riscos merecem ser enquadrados nas
CONSIDERAÇÕES FINAIS preocupações das políticas públicas voltadas à
A venda da divisão de sementes da Aventis manutenção dos processos de concorrência co-
para a Bayer em fevereiro de 2002, fazendo surgir mercial, à democratização das oportunidades
a Bayer CropScience, restruturou o ranking das econômicas, à preservação do patrimônio gené-
empresas atuantes no mercado de sementes GMs. tico, de modo que a tecnificação da agricultura
seja feita em moldes sustentáveis e socialmente
41 Empregada na modificação genética de células vegetais. justos.

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Dados da autora
Engenheira química (Universidade Federal do
Rio de Janeiro-UFRJ) e mestre em tecnologia de
processos químicos e bioquímicos (Escola de
Química-UFRJ). É examinadora de patentes no
Instituto Nacional da Propriedade Industrial e
autora do livro Transgênicos – uma visão
estratégica (2003).

Recebimento artigo: 12/jan./04


Consultoria: 5/fev./04 a 9/fev./04
Aprovado: 18/mar./04

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Conexões Gerais
General Connections
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Conflitos e Justiça
CONFLICTS AND JUSTICE*
FRANCESCO SAVERIO
Resumo O artigo pretende refletir, criticamente, sobre o papel do poder judiciário BORRELLI
como guardião do princípio da legalidade; o sentido da pena nas visões retribucionista Procurador-chefe dos
e preventiva; a necessidade de proximidade da justiça na mediação e resolução dos Ministérios Públicos,
conflitos e, finalmente, a atribuição de novas competências, principalmente em ma- Milão/Itália
téria penal, aos juízes de paz na Itália.

Palavras-chave PODER JUDICIÁRIO – PRINCÍPIO DA LEGALIDADE – PENA –


MEDIAÇÃO – JUSTIÇA DE PROXIMIDADE – JUIZ DE PAZ.

Abstract The article intends to, critically, ponder over the role of the judiciary power
as guardian of the legality principle; the sense of the sentence in the retributionist and
preventive views; the necessity of the proximity of justice in the mediation and
resolution of conflicts, and finally, the attribution of new roles, especially relative to
the penal code, to the justice of the peace in Italy.

Keywords JUDICIARY POWER – LEGALITY PRINCIPLE – SENTENCE – MEDIATION –


JUSTICE OF PROXIMITY – JUSTICE OF THE PEACE.

* Os temas deste artigo foram propostos originariamente em uma conferência tida no Centro Cultural
San Fedele di Milano, durante o ciclo "Sabati dello spirito" em fevereiro de 2003. Traduzido do italiano
para o português por NUNO COIMBRA MEQUITA ("Conflitti e Giustizia").

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É preciso saber […] que a justiça é conflito.


ERÁCLITO, frag. 80

O
conflito – testemunhado pelo trecho de Eráclito e,
não por acaso, escolhido por um filósofo analítico
como Stuart Hampshire como epígrafe do seu últi-
mo livro Justice is Conflict1 – não é visto apenas
como elemento negativo, mas também como dimen-
são fundadora da mesma civilização ocidental; a con-
traposição dos pontos de vista nasce da paixão pelas
coisas do mundo e estimula a pesquisa da verdade.
Naturalmente, há toda uma gama de formas possíveis de conflito:
a discussão sobre um argumento talvez pragmaticamente neutro, mas
que pode interessar intelectualmente, difere de uma guerra de conquista
ou de religião.
Experimentamos conflitos de caráter social aos quais, num certo
estágio filosófico, não se deixou de atribuir realmente uma base biológica.
Assim, o darwinismo social estabeleceu as manifestações da batalha pela
vida, os conflitos de classe – em Marx, contradições estruturais das rela-
ções de produção –, os conflitos de trabalho etc. Cada um deles podendo
gerar resultados positivos e fecundos, desde que regulamentados e con-
trolados pelas instituições.
Os conflitos mais especificamente próximos à minha experiência
profissional são aqueles entre os cidadãos, isto é, entre cidadãos e órgãos
institucionais. Um conflito resulta num processo diante do juiz para que
esse, valendo-se dos instrumentos predispostos da sociedade – de modo
a evitar que os cidadãos recorram às armas (ne cives ad arma veniant) –,
o pacifique ou imponha o seu fim autoritariamente, utilizando, se neces-
sário, a força, da qual o Estado é o único detentor legítimo.
Quando falamos do princípio de legalidade, nos referimos, antes de
mais nada, a todas as organizações da sociedade e relações entre os cida-
dãos, mas sobretudo aos poderes públicos e suas relações com os cida-
dãos mediante um sistema de regras que confere ordem e continuidade
à vida da coletividade. Num sentido mais específico, próprio do setor pe-
nal, o princípio de legalidade – exposto também na nossa Constituição –
estipula que ninguém seja punido por um fato não pontualmente descrito
como punível numa lei colocada em vigor anteriormente a ele.
Legalidade é, em geral, conformar-se à ordem vigente, que pode ser
induzida por fatores como a educação, o espírito de disciplina e de tra-
balho e o medo das sanções jurídicas e sociais. Inspirada, às vezes, por

1 HAMPSHIRE, 2001.

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uma espécie de vaidade própria, que se satisfaz zões da substituição no jogo da solução dos con-
pelas suas virtudes cívicas, ou simplesmente a flitos se mostrariam menos necessárias. Melhor
convenção eticamente radicada no valor da auto- dizendo, os conflitos seriam menos necessários
ridade constituída e de seus processos normati- num clima de harmonia generalizada.
vos, a adesão a eles provém, conseqüentemente, Tal composição no campo penal acontece
de uma forma de moralidade superior. O respeito do modo mais forte – se não mais violento –,
às regras e à legalidade consiste, de qualquer mo- porque a resposta à violação das normas que pos-
do, num valor em si, que, prevendo e neutralizan- suem proteção penal se dá com sanções que po-
do os impulsos à violência, cria as condições para dem atingir o patrimônio das pessoas, interditá-
o fluir ordenado das relações sociais. las no exercício temporário de alguns direitos e
Valor, portanto, constituído como baluarte levá-las à privação temporária, ou mesmo perpé-
de defesa dos arbítrios, das liberdades democrá- tua, da liberdade. Entretanto, apesar da reafirma-
ticas e da igualdade dos cidadãos, a legalidade re- ção solene do direito, é difícil sustentar que a apli-
presenta, efetivamente, o poder dos sem poder e cação de uma pena equivale propriamente à solu-
a garantia de suas dignidades. ção de um conflito.
As violações das regras e da legalidade são o
terreno para a intervenção da jurisdição e da Ma- O SENTIDO DA PENA
gistratura, já no plano cívico: se no curso do pro-
Pode-se perguntar, a essa altura, por que a
cesso civil os litigantes não atingem uma concili- determinados comportamentos deve correspon-
ação – é sempre bom que o juiz busque esse ob- der uma pena. A resposta imediata, irrefletida, é,
jetivo, depois da primeira audiência de compare- em geral, que se prevê uma pena porque, quando
cimento –, os conflitos se resolvem de maneira se faz o mal, é preciso pagar, e, portanto, deve
coativa, com a autoridade do Estado e o pronun- ocorrer a punição, cuja natureza alternou no tem-
ciamento de uma sentença. po várias interpretações, ou melhor, coexistiu
Tem se falado freqüentemente da subs- com várias interpretações.
tituição do trabalho da Magistratura, às vezes A lei do talião – de que a um mal se respon-
com implicações críticas, quase como se ela hou- de com a aplicação de um mal equivalente – é
vesse usurpado poderes que não lhe diziam res- uma das práticas mais antigas. Mas já na “Protá-
peito. Cabe sublinhar que o trabalho da Magis- gora”, de Platão, se lê:
tratura é, por sua natureza, um exercício de subs-
tituição: se o juiz se põe a julgar fatos e pessoas, Sim, Sócrates, porque se queres refletir
isso acontece porque o automatismo ideal no sobre o significado da punição sobre os
culpados, verás que os homens crêem que
funcionamento das regras foi dificultado, na pre-
a virtude se pode adquirir. Ninguém pune
sença de uma ignorância dessas ou violação deli- os culpados tendo em conta o fato de que
berada da parte de alguém (até as formas mais cometeram injustiça, e por que a comete-
graves de desvios previstos na lei penal), ou em ram, quem, ao menos, não queira vingar-
razão da falta de compreensão e aceitação unívo- se irracionalmente como uma besta;
ca, na ocasião de um desencontro de interesses. quem, ao contrário, se põe a punir, se-
Num país ideal, em que todos fossem cida- guindo a razão, não pretende vingar-se do
delito cometido – não poderia fazer certo
dãos perfeitos e respeitosos das normas e essas
aquilo que já passou –, mas pune pensan-
fossem todas igualmente claras e transparentes (o do no futuro, para que não se cometa
que não corresponde, evidentemente, à realidade mais a falha, nem o próprio culpado nem
italiana, nem a de qualquer outro país), não res- quem o veja punido. E se tal é o seu ponto
taria aos magistrados muito a ser feito, pois as ra- de vista, significa que ele é convencido de

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que se possa educar a virtude: puna, por- linqüiu a sair da condição psicológica própria da
tanto, para desaconselhar a falha.2 culpa.4
A cultura jurídica moderna preferiu, em ge-
Retomando essa observação de Platão, Sê-
ral, confirmar uma visão composta, na qual a fun-
neca afirma “nemo prudens punit quia peccatum
ção punitiva se entrelaça com a reeducação e a
est, sed ne peccetur”.3 Aflora, portanto, a conce- exigência da defesa social. Recentemente, ganhou
pção da pena como instrumento de prevenção espaço a concepção neo-retribucionista, centrada
específica (sua aplicação se faz de modo que o su- não tanto sobre o réu quanto sobre o crime, cuja
jeito não repita os próprios comportamentos cul- punição funcionaria como estabilizador social,
posos) e de prevenção geral (favorecendo a puni- depois da agitação emotiva causada à coletividade
ção do responsabilizado pela infração, os consor- pelo delito.
ciados deverão ser dissuadidos de cometê-la – al- Entre os problemas da pena, seja do ponto
guns séculos mais tarde se falará de desestímulo –, de vista retribucionista seja do preventivo, colo-
de violar as normas). ca-se o da sua gravidade, que, em todos os orde-
Na visão da pena da qual, ainda nos dias de namentos modernos, é estabelecida pela lei com
hoje, é portador o cidadão médio, emerge o mo- um intervalo entre um mínimo e um máximo.
tivo elaborado na época moderna de Kant e He- Se entre as funções determinadas pela pena
gel, como retribuição da qual depende o restabe- há a reconstrução da personalidade do autor do
lecimento da ordem violada: hegelianamente a delito, por que estabelecer limites rígidos e pa-
pena torna-se, com fórmula dialética formal, a dronizar a pena, quando, na verdade, cada caso é
negação da negação da ordem. De resto, também diferente do outro e deveria, por conseguinte, re-
no pensamento cristão, exceto em Santo Agosti- ceber medida e fórmula próprias de tratamento?
nho, e sobretudo nos protestantes, prevaleceu, A função dos parâmetros mínimos e máximos da
até o limiar da contemporaneidade, a concepção pena liga-se, fundamentalmente, ao respeito pela
compensadora, impropriamente copiada do mo- dignidade do homem: o singular não pode ser
delo escatológico do Deus que castiga os pecado- deixado nas mãos de uma justiça absolutamente
res (sendo, ao contrário, o pecador que se auto- arbitrária, na qual o réu possa vagar entre um dia
exclui da graça). e trinta anos de cadeia.
Há, na sua base, o princípio do malum
propter malum, do mal imposto porque se come- O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
teu o mal, na ilusão de que o sofrimento da parte A abordagem de Stuart Hampshire sobre
do culpado possa gerar redenção. Essa, no entan- as instituições sociais, como àquelas processuais,
to, constitui um fato interior: não se diz absolu- assume que as posições individuais sobre os va-
tamente que a aplicação de uma pena, em especial lores e objetivos perseguidos, dos indivíduos e
quando ela é particularmente aflitiva, facilita o dos sujeitos coletivos, podem ser, e de fato são, as
processo de tomada de consciência da gravidade mais variadas, não sendo necessário que coinci-
da falha e do mal realizado, ajudando quem de-
4 A teoria retribucionista da pena encontrou alimento também no
horizonte do pensamento cristão, tanto católico quanto protestante,
2 PLATÃO, 1974. Cf. também Leggi XI, 934. no qual a pena como retribuição sobrepôs a pena como instrumento
3 Quem não se impressiona com a ira, sustenta Sêneca, “diante de do caminho até a redenção. Particularmente de algumas passagens da
alguma punição, recordará sempre que há uma para corrigir os malva- Carta aos Romanos, de Paulo, se deduziu poder assumir o Estado
dos e outra para eliminá-los: em ambos os casos, se cuidará não do pas- como encarregado de Deus de vingar o mal, portando a espada a Seu
sado, mas do futuro – na verdade, disse Platão, ‘nenhum homem de serviço para a justa condenação de quem pratica o mal. Entre os porta-
bom senso pune porque se cometeu um erro, mas para que não o dores de idéias novas, Karl Barth encarou a pena não como redenção
cometa mais: não se pode repreender o passado, mas se pode prevenir ou reparação do mal causado, mas como atenção à generalidade dos
o futuro’ – e aqueles que queiram apresentar-se como exemplos das co-sócios e ao próprio transgressor, que deve ser defendido contra si
tristes conseqüências da maldade, os mandará à morte publicamente, mesmo. À aplicação da pena, na visão de Barth, deve associar-se uma
não só porque morrem, mas porque com a morte deles dissuade-se os ação que faça o autor do delito entender o mal praticado e o percurso
outros de segui-los” (SENECA, 1987). para liberar-se.

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dam. A necessidade considera a regra sobre a qual defesa social e da prevenção, e as medidas desti-
deve se estabelecer um acordo. Elevada realmente nadas a esse último propósito, no nosso sistema
ao fundamento da moral, a regra exige que o tra- penal, acontecem simultaneamente, e não mais
tamento e a resolução dos conflitos ocorram me- após o pagamento da pena. Trata-se realmente de
diante um acordo sobre os procedimentos. um sistema de duas vias: da concessão clássica da
Delimita-se de tal modo o terreno da igual- pena e da valorização da função preventiva da jus-
dade institucionalizada, que se funda o autêntico tiça penal.
vínculo cívico. Os conflitos e as contraposições As medidas de prevenção não são especifi-
são tratados à luz do princípio de que todos de- camente penas, mas artifícios adotados para vigiar
vem poder expor a própria visão e várias visões a conduta do responsabilizado pelos delitos e
devem poder ser confrontadas entre si. É o prin- acompanhá-lo no percurso de reintegração à so-
cípio de que, no processo, pretende-se escutar ciedade: aqui se colocam os obstáculos à sua vida,
ambas as partes (audiatur et altera pars). Esse é o com a obrigações de respeitar até quem não se
significado mais profundo do processo tanto civil julga ter superado o risco da repetição do crime.
quanto penal. Segundo Stuart Hampshire, o prin- Mas não devemos esquecer o imperativo consti-
cípio da igualdade na resolução dos conflitos é o tucional de que as penas devem tender à reedu-
único a reivindicar uma validade universal como cação do condenado.
princípio de racionalidade compartilhada, indis- Hoje, portanto, podemos e devemos ima-
pensável em cada processo de decisão e em cada ginar – e praticar – soluções mais avançadas e efi-
ação deliberada. Se há intenção de operar de acor- cazes, entre as quais as experiências de mediação
do com a razão, é a esse princípio que vão ajus- mostraram-se um exemplo estimulante.
tadas tanto as discussões desenvolvidas no foro in-
terno de cada indivíduo, para amadurecer uma es- A JUSTIÇA QUE MEDIA
colha, quanto os conflitos sociais e políticos ou Pode-se partir da definição de mediação –
ainda os processos para chegar a uma resolução – embora um pouco genérica – dada por Marco
ainda que forçada – do conflito. Bouchard: processo pelo qual uma parte neutra
Mas é verdade que, no processo penal, as procura, valendo-se de uma organização de tro-
decisões de impor um sofrimento ao autor do de- cas entre as partes, permitir a elas confrontar seus
lito representam o melhor modo para resolver o respectivos pontos de vista para chegar, com a
conflito? Essa é uma questão sobre a qual não ajuda do mediador, a resolver o conflito que as
poucos têm dúvida. Na pena, como vingança dos opõe.
cidadãos singulares delegada ao Estado, mas ain- A mediação, indicada como remédio todas
da sempre vingança, as pessoas querem ver a atu- as vezes em que se entra em conflito, incluindo
ação da justiça. Essa, por sua vez, reclamada das os de extrema gravidade, como aqueles dos quais
vítimas ou de seus parentes, resulta em episódios se encarrega o processo penal, tende a uma pro-
cruéis. Nos países onde há pena de morte, a jus- cura profunda no eu, o desmascaramento das fal-
tiça aceita a assistência das partes lesadas e de pes- sas percepções que tenham favorecido ou deter-
soas do público à execução capital, pois só assim minado o surgimento do conflito. Isso na tenta-
se aplaca a ânsia. Na nossa civilização, impregna- tiva de levar à luz até os comportamentos emo-
da de valores cristãos, isso é um primitivismo gri- cionais dos indivíduos em questão, assim como
tante. propiciar o encontro sobre um terreno comum e
Não é a pena aplicada ao autor do delito reconstruir o tecido social e humano rompido.
que produz justiça. Essa, ainda que com todas as Trata-se de uma abordagem de imediata
suas falhas e aproximações, deve tender a algo di- compreensão para aquele que considera a gestão
ferente, construtivo. Já há muitas décadas o con- dos conflitos familiares, há muito abordados,
ceito da pena como punição relaciona-se ao da com várias modalidades de mediação. Também o

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ambiente escolar apresenta-se como um terreno Diante de um episódio no qual seja exposto
promissor à atividade de mediação, nos conflitos o mal, não devemos nunca perder de vista a uni-
entre professores e estudantes, entre corpo do- dade da pessoa: a análise e a procura em profun-
cente e famílias e entre os próprios professores. didade podem criar as condições para historicizar
É, na verdade, um laboratório extremamente in- e ultrapassar o momento traumático da cena cri-
teressante e repleto de desenvolvimentos possí- minosa, ajudando quem cometeu o mal e quem
veis, se pensarmos que a mediação pode fazer foi por ele afetado. Certamente seria uma utopia
parte, ela mesma, do processo educativo e ser en- – embora seja belo cultivar as utopias – pensar em
sinada também aos mais jovens como um méto- suprimir a pena totalmente, de um dia para o ou-
do capaz de ser adotado sempre que surge uma tro, e fechar as prisões. Não devemos, contudo,
divergência: uma oportunidade, não obstante, cansar de pedir que a função importante da res-
contemplada no Estatuto dos alunos e alunas da tauração do valor da legalidade seja desvinculada
escola secundária, aprovado em 1998, no Conse- da concepção arcaica da punição carcerária, que,
lho dos Ministros. na maior parte dos países do mundo atual, com-
Gerir os conflitos com atividades de media- porta um nível de sofrimento além da pura e sim-
ção não significa simplesmente encontrar um ples privação da liberdade.5
compromisso mais ou menos superficial num É difícil de conceber que a ressocialização
ponto intermediário, mas tender a uma profunda do réu proclamada em nossa Constituição e o de-
tomada de consciência da raiz da controvérsia, le- sarmamanento dos fatores sociais e individuais da
vando à luz os componentes emotivos não me- criminalidade possam se realizar num ambiente
nos do que aqueles razoáveis, e superar a contra- carcerário como o dos dias de hoje. Na verdade,
posição do modo mais razoável e construtivo, todos vivemos momentos de ceticismo e ajuda-
também no âmbito penal. mos, infelizmente, a acreditar – e talvez até a pro-
clamar, fingindo crer – que a pena serve para a
O mal não é algo que atinge apenas alguns
ressocialização do delinqüente. Da maneira como
de nós, e somente em alguns momentos ou fatos
é concebida e posta em prática, não obstante a
da nossa vida. Cada um de nós tem um lado mais
boa vontade dos operadores, a pena tem servido
ou menos oculto, no qual se escondem os germes
muito raramente a esse objetivo, sobretudo
e os sinais do mal. Nosso próprio ser não é senão
quando entregue ao tratamento puramente car-
uma corda esticada entre o bem e o mal, entre dr. cerário.
Jekyll e Mr. Hyde, e, da luta contra o mal escon-
Existem, naturalmente, situações de parti-
dido em nós, surge a projeção liberadora sobre o
cular gravidade e periculosidade, nas quais não se
outro, sobre o bode expiatório. O acendimento
pode fazer outra coisa senão começar com o iso-
dos impulsos de vingança, de sacrifício, de puni-
lamento dos responsáveis, nem que seja para de-
ção se dá contra essa que personifica visivelmente
fendê-los de si mesmos. Difícil, no entanto, é
a parte inferior de nossa humanidade, que não
contentar-se com isso. A ação do Estado deve se
queremos reconhecer.
dar muito mais profundamente e, de vez em
Mas o mal está, ao contrário, reconhecido, quando, nos damos conta de que – pela natureza
elaborado e integrado nos horizontes da nossa da infração cometida, pelas circunstâncias que a
personalidade e, por essa via, aproximando-se do acompanharam ou pelas características pessoais
réu como pessoa, podemos realizar o esforço de
ultrapassar a cultura retribucionista ancorada no 5 Não me cansarei de estigmatizar – como escrevi por ocasião da inau-
conceito da mera punição, de superar a concepção guração do Ano Judiciário, em 12 de janeiro de 2002 – como medievais
a realidade e a latente ideologia inferior de um sistema de custódia que,
primitiva da pena como sublimação ideológica da à privação da liberdade pessoal, acrescenta quantias indevidas de sofri-
mento psíquico e físico, por vezes degradantes, para os reclusos: a
vingança privada, considerada distante das mais maior razão, a dramática, absoluta intolerabilidade de uma condição
autênticas raízes cristãs da nossa civilização. satisfatória para os restritos em custódia cautelar.

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do autor do delito – a aplicação do cárcere não te- duzido o culpado a comportar-se de tal modo.
ria nenhum resultado útil, nem para o réu nem Não raramente, no caso de delitos puníveis sobre
para a sociedade. Precisaria haver coragem para queixa da parte, chega-se à revogação da queixa,
adotar instrumentos radicalmente diferentes. extinguindo, assim, o delito.
Em qualquer medida, essa humanização da Na sede de menores existem, de qualquer
intervenção do Estado no tratamento da infração forma, outros instrumentos – que não a aplicação
encontra algumas aberturas tímidas nas normas da pena – para chegar a uma solução do conflito.
positivas. Há, por exemplo, a possibilidade de declarar que
não se deve proceder, nos confrontos dos meno-
MEDIAR ENTRE OS MENORES res, pela escassa relevância do fato, ou a suspen-
Na introdução do sistema de mediação em são do processo com a colocação do menor à
âmbito penal, a Itália foi precedida das experiên- prova.
cias inglesa e, sobretudo, francesa, que conhece- No caso de um procedimento de mediação,
ram – em Lion, por exemplo – formas de justice se o encontro teve êxito – produzindo efetiva to-
de proximité. Essa justiça de proximidade, segu- mada de consciência e a reconstrução, ainda pos-
ramente mais próxima ao cidadão, tende, mais sível, do tecido danificado pela infração –, está na
que ao ressarcimento, à costura do tecido social decisão do juiz de menores adotar, de fato, uma
rasgado pela infração. fórmula suspensiva do processo.
A mediação penal foi objeto de atenção do
Conselho da Europa, que, em 1998, formulou JUÍZES DE PAZ
uma recomendação sobre a mediação em geral e, É interessante perceber como essas pers-
no ano seguinte, elaborou uma específica sobre a pectivas tiveram aplicação posterior, com a lei
mediação penal, a cargo de um comitê de especia- 274, de 2000, que conferiu uma competência pe-
listas em problemas de criminalidade. Na Itália, nal ao juiz de paz. O art. 29 prevê que o juiz de
ela teve eco particularmente na sede de menores. paz promova a conciliação entre as partes, even-
Em Milão, entre outros municípios, foi criado o tualmente com a mediação dos centros públicos
Escritório de Mediação Penal e transita um pro- ou privados, aos fins da tolerância da queixa ou da
tocolo de acordo entre o Tribunal dos Menores, renúncia do recurso direto que o prejudicado
o Ministério da Justiça, a Região da Lombardia, a pode ter feito ao juiz. A conduta reparadora do
Comunidade de Milão e algumas comunidades li- réu (podendo ser realizada por meio de um res-
mítrofes. sarcimento pecuniário, da restituição do que foi
A mediação vem tentando – sem nenhum roubado ou de outras atividades destinadas a eli-
tipo de coação – encontros preliminares separa- minar as conseqüências danosas ou perigosas da
damente com as partes, de modo a sondar a dis- má ação), se validada pelo juiz como efetivamen-
ponibilidade de conversa entre elas. Se elas con- te adequada, pode levar à extinção do delito.
cordam, procede-se ao encontro com a presença A mediação, prevista na lei sobre o juiz de
de três mediadores, em que se procura fazer falar paz, encontrou aplicação particular em Milão,
ambas as partes e, com técnicas apropriadas – exi- com a criação de um centro para a mediação so-
gindo uma preparação específica profissional –, cial e penal preparada pela comunidade, com o
se tenta maieuticamente obter do autor do delito objetivo de tentar conciliar as chamadas diver-
a ilustração e a interpretação feitas por ele mesmo gências de quintal, antes que chegassem à fase de
da própria ação. juízo em tribunal. É interessante perceber que es-
Aproximando-se as partes com conversas sas tentativas poderão gerar resultados práticos
repetidas, tenta-se a tomada de consciência do ao longo do tempo. Abrem-se, portanto, cami-
autor do delito, de quanto dano e dor foram cau- nhos extremamente interessantes para aqueles
sados à outra parte e de quais fatores teriam in- que poderão ser, no futuro, os desenvolvimentos

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de um direito sancionador desvinculado da bru- com a intervenção do Estado como solucionador


talidade do cárcere. dos conflitos.
Falar atualmente de uma progressiva Também no âmbito civil seria desejável au-
abolição do sistema carcerário pode parecer um mentar os espaços para tentar a resolução dos
conflitos e a pacificação dos contendores fora dos
exercício estéril e irreal, mas seria bem triste de-
tribunais, se isso ocorrer com o auxílio de orga-
sistir de acreditar, com todas as forças possíveis,
nismos diretamente provenientes da sociedade
na possibilidade de superar as inadequações indis- civil. Levar as divergências para a área judiciária
cutíveis dos sistemas modernos de repressão ao não faz outra coisa senão aumentar freqüente-
conflito. De minha parte, devo sinceramente mente as hostilidades e aprofundar os problemas
confessar, depois de tantos anos de exercício da e as contraposições que lhes deram origem. E a
função judiciária, tanto na área civil quanto na pe- nossa sociedade, hoje mais do que nunca, não
nal, que experimento uma crescente insatisfação precisa de hostilidade, mas de paz, de paz, de paz.

Referências Bibliográficas
HAMPSHIRE, S. Non c’è Giustizia Senza Conflitto: democrazia come confronto di idee. Milano: Feltrinelli, 2001.
PLATÃO.“Protagora”.Opere, vol. I, p. 324a-324b. Bari: Laterza, 1974.
SENECA.“Dell’ira”.I Dialoghi, libro I, XIX, 7. Coord.: R. LAURENTI. Bari: Laterza, 1987.

Dados do autor
Ex-procurador geral de Milão (Itália) e atual
procurador-chefe dos Ministérios Públicos,
responsáveis pela célebre operação “Mãos
Limpas”, que resultou na prisão de políticos e
empresários corruptos, nos anos 80. Ponto de referência para
a magistratura livre e democrática européia.

Recebimento artigo: 8/set./03


Consultoria: 10/set./03 a 15/out./03
Aprovado: 5/mar./04

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Sobre o uso de Animais na


Investigação Científica
ON THE USE OF ANIMALS IN SCIENTIFIC
INVESTIGATION
Resumo O homem interage com animais há milhares de anos. Tradicionalmente, os
animais são usados como alimento, instrumento de trabalho e transporte de pessoas
ou cargas. Atualmente, as pessoas interagem superficialmente com algumas espécies
(em particular cães e gatos) e exibem atitude contraditória ou de pouca compreensão
acerca de outros seres vivos. Elas comumente apresentam uma postura afiliativa em ROGERIO F. GUERRA
relação a alguns mamíferos prototípicos, espécies altriciais e indivíduos jovens, mas Universidade Federal de Santa
não apreciam a proximidade ou mesmo expressam-se negativamente quanto a outras Catarina, Florianópolis/SC
espécies (sobretudo insetos, répteis e roedores). São discutidos neste artigo a relação rfguerra@cfh.ufsc.br
do homem com a natureza, as idéias sustentadas pelos defensores dos direitos dos
animais e o valor do modelo animal para a investigação científica.

Palavras-chave INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA – DIREITOS DOS ANIMAIS – PRAGMA-


TISMO – SENTIMENTALISMO – ANIMAIS DOMÉSTICOS.

Abstract Humans have interacted with animals for thousands of years. Traditionally,
they have been used as food, as work instruments, and for transporting people or
loads. Today, urban people interact superficially with some domestic animals (mainly
dogs and cats) and exhibit contradictory attitudes or poor comprehension of most
living creatures. For example, people may display an affiliative response toward some
mammals (mainly young individuals from altricial species), but do not appreciate
cohabitation with, and may, indeed, exhibit strong negative attitudes toward a large
number of other species (mainly insects, reptiles and rodents). In this essay we
discuss the human relationship with nature, the ideas sponsored by animal rights
activists and the value of animal-models for scientific investigation.

Keywords SCIENTIFIC INVESTIGATION – ANIMAL RIGHTS – PRAGMATISM –


SENTIMENTALISM – DOMESTIC ANIMALS.

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INTRODUÇÃO

O
uso de animais, nos diversos setores da atividade hu-
mana, é amplo e variado e pode ser classificado da se-
guinte forma: produção e processamento de alimen-
tos de origem animal, indústria do vestuário, ador-
nos e utensílios domésticos (cintos, sapatos, casacos
e revestimentos de mobiliários), instrumento de tra-
balho (aragem do solo, transporte de cargas e de pes-
soas e produção artesanal de energia), auxílio senso-
rial e suporte psicológico (cães-guias para cegos ou companhia para fins
terapêuticos), segurança física e patrimonial (cães de guarda, cães ou ca-
valos utilizados pela polícia para controle de distúrbios populacionais) e
entretenimento e lazer pessoal ou coletivo (competições esportivas,
exposições de animais, circos, touradas ou rodeios), entre outros setores
da atividade humana. No que diz respeito à investigação científica, os ani-
mais são de vital importância nos seguintes procedimentos: transplantes
de órgãos, produção de vacinas e medicamentos em geral, cirurgias ex-
perimentais, práticas de ensino e testes de hipóteses na pesquisa experi-
mental, especialmente na pesquisa biológica.
O emprego de animais na investigação científica está associado a
descobertas de grande impacto social, aumento da longevidade e bem-es-
tar humanos. Não por acaso a maior parte dos detentores do prêmio No-
bel, nas ciências biológicas, realiza suas investigações com animais. Em
1964, a Declaração de Helsinque já anunciava os princípios básicos nor-
teadores da experimentação científica envolvendo humanos, pregando
que ela “deve estar de acordo com a moral e o princípio científico que jus-
tificam a pesquisa médica, fundamentada em evidências laboratoriais e
experimentação animal ou outros fatos cientificamente comprovados”.1
Posteriormente, a American Association for the Advancement of Scien-
ce esclareceu que “o uso de animais foi e continua sendo essencial (...)
para a pesquisa aplicada, com aplicabilidade clínica direta para os seres hu-
manos e os animais”.2 A resolução n.º 196 (de 10/out./96), do Conselho
Nacional de Saúde do governo brasileiro, reconhece a importância e a ne-
cessidade da experimentação animal e estabelece que toda investigação
envolvendo seres humanos deve fundamentar-se na experimentação pré-
via com animais. Entretanto, a despeito desses esclarecimentos, o uso de
animais na investigação científica tem sido questionado por alguns seg-
mentos da nossa sociedade.
As pessoas em geral têm uma visão ingênua a respeito da experi-
mentação animal e o seu interesse pelos animais é bastante seletivo, mais
dirigido aos mamíferos de grande porte, espécies altriciais ou animais
com alguma proximidade com o homem (notadamente cães, gatos e pri-

1 PATON, 1993, p. 256.


2 AMERICAN ASSOCIATION FOR THE ADVANCEMENT OF SCIENCE, 1991.

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matas). Grande variedade de organismos (peixes, Gandhi. Os jainistas tinham como líder o prínci-
répteis, moluscos e insetos, por exemplo) são pe Vardhamana Mahavira (nascido por volta do
simplesmente ignorados e não despertam o inte- ano 540 a.C.), que havia renunciado à sua condi-
resse das pessoas como um todo ou daquelas que ção social elevada e iniciado uma vida de pere-
especificamente se mostram contrárias ao uso de grinação, como fizera Siddharta Gautama, seu
animais na investigação científica. Além disso, a contemporâneo e fundador do budismo. O prín-
população brasileira emprega freqüentemente cipe Mahavira pregava que a alma está presente
nomes de animais para designar uma pessoa (bur- em todos os organismos – homens, mulheres,
ro, baleia ou serpente) e adota um número consi- moscas ou vermes –, de forma que todas as for-
derável de verbos (gatunar, espreguiçar ou gali- mas de vida merecem respeito. Visando a levar
nhar) ou de expressões (bêbado como um gambá, adiante esse postulado, os jainistas andavam nus e
cabeça de bagre ou falso como uma serpente), quase só se movimentavam ou ingeriam alimentos à luz
sempre, para depreciar uma pessoa ou uma atitu- do dia, evitando danos aos animais da noite ou a
de humana. ingestão involuntária de pequenos animais conti-
Uma reflexão honesta permite concluir que dos no alimento. Eles andavam com véus, cobrin-
o respeito aos animais é, na verdade, o respeito a al- do o rosto para evitar aspirar minúsculos organis-
guns animais. Essa visão, ao lado do apego aos mos presentes no ar e, antes de se sentar, execu-
mamíferos altriciais e de grande porte, revela que tavam movimentos suaves com um espanador
as pessoas exibem um sentimento extremamente para remover possíveis insetos que estivessem
contraditório em relação a esse domínio e não nos assentos.
compreendem a real importância do uso de ani- A cultura hindu é bastante complexa e
mais na investigação científica. Nesse sentido, o comporta tanto o respeito extremado à vida dos
interesse por temas ecologicamente corretos – que animais quanto o sistema de casta, associado com
vem aumentando com o passar do tempo – e a o comércio e depreciação das mulheres, infanti-
necessidade cada vez maior de uso de animais na cídio de meninas e segregação de pessoas perten-
investigação científica, em razão do surgimento centes às castas inferiores. Pelo que se conhece,
de novas doenças ou do fortalecimento de vírus e os preceitos do movimento jainista eram a ma-
bactérias resistentes ao arsenal farmacológico neira mais extremada de respeito à vida dos ani-
existente, podem dar surgimento a conflitos en- mais. Com o passar do tempo, esse movimento
tre os praticantes da pesquisa básica e experimen- perdeu força e seus ensinamentos mais rígidos
tal e as pessoas que apreciam e julgam que os di- foram abandonados pelos fiéis seguidores.
reitos dos animais são desrespeitados nos centros Na tradição islâmica, o homem é conside-
de pesquisa. rado a criatura mais nobre da natureza e todo o
resto fora criado para atender suas necessidades.
A RELAÇÃO DO HOMEM COM OS Nada é desprovido de função e tudo existe de
ANIMAIS acordo com os desígnios divinos. Tal como no
Por volta do século VI a.C., foi criado o mo- cristianismo, alguns animais (camelos, vacas, ca-
vimento jainista, na Índia, que pregava uma moral valos, mulas e cabras) têm especial valor para o
asceta extremamente severa. Seus seguidores fa- homem. De acordo com a tradição islâmica, al-
ziam oposição ao sistema de casta do bramanis- guns produtos de origem animal são usados
mo, condenavam o sacrifício de animais e evita- como medicamentos e outros devem ser evita-
vam qualquer tipo de violência (emitida pelo cor- dos. Os seguidores do Islã não abrigam animais
po, pelas palavras ou pelo pensamento). A filo- de estimação, pois o Alcorão estabelece que eles
sofia jainista obteve enorme impacto social e desempenham uma função utilitária (forneci-
influenciou a cultura indiana, especialmente a fi- mento de alimento e uso como força de trabalho)
losofia de não-violência pregada por Mahatma – a adoração indevida aos animais subtrai o mon-

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tante de devoção a ser dedicada a Alá e aos pró- tancial do PIB está relacionada com a exploração
prios familiares.3 de produtos de origem animal e, como ocorre
O Pentateuco apresenta um código de con- com as potências agropecuárias, entre elas, a Au-
duta a ser seguido pelos judeus, com o objetivo strália, a Nova Zelândia e os EUA, qualquer cida-
de não causar danos desnecessários, doenças ou dão aufere benefícios diretos ou indiretos dessa
desconforto físico aos animais. Os judeus eram exploração. Em alguns casos, eles são usados em
proibidos de consumir partes de um animal en- lazer e entretenimento (touradas, rodeios, circos
quanto esse ainda estivesse vivo.4 Outras leis hu- ou a Farra do Boi, festejo circunscrito ao estado
manitárias não permitem a exposição dos animais de Santa Catarina, por exemplo). Entretanto,
a maus-tratos, esforço físico além da capacidade muitos desses eventos guardam forte tradição
física, fome e dor; o animal também não pode ser cultural e não é adequado pensar que possam de-
impedido de se alimentar5 e, assim como o ho- saparecer repentinamente. Tudo isso revela que a
mem, deve ter o sétimo dia assegurado ao repou- nossa mentalidade é passível de mudança ao lon-
so.6 O agricultor não deve trabalhar a terra com go do tempo e que diferentes culturas podem ver
um boi e um jumento ao mesmo tempo,7 pois o o mesmo problema de modos diferentes.
mais fraco poderia ser arrastado pelo mais forte.
Estima-se que cerca de 1,4 milhão de espé-
Se porventura o dono encontrar um animal des-
falecido no chão, deverá carregá-lo, mesmo que cies (plantas, animais e microorganismos) já fo-
não lhe pertença.8 Antes do sacrifício, filhotes de ram catalogadas, mas o número de espécies des-
vacas, ovelhas e cabras devem ser amamentados conhecidas da ciência é fabulosamente estimado
por pelo menos sete dias, não podendo mães e entre 10 milhões e 100 milhões,13 revelando nos-
seus filhotes ser sacrificados no mesmo dia,9 tam- sa ignorância a respeito da diversidade biológica
pouco a pessoa está autorizada a remover um fi- do planeta. Os animais são imprescindíveis nas
lhote de pássaro ou pegar um ovo do ninho caso pesquisas sobre câncer, alcoolismo, produção de
a mãe esteja presente.10 Castrações de animais vacinas, transplantes de órgãos, doenças cardio-
são proibidas para os judeus11 e, durante o ano sa- vasculares e produção e testes de vários medica-
bático, período em que a terra permanece em re- mentos, como insulina, analgésicos, antibióticos,
pouso, os produtos dela eram socializados e usu- ansiolíticos, controladores de pressão sangüínea e
fruídos tanto pelos homens quanto pelos ani- outros.14
mais.12 A posição inferior dos animais não signi- As pessoas se beneficiam enormemente do
fica que eles não sejam merecedores de uso de animais na pesquisa experimental, direta
compaixão e respeito dos humanos, mas é dife- ou indiretamente, mas não têm a mínima idéia
rente dizer que uns e outros têm os mesmos di- dos procedimentos e cuidados tomados pelos in-
reitos. Se afirmamos que sim, surgem alguns pro- vestigadores na realização de uma pesquisa cientí-
blemas. fica. Embora algumas ações humanas represen-
Os animais possuem uma importância fa- tem impacto extremamente negativo para a sus-
bulosa para a economia do nosso país. Parte subs- tentabilidade da vida animal, as pessoas apreciam
3
tais empreendimentos e consideram como parte
Alcorão Sagrado,1989.
4 Gênesis, 9:4 (essa e as próximas citações fazem parte do Pentateuco, desejável do progresso humano. Com efeito, a
os cinco primeiros livros da Bíblia e da Tora). tabela 1 mostra uma sistematização do emprego
5 Deuteronômio, 25:4.
6 Êxodo, 20:10; 23:12; Deuteronômio, 5:14. de animais nos diversos setores da atividade hu-
7 Deuteronômio, 22:10.
8 Êxodo, 23:5; Deuteronômio, 22:4.
mana.
9 Levítico, 22:27-28.
10 Deuteronômio, 22:6-7. 13
WILSON, 1994.
11 Levítico, 22:24. 14Cf. PATON, 1993; BOTTING & MORRISON, 1997; e PAI-
12 Levítico, 25:5-7. XÃO & SCHRAMM, 1999.

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Tabela 1. Classificação do uso de animais nos diferentes • Desmatamento e ocupação desordenada do solo
setores da atividade humana e empreendimentos que Construção de condomínios em áreas virgens
interferem no equilíbrio populacional da vida selvagem. (matas, florestas e manguezais)
I. UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS EM SETORES DA Desmatamento e ocupação desordenada da terra
ATIVIDADE HUMANA (animais da fauna local)
• Indústria de alimentos • Progresso industrial
Processamento de produtos de origem animal Poluição industrial (animais em geral)
(carne, leite e ovos) Vazamento de produtos tóxicos (animais em geral)
Agropecuária (bovino, suíno e avinocultura)
• Indústria do vestuário e utensílios domésticos CIÊNCIA, SENSO COMUM E
Peles de animais para confecção de roupas
(casacos, cintos, sapatos ou bolsas)
ANTROPOMORFISMO
Peles de animais para revestimento de mobília A relação da imprensa com a ciência revela-
(sofás ou assentos) se muito difícil, pois jornalistas e cientistas exi-
Ornamentos e itens do vestuário bem interesses diferentes, apesar de ambos lida-
(botões, pentes ou adornos com ossos e chifres)
rem com informações. A imprensa procura novi-
• Instrumento de trabalho
Transporte de pessoas ou carga dades, algo inusitado ou uma descoberta que in-
(cavalos, vacas, camelos ou elefantes) terfira substancialmente no tratamento de uma
Produção artesanal de energia doença grave. Com muita freqüência, um tema
(aragem do solo ou moagem de grãos) complexo é supersimplificado, por conta da exi-
• Auxílio sensorial e suporte psicológico güidade do tempo e da busca frenética do furo
Auxílio a pessoas portadoras de deficiência física
jornalístico, podendo levar a distorções e tornar
(cães e macacos)
Minimização do desconforto da velhice (cães e gatos) mais confuso o entendimento do real valor da ati-
Utilização para fins psicoterapêuticos vidade científica.15 Além disso, a imprensa faz
(cães, gatos ou pequenos roedores) uso de uma linguagem coloquial e não respeita a
• Segurança física e patrimonial precisão terminológica. Com efeito, nos primei-
Investigação policial (cães farejadores) ros anos da AIDS no Brasil, os jornais populares
Segurança doméstica e industrial (cães de guarda)
insistiam em chamar a doença de câncer gay,
Controle policial de distúrbios (cães e cavalos)
• Lazer e entretenimento
câncer cor-de-rosa ou peste gay. A forma de abor-
Feiras e exposições dagem era excessivamente jocosa, dando a enten-
(cavalos, bois, pássaros ou outros animais) der que a doença era exclusiva dos homossexuais.
Competições esportivas De mais a mais, a linguagem transmitia a falsa
(corridas de cavalos ou rinhas de galos) idéia de que a doença não representava algo tão
Lazer coletivo (rodeios, touradas ou vaquejadas) sério, o que indubitavelmente dificultou a im-
Cinema, documentários e propagandas veiculadas na TV
(cães, primatas e cetáceos)
plantação de campanhas de prevenção.
• Investigação científica e tecnológica As pessoas comuns não lêem, é claro, revis-
Produção de drogas, medicamentos e vacinas tas científicas e não se preocupam com a acuraci-
(camundongos e ratos) dade de suas conclusões. O seu entendimento
Treinamento de procedimentos cirúrgicos e aulas de anatomia baseia-se fortemente nas informações veiculadas
(cães, macacos ou roedores)
em revistas populares ou programas de TV. O
Teste de hipóteses na pesquisa experimental
(camundongos e ratos albinos) problema não é exclusivo dos brasileiros, uma
II. EMPREENDIMENTOS ASSOCIADOS COM vez que um recente levantamento mostrou que
MORTANDADE DE ANIMAIS certos seriados veiculados na TV (ER, Rescue 911
• Interferência em ecossistemas e Chicago Hope, esse último veiculado na TV bra-
Construção de hidrelétricas e barragens sileira) exploram de forma inadequada determi-
(animais silvestres em geral)
nados procedimentos médicos. Na maior parte
Introdução de animais exóticos em ecossistemas fechados
(animais em geral)
15 Cf. MATFIELD, 1995 e 2002; e NELKIN, 1996.

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dos episódios (61,9%) ocorre ressuscitamento Em terceiro lugar, importa saber se a homologia
cardiopulmonar e um número muito grande de funcional, decorrente de uma similaridade de es-
pacientes sobrevive à imediata intervenção médi- truturas cerebrais, relaciona-se com uma homo-
ca (75%).16 O irrealismo pode ser prejudicial ao logia contextual – em outras palavras, se o orga-
trabalho dos médicos, pois as pessoas têm difi- nismo tem estruturas semelhantes, se exibe um
culdades em separar fatos de ficção. Elas podem padrão de comportamento parecido e se esse
adquirir um otimismo exagerado em relação às comportamento ocorre nas mesmas condições e
doenças cardiovasculares e imaginar que, nos no mesmo contexto em relação ao comporta-
centros de atendimento emergencial, os profissio- mento exibido por uma pessoa!
nais falam rápido, estão sempre envolvidos em cor- Caso os três postulados forem atendidos,
rerias pelos corredores e a improvisação impera. poderemos inferir a existência de uma homologia
Comumente as pessoas insistem em se me- de estados subjetivos – i.e., se as estruturas são
ter na cabeça dos animais e inferem com facilida- homólogas, se o funcionamento dos órgãos ou o
de a existência de estados subjetivos humanos. comportamento são homólogos, se ocorrem em
Elas acabam por atribuir certas características contextos e circunstâncias bem similares, é pos-
mentais (sensação e percepção, gratidão, emoção, sível deduzir a existência de estados subjetivos
valor moral, brincadeira e imaginação, memória e homólogos! A similaridade de estados subjetivos
previsão etc.) a crianças muito jovens, cães, gatos, é possível, mas não significa que os animais te-
pássaros e peixes, em ordem decrescente – em re- nham exatamente as mesmas emoções dos seres
lação aos peixes, os cães estariam mais próximos humanos.
dos humanos.17 Animais domésticos ou filogene- O antropomorfismo (atribuição de estados
ticamente próximos ao Homo sapiens (cães, ga- subjetivos ou interpretações do valor funcional
tos, chimpanzés e golfinhos, por exemplo) são ti- do comportamento animal de acordo com a pers-
dos como altamente inteligentes e possuidores de pectiva humana) é o modo mais inadequado de
estados emocionais e subjetivos muito próximos explicar o comportamento dos animais. O terre-
ao do ser humano.18 O hábito de falar e dar no- no é cheio de armadilhas, mesmo para um pes-
mes aos animais domésticos é muito comum e as quisador experiente. O antropomorfismo pode
pessoas, às vezes, conferem capacidade extrasen- ser detectado no momento em que:
sorial a cães e gatos. 1. afirmamos que o animal possui uma habi-
Atribuir estados subjetivos aos animais é lidade cognitiva, quando na verdade ele
pura especulação, mas deve estar assentado em não a possui;
quatro postulados. Primeiro, é necessário saber se 2. certificamos que o animal não possui habi-
existem estruturas homólogas – i.e., qual é o nível lidade cognitiva, quando na verdade ele a
de similaridade das estruturas cerebrais, recepto- possui;
res neurais ou do sistema sensorial em relação às 3. inferimos que o animal possui uma habili-
estruturas presentes na espécie humana? Em se- dade cognitiva, com base em evidências
gundo lugar, podemos dizer que quanto maior o empíricas pobres ou insuficientes; ou
nível de similaridade estrutural, maior será o nível 4. falhamos nas conclusões e dizemos que o
de similaridade entre o funcionamento de um animal não possui uma habilidade cogniti-
órgão ou o comportamento do organismo – ou va, quando todas as evidências empíricas
seja, se as estruturas são homólogas, o funciona- apontam que ele a possui.
mento de um órgão ou o comportamento pro- A tarefa da psicologia comparativa não é adi-
priamente dito também deverão ser homólogos! cionar ou subtrair algo acerca da capacidade cog-
nitiva dos animais, mas descrever e explicar, o mais
16 DIEM et al., 1996.
17 RASMUSSEN et al., 1993.
fidedignamente possível, os fenômenos observa-
18 HERZOG & GALVIN, 1997. dos. Se, para um especialista, a tarefa parece cheia

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de obstáculos, a compreensão do leigo a respeito que a ciência e a tecnologia tornam a vida mais
do comportamento dos animais é pitoresca. saudável, fácil e confortável; e quase 90% dos
A percepção das pessoas comuns sobre os dois povos julgam que o governo deveria apoiar
fenômenos da natureza mudou muito com a ur- mais empreendimentos científicos e tecnológi-
banização e o afastamento das fazendas e do con- cos. No entanto, de forma contraditória, apenas
tato diário com os animais. Antes, os animais 40% dos britânicos e 56% dos norte-americanos es-
eram vistos como objetos e parte da propriedade tão de acordo com a seguinte afirmação: “os cien-
(bens semoventes), com valor comercial.19 A po- tistas devem ser liberados para realizar pesquisas
pularização dos documentários veiculados na TV, que causam dor e danos físicos a animais como
o surgimento de revistas de entretenimento ex- cães e chimpanzés, caso elas resultem em novas
plorando a beleza plástica dos animais e o sucesso informações sobre problemas de saúde huma-
de filmes (Congo, Babe, Flipper, Beethoven, entre na”.21
outros) contribuíram para a mudança de atitude Outro estudo revelou que os ativistas, na
em relação aos animais. Alguns filmes assustaram maior parte, são mulheres (76% a 80%), brancos,
as pessoas (e.g., King Kong, sobretudo sua versão com alto nível de escolaridade, vegetarianos e
antiga, e Tubarão), mas a transformação abrupta consideram que o movimento deve atentar mais
para temáticas politicamente corretas pode ser ao uso de animais na investigação científica e na
vista na comparação entre duas produções que indústria alimentícia.22 A rejeição ao uso de ani-
exploram de forma negativa e positiva o mesmo mais na investigação científica é maior para expe-
animal (Orca, a baleia assassina e Free Willye, res- rimentações envolvendo primatas e bem localiza-
pectivamente). da, pois certas categorias profissionais (advogados
Alguns programas de TV mais confundem e indivíduos envolvidos com política), adolescen-
do que esclarecem. O problema se agrava quando tes com idade entre 11 e 14 anos e mulheres rea-
um programa de entretenimento passa a ocupar o gem mais negativamente a tais empreendimen-
papel dos professores de ciência ou dos livros di- tos.23
dáticos. A compreensão do leigo quanto aos A imagem extremamente irrealista transmi-
avanços da ciência é precária. Com efeito, norte- tida pelos canais de informação adquire um valor
americanos e ingleses vêem positivamente o positivo, pois as pessoas passam a mostrar maior
avanço científico, mas cerca de 80% nunca ouvi- respeito à natureza e aos animais. Entretanto, o
ram falar de Galileu, Copérnico ou Darwin, um efeito maléfico seria a criação de estereótipos e
terço dos britânicos acredita que o Sol gira em preconceitos sobre as pessoas que trabalham com
torno da Terra, mais da metade crê que os anti- experimentação animal e a rejeição ao uso de ani-
bióticos eliminam vírus tanto quanto bactérias e mais em aulas práticas sobre técnicas cirúrgicas,
que os homens já viviam à época do dinossauros, anatomia e psicologia experimental. Essas ativi-
um em sete imagina que o leite radioativo pode se dades revelam-se extremamente vulneráveis ao
tornar seguro apenas com a simples fervura e ou- proselitismo ideológico, de modo que a qualida-
tros pensam que DNA é algo relacionado a ro- de do ensino e o avanço do conhecimento podem
chas, computadores ou corpos estelares.20 ser negativamente afetados. A partir do final da
Britânicos e norte-americanos demonstram década de 70, as pessoas passaram a se preocupar
grande interesse pela ciência, sobretudo em rela- mais com a preservação de certas espécies de ani-
ção às descobertas da área médica: respectiva- mais, como aves de plumagem exuberante, pri-
mente 63% e 88% deles consideram a ciência matas de modo geral ou mamíferos de grande
algo muito importante; 84% e 89% concordam porte (baleias, ursos, lobos ou alguns felinos).

19CARRUTHERS, 1992; e MUKERJEE, 1997. 21 Ibid.


20 DEAN, 1990; DURANT et al., 1989; e EVANS & DURANT, 22 PLOUS, 1998.
1989. 23 HORTON, 1994.

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Alguns animais são escolhidos como símbolos, ações podem ser explicadas por princípios mecâ-
especialmente as aves de plumagem exuberante, nicos – quando o animal emite um gemido de
primatas em geral e mamíferos aquáticos (baleias, dor, isso nada mais significa que a vibração de es-
golfinhos, focas e outros), mas a grande maioria truturas mecânicas ou válvulas em processo de
das espécies do reino animal nem sequer é conhe- ajustamento.25 As qualidades que Montaigne en-
cida pelos defensores dos animais. Ao lado de al- xergava nos animais eram vistas por Descartes
guns especialistas das ciências biológicas, os ati- como o oposto: os animais despendem todo o
vistas dos direitos dos animais, os apreciadores de seu tempo em busca de alimento unicamente
esportes radicais e as pessoas que gostam de acam- para preservar a integridade física – já o alimento
par nos finais de semana (sempre munidas de in- da alma são o conhecimento e a sabedoria.26 Des-
seticidas e repelentes) passaram a ostentar o título cartes também postulava que a alma abandonava
de ecologista, ambientalista ou amante da natureza. o corpo humano no momento da morte, de for-
ma que a dessacralização dos cadáveres permitiu
A ORIGEM DO MOVIMENTO EM PROL maior liberdade aos estudos investigativos da
DOS DIREITOS DOS ANIMAIS nossa anatomia e fisiologia.
A origem da atitude sentimental em relação aos O movimento antivivisseccionista é muito
animais deriva do idealismo do filósofo francês Michel antigo – surgiu na Inglaterra, em 1824 –, ganhou
de Montaigne (1533-1592), que imaginava os animais impulso a partir de 1840 e, sob a influência direta
vivendo em completa harmonia com a natureza e pos- da rainha Vitória (1819-1901), recebeu a designa-
suindo mais virtudes que os próprios humanos. Con- ção de Royal Society for the Prevention of Cru-
denava os maus-tratos aos animais, pois, para ele, isso elty to Animals, ou RSPCA.27 Apesar de seu papel
revelava uma propensão à crueldade – os espetáculos na criação da RSPCA, os defensores dos direitos
de lutas dos gladiadores romanos eram seus alvos pre- dos animais não consideram a rainha Vitória a pa-
feridos. Segundo Montaigne, os animais teriam virtu-
tronesse de seu movimento, o que é compreensí-
des inexistentes no gênero humano, como lealdade,
vel, se levarmos em conta que, desde o século
prudência, sabedoria e comportamento previdente.
XIX, parte importante da população inglesa asso-
Por seu turno, os humanos seriam traiçoeiros, insen-
satos, miseráveis, imprudentes e tão soberbos a ponto cia a aristocracia com lassidão, esbanjamento e
de desejar igualar-se ao Criador. A lealdade, por exem- modo de vida indolente. A aristocracia dominava
plo, seria uma virtude inabalável nos cães, que não vastas extensões territoriais e seus membros des-
abandonam ou deixam de exibir a afeição ao dono, pendiam boa parte do tempo em caçadas, no pró-
nem mesmo diante de maus-tratos e negligência. De prio território ou em outras partes do mundo
acordo com esse filósofo, o ser humano é a única es- (África e Índia, especialmente).
pécie a reagir negativamente diante da nudez, o que re- As caçadas eram atividades ritualizadas, exi-
fletiria a imperfeição de nossos corpos.24 Tais idéias re- gindo roupas apropriadas e um número conside-
velam-se plenamente de acordo com o movimento na-
rável de serviçais, cavalos e cães para dar suporte
turalista, que prega o retorno ao modo de vida de nos-
sos antepassados, mas o sentimentalismo não envolve
ao esporte preferido da realeza – a caça à raposa
uma reflexão crítica sobre os fenômenos da natureza. é praticada até hoje, mesmo diante dos protestos
Um contraste radical com essas idéias pode dos ambientalistas ou das pessoas que julgam que
ser visto na obra de René Descartes (1596-1650), os aristocratas deveriam despender seu tempo em
filósofo francês e quase contemporâneo de Mon- coisas mais úteis. Os animais abatidos (raposas,
taigne. Segundo o racionalismo cartesiano, os tigres e elefantes, entre outros) não tinham outra
animais são considerados um sistema mecânico 25 “Discourse on the method of rightly conducting the reason and
ou apenas um agregado de válvulas e sifões. Eles seeking for the truth in sciences”. Ibid., v. 31; e The Philosophical Wri-
não têm consciência, alma ou sentimentos e suas tings of Descartes, 1985.
26 Cf. KING & VINEY, 1992.
27 GRABAU, 1993; BLUM, 1994; MUKERJEE, 1997; e WILSON,
24 “The essays of Michel Eyquem de Montaigne”, 1952. 2002.

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serventia senão a simples ostentação de um su- para o treinamento de técnicas cirúrgicas foi eli-
posto espírito guerreiro. Caçadas e equitação minado desde 1876, de modo que os estudantes
eram esportes associados a saúde e virilidade. só podem ter o seu treinamento com cadáveres
Com efeito, a própria longevidade da rainha Vi- ou por meio de cirurgias verdadeiras, sob super-
tória foi descrita como resultante desse hábito. visão de um profissional experiente. Nos EUA, 40
A rainha Vitória teve um papel importante das 126 escolas de medicina aboliram a vivissec-
no fortalecimento do império britânico, mas o ção em aulas práticas e, na Holanda, é necessário
seu vigor imperial decaiu muito após a morte de que um pesquisador freqüente um curso prepa-
seu marido, o príncipe consorte Albert (1819- ratório antes de dar início a um programa de
1861)28 – desde então, a monarca tornou-se re- investigação científica envolvendo animais.32
clusa e passou a negligenciar suas responsabilida- Pesquisadores notáveis no campo da fisio-
des. Com o intuito de preservar ou reabilitar a logia e da psicologia experimental tiveram pro-
sua popularidade, seus conselheiros julgaram im- blemas com os adeptos do movimento em prol
portante a implantação de projetos associados à dos animais (entre eles, J. B. Watson, I. P. Pavlov
caridade ou o envolvimento da realeza com certas e H. F. Harlow) e outros líderes insuspeitos ali-
associações simpáticas ao público. De acordo mentaram ou se posicionaram ao lado dos anti-
com algumas análises, isso explica as razões para vivissectionistas, como o naturalista Charles Da-
a criação da RSPCA.29 rwin (contribuinte regular da RSPCA), John
Assim, o movimento em prol dos direitos Dewey, William James e George J. Romanes, au-
dos animais não é novo: suas raízes se encontram tor do primeiro livro sistemático sobre psicologia
na Bíblia, nas idéias do príncipe jainista Vardha- comparativa.33
mana Mahavira ou mesmo nas postulações de De alguma maneira, as restrições ao uso de
Michel de Montaigne. A novidade é o proselitis- animais dificultam o ensino de anatomia, fisiolo-
mo ou estilo panfletário nas pregações de idéias. gia, farmacologia e psicologia comparativa, assim
Entretanto, os defensores dos animais ganharam como o temor aos grupos de defesa dos animais
uma substancial contribuição acadêmica a partir restringe substancialmente a investigação cientí-
de 1975, quando foi publicado o livro Animal Li- fica. A diminuição do uso de animais na experi-
beration, do filósofo australiano Peter Singer.30 mentação científica ou no ensino de graduação
Os ativistas pregam uma hiperigualdade entre não resulta da crença de que tais práticas sejam
humanos e animais, de forma a evitar o que eles prescindíveis e sem significado para a formação
chamam de especismo (algo análogo ao racismo acadêmica dos alunos. Ela representa uma tenta-
ou sexismo) ou chauvinismo humano (semelhan- tiva de evitar a ação de grupos extremistas ou de
te ao machismo) e, com freqüência, lançam argu- se adaptar às práticas de ensino politicamente cor-
mentos absurdos para justificar suas ações: “ma- retas – o cinismo pragmático pode ter efeitos ter-
tar e comer [carne] é uma parte integral da evo- ríveis, pois os alunos de medicina, por exemplo,
lução dos seres humanos. Não matar e não co- que não têm treinamento prévio com animais, te-
mer [carne] é o próximo passo de nossa rão mais tarde seu treinamento enfrentando pro-
evolução”.31 blemas reais, i.e., atendendo seus pacientes em
Mas o seu alvo principal é a pesquisa reali- consultórios ou hospitais. Os ativistas que agem
zada em laboratório, não a pesquisa naturalística em defesa dos animais comumente exageram e
ou de campo. Na Inglaterra, o uso de animais tentam passar para o público que nos laboratórios
ocorre uma matança indiscriminada de animais,
28 The Cambridge Biographical Encyclopedia. 2.ª ed. Cambridge: Cam-
que a investigação científica não traz benefícios
bridge University Press, 1998.
29 TAYLOR, 2004.
30 Cf. SINGER, 1975 e 2002. 32 Ibid.
31 MUKERJEE, 1997, p. 71. 33 DEWSBURY, 1990; e WILSON, 2002.

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para a humanidade e que os pesquisadores são in- O objetivo do ALF é amedrontar os pesqui-
sensíveis. Freqüentemente, adotam uma forma sadores para limitar a investigação científica. É
bastante agressiva de atuação, ultrapassando os li- comum imaginar que atos de terrorismo contra
mites da legalidade. laboratórios e centros de pesquisa são realizados
Os defensores dos direitos dos animais po- por pessoas ingênuas ou desinformadas. Puro en-
dem ser alocados em dois grupos. O primeiro é gano: os ativistas são pessoas bem instruídas, so-
composto por scholars, políticos verdes e pessoas fisticadas em seus hábitos e sabem manipular
que atuam, por meio de procedimentos civiliza- com maestria as informações veiculadas na im-
prensa. Cometem atos repudiáveis sob vários as-
dos, em prol dos animais ou defendem causas
pectos: são antidemocráticas, uma vez que im-
ecologicamente corretas que beneficiam indistin-
plantam o terror por meio de atos ilegais e não le-
tamente os animais. O segundo grupo é o mais
vam em conta a real importância da investigação
problemático, pois seus membros adotam proce-
científica para o bem-estar da população, extra-
dimentos ilegais para defender aquilo que julgam
polam os limites razoáveis e colocam os animais
correto. Com efeito, os grupos Animal Liberation em pé de igualdade com os humanos ou, às vezes,
Front (ALF) e People for the Ethical Treatment até mesmo num plano superior.
of Animal (PETA) foram criados em 1981-1982,
Os ativistas do ALF e do PETA pregam que
nos EUA, e têm um longo histórico de atentados
a pesquisa científica envolvendo uso de animais é
terroristas (bombas, incêndios, queima de docu- absolutamente desprovida de sentido, que os pes-
mentos e libertação de animais criados em labo- quisadores são cruéis e pouco fazem, dada a sua
ratório, independentemente de fazer parte da insensibilidade, para minimizar o sofrimento dos
fauna local ou ter condições de sobrevivência em animais. Tal julgamento é incorreto e se vale de
liberdade). Por conta do considerável nível de pe- pressupostos facilmente refutáveis, fruto de um
riculosidade do ALF, esse grupo é classificado viés perceptivo ou de uma atitude mal-intencio-
pelo Federal Bureau of Investigations (FBI/EUA) nada a respeito de atividades contrárias às suas
como um dos dez mais perigosos em atuação no idéias. Todavia, importa ressaltar que essa rejeição
solo norte-americano.34 não é generalizada e que o nível de rejeição apa-
A análise da palavra front (ou fronte, no rece mais forte para as pesquisas realizadas em la-
nosso idioma) ajuda a compreender a filosofia do boratório ou aquelas que envolvem manipulação
ALF, pois ela é igualmente utilizada para designar experimental – estudos naturalísticos ou de cam-
uma área envolvida em conflito bélico ou uma po acabam ignorados por esses grupos ou não
parte de um agrupamento em posição avançada são seus alvos preferenciais. Se o pesquisador re-
nos combates. Front parece ter um significado es- aliza seus estudos com primatas ou carnívoros,
pecial para os militares, pois eles usam a palavra deve se cercar de cuidados extremos; se os estu-
em sua forma original, sem o devido aportugue- dos são feitos com insetos, o único fator que nor-
samento para fronte. O vocábulo também é em- teia o manejo dos animais é a consciência do pes-
pregado como sinônimo de face ou testa, mas a quisador de que ele está lidando com seres vivos.
maneira de o Animal Liberation Front atuar não Os ativistas pelos direitos dos animais atu-
sugere essa direção semântica. Grupos semelhan- am fortemente dentro das universidades, mas são
tes também usam palavras emprestadas do voca- extremamente tímidos no tocante aos outros se-
bulário militar para designar suas ações, como tores da atividade humana que envolvem explo-
Animal Rights Militia, que enviava cartas-bom- ração dos animais. As universidades privilegiam
as múltiplas opiniões, são livres e abertas e tais
bas a políticos, na Inglaterra.35
peculiaridades as tornam o nicho ecológico ideal
34 BLUM, 1994.
para o surgimento e a irradiação de tais idéias – a
35 Cf. nos dicionários os significados de militia/milícia. invasão de um laboratório de pesquisa muitas ve-

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zes é vista como resultante da livre expressão de os princípios para seis Rs (reason, responsability,
idéias ou manifestação de um espírito libertário, reduction, refinement, replacement e research, ou
mas se algo equivalente for realizado numa pro- integração de conhecimentos derivados de pes-
priedade particular, o resultado, sem dúvida algu- quisas clínicas e experimentais ou básicas e apli-
ma, envolve processo criminal ou encarceramen- cadas), com várias subdivisões (respect all ani-
to dos ativistas. mals, re-education in new techniques, review of
A mudança nos procedimentos científicos protocols, routine testings, reward animals when
envolvendo animais de laboratório foi influenciada possible etc.).36
pela publicação, em 1959, do livro Principles of A minimização do sofrimento dos animais
Humane Experimental Technique, dos pesquisa- não é tão simples quanto parece, pois revela-se
dores W. M. S. Russel (zoologista) e R. L. Burch difícil definir e quantificar essa variável – na maio-
(microbiologista). Segundo esses autores, os ria das vezes, o julgamento é subjetivo ou ocorre
princípios que deveriam nortear a investigação uma confusão terminológica a respeito de con-
científica teriam de se basear em três Rs: replace- ceitos como sofrimento, desconforto, dor ou ansie-
ment (substituição dos experimentos com ani- dade.37 Entretanto, o coeficiente de eticidade de
mais pelos realizados in vitro), reduction (simples um experimento pode ser conhecido com a ado-
redução do número de animais por meio de tes- ção da fórmula proposta por Porter.38 Esse autor
tes estatísticos mais sofisticados) e refinement elaborou um conjunto de perguntas cuja pontua-
(aperfeiçoamento de técnicas experimentais para ção final vai de oito (índice mínimo) a 40 (índice
minimizar a dor e o desconforto causado aos ani- máximo, experimento devendo ser evitado ou os
mais). O princípio dos três Rs influenciou bas- procedimentos, reformulados) e envolve oito
tante os procedimentos nos biotérios e laborató- perguntas, por exemplo, “Dor que poderia ser
rios, mas a sua aplicabilidade é muito restrita. provocada?”, com as seguintes respostas: nenhu-
Inúmeras questões surgem: experiências in vitro ma (valor 1), mínima ou superficial (valor 2),
podem substituir todas as formas de experiências? moderada (valor 3), considerável (valor 4) e se-
E as pesquisas que envolvem o registro de rea- vera (valor 5, máximo). Comumente, o que ima-
ções complexas, tal como a atividade cerebral ou ginamos ser dor é apenas uma inferência ou in-
o comportamento? A redução do número de ani- terpretação do que julgamos ser desconforto, to-
mais não interfere negativamente na qualidade de mando por base nossa própria experiência. No
análise dos resultados? Levada ao extremo, a re- lado oposto, pessoas bem-intencionadas propor-
dução não acarretaria a substituição da pesquisa cionam tratamentos humanizados aos animais, le-
experimental pela técnica de estudo de casos? No vando em conta o que elas próprias julgam ser
que diz respeito ao refinamento experimental, importante, mas não exatamente de acordo com
como julgar o que deve ser refinado? A con- a natureza deles.
clusão a posteriori de que algo merecia ser refina- A experimentação científica envolvendo
do tem alguma utilidade? animais obedece a alguns critérios. Em primeiro
A pesquisa in vitro não substitui aquela que lugar, é necessário o pesquisador ter um controle
visa a compreender um sistema inteiro ou o com- preciso sobre as variáveis que atuam sobre a es-
portamento do organismo. As técnicas de biolo- pécie em estudo, de forma que uma pequena ma-
gia molecular permitem, num primeiro momen- nipulação nos procedimentos possa ser associada
to, a redução do uso de animais na investigação com uma mudança no comportamento ou no
científica, mas também lançam novos problemas funcionamento de um órgão. Em segundo lugar,
e ampliam os horizontes da pesquisa biomédica. para realizar tal associação com segurança, a
O princípio dos três Rs é importante, pois pro-
36 ROWAN & GOLDBERG, 1995.
vocou uma reflexão acerca dos procedimentos de 37 Cf. BATESON, 1991; FLECKNELL, 1994; e ROWAN, 1995.
pesquisa – com efeito, alguns autores ampliaram 38 PORTER, 1992.

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amostra deve ser representativa e os animais não em torno de 17 milhões a 22 milhões, menos que
podem estar doentes ou mal alimentados – se o 1% do total abatido para consumo humano –
objetivo é estudar os efeitos da desnutrição ou o lembrando que cerca de 85% são camundongos e
desenvolvimento de uma doença, obviamente ratos, especialmente criados para o uso nas pes-
outras variáveis precisam ser controladas. Tercei- quisas científicas.42
ro, o número de animais utilizados nos experi- Além disso, é importante ressaltar que os
mentos não deve ser muito grande nem muito animais utilizados na investigação científica nas-
baixo, mas suficiente para permitir uma análise ceram e foram criados em laboratórios, são espé-
estatística e uma conclusão segura. Por último, a cies de pequeno porte e apresentam certas carac-
escolha da espécie não é aleatória, mas feita de terísticas físicas e comportamentais não observa-
acordo com a natureza da investigação científica, dos nos animais selvagens. O exame da legislação
pois alguns animais não são modelos adequados a e de normas editoriais de revistas científicas in-
certos experimentos (por exemplo, o uso de ro- ternacionais (referente aos EUA, Canadá e Euro-
edores em estudos sobre a aquisição de habilida- pa) revela que os próprios pesquisadores impõem
des complexas é muito restrito, porém, eles são restrições ao uso indiscriminado e não-justifica-
extremamente úteis em testes de medicamentos). do de animais em seus estudos. Os números exa-
O número de animais empregados em tos de animais utilizados na investigação científi-
investigações experimentais é diminuto e, com ca ou abatidos unicamente com o propósito de
efeito, vem decaindo com o passar do tempo, es- provisão alimentar variam muito, mas as estima-
pecialmente no que diz respeito às espécies de tivas reduzem mais ainda a proporção daqueles li-
grande porte (primatas, felinos e canídeos, entre gados ao avanço do conhecimento. Com efeito,
outros). Por outro lado, a literatura acerca dos di- uma quantificação mostrou que, nos EUA, 96,5%
reitos dos animais ou de idéias antivivisseccionis- dos animais são utilizados como alimento e ape-
tas tem aumentado muito desde 1970, tanto na nas 0,3% nas pesquisas científicas – proporcio-
Europa quanto nos EUA.39 Na psicologia compa- nalmente, isso equivale a dizer que a rejeição ao
rativa, nota-se um decréscimo na utilização de uso de animais nos laboratórios é 659 vezes maior
certas espécies de mamíferos (gatos, cães e coe- que no agrobusiness.43
lhos), que tem sido atribuída aos altos custos de
manutenção dos biotérios, a mudanças de ênfase
dessa matéria, que passou a se interessar por as- CONCLUSÃO: EXISTE FUTURO PARA A
pectos cognitivos, ou ao aumento da atuação dos EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL?
movimentos de defesa dos animais.40 O público leigo tem uma compreensão
Um levantamento realizado pela National precária a respeito dos avanços científicos e da
Academy of Science, nos Estados Unidos, indica importância da ciência – seu conhecimento ba-
que existem aproximadamente 110 milhões de seia-se em programas televisivos ou revistas de
animais de estimação (cães e gatos) dentro dos la- divulgação científica de baixa qualidade. As pes-
res de cidadãos americanos e mais de 5 bilhões soas fazem uso constante de medicamentos e não
são mortos para servir de alimento. Alguns cál- abrem mão de procedimentos cirúrgicos ou de
culos mais precisos apontam que um cidadão bri- vacinas para minimizar o desconforto e a dor. A
tânico consome, ao longo de sua vida, algo em exploração dos animais pode ser vista em filmes
torno de oito vacas, 36 porcos, 36 ovelhas e 550 de grande sucesso, circos, algumas práticas sociais
aves.41 Por outro lado o, montante de animais (rodeios, touradas, vaquejadas ou exposições
utilizados na investigação científica é estimado agropecuárias), sem que isso cause maiores cons-

39 MATFIELD, 1995. 42 AMERICAN ASSOCIATION FOR THE ADVANCEMENT


40 VINEY et al., 1990. OF SCIENCE, 1991.
41 PATON, 1993. 43 NICOLL & RUSSEL, 1990.

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trangimentos. Assim, também, os animais são instrutores são culpados disso, pois explicam ina-
úteis ao homem e a experimentação científica re- dequadamente as razões dos procedimentos ex-
presenta apenas a forma mais racional e reduzida perimentais ou são negligentes e arrogantes dian-
de uso. É uma via de mão dupla, uma vez que os te das dúvidas dos alunos. Esses apresentam difi-
estudos feitos com animais beneficiam o ser hu- culdades para entender a lógica e a utilidade das
mano e vice-versa. aulas práticas ou não conseguem extrapolar os
A rejeição aos procedimentos da pesquisa conhecimentos oriundos da pesquisa básica para
científica não revela apenas o amor aos animais, o trabalho rotineiro do profissional. Com fre-
mas também uma aversão ao conhecimento qüência, o leigo inteligente também exibe essa di-
científico (cientofobia) ou ao progresso tecnoló- ficuldade e cabe aos professores e instrutores
gico (tecnofobia). A ciência é um empreendi- compreendê-lo naturalmente e caprichar mais em
mento complexo, de modo que as leis e as tra- suas aulas de laboratório.
dições culturais não acompanham o avanço do O uso de animais nas aulas práticas e na
conhecimento; algumas novidades científicas investigação científica é algo a ser analisado com
simplesmente perturbam as pessoas – como clo- cuidado nesse contexto, pois laboratórios e linhas
nagem de seres vivos, fertilização in vitro, trans- de pesquisa podem ser fechados da noite para o
plante de órgãos e tecidos ou terapia genética. Os dia, em razão do proselitismo ideológico. Da
cientistas adotam uma linguagem muito especí- mesma forma, as pessoas que abominam a tortura
fica e as revistas científicas são inacessíveis ao pú- dos animais deveriam rejeitar os frutos da ativida-
blico leigo ou mesmo a cientistas de outra área de de científica (e.g., vacinas, antibióticos e todo o
atuação.44 Nesse sentido, alguns pensadores exa- conhecimento disponível acerca de procedimen-
geram e mostram um quadro extremamente ne- tos cirúrgicos e doenças neurodegenerativas).
buloso para a atividade científica: “o empreendi- Agir de modo seletivo revela ingenuidade, senti-
mento científico é ameaçado por tecnófobos, ati- mentalismo, falta de informação ou puro cinismo
vistas dos direitos dos animais, religiosos funda- pragmático.
mentalistas e, mais importante, por políticos Como aponta Carruthers, amar os animais,
oportunistas. Obstáculos sociais, políticos e eco- apreciar sua beleza plástica e enorme variedade,
nômicos tornarão cada vez mais difícil a atividade defender espécies ameaçadas de extinção e prezar
científica, especialmente no caso da ciência pu- a convivência com animais domésticos são atitu-
ra”.45 Tal fenômeno revela um interessante para- des plenamente racionais e humanas.46 Entretan-
doxo, pois a geração mais beneficiada com os to, não existem argumentos morais para a proi-
avanços da experimentação científica é a que mais bição do uso de animais na investigação científica
prega a limitação ou a redução do uso de animais ou como forma de alimento. Com efeito, esse fi-
nesse tipo de atividade. lósofo dedicou um livro ao tema, iniciando-o
A necessidade de experimentação científica com o seguinte argumento:
é maior nos dias de hoje e tende a aumentar com
minha percepção indica que a justificativa
a descoberta de novas doenças e com o fortaleci- para a valorização moral dos animais é fra-
mento de vírus e bactérias às drogas já existentes. ca e que a posição contrária é muito mais
Alguns alunos de graduação de cursos da área de consistente. Com efeito, considero a pre-
ciências biológicas (medicina, nutrição, farmácia ocupação popular com os direitos dos
e psicologia, particularmente) demonstram, não animais, na nossa cultura, mais um reflexo
raro, certa aversão ao uso de animais em aulas da decadência moral. Tal como Nero, que
práticas e treinamentos. Muitas vezes, os próprios tocava sua harpa enquanto Roma ardia
em chamas, muitas pessoas no Ocidente
44 HAYES, 1992.
45 HORGAN, 1996, p. 5. 46 CARRUTHERS, 1992.

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lamentam a sorte dos filhotes de focas e clara, mesmo para o próprio autor da investiga-
cormorões enquanto seres humanos pas- ção, e isso pode propiciar conflitos e julgamen-
sam fome ou são escravizados em outras tos incorretos sobre o papel da ciência. Assim,
partes do mundo.47
uma solução para evitar possíveis embates não
A preocupação com o bem-estar dos ani- poderia ser outra: ampliar o debate sobre o te-
mais é legítima e os movimentos sociais revelam ma, mostrando ao público leigo que o uso de
mudanças importantes nessa área; a tendência é animais na investigação científica é necessário e
a ampliação desse tipo de preocupação e da for- imprescindível e, ao mesmo tempo, propiciar
ma de atuação dos movimentos defensores dos condições para que os procedimentos cientí-
animais. O público leigo é mais imediatista e
ficos se tornem mais eficientes e os cientistas,
sempre está preocupado com a relevância social
mais atentos ao bem-estar dos animais. Tal dis-
de uma pesquisa; quando se trata de uma pes-
cussão deve ser realizada com cuidado, de modo
quisa aplicada, sua importância pode ser mais fa-
cilmente captada. Por outro lado, a aplicabilida- a evitar o proselitismo político, o radicalismo es-
de de uma descoberta científica nem sempre é tudantil e a inspiração de medidas institucionais
que atendem ao espírito politicamente correto
47 Ibid., p. XI (tradução do autor). (mas cientificamente incorreto).

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Dados do autor
Doutor em psicologia experimental e professor
titular do Departamento de
Psicologia/Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis/SC.

Recebimento artigo: 2/fev./04


Consultoria: 6/fev./04 a 8/mar./04
Aprovado:18/mar./04

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Os Bálcãs Novamente
Esquecidos
THE BALKANS AGAIN FORGOTTEN J. A. LINDGREN ALVES
Diplomata brasileiro e mem-
bro do Comitê para a Elimina-
Resumo Diariamente presentes nos noticiários da década de 1990, os Bálcãs, atual- ção da Discriminação Racial
mente sem guerras, parecem ter desaparecido do cenário internacional. Tem-se, assim, (CERD)/Genebra
a impressão de que a violência e os problemas da região, exclusivos e endógenos, es- bras-emb@spnet.net
tariam hoje solucionados pelas intervenções do “Ocidente” e pela atuação do Tribunal
da ONU para a ex-Iugoslávia. O artigo procura mostrar como todas essas idéias são
enganosas: nem os problemas balcânicos eram ou são exclusivos dessa periferia eu-
ropéia, nem a ação da ONU e do “Ocidente” os resolveu de fato.

Palavras-chave NACIONALISMO – INTOLERÂNCIA – GUERRAS BALCÂNICAS –


OTAN – ONU – TRIBUNAL INTERNACIONAL PARA A EX-IUGOSLÁVIA.

Abstract Daily on the news of the 1990’s, the Balkans, now without wars, seem to
have vanished from the international scene. Thus, one has the impression that the
violence and the problems of that region, exclusive and endogenous, have been solved
by “Western” interventions and by the United Nations’ Tribunal for the former
Yugoslavia. This essay tries to show how all of these ideas are misleading: Balkan
problems are neither intrinsic to that peripheral area of Europe, nor have they really
been solved by UN and “Western” actions.

Keywords NATIONALISM – INTOLERANCE – BALKAN WARS – NATO – UNITED


NATIONS – INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE FORMER YUGOSLAVIA.

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INTRODUÇÃO

E
ntrevistado pela Euronews na Espanha, em outubro de
2003, ao receber o Prêmio Príncipe de Astúrias por seu
trabalho de jornalismo, Ryszard Kapuscinski, ex-corres-
pondente da Agência Polonesa de Notícias em dezenas
de conflitos situados em terras periféricas (como a Eti-
ópia, no final do regime de Hailé Selassié, ou países da
América Central em guerra por futebol, comentou que,
levando em conta apenas o que a grande imprensa divul-
ga, têm-se hoje a impressão de que acontecimentos são somente aqueles
nos quais se encontram soldados norte-americanos.
“Encontrar-se” é, na verdade, muito pouco. É preciso que esses sol-
dados estejam envolvidos em algum tipo de ação para que o acontecimen-
to mereça mais do que menção episódica, isolada e insignificante. Afinal,
contingentes militares dos Estados Unidos (e de outros países) perma-
necem, por exemplo, no Afeganistão, até há pouco tão central no dia-a-
dia dos media e logo negligenciado – na verdade, “superado” pelo Iraque
–, a ponto de ter sido esquecido, já em 2002, da lista de destinatários da
assistência de Washington no orçamento da União.1 Sua marginalidade
atual – salvo quando alguma agressão a norte-americanos o traz de volta
às manchetes – leva a desconsiderar-se o aumento, confirmado pela ONU,
de sua produção de heroína 19 vezes nos últimos dois anos, fato que o
transforma no maior supridor do mundo. Não se nota igualmente que,
em algumas regiões afegãs, o número de crianças nas escolas vem deca-
indo tanto, por falta de segurança, que quase todos os estabelecimentos
de ensino voltaram a ser fechados. Ou que, de par com a permanência da
repressão às mulheres, a amputação de narizes de homens sem barba é
ainda praticada por guerrilheiros talibãs.2
Não é, porém, para falar da Ásia Central que me proponho aqui es-
crever. Dessa área, antes ignorada, ouvimos e lemos agora todos os dias,
seja como desdobramento da questão iraquiana, seja por conta de crises
separatistas e outras agitações em ex-repúblicas soviéticas. Tampouco
pretendo falar de Israel e Palestina, onde até mesmo o “roteiro de per-
curso” (roadmap) proposto pelo governo de George W. Bush, ao se re-
digirem estas linhas, parece ter colidido com um muro de concreto e de
teimosias. Esse conflito permanece e permanecerá em evidência por to-
dos os motivos possíveis (a menos que algum dia se resolva). Quanto aos
horrores da África, continente que a globalização utiliza como objeto
descartável, continuarão relatados nos media de maneira chocante, com
freqüência corriqueira e profundidade epidérmica. Da violência comple-
xa, simultaneamente provecta e pós-moderna, de nossa vizinha Colôm-
bia não falo para não ser leviano. Noto apenas, pelo que leio na imprensa

1 Somente a posteriori a Administração incluiu a rubrica pertinente. O fato é recordado, entre outros, por
KRUGMAN, 12-13/abr./03, p. 6.
2 KRISTOF, 17/nov./03, p. 6.

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“internacional”, que ela se enquadra à perfeição pela Europa, do mundo. Não foi à toa que países
no comentário de Kapuscinski, agregando-se distantes como o Brasil, a Malásia e a Nigéria se
como fatores de acontecimentos o seqüestro de al- dispuseram a enviar soldados dos trópicos para o
gum cidadão europeu. frio dessas montanhas nos corpos da Unprofor e
Examino no presente texto apenas – e, as- demais missões da ONU.6 E não foi por livre e
sumo, muito por alto – aspectos políticos dos espontânea vontade, pelo menos na origem de
Bálcãs, região em que ora vivo e tento compre- sua sobrecarregada história, que os Bálcãs se es-
ender. Ela já é por demais complicada para eu pre- facelaram numa salada (macédoine!) de Estados,
tender ir além. E, mais rápido que o Afeganistão, cada dia mais reduzidos.
sumiu dos noticiários. Exceto quando alguns de
seus países, recentemente “descobertos” na qua- NACIONALISMO E LIMPEZAS ÉTNICAS
lidade de valiosos aliados, são cortejados pelo Se- SOBRE PANO DE FUNDO RÁPIDO
cretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Poucas áreas foram objeto de tanto interes-
Rumsfeld, como integrantes da “nova Europa”.3 se e cobertura do jornalismo político, na década
Plenamente consciente de que as impres- passada, quanto a península balcânica. Ela não ti-
sões de um aprendiz dessas plagas não têm o nha, é verdade, tropas americanas em ação duran-
dom de influir na realidade, acredito que possam, te a maior parte dos conflitos. Porém, isso ocor-
talvez, contribuir para seu entendimento de lon- ria em época anterior à destruição das torres do
ge. Pois, a quem os procura observar do Brasil, os World Trade Center, que Jean Baudrillard, desde
Bálcãs se afiguram tão ignotos que tornam plau- o primeiro momento, interpretou como “o acon-
sível a atitude do personagem do genial Campos tecimento absoluto”, “a ‘mãe’ de todos os acon-
de Carvalho, ao deparar-se com um púcaro búl- tecimentos” (sem com isso justificar qualquer
garo em museu de Filadélfia: tentar montar no ação decorrente).7 E o que é, ou era até há pouco,
Rio de Janeiro uma excursão para conferir se a igualmente importante para conferir-lhe realida-
Bulgária existe.4 de “mediática”, a península se situa no continente
Vistos, por uns, como limite sudeste da Eu- europeu, por definição branco e civilizado, abri-
ropa, por outros, como caminho acidentado en- gando, ainda por cima, ruínas e monumentos
tre Oriente e Ocidente, e, por todos, há muitos (não apenas no território da atual República He-
séculos, como quintal de potências, os Bálcãs lênica) a recordarem que ali o Ocidente nasceu.
(palavra turca que, no singular, quer dizer “mon- Em função das guerras na ex-Iugoslávia,
tanha”) não são apenas um acidente geográfico com atrocidades a destoarem do quadro otimista
“mais carregado de história do que consegue su- da “vitória” ocidental na Guerra Fria, verificou-
portar” (a boutade é de Churchill).5 Conforme se, no final do século XX, verdadeira corrida de
entendido a custo ao longo dos anos 90 – e mal- repórteres para cobrir as tragédias regionais, que
grado a lição não-aprendida da Primeira Guerra desde 1991 não pareciam ter fim. Corresponden-
Mundial –, gostando-se ou não da península, uni- tes dos grandes veículos de comunicação de mas-
da ou fragmentada (“balcanizada”, na expressão sa e free-lancers de todo tipo, com base em teste-
despiciente que o Ocidente inventou), sua sorte munhos tópicos e algumas noções históricas de-
é fundamental para a estabilidade da Europa e,
6 A Unprofor (United Nations Protection Force, em português,
3 Significando os países da antiga “Cortina de Ferro” que, ao contrário Força de Proteção das Nações Unidas) foi estabelecida pela Resolução
da França e da Alemanha, apoiaram os Estados Unidos desde o pri- 743 do Conselho de Segurança, em 21 de fevereiro de 1992, e modifi-
meiro momento na guerra contra o Iraque (todos, exceto a Rússia). cada por resoluções subseqüentes. As demais missões, que a desdobra-
4 CAMPOS DE CARVALHO, 2002. Descontando o aspecto histriô- ram, com mandatos variados, foram a Uncro (Croácia), a Untaes
nico que lhe confere a aliteração de duas proparoxítonas com sílaba (Eslavônia Oriental), a Unmop (na Península de Prevlaka) e a Unpre-
tônica em u, entendo que, pela semântica, o romance poderia similar- dep (Macedônia). Em 1999, a participação total de brasileiros nessas
mente chamar-se “O caneco croata”, “A garrafa de rum romeno” ou missões havia alcançado 112 militares e policiais. Cf. TARRISSE DA
“A ânfora da Albânia” (país cuja capital ainda por cima é Tirana!). FONTOURA, 1999, tabelas 7 e 8, p. 202-203 e 210.
5 Apud BOUGAREL, 2002, p. 45. 7 BAUDRILLARD, 2002, p. 9-10.

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coradas no caminho, produziam depois obras de representando, como tal, senão a continuação do
análise a mostrar que os Bálcãs seriam determi- Império Romano “universal” retalhado pelos bá-
nisticamente fadados à violência e ao horror das rbaros (que depois criaram o Sacro-Império Ro-
“limpezas étnicas”.8 Como eles, vieram também mano-Germânico e, mais tarde, os Estados-
intelectuais apaixonados, que se supunham capa- nações, muitas vezes separados por Estados-tam-
zes de mobilizar consciências contra aquilo que pões), pelo menos metade da cristandade. Assim
parecia constituir repetição isolada do fenômeno como é útil recordar que, sob o Império Otoma-
nazista, com campos de concentração pavorosos, no, uno em sua diversidade desde a “queda de
em pleno território europeu (sem atentar para o Constantinopla” em 1453, a península balcânica
renascimento incipiente do nazi-fascismo agres- acolheu, sobretudo em Salônica (hoje Thessalo-
sivo, em grupelhos ou sob a cobertura legal de niki), em gesto de tolerância destoante do Oci-
partidos “populistas”, em suas democracias de dente, os judeus expulsos da Espanha, no mesmo
origem). ano em que Colombo descobria o Novo Mundo.
Por intermédio de todos ficamos cientes de Menos conhecido, ou reconhecido, é o fato
brutalidades incríveis, praticadas na mesma época de que, por mais denegrido que seja na historio-
em que a democracia liberal “de mercado” se afir- grafia ocidental, o Império Otomano, de dimen-
mava no planeta inteiro, dando razão aparente à sões gigantescas, aplicou sobre suas populações a
visão de Fukuyama de um “fim da História” primeira política “multiculturalista” no espírito das
triunfal, e os direitos humanos irrompiam no ce- idéias propugnadas pelo pós-modernismo atual: o
nário internacional com vigor estimulante. Vie- sistema do millet. De acordo com esse sistema,
ram também, em seguida, políticos procurando que perdurou longos séculos, as comunidades
compensar, com suas honoríficas visitas, a quase eram identificadas tomando por base a religião
completa apatia diante de sevícias e massacres (muçulmana, ortodoxa ou judaica) e administra-
abundantemente conhecidos (ao contrário do das pelo líder religioso respectivo, conforme os
que se alegou sobre o genocídio de Ruanda), as- preceitos de cada uma.9 Isso ocorria, é verdade,
sim como agentes de organizações humanitárias juntamente com outras práticas, terríveis, como
a oferecer paliativos valiosos. Vieram ainda, com o confisco agendado de crianças de famílias cris-
mandatos malcosidos, as forças de paz da ONU, tãs para serem futuros guerreiros – janízaros – do
praticamente inermes e sem função definida. To- sultão, ou, quando mocinhas bonitas, integrantes
dos ou praticamente todos, jornalistas e políticos, de seu harém. Acontecia, também, em meio às
intelectuais “salvadores” e testemunhas humani- brutalidades comuns e universais na época.
tárias, tinham e ainda têm na cabeça a explicação
Mas, conquanto sem atentar para “naciona-
“imperial” ou imperialista de que os ódios balcâ-
lidades” – conceito que não existia na maior parte
nicos são sui generis, essenciais e primitivos, sobre
do período –, o millet permitiu, com todas as di-
os quais nada se pode fazer. Ou de que as barba-
ridades perpetradas no contexto de “limpezas ét- ficuldades de povos subjugados, aos búlgaros se-
nicas” seriam herança ancestral da barbárie dos rem búlgaros, aos gregos serem gregos, aos sér-
muçulmanos turcos, ou, mais recente, dos comu- vios se manterem sérvios, sob domínio da Subli-
nistas incréus, naturalmente malvados. me Porta, que não os islamizou à força, por mais
de 500 anos. Nessa mesma época, nas Américas
Para quem possa ter esquecido, creio convir
lembrar que os Bálcãs foram a sede de Bizâncio, 9 A sharia só era aplicada aos muçulmanos, ao passo que os judeus
seguiam a Lei Mosaica e os cristãos (ortodoxos), as determinações de
seus Patriarcas, sediados em Istambul. O professor Will Kymlicka, da
8 Paradigma dessa literatura é o livro Balkan Ghosts (KAPLAN, 1993), Queen’s University, um dos mais respeitados teóricos do multicultu-
redigido pouco antes do início dos conflitos pelo viajante-escritor ralismo pós-moderno, estudioso e defensor dos direitos das “minorias
Robert Kaplan. Balkan Ghosts ter-se-ia tornado fonte de “desinspira- culturais”, considera o sistema otomano do millet “o modelo mais
ção” para Bill Clinton e inação do Ocidente diante dos horrores noti- desenvolvido de tolerância religiosa não-liberal” (KYMLICKA, 1995,
ciados. p. 158).

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do Norte e do Sul, as populações autóctones fácil transformar o nacionalismo romântico


eram física ou culturalmente exterminadas pelos numa ideologia racista. Quem começou a alterar
conquistadores cristãos da Europa renascentista. o quadro da Iugoslávia nessa direção foram seus
Quanto à “herança comunista” como fonte de vi- sucessores, na Sérvia e nas demais repúblicas fe-
olência e arbítrio, em que se pode pensar com a deradas. Até mesmo no caso do Kossovo, emble-
mente posta em Stalin e nos gulags da Europa mático pela carga emotiva histórica que esse ter-
Oriental, a resposta é bastante óbvia: apesar de ritório representa para o tradicional patriotismo
todos os defeitos que o regime de Tito terá tido das nacionalidades sérvia e albanesa (o “Kossovo
– e, sem dúvida, teve muitos –, em seu tempo as cristão” foi perdido para os invasores otomanos
“nações”, “nacionalidades” e “etnias” da ex- por exércitos de ambas as etnias, em batalha do
Iugoslávia conviviam e até se miscigenavam, algo século XIV), é ponto incontroverso entre todos
ainda incomum na Europa, como em todo o Ve- os analistas que a situação dos kossovares somen-
lho Mundo – e soa “politicamente incorreto” na te começou a deteriorar-se depois da morte de
ética identitária contemporânea que se propõe Tito, em maio de 1980, sendo a autonomia dessa
tolerante. “Província Autônoma” da Sérvia finalmente abo-
Com efeito, gostemos ou não de Josip lida em 1989, por reformas adotadas pelo gover-
Broz “Tito”, a República Socialista Federativa da no de Slobodan Milosevic.10
Iugoslávia parece ter sido o Estado moderno que
até hoje mais se esforçou para respeitar as dife- Tentativas de esmagamento cultural de mi-
renças nacionais da cidadania, assim como os di- norias houve muitas, certamente, nos Bálcãs sob
reitos coletivos das minorias étnicas (cujos Esta- regimes comunistas. A que conheço melhor foi
dos-nações se localizavam alhures). Não o fez no na Bulgária dos anos 80, quando Todor Jivkov
atual estilo pós-moderno, dos países anglo-sa- pretendeu “bulgarizar” à força a minoria turca,
xões, redutor do espaço estatal e da consciência proibindo-lhe a utilização da língua própria e im-
classista em favor de outras formas de auto-iden- pondo-lhe a adoção de nomes eslavos. Iniciada
tificação individual. Fê-lo, ao contrário, com ên- em 1984, essa política se estenderia, com facetas
fase na idéia de irmandade e união entre os “es- diversas, até a primeira “abertura de fronteira”
lavos do Sul” (cujas nacionalidades específicas (ainda não-democrática) de 1989, dirigida especi-
formavam as seis repúblicas federadas), sem des- ficamente aos turcos, que a ela não se adaptavam
considerar os direitos dos não-eslavos de per- e contra ela protestavam (levando ao desloca-
meio (que, quando localmente majoritários, eram mento, a princípio forçado, depois voluntário, de
aquinhoados com “províncias autônomas”: a dos 350 mil habitantes de etnia turca da Bulgária para
albaneses do Kossovo e a dos húngaros da Vojvo- uma Turquia em crise econômica e sem condi-
dina). ções de os absorver).11 Mas o mesmo ocorrera
Ainda que essa retórica soe agora anacrô-
nica, tanto mais absurda após os embates fratri- 10 Noam Chomsky cita um professor albanês da Universidade de
Pristina, o qual, após viagem de pesquisa, teria declarado, ainda em
cidas dos anos 90, o regime de Tito, com a 1981, não haver “uma única minoria nacional no mundo que tenha
Constituição federal e suas leis ordinárias, tinha conseguido os direitos usufruídos na Iugoslávia Socialista”
(CHOMSKY, 1999, p. 25). Descontados possíveis exageros desse
sentido convergente e integrador (além de social- mencionado professor (que, afinal, era pago pelo regime), sou teste-
mente nivelador, em sistema autogestionário), munha de que, na diplomacia multilateral, o tema dos direitos das
minorias sempre foi de particular interesse para a Iugoslávia, sendo
mas não era assimilador pela via de aculturações seus os diplomatas que presidiram, desde 1978, o Grupo de Trabalho
forçadas, condenadas pela antropologia e pelos da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, encarregado
da preparação do texto da Declaração sobre os Direitos das Pessoas
direitos humanos. Em paralelo às convicções in- Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas ou
ternacionalistas (e prováveis ambições pessoais) Lingüísticas, adotada pela Assembléia Geral, em 1992 (quando a
guerra na Croácia já fervia e a da Bósnia começava).
que o possam ter motivado, na qualidade de par- 11 Um testemunho vívido da fase final desse episódio é dado pelo ex-
tisan anti-nazista, Tito sabia à saciedade como é embaixador de Portugal em Sófia. GONZAGA FERREIRA, 1996.

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antes na Grécia não-comunista, apoiada e roman- Macedônia”. Essa questão também levou a Bul-
tizada pelo Ocidente “ilustrado”. Esta, em nome gária a aliar-se aos Impérios Centrais, na Primeira
de um nacionalismo helênico que inventava para Guerra Mundial, e às Potências do Eixo, na Se-
a nova República, exigiu que os macedônios de gunda. Quanto às “limpezas étnicas”, que então
língua eslava renunciassem à idéia de que compu- não tinham esse nome, as maiores da região ocor-
nham nação à parte – ou então que fossem para a reram no fim do conflito greco-turco de 1921-
Bulgária. Mais ainda, a República Helênica, sob 1922, com o deslocamento compulsório de enor-
governos fascistóides, exigia um “certificado de mes contingentes de cristãos ortodoxos da asiá-
lealdade nacional” (não confundir com os “ates- tica Anatólia (muitos dos quais nem falavam gre-
tados de idoneidade ideológica” do regime militar go) para a Grécia, “em troca” de muçulmanos da
brasileiro) entre os requisitos para a obtenção de Grécia (muitos dos quais não falavam turco) para
emprego em serviço público.12 a Turquia, já sem sultão, sob a liderança de Mus-
Em contrapeso à intolerância antiturca do tafa Kemal, o Atatürk (“Pai dos turcos”).
governo de Todor Jivkov, assinale-se que a Bul- A questão da Macedônia é ainda extrema-
gária, na Segunda Guerra Mundial, sob o reinado mente complexa, sendo difícil dizer sem qualifi-
de Boris III (pai do posteriormente exilado jovem cativos quem são, afinal, os macedônios.14 Estes
rei Simeon II, ou Simeon de Saxe-Coburg Gotha, se encontram espalhados por três Estados inde-
democraticamente eleito para o Parlamento da pendentes e vizinhos. Um deles é a Grécia, para
República, em 2001, e hoje primeiro-ministro), a qual “Macedônia” é sua província setentrional,
foi a única aliada da Alemanha de Hitler que se habitada por indivíduos voluntária ou compulso-
recusou a obedecer a ordem de deportação dos riamente gregos, também conhecidos como
judeus para campos de extermínio. Salvou, assim, “macedônios do Egeu”, supostamente descen-
do holocausto os 50 mil israelitas do país, em dentes do povo de Filipe e Alexandre, o Grande.
demonstração de que não era impossível descum- Outro é a Bulgária, com a qual identificavam-se
prir ordens de crimes contra a humanidade quan- no passado todos os macedônios eslavos e, hoje
do para isso se tinha dignidade e coragem – como em dia, apenas detentora da extra-oficialmente
tiveram, em espontânea revolta, a imprensa, a chamada “Macedônia Pirin” (nome da cadeia de
Igreja Ortodoxa, o Parlamento e o Rei.13
montanhas de sua região sudoeste). Por fim, o
Como é sabido e estudado, foi no Ociden- terceiro é a atual República da Macedônia, ex-in-
te que emergiu a noção de Estado nacional tegrante da Iugoslávia, proclamada independente
homogêneo, inspiradora de todos os nacionalis- em 1991, que se apresenta como pátria legítima
mos e “limpezas étnicas” do mundo. Essa ideo- da nação macedônia e verdadeira continuadora da
logia ocidental “iluminista” provocou as chama- herança de Filipe e Alexandre, com língua própria
das “guerras balcânicas”, inclusive, naturalmente, eslava (embora 30% de sua população, de 2 mi-
as duas que primeiro receberam esse nome, de lhões, sejam de etnia albanesa e se tenham recu-
1912 e 1913, tendo a Bulgária (de independência sado a participar do referendo sobre a indepen-
recente e território sucessivamente estendido e dência, por não aprovar seu estatuto de “mino-
encolhido à conveniência das potências externas) ria”). Não reconhecido oficialmente pela Grécia,
como principal protagonista. Tais guerras do iní- que lhe contesta o nome e a história contada (e
cio do século XX envolveram, em alianças opostas parecia disposta a ir à guerra por isso, no período
e com inimigos variados, conforme a ocasião, a 1992-1995), o Estado macedônio independente
Sérvia, o Montenegro, a Grécia e o Império Oto- pôde apenas ser acolhido como membro das
mano, essencialmente em torno da “questão da Nações Unidas sob a sigla FYROM, iniciais de

12 BOESCHOTEN, 2000, p. 38. 14 É esse, aliás, o nome de livro bastante didático de Hugh Poulton:
13 Cf., inter alia, CRAMPTON, 1997, p. 176. Who are the Macedonians? (POULTON, 2000).

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Former Yugoslav Republic of Macedonia (ex-Re- influência, tinha a capacidade de ignorar as


pública Iugoslava da Macedônia). fraturas mundanas de classe e etnicidade.17
À luz de todos esses pruridos e levando em
Nem o professor Mazower pretende, nem
conta a importância que a “questão da Macedô-
eu, ignorar as animosidades reais ou a responsa-
nia” sempre teve em sua política externa, o fato
bilidade que incumbe aos líderes políticos locais
de a Bulgária democrática ter sido o primeiro país
pelas abominações praticadas nos Bálcãs, na últi-
de independência consolidada a reconhecer for-
ma década do século XX. Apenas achamos, ele e
malmente a nova República, ainda em 199115
eu, que os habitantes da região não são piores,
(embora sem admitir como certa a língua, consi-
nem mais “bárbaros”, do que os de qualquer ou-
derada um dialeto do búlgaro, e, por essa via, a
tra área. Se os “ódios balcânicos” se afiguram
“nação” macedônia, que se estende com cidada-
mais graves do que aqueles persistentes na Euro-
nia búlgara em seu próprio território), represen-
pa Ocidental de hoje, razões especiais há de exis-
tou um ato de desprendimento respeitável. Ele
tir. Lembrar Vlad, o Impalador, e outros perso-
evitou a possibilidade de mais um conflito balcâ-
nagens históricos de índole e ações vampirescas
nico, quando o da Eslovênia (de apenas nove dias)
para justificar crueldades recentes equivale a ex-
terminava, o da Croácia explodia e o da Bósnia se
plicar o terrorismo de movimentos regionalistas
prenunciava. Graças em parte a isso – e por não
da Espanha com Torquemada e a Inquisição.
contar com população sérvia ou croata –, a Re-
Corresponde também, em sentido contrário, a
pública da Macedônia, de origem mais complica-
esquecer que a tortura judicial, para não falar da
da e contestada entre os vizinhos do que todas as
bélica, foi prática milenar no Ocidente, propulsor
demais, foi a única secedida da antiga Iugoslávia
do império da lei e dos direitos humanos.
que logrou a separação sem guerra.
Conforme citado pelo professor Mark Ma- FATORES INFLUENTES (NÃO JUSTIFICATIVOS)
zower, da Universidade de Princeton, em obra DA FRAGMENTAÇÃO ATUAL
recente sobre os Bálcãs, Arnold Toynbee, ao ob- Nos Bálcãs, como na África, não houve
servar, em 1922, os conflitos que levavam ao fim uma unidade lingüístico-cultural em vasta área
do Império Otomano, escreveu: “A introdução geográfica para fundar civicamente “La Patrie”,
da fórmula ocidental (o princípio das nacionali- nem um movimento Sturm und Drang consis-
dades) entre esses povos tem resultado em mas- tente para unir tribos afins contíguas. Não existiu
sacres (…). Tais massacres não passam da forma sequer um governo próprio de qualquer tipo que
extrema de luta nacional entre vizinhos mutua- a todos abarcasse. O já mencionado millet oto-
mente indispensáveis, instigados por essa idéia fa- mano, com suas virtudes precursoras de práticas
tal do Ocidente”.16 E o próprio Mazower, sem “pós-modernas”, não era, nem pretendia ser, um
inclinações titoístas detectáveis na obra, comple- sistema homogeneizante. A idéia ocidental de
menta: nação foi importada por etnias dispersadas pela
A limpeza étnica – seja nos Bálcãs em História em territórios variados, cheios de encla-
1912-13, na Anatólia em 1921-22 ou na ves surgidos em épocas pré-nacionais, sob domí-
antiga Iugoslávia em 1991-95 – não foi, nio de fora. E como costuma ocorrer em qual-
portanto, a erupção espontânea de ódios quer parte do mundo, no passado como agora,
primevos (…) ela representou a força ex- em situação de escassez o vizinho é mais amea-
trema requerida pelos nacionalistas para çador do que o habitante distante.
esfacelarem uma sociedade que, sem essa Grande parte dos líderes ultranacionalistas
15 O primeiro de todos foi a Eslovênia, de independência quase conco-
balcânicos da década de 1990, como a maioria dos
mitante.
16 MAZOWER, 2000, p. 147-148. 17 Ibid., p. 147-148 (tradução e grifos do autor).

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heróis do século XIX cultivados em todos os países confederação.18 A rapidez com que a Alemanha
(e a idéia da Grande Sérvia vem dessa época), reconheceu as independências da Eslovênia e da
eram poetas, jornalistas, advogados, médicos e Croácia, em sua zona de influência, seguida de
outros profissionais de nível superior. Se agiram pressões para que a União Européia procedesse
de forma tão brutal há pouco é porque, a exem- da mesma forma, ignorando o trabalho de inves-
plo de um certo Führer de bigodinho ridículo, tigação sobre a situação das minorias pela Comis-
eles também tinham carisma e condições para são Badinter,19 e, finalmente, a recomendação de
manipular frustrações, dirigindo-as a antagonis- Bruxelas à Bósnia-Herzegovina, em janeiro de
mos que lhes eram convenientes. Todos se apro- 1992, para organizar um referendo sobre a
veitaram de algum tipo de estímulo, interno e ex- autodeterminação representaram o beijo da mor-
terno, para fomentar uma exaltação nacionalista te no Estado federal iugoslavo. Foram-no, tam-
que antes não impedia o convívio. Nas décadas bém, para as idéias previamente aventadas de se
de 20 e 30 o esmagamento da Alemanha por Ver- tentar com arbitragem seu desmembramento in-
salhes, além de ofender os brios de uma nação or- cruento (embora, fique bem claro, não constituís-
sem qualquer incentivo aos massacres). É difícil
gulhosa, impunha a seus habitantes condições
não concordar com a afirmação do sérvio Kosta
insustentáveis. Assim também, nas décadas de 80
Christitch de que “A história guardará esse para-
e 90, o neoliberalismo crescentemente globaliza-
doxo: a União Européia inaugurou sua política
do, associado à escassez de consumo típica do co-
externa comum presidindo ao aniquilamento de
munismo e aos desastres econômicos que se
uma comunidade pluriconfessional, multiétnica e
acentuavam em todos os países do socialismo real transnacional que constituía um conjunto mais
(expressão ideologicamente cunhada pelos arau- unido, mais harmonioso e mais coerente do que
tos do neoliberalismo “sem ideologia”), facilitava a própria Europa tal como imaginada por seus
a canalização de iras populares por líderes popu- fundadores”.20
listas ambiciosos contra os bodes expiatórios dis-
poníveis – e ajudava a recriar alhures o fundamen-
UMA CORTE QUE PERDEU O SENTIDO
talismo islâmico, ainda não suicida, mas já tão vio-
lento na Argélia como os terroristas atuais. Slo- Nada disso justifica, é evidente, os atenta-
dos aos direitos humanos e ao direito humanitá-
bodan Milosevic foi e ainda é um demagogo
rio das guerras na ex-Iugoslávia, os responsáveis
agressivo, disposto a qualquer manobra para ex-
pelos quais devem ser legalmente punidos. Mas
pandir seu poder. Mas nisso ele não foi caso úni-
essas violações, brutais, não podem ser equipara-
co. Tornou-se único entre seus pares antagônicos
das às do sistema de extermínio nazi-fascista na
por presidir um partido da velha linha estatista,
Segunda Guerra Mundial, planejado com todo ri-
contrário às tendências da época. Assim como
gor. Não obstante a denominação tenebrosa (tra-
para o croata Franjo Tudjman e o bósnio Alija It- duzida de expressão sérvia evocativa), as políticas
zebegovic, o nacionalismo ferrenho do presiden- de “limpeza étnica” nos Bálcãs dos anos 90, arbi-
te da Sérvia era instrumento oportuno, legítimo
aos olhos dos que neles votavam. 18 O próprio embaixador da Croácia em Sófia confirmou-me que,
durante os anos 80 e até o início dos 90, ninguém na Iugoslávia real-
Do exterior, a afirmação constante de que a mente queria o desmembramento do Estado. Os líderes nacionalistas da
Iugoslávia sem Tito fatalmente se dividiria era em Eslovênia e da Croácia, insatisfeitos com a redistribuição das rendas de
suas respectivas repúblicas – as mais ricas da federação – para as demais
si um incentivo à sua fragmentação. No início da Iugoslávia, teriam proposto, desde a década de 1980, como alternativa
dos anos 90, a indiferença da Europa, mais preo- à secessão, o estabelecimento de uma confederação, recusada por Milo-
sevic. O separatismo teria sido, pois, resultado da falta de alternativas.
cupada com Maastricht e sua própria União, e a 19 HOFFMANN, 1966, p. 40-41. A Comissão Badinter, da União

dos Estados Unidos, com a primeira Guerra do Européia, havia concluído que apenas a Eslovênia e, aliás, a Macedônia
tinham condições para garantir os direitos das minorias étnicas, o que
Golfo, não eram de molde a promover, com o não era o caso da Croácia.
empenho necessário, a alternativa falada de uma 20 CHRISTITCH, 2001, p. 15.

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trárias, violentas, cruéis e moralmente repulsivas, guerra não autorizada pela ONU, o Tribunal soou
não eram necessariamente genocidas, nem foram estranho, parcial e inoportuno. O indiciamento
executadas por um único regime.21 Nas repúbli- excluía de per si qualquer possibilidade de nego-
cas da antiga Iugoslávia, a maior parte das sevícias ciação para a suspensão do conflito. Esse somen-
e agressões era praticada por milícias paramilita- te poderia terminar como terminou: com a rendi-
res, usadas por todas as partes, que incluíam cri- ção incondicional dos sérvios.
minosos conhecidos22 – característica que não se Em 2001-2003, quando a ingerência huma-
aplicava aos disciplinados alemães do Terceiro nitária é freqüente, a “ingerência militar preemp-
Reich. Um pouco em razão desse fato, mas não tiva” virou base de doutrina, e o “dever de inge-
apenas por ele, tenho atualmente dúvidas a res- rência” aparece incorporado por Estados do Ter-
peito do Tribunal das Nações Unidas constituído ceiro Mundo, o mesmo Tribunal se afigura ana-
para julgar e punir responsáveis por crimes de crônico e contraproducente. Anacrônico porque,
guerra e crimes contra a humanidade na ex- num período em que o discurso dos direitos hu-
Iugoslávia, com sede e função em Haia. manos se encontra universalizado, ele só julga
Criado pelo Conselho de Segurança (Reso- pessoas de uma região hoje calma, por crimes já
lução 808, de 22 de fevereiro de 1993), quando ofuscados na massa de violações a que se tem as-
nem o Ocidente, nem a Rússia, nem a China se sistido, por todo tipo de atores, desde o ominoso
dispunham a intervir para impedir os massacres, e Onze de Setembro. Contraproducente porque,
o Terceiro Mundo tinha pavor do “direito ou de- em lugar de dissuadir políticas agressivas, ele ali-
ver de ingerência”, o Tribunal Internacional para menta nos Bálcãs, em particular na Sérvia humi-
a ex-Iugoslávia surgiu como um gesto político. lhada, posturas de revanchismo, novamente
Inspirado no Tribunal de Nuremberg montado favoráveis à idéia de uma Grande Sérvia e à re-
pelos Aliados em 1946 (do qual emergiu a noção conquista de territórios “perdidos”. A não-extra-
de crime contra a humanidade), esse primeiro tri- dição de indiciados para julgamento nessa Corte,
bunal penal da ONU, com jurisdição específica, por sua vez, tem servido de pretexto para barrar a
era o recurso disponível para aflições impotentes entrada de repúblicas agora tão democratizadas
(alguns o interpretam sobretudo como um expe- como o resto do Leste europeu – a atual
diente indolor para aliviar consciências pesa- “confederação” da Sérvia e Montenegro e a Repú-
das).23 Em 1993, ano da Conferência Mundial de blica da Croácia – na União Européia. Além disso,
Direitos Humanos, não sendo possível ir além, a ela funciona como justificativa freqüente à recusa de
iniciativa soava necessária e coerente como ins- assistência econômica pelos Estados Unidos, exata-
trumento de dissuasão à violência interétnica na mente o país que mais boicota o Tribunal Penal In-
região dos Bálcãs. Por isso, a Conferência lhe ma- ternacional (TPI), permanente e universal, oriundo
nifestou apoio em resolução separada da Decla- da Conferência de Roma de 1998.
ração de Viena. Em 1999, porém, quando decidiu A propósito da não-entrega dos indivíduos
indiciar Milosevic enquanto a OTAN bombardea- judicialmente citados, é verdade que em alguns
va maciçamente alvos civis iugoslavos, numa casos ela advém, ou advinha, de posições ou con-
veniências políticas: convicções assumidas (caso
21 Embora os sérvios sejam identificados como principais perpetradores do ex-presidente da Iugoslávia Vojislav Kostuni-
da etnitchko tchistenie, eles também foram vítimas. Da Krajina, na Croácia,
600 mil sérvios foram expulsos, naquela considerada a maior ação de
ca, do Partido Democrata, que venceu Milosevic
“faxina” (cf. IGNATIEFF, 1998, p. 139). E os croatas da Bósnia, que mais nas eleições de 2000, mas era contra sua extradi-
tarde se uniram aos bosníacos, também atacaram os “muçulmanos”.
22 Entre outros casos famosos, Michael Ignatieff recorda que o deno- ção),24 temor reverencial aos sentimentos das po-
minado Arkan, líder do grupo sérvio auto-intitulado Tigres, era crimi-
noso envolvido em vários ilícitos, procurado até pela Suécia com 24 Como é sabido, Milosevic, depois de forçado pelo povo revoltado a
mandado internacional de captura por homicídio (Ibid., p. 131). deixar a presidência da Iugoslávia, que perdera para Kostunica em elei-
23 Explicitei mais esse assunto no texto “Para a nova edição”. (LIND-
ções democráticas, somente seguiu para Haia raptado pelos guardas de
GREN ALVES, 2003). Zoran Djindic, presidente da Sérvia (por sua vez assassinado em 2003).

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pulações envolvidas (muitos dos criminosos pre- do uma jurisprudência que certamente será útil,
suntivos são objeto de admiração no respectivo inclusive ao TPI), seu efeito político originalmen-
país, como o generais Ante Gotovina, croata, e te desejado vê-se, na região, crescentemente con-
Ratko Mladic, sérvio, atuante na Bósnia), ou, até, tradito. Partidos nacionalistas extremados, há al-
instinto de preservação (nenhum dos líderes na- gum tempo alijados do poder, vêm novamente
cionalistas das ex-repúblicas iugoslavas tinha fi- ganhando popularidade e eleições: na Croácia,
cha totalmente limpa, nem nos anos 40, nem nos em novembro de 2003, com o regresso da União
anos 90). Por outro lado, não se pode deixar de Democrática (que afirma haver abandonado a li-
levar em conta que a entrega de pessoas como nha dura de Franjo Tudjman, falecido em 1999);
Radovan Karadzic, na parte sérvia da Bósnia, na Sérvia, no final de dezembro, com o vitória do
pode também ser, na prática, tão inexeqüível para Partido Radical do ex-líder paramilitar de direita
os governantes de jovens e frágeis repúblicas Vojislav Seselj (ele próprio sob custódia judicial
como a apreensão de um Bin Laden pela maior em Haia, onde se apresentou motu proprio).26
potência da Terra. As tentativas de captura pelas Slobodan Milosevic, por sua vez, em julgamento
próprias forças da ONU têm sido geralmente in- nessa Corte por crimes contra a humanidade, ha-
frutíferas. vendo dispensado advogados, defende-se pessoal-
mente, com arrogância e astúcia.
Conforme já disse antes e não hesito em re- Nesse final de 2003, em que escrevo estas
petir, os responsáveis pelas atrocidades precisam, linhas, o Tribunal das Nações Unidas para a ex-
sim, ser punidos. Também entendo que a não-pu- Iugoslávia não arrefece ebulições balcânicas. Ao
nição legal de todos os criminosos, seja nos Bál- contrário, serve de estímulo ao patriotismo de-
cãs seja alhures, não avaliza a impunidade daque- fensivo de políticos moderados e bandeira a ser
les cujo processo é possível. Mas, na medida em combatida nas patriotadas grotescas de naciona-
que o Tribunal Penal Internacional permanente listas fanáticos.
não tem competência para casos anteriores à vi-
gência de seus estatutos (iniciada em 2002) e to-
CONCLUSÃO
dos os países egressos da antiga Iugoslávia são
hoje democracias autênticas (sem forças de As guerras balcânicas do final do século XX
ocupação, como as presentes no Iraque), incum- culminaram com a guerra da OTAN contra o que
be a eles punir, por meios legais domésticos, os restara da Iugoslávia sob administração de Milo-
indivíduos que tenham tido sua culpa comprova- sevic após os conflitos da Eslovênia, da Croácia e
da. Essa é a opção seguida, com maior ou menor da Bósnia e a secessão pacífica da Macedônia, ou,
como se diz até hoje, terminaram pela “Guerra
empenho, pelos governos da Croácia, da Sérvia e
do Kossovo”. Tal guerra levou à cunhagem da ex-
de parte da Bósnia-Herzegovina (a entidade de-
pressão novo humanismo militar para a materiali-
nominada República Srpska, oriunda dos Acor-
zação histórica do “direito (ou dever) de ingerên-
dos de Dayton, de 1995, que puseram fim à guer-
cia” – não exercido na Bósnia (senão numa fase
ra fratricida iniciada em 1992). À comunidade in-
do conflito em que a situação das forças da ONU
ternacional incumbe agora, nos Bálcãs, sob esse
se revelara absurda), pois nela se havia optado por
aspecto, zelar para que os tribunais domésticos
funcionem e sejam justos.25 26 Tanto Seselj, presidente do Partido Radical da Sérvia, como Milose-

Enquanto o Tribunal para a ex-Iugoslávia vic, presidente do Partido Socialista, não obstante detidos na Holanda,
encabeçaram as listas de candidatos dos respectivos partidos e foram
vem trabalhando normalmente, já havendo con- eleitos deputados no sufrágio de 28 de dezembro de 2003. Ainda que
denado vários sérvios, croatas e bósnios (e crian- não possam exercer os respectivos mandatos, sua eleição pelo povo em
votação democrática é evidentemente sintomática. O mesmo se pode
afirmar com relação ao total de votos obtidos pelo Partido Radical
25 Fato que se tem revelado difícil até mesmo no Kossovo, sob admi- (33%), que lhe garantem o maior número de deputados no Parla-
nistração da ONU (cf. sobre esse caso o testemunho demolidor do juiz mento, embora não suficiente para formar o governo da Sérvia, nem
francês Patrice de CHARRETTE, 2002). mesmo em coalizão com os socialistas (8% dos votos).

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sanções, que desarmaram os desarmados. Trata- Kapuscinski na Euronews, tenham simplesmente


va-se, no caso do Kossovo, da primeira interven- desaparecido dos noticiários, ao passo que as ten-
ção bélica não autorizada pelo Conselho de Se- sões fervilham. Afinal, o que significam os Bálcãs
gurança movida por valores éticos, em defesa dos nessa era “globalizada” senão uma extensão po-
direitos humanos. bre da Europa, a ser gradual e oportunamente as-
É inegável que, à luz do papel da ONU similada pelas estruturas euroatlânticas, por seu
como testemunha impassível de ações covardes e valor estratégico? O que são os Bálcãs sem guer-
carnificinas gratuitas na Croácia (como nos cer- ras, ainda que potencialmente explosivos, senão
cos de Dubrovnik e de Vukovar) e na Bósnia- uma região desagradavelmente confusa, nova-
Herzegovina (como no cerco de Sarajevo, por mente esquecida no turbilhão de acontecimentos
três anos, e no massacre de Srebenica, onde os in- que vemos todos os dias?
tegrantes das forças de paz chegaram a ser utili-
zados como escudos), o show de força esmaga- Em dezembro de 2003 o general Wesley
dora aplicada no caso do Kossovo pela aliança mi- Clark, ex-comandante da OTAN e pré-candidato
litar euroatlântica teve efeitos positivos. Além da democrata à presidência dos Estados Unidos,
derrota eleitoral de Milosevic nas eleições presi- compareceu ao Tribunal para a ex-Iugoslávia, para
denciais de 2000, seguida da revolta popular em dar seu testemunho no processo contra Slobodan
Belgrado que o expulsou do poder, ela evitou que Milosevic. Com cobertura constante pela televi-
novos massacres se repetissem com igual intensi- são, seu depoimento centrou-se nas longas
dade na República da Macedônia, nos anos 2000- conversações que mantivera com o réu quando
2001. presidente iugoslavo, nas negociações que con-
As implicações dessas intervenções nos duziram aos Acordos de Dayton. A parte mais
Bálcãs extrapolam a região e são atualmente infi- importante foi o diálogo descrito a respeito do
nitas. Não somente porque serviram de ensaio massacre de Srebenica, na Bósnia, em julho de
geral político e exercício de treino para ações de 1995. Segundo ele, Milosevic teria dito, na época,
policiamento da OTAN, na linha adotada como que podia controlar as forças sérvias do território
sua nova rationale, ao celebrar 50 anos, no mundo vizinho. Indagado, então, pelo general norte-
pós-Guerra Fria, em abril de 1999 (durante, por- americano por que motivo, tendo tido conheci-
tanto, os bombardeios que empreendia diaria- mento da intenção do massacre, não usara de sua
mente contra a Iugoslávia). Elas inspiraram o influência para impedir a matança de sete mil mu-
multilateralismo sui generis de coalizões punitivas çulmanos, Milosevic respondera que a havia de-
mais amplas do que a própria OTAN, como as que saconselhado, mas não tinha sido ouvido. Essa
depois intervieram no Afeganistão e no Iraque. parte do depoimento foi amplamente difundida,
Possivelmente inspiraram a nova doutrina militar até pela Euronews. Nem esse nem qualquer outro
norte-americana de ataques unilaterais preempti- canal de televisão daqueles a que tenho acesso ex-
vos (não se sabe bem de quê) contra os chamados plicitaram a resposta contundente do acusado:
“Estados vilões”, sacramentada em Washington, “Isso, general Clark, é deslavada mentira. Em pri-
no início de 2003. Mas pouco resolveram de fato, meiro lugar porque nós dois jamais conversamos
deixando em suspenso o cerne dos problemas sobre Srebenica”. Dela só tive notícia em breve
balcânicos. parágrafo do Herald Tribune, numa matéria iso-
É possível que a afirmação acima soe injus- lada.27
ta, levando em conta que, depois do conflito do Longe de mim dar razão a Slobodan Milo-
Kossovo de 1999 e dos entrechoques na Macedô- sevic e imaginar que Wesley Clark mentiu. Tam-
nia de 2000-2001, os Bálcãs parecem ter entrado pouco pretendo dizer que o comandante norte-
em fase de paz duradoura. Mas é possível tam-
bém que os Bálcãs, pelos motivos apontados por 27 SCIOLINO, 19/dez./03, p. 3.

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americano da OTAN, vencedor dessas guerras, ti- Esse episódio é pequeno ante o que vai pelo
vesse sido incorreto por prestar seu testemunho mundo. Mas ele também comprova a observação
contra o principal adversário. Críticas à sua ida a de Kapuscinski, ao descrever o que define um
Haia foram veiculadas nos media como um ins- acontecimento na fase contemporânea. Os Bálcãs,
trumento indevido de campanha eleitoral. Elas, assim como a Ásia, a África e a América Latina
porém, não são minhas. O que quero dizer é mais evidentemente existem, com suas tragédias e es-
simples, sem intenções escondidas: a resposta do peranças. Mas eles só geram fatos que acontecem
ex-presidente da República da Sérvia e, depois, da quando neles estão presentes e agem soldados
Iugoslávia, ainda que seja falsa (e acredito que o norte-americanos.
era), devia ser difundida com o depoimento acu- Sófia, 30 de dezembro de 2003
satório.

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TARRISSE DA FONTOURA, P.R.C. O Brasil e as Operações de Manutenção de Paz das Nações Unidas. Brasília: Instituto
Rio Branco/FUNAG/Centro de Estudos Estratégicos, 1999.

Dados do autor
Diplomata, atual embaixador do Brasil na
Bulgária e na Macedônia (cumulativo), membro
do Comitê para a Eliminação da Discriminação
Racial (CERD)/Genebra.

Recebimento artigo: 25/fev./04


Consultoria: 26/fev./04 a 5/mar./04
Aprovado: 26/mar./04

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Caminhos da Crítica
Literária Brasileira: Roberto
Schwarz e Luiz Costa Lima
THE PATHS OF BRAZILIAN LITERARY
CRITICISM: ROBERTO SCHWARZ AND
LUIZ COSTA LIMA
Resumo A mola crítica de Roberto Schwarz pensa a relação entre o crítico e a obra di-
cotomicamente: racionalidade versus irracionalidade. Luiz Costa Lima, contemporâneo
de Schwarz, pensa o lugar da obra literária e do crítico tomando por base um mesmo
contexto. O fenômeno da mímesis tanto explica o modo de recepção da obra literária
quanto o seu modo de intelecção, pois ela não supõe exatamente a diferença, e sim a
semelhança. Enfim, a concepção crítica de Roberto Schwarz e a de Luiz Costa Lima
se opõem drasticamente. Contudo, tentaremos mostrar, neste artigo, que a atividade
crítica de cada um deles está inserida numa mesma tradição crítica. Assim, faremos
um breve questionamento sobre a existência ou não de um sistema de crítica literária SEBASTIÃO MARQUES
que se consolida no Brasil e, em seguida, trataremos separadamente de Roberto CARDOSO
Schwarz e de Luiz Costa Lima, esforçando-nos em mostrar, quase sempre, a dívida Universidade Estadual do
Centro-Oeste (Unicentro)/PR
que esses críticos têm em relação ao nosso passado crítico.
sebastiaomarques@uol.com.br
Palavras-chave CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA – ROBERTO SCHWARZ – LUIZ COS-
TA LIMA – HISTÓRIA LITERÁRIA BRASILEIRA.

Abstract Roberto Schwarz’s critical activity conceives the relationship between the
critic and the work dichotomously: rationality vs. irrationality. Luiz Costa Lima,
contemporaneous with Schwarz, conceives the place of the literary work and the
place of the critic from the same context. The phenomenon of mimesis explains both
the manner the literary work is received and its mode of intellection, because it does
not suppose the différance/difference but the similarity (homoiosis). After all, the
critical conception of Roberto Schwarz and Luiz Costa Lima are opposed drastically.
However, in this article, we attempt to show that their critical activity belongs to the
same critical tradition. Thus, we briefly question whether there is a system of literary
criticism that consolidates in Brazil and, after that, we deal with Roberto Schwarz and
Luiz Costa Lima separately, trying to show, almost always, the debt which these
critics have to our critical past.

Keywords BRAZILIAN LITERARY CRITICISM – ROBERTO SCHWARZ – LUIZ COSTA


LIMA – BRAZILIAN LITERARY HISTORY.

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O canto das sereias transpassava tudo e a paixão dos seduzidos teria arre-
batado mais correntes e mastro. Mas Odisseu nem pensou nisso, embora
talvez tenha ouvido falar disso. Confiava plenamente no punhado de cera e
no emaranhado de correntes e, em inocente alegria quanto a seus meiozi-
nhos, navegou em direção às sereias.
FRANZ KAFKA

D
iante do crítico, a obra literária. O crítico, com seus meio-
zinhos, esquadrinha seu discurso crítico. Como Odisseu,
o crítico acredita que com um punhado de idéias será pos-
sível ouvir o que as obras literárias têm a dizer. Talvez, essa
crença – a tradição que funda o discurso crítico – o impeça
de ouvir o que as obras também silenciam. Esse silêncio
pode significar a insuficiência dos meios críticos: um pu-
nhado de idéias bastaria para ofuscar aquilo que a obras
literárias confiariam em dizer.
Entre o discurso crítico e a obra, a diferença. Essa diferença é sentida
por Roberto Schwarz, ao analisar a obra de Kafka, em duas categorias.
Do lado do discurso crítico, a categoria que o legitima é a inteligibilidade;
do lado da obra literária, a categoria que a condiciona é a irracionalidade:
“o historiador marxista reduz o opaco, fruto da alienação, à essência hu-
mana inteligível, que é a atividade concreta; em outras palavras, compre-
ende o objeto de estudo em termos de sua própria capacidade de expe-
rimentar situações. Kafka, pelo contrário, deve reduzir a prática inteligí-
vel, fátua ilusão do homem, à essência irracional do ser”.1
Não entrando no mérito da leitura realizada por Schwarz acerca de
A Metamorfose, de Kafka, fica evidente que a mola crítica do autor pensa
a relação entre o crítico e a obra dicotomicamente: racionalidade vs. ir-
racionalidade. Luiz Costa Lima, contemporâneo de Schwarz, pensa o lu-
gar da obra literária e do crítico tomando por base um mesmo contexto.
O fenômeno da mímesis tanto explica o modo de recepção da obra lite-
rária quanto o seu modo de intelecção, pois a atitude mimética não supõe
exatamente a diferença, e sim a semelhança:
Seu componente diferença (relativo à mímesis) só se deixa ver por
contraste com o esperado, a semelhança, vê-la não é entendê-la. Sua
compreensão só é atingível por um ato analítico, que, enquanto ana-
lítico, já não é estético. Mas, por não ser estético, não compreende
senão o que se lhe mostra em uma experiência estética. A mímesis
artística, em suma, é a condição para nos compreendermos como su-

1 SCHWARZ, 1981, p. 65.

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jeitos fraturados: a experiência estética donado à própria sorte. Portanto, um período


nos faz sentir nosso próprio estado (Zus- cinzento marca a nossa formação intelectual, sem
tand).2 nenhuma gota de sangue derramada. Éramos
órfãos de nós mesmos, tivemos de aprender a ca-
Para Luiz Costa Lima, a atividade crítica
minhar tropeçando em teorias européias, catalo-
consiste em, a partir da experiência estética, ten-
gando escritores nacionais e lendo ou escrevendo
tar dizer analiticamente aquilo que nos foi mos-
artigos para um público seleto: ou era para nossos
trado e reconhecido no discurso ficcional como
próprios amigos ou era para satisfazer nossas
produção de uma nova verossimilhança.
próprias veleidades intelectuais.
Diante do exposto, podemos dizer que a
Nossa atividade intelectual se resumiu a
concepção crítica de Roberto Schwarz e a de Luiz
grupos ou indivíduos isolados entre si que bus-
Costa Lima se opõem drasticamente. Contudo,
caram, com base na filtragem de modelos cultu-
tentaremos mostrar, neste ensaio, que a atividade
rais externos ao País (ou, em muitos casos, à as-
crítica de cada um deles está inserida numa mes-
similação irrefletida de correntes teóricas estran-
ma tradição crítica. No caso de Luiz Costa Lima,
geiras), um olhar específico (ou, na segunda hi-
talvez sua experimentação em outras paragens pótese, estrangeiro) acerca de nossa vida material
críticas se explique por não confiar plenamente no e cultural. Ao que parece, os intelectuais, que es-
punhado de cera e no emaranhado de correntes de tabeleceram um diálogo entre nossa herança po-
nossa tradição crítica. Pensando nisso, faremos lítico-cultural e a relação que essa mantinha com
um breve questionamento sobre a existência ou a conjectura político-cultural internacional, fo-
não de um sistema de crítica literária que se con- ram justamente aqueles que melhor vislumbra-
solida no Brasil e, em seguida, trataremos separa- ram o Brasil contemporâneo, que melhor contri-
damente de Roberto Schwarz e de Luiz Costa Li- buíram para uma re-leitura de nosso passado po-
ma, esforçando-nos em mostrar, quase sempre, a lítico, econômico, social e cultural. Para lembrar
dívida que esses críticos têm em relação ao nosso apenas alguns desses intelectuais da linha de fren-
passado crítico. te, basta consultar os trabalhos de Sérgio Buarque
de Holanda, Caio Prado Júnior, Gilberto Freire,
I. O BRASIL POSSUI UM SISTEMA Celso Furtado e, na crítica literária, de Antonio
CONSOLIDADO DE CRÍTICA LITERÁRIA? Candido.
No Brasil, a atividade intelectual, além de Em face da premente necessidade de auto-
escassa, sempre encontrou fortes resistências. afirmação ou de distinção intelectual perante ou-
Não nos assustemos com o termo empregado tras culturas, espécie de complexo de Édipo da
fortes resistências, pois não fazemos alusão aos pe- cultura brasileira, a atividade intelectual permane-
ríodos negros experimentados pela intelectuali- ceu no País, por um longo período, discutindo
dade ao longo da História, como perseguição po- temas como originalidade, nacionalidade ou bra-
lítica, deportação, exílio, tortura e outras formas silidade, sem, muitas vezes, dar passos maiores
de repressão utilizadas pelos Estados modernos em outros campos teóricos. Recentemente, no
para calar a voz crítica e insatisfeita daqueles que terreno da teoria da literatura, muito se falou, por
os denunciavam. No Brasil, com raras exceções, exemplo, em literatura nacional, influências e em-
as fortes resistências ao pensamento crítico fo- préstimos lingüísticos etc. Como uma leve brisa,
ram tranqüilas como um amanhecer preguiçoso essas discussões, estimuladas por correntes teóri-
em época de férias. São fortes resistências porque cas estrangeiras, mais uma vez se mostraram frá-
o pensamento crítico brasileiro foi mantido, por geis e insuficientes para dar conta de nossa com-
muito tempo, em um estado embrionário, aban- plexidade cultural. O hábito extremamente dano-
so de continuamente virar o pescoço para se
2 LIMA, 2000, p. 394. apropriar de teorias alheias provoca, além de irre-

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cuperáveis torcicolos, o vício intelectual de sem- daquela; a existência de uma cidade e nela
pre estar com uma teoria nova, o remédio defini- de uma sociedade bastante culta e opulen-
tivo para os piores males de nossa má formação ta e amiga do grande luxo, que empre-
cultural. guem o artista e lhe remunerem o traba-
lho, é a primeira e indispensável.3
Portanto, as resistências ao pensamento crí-
tico no Brasil não devem ser entendidas como Além de a arte literária ter sobre as belas-ar-
posturas ideológicas contrárias de origem especi- tes a vantagem de dispensar as condições materiais
ficamente políticas. Nem por isso queremos di- de produção indispensáveis a elas, o gosto do bra-
zer que eventos políticos dessa ordem não inter- sileiro pela literatura tem suas raízes na tradição
ferem sub-repticiamente na formação ou de-for- literária portuguesa:
mação de um povo. Contudo, não será essa a
principal questão a ser abordada por nós, haja vis- A causa desta nossa florescência poética
ta que nosso maior interesse concentra-se sobre- não foi a terra, nem essa beleza exagerada
que lhe emprestou o nosso nativismo, de
tudo no terreno da crítica literária brasileira.
que muitos poetas nossos foram os can-
Como entraves à progressão do pensamento crí-
tores conscientes e entusiastas, e que se
tico em nossa gleba, consideraremos, pois, ques- sistematizaria, é quase um dever de patrio-
tões mais elementares, como o nosso atraso ma- tismo reconhecer, em Rocha Pita. Foi a
terial em relação às nações mais desenvolvidas, o herança portuguesa, a tradição literária e
nosso passado colonial e a precariedade de nosso poética de um povo cuja poesia, no século
meio cultural. da conquista, era das mais ilustres da Eu-
Há, hoje em dia, condições favoráveis para ropa.4
o desenvolvimento de diversas artes no País. A
O atraso material pode ter sido positivo
pintura, o teatro, o cinema, a escultura, a arquite-
quanto à produção literária até o momento de sua
tura, a dança, bem como outras formas de ex-
consolidação no Brasil, mas não o foi igualmente
pressão em arte já podem ser produzidas no Bra-
para o campo das idéias. A ausência de bibliotecas
sil por conta de políticas de incentivos financei-
em nosso meio, dificultando a recepção de textos
ros. Um bom exemplo disso foi o projeto Rou-
literários e críticos, obrigava o leitor, quando dis-
anet, lei governamental que permite destinar
punha de condições materiais favoráveis, a recor-
parte das verbas do setor privado à produção ci-
rer a bibliografias estrangeiras. Elas acabavam in-
nematográfica. Mas a arte cultivada em momen-
cidindo na formação teórica de um intelectual,
tos iniciais de nossa formação e que, ao longo do
cujas idéias acerca das condições de produção
tempo, atingiu a maioridade, sendo ainda hoje
literárias brasileiras pouco se diferençavam das
responsável por grande parte de nossa produção
posições críticas estrangeiras, demonstrando
cultural, é, sem dúvida, a arte literária.
quase sempre desconhecimento e preconceito
A arte literária se expandiu pelo País pari quanto às atividades culturais nacionais. Cria-
passu à nossa formação cultural, em decorrência vam-se lentamente um ódio e um desprezo inte-
de nossa herança cultural e de nossa precariedade lectual sem precedentes às coisas do Brasil.
material, como bem atesta José Veríssimo:
Para agravar ainda mais a situação, o Brasil
O próprio aparelho técnico indispensável Colônia deixou-nos uma herança cultural ainda
à produção da obra de arte, seja em mú- forte em nosso meio: a crítica louvaminheira.
sica, seja em pintura, seja em escultura, Essa crítica da corte, para alegrar o paço, impreg-
seja em arquitetura, é muito mais consi- nada de efusivos adjetivos e erudição, que, mais
derável e custoso que o preciso para a tarde passa a ocupar considerável espaço nos jor-
produção da obra literária. Um conjunto
de condições sociais, menos de rigor na 3 VERÍSSIMO, 1977, p. 46.
produção desta, é quase obrigatório na 4 Ibid., p. 48-49.

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nais republicanos, foi uma tendência e continua to crítico sistematizado. Conseqüentemente, ape-
sendo, infelizmente, o que reduziu o espaço da sar de efervescente, surgiu no Brasil uma crítica
crítica ao comentário elogioso ou, quando não, superficialmente teórica, que demonstrava pro-
impregnado de sentimentalismos e idéias infun- fundo desprezo à produção literária brasileira,
dadas. A bem dizer, a ausência de critérios e a quando não caía simplesmente na moda nacional:
prosa solta são sua marca maior, atestando o seu a crítica louvaminheira, que perdurou até nossos
alto grau de inobjetividade. Comentando a pro- dias.
dução literária e crítica do período modernista de Contra a crítica louvaminheira, uma crítica
nossa literatura, Sérgio Milliet a define, ao mes- empenhada e bastante consciente de seu papel
mo tempo em que levanta os perigos que nossas crítico, uma crítica de pressupostos teóricos mais
letras correm quando estão sob os auspícios des- firmes, uma crítica que representa uma releitura
ses críticos do paço: de nossa incipiente tradição crítica e literária, en-
A grande miséria de nosso romance não
fim, uma crítica literária que se assume como dis-
está no romance mas na crítica. É a crítica curso crítico sistematizado no Brasil. Esse mode-
jornalística e radiofônica publicitária e lo de crítica consolida-se, no País, com a publica-
sem critério, a culpa de todo mal (...). É a ção da Formação da Literatura Brasileira (1959),6
crítica louvaminheira de quaisquer medio- de Antonio Candido. Podemos perceber que, na
cridades bem apadrinhada e ignorante das crítica empreendida por Antonio Candido, con-
obras mais sólidas. É a crítica noticiarista vergem tanto nosso passado crítico (José Veríssi-
empanturrada de adjetivos, sem pondera- mo e Sílvio Romero, por exemplo) quanto a pro-
ção nem convicções. Entre a plêiade de dução crítica posterior a ela (Roberto Schwarz,
bons ensaístas das levas intelectuais surgi-
Luiz Costa Lima e outros).
das em nosso mundo literário depois de
1922, quantos ocupam os rodapés dos Não é possível responder à pergunta “O
jornais? Não são estes entregues quase Brasil tem um sistema intelectual?” por, pelo me-
sempre a gente mais ou menos desclassi- nos, dois motivos. Primeiramente, porque ela é
ficada no mundo das letras, ou por sua in- ampla, o que faz cair numa generalização sem ta-
cultura ou pela sua incapacidade criado- manho. Mesmo que, como Luiz Costa Lima for-
ra?5 mula, em “Da existência precária: o sistema inte-
lectual no Brasil”,7 especifiquemos o conceito de
Podemos concluir, até então, que, no refe-
sistema (termo emprestado de Antonio Candi-
rente à produção literária no Brasil, o atraso ma-
do), a intelectualidade brasileira parece bastante
terial contribuiu para a formação de nossa litera-
dispersa, não podendo, assim, ser considerada sis-
tura, cujas raízes têm a literatura portuguesa
como matriz. Entretanto, no que diz respeito à têmica. Em segundo lugar, falta-nos dados preci-
produção crítica, esse atraso dificultou a leitura e sos acerca do movimento intelectual, desde suas
a recepção de textos literários no País, provocan- origens até os dias de hoje, no Brasil. Desconhe-
do um desconhecimento generalizado acerca da cemos trabalhos que tratam o assunto de maneira
produção literária nacional, e obrigou esses leito- profunda e exaustiva. Rotineiramente, temos
res críticos a importar teorias européias, sem maio- especulações e muitos questionamentos sobre a
res reflexões. Assim, enquanto Machado de Assis inexistência ou não de uma vida intelectual orgâ-
dava o golpe de misericórdia na literatura de fei- nica no País, não chegando a constituir uma mas-
ções ainda portuguesas, Silvio Romero, Araripe 6 Colocamos o ano de 1959 para fazer referência à primeira edição da
Júnior e José Veríssimo davam os passos iniciais, obra crítica de Antonio Candido, servindo-nos apenas como baliza
mas decisivos, para a formação de um pensamen- temporal. Para a demonstração crítica da obra, utilizaremos, neste
ensaio, a oitava edição da Formação da Literatura Brasileira, publicada
pela Editora Itatiaia, em 1997.
5 MILLIET, 1944, p. 21. 7 Cf. LIMA, 1981.

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sa de conhecimento científico consistente, digna Candido. Referimo-nos à leitura dos ensaios e,


de ser apreciada. sobretudo, da Formação da Literatura Brasileira:
Ora, se não é possível responder à pergun- textos de Antonio Candido referentes ao perío-
ta “O Brasil tem um sistema intelectual?”, então, do formativo de nossa literatura. O mestre ime-
a reformulemos, dando-lhe as especificações ne- diato de Roberto Schwarz − Antonio Candido −
cessárias: o Brasil possui um sistema consolidado foi responsável pela exposição de uma tradição
de crítica literária? Para Luiz Costa Lima, o sis- literária nacional cuja figura nevrálgica, tanto no
tema intelectual é incipientemente legitimado quadro gerativo de nossa literatura quanto na
com a independência e a unificação política do concepção teórica do autor, era, sem sombras de
Brasil.8 Restringindo a assertiva do crítico mara- dúvida, Machado de Assis. A prosa machadiana
nhense, talvez pudéssemos melhor dizer que sur- foi tomada por Antonio Candido e, mais tarde,
ge, nessa mesma época, uma crítica literária em- desenvolvida por Roberto Schwarz, nos seus cé-
penhada, diferente daquela praticada anterior- lebres estudos sobre Machado de Assis,10 como
mente − voltada exclusivamente para fora. A mis- uma síntese de tendências universalistas e particu-
são agora é implantar uma crítica notadamente laristas.
brasileira, e diversa da crítica que se seguirá, por- Para fins de análise, recapitulemos um tre-
que ainda não possui um centro decisório pró- cho da Formação da Literatura Brasileira, de An-
prio (síntese das buscas críticas anteriores). tonio Candido, considerando-o como metoní-
Como já salientamos, a força crítica de Antonio mia do seu método crítico:
Candido resulta do esforço analítico dos primei-
ros críticos literários, que procuraram fazer uma Se voltarmos porém as vistas para Macha-
crítica de feições brasílicas.9 do de Assis, veremos que esse mestre
admirável se embebeu meticulosamente
A brevidade deste ensaio não permite uma da obra dos predecessores. A sua linha
análise detalhada do período formativo de nossa evolutiva mostra o escritor altamente
crítica literária, nem dedicar páginas e mais pági- consciente, que compreendeu o que havia
nas sobre a importância que a crítica empreendi- de certo, de definitivo, na orientação de
da por Antonio Candido exerce na crítica literá- Machado para a descrição de costumes,
ria nacional desenvolvida posteriormente, ora por no realismo sadio e colorido de Manuel
uma assimilação quase direta, como aparece em Antônio, na vocação analítica de José de
Roberto Schwarz, ora por uma assimilação indi- Alencar. Ele pressupõe a existência dos
reta ou disfarçada, como se vê em Luiz Costa Li- predecessores, e esta é uma das razões da
sua grandeza: uma literatura em que, a
ma. Nosso intento, a partir de agora, é recuperar
cada geração, os melhores recomeçam da
e tentar descobrir, por meio dos trabalhos críti-
capo e só os medíocres continuam o pas-
cos desses dois últimos autores, os rumos da crí- sado, ele aplicou o seu gênio em assimilar,
tica literária brasileira contemporânea. aprofundar, fecundar o legado positivo
das experiências anteriores. Este é o se-
II. A TEORIA ENTRA PELA PORTA DOS gredo da sua independência em relação
FUNDOS: ROBERTO SCHWARZ E A aos contemporâneos europeus, do seu
alheamento às modas literárias de Portu-
ATIVIDADE CRÍTICA NO BRASIL
gal e França.11
CONTEMPORÂNEO
O caminho crítico adotado por Roberto O filósofo Paulo Eduardo Arantes não só
Schwarz desvela uma leitura atenta e criteriosa reconhece a presença de “Tradição e talento indi-
dos textos críticos mais importantes de Antonio vidual”, de T. S. Eliot, no conceito nutrido por

8 Ibid., p. 12. 10 Cf. SCHWARZ, 1990 e 1977.


9 ARANTES, 1992, p. 236-238. 11 CANDIDO, 1997, p. 104, vol. II.

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Antonio Candido em relação a Machado de As- de literatura como sistema, a entrada na crítica
sis, como também presume que, na própria for- literária pela porta dos fundos, uma forte tendên-
mação teórica do crítico, a fórmula de Eliot tam- cia pelo ensaísmo crítico e um deliberado desas-
bém se aplica: sossego em relação à teoria são as marcas de Can-
dido assimiladas por Schwarz, sem muita resis-
Vê-se (...) que mesmo com a fórmula de tência. Isso decorre, talvez, da exagerada e íntima
Eliot muito presente, Antonio Candido
proximidade intelectual entre um e outro, bem
ajustou-se antes de tudo pela lição de Síl-
vio Romero e José Veríssimo, natural-
como da forte tendência sociológica de Roberto
mente revista e corrigida, como se depre- Schwarz, como bem o declara no prefácio de seu
ende desta reconstituição da carreira de Um Mestre na Periferia do Capitalismo: “Devo
Machado de Assis, que finalmente cum- uma nota especial a Antonio Candido, de cujos
pria o programa de continuidade cultural livros e pontos de vista me impregnei muito, o
por canalização do influxo interno, e cor- que as notas de pé-de-página não têm como re-
respondente desprovincianização da fletir. Meu trabalho seria impensável igualmente
consciência literária, traçado pelos dois sem a tradição − contraditória − formada por
críticos nas linhas tortas que se viu.12 Lukács, Benjamin, Brecht e Adorno, e sem a ins-
A entrada de Antonio Candido na crítica piração de Marx”.13
literária pela porta dos fundos − ao rever o método Isso posto, como Schwarz vai equacionar o
crítico de Sílvio Romero e as concepções literárias problema da teoria? A experiência de Schwarz
de José Veríssimo, por exemplo − possibilitou-lhe com a teoria não está tão distante da experiência
um olhar descurado e profundo acerca de nossa de Antonio Candido, em virtude da proximidade
frágil produção literária e intelectual. Pela porta de ponto de vista. Candido nunca temeu a teoria,
dos fundos, a crítica literária brasileira se conso- temia apenas o ridículo local de confundi-la com
lidou. Contudo, Antonio Candido demonstrou resenha bibliográfica e a habitual colcha de cita-
uma singular desconfiança em relação à teoria (a ções a esmo, no conjunto, involuntariamente pa-
prata da casa) ou, dito de outra maneira, percebeu ródica.14
e procurou purgar tudo aquilo que é acessório em No curso de Letras, Roberto Schwarz as-
literatura, ou seja, tudo aquilo que se passava no siste ao passeio dessas teorias que passam por
País como teoria. Essa aversão à teoria, embora nossa academia sem deixar rastros ou quaisquer
justificável, não deixa de ser polêmica. Como ve- vestígios de proveito em nossa tradição crítica:
remos a seguir, Luiz Costa Lima tocará o dedo na
Nos vinte anos em que tenho dado aula
ferida, não poupando nenhuma crítica que possa
de literatura assisti ao trânsito da crítica
gerar incômodo nos seguidores mais eloqüazes por impressionismo, historiografia positi-
de Antonio Candido. vista, new criticism americano, estilística,
Como já afirmamos anteriormente, Rober- marxismo, fenomenologia, estruturalis-
to Schwarz é o discípulo mais imediato e bem mo, pós-estruturalismo e agora teorias da
comportado de Antonio Candido, pois segue as recepção. A lista é impressionante e atesta
linhas do mestre com muita cautela. Machado de o esforço de atualização e desprovinciani-
Assis, por exemplo, ponto chave da sua Forma- zação em nossa universidade. Mas é fácil
ção da Literatura Brasileira, recebe dois cuidado- observar que só raramente a passagem de
uma escola a outra corresponde, como se-
sos estudos por parte de Roberto Schwarz, o que
ria de esperar, ao esgotamento de um pro-
atesta indiscutivelmente a continuidade do proje- jeto; no geral ela se deve ao prestígio ame-
to de Antonio Candido, agora sob o influxo de ricano ou europeu da doutrina seguinte.
uma pena de outro autor. Em síntese, a concepção
13 SCHWARZ, 1990, p. 13.
12 ARANTES, 1992, p. 240. 14 ARANTES, 1992, p. 245.

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Resulta a impressão − decepcionante − da colônia, quando não renunciava à criticidade,


mudança sem necessidade interna, e por dava-lhe a sensação de não pertencer a nenhum
isso mesmo sem proveito.15 grupo socialmente definido. Gregório de Matos é
A mudança de uma teoria para outra sem ne- o exemplo desse desconforto.
cessidade interna é uma ideologia, no sentido mar- O Boca do Inferno, como assim o chama-
xista, que merece ser combatida. Essa prática, na vam, não se ligou fidedignamente nem aos rei-
concepção de Schwarz, tem precedentes históricos nóis e nem aos brancos de segunda-classe. Além da
que fazem conviver, no Brasil contemporâneo, literatura cuja expressão era a da classe dominan-
princípios burgueses atrelados a comportamentos te, o que prevaleceu, na produção cultural da era
sociais de nossa vida colonial. A necessidade interna colonial, foi um moralismo crítico simpático ao
em Schwarz constitui uma teia de relações entre o retoricismo e ao nativismo/nacionalismo sem
local e a tradição. Em outras palavras, é a força de maiores reflexões. Mesmo com a vinda da família
um sistema local de problemas e contradições real ao Brasil e, posteriormente, com o advento
que, exigindo mobilidade interna, filtra a oferta das Repúblicas, a situação do intelectual no País
internacional de teorias. Com isso, deixaríamos não se alterou significativamente. Isso posto,
de ser provincianos, no entender de Schwarz, ao Luiz Costa Lima aponta três características que
mesmo tempo em que nossa vida cultural se marcam indelevelmente nosso precário sistema
transforma, rejeitando o caráter postiço, inautênti- intelectual: uma cultura predominantemente au-
co e imitado que nos dominou por longo tempo. ditiva, uma cultura voltada para fora e um sistema
A pungência da experiência local exerceria, então, intelectual que não possui um centro próprio de
um papel decisório nesse processo. decisão.
Em síntese, as teorias internacionais, à luz Como traço da cultura auditiva, devemos
de Roberto Schwarz, serão bem-vindas e incor- entendê-lo como a migração do aspecto oral de
poradas ao nosso meio a partir do momento em nossa cultura para o âmbito das letras, introduzi-
que, estimuladas por nossas necessidades inter- do entre nós pelo ensino jesuítico: “O efeito de
nas, venham a contribuir significativamente para impacto produzido (pelos sermões de Padre An-
a superação prática das arenas locais e nacionais.
tônio Vieira, por exemplo) consistia em impres-
sionar o auditório, em esmagar a sua capacidade
III. A PRATA DA CASA: LUIZ COSTA dialogal, em deixá-lo pasmo e boquiaberto ante a
LIMA E A DISSIDÊNCIA DA CRÍTICA perícia verbal e a teatralização gesticulatória, ma-
LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA neiras de rapidamente subjugar o auditório”.17
Para Luiz Costa Lima, há um certo incô- A cultura da persuasão instalou-se também
modo em ser intelectual no Brasil, pois seu ter- em nossa produção intelectual. Ela corresponde a
reno é vago e difuso, por uma série de fatores.16 um entrelaçamento de intuicionismo e culto da
Nossa cultura, diferentemente da dos países his- praticidade, que acaba desembocando, quase
panoamericanos, se impôs de cima para baixo, sempre, num autoritarismo crítico e numa de-
obrigando o intelectual a optar, desde cedo, pela
pendência cultural in continenti.
palavra teatralizada. Essa palavra teatral – retórica
vazia ou restos de janta abaianada – era muito Na produção intelectual domina a preocu-
bem-aceita pelas agências do paço. Em outras pa- pação com a apresentação externa do trabalho
lavras, trata-se da crítica louvaminheira, como vi- crítico, e não a atenção a suas relações internas.
mos no estudo precedente. Contudo, quando Isso, além de ser um traço de nosso precário sis-
esse intelectual não se curvava aos interesses da tema intelectual, tem conseqüências funestas em
nossa cultura. A preocupação com a exteriorida-
15 SCHWARZ, 1987, p. 30.
16 Cf. LIMA, 1981, p. 3-29. 17 Ibid., p. 16.

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de – o ostentatório – acaba gerando, em nosso da teoria. Ou dito de maneira grosseira: na incapa-


meio, a ânsia cultural pela teoria sempre nova. cidade mesmo de teorizar o discurso ficcional.
Com isso, não se produz teoria, importa-a. Em Sílvio Romero, a utilização de concei-
Entre uma importação e outra, esquece-se de eri- tos como fluência, naturalidade, emoção, comuni-
gir uma teoria crítica bem fundamentada, obede- cabilidade, entusiasmo, vida, capacidade de prose-
cendo aos imperativos de nossa cultura e prolon- litismo própria das almas combatentes e naciona-
gando-se lentamente por outros continuadores, lismo obedece aos imperativos da sociologia sem,
exclusivamente brasileiros ou não. Porém, a cul- contudo, uma definição clara e precisa dos ter-
tura ostentatória, orientada por modelos exter- mos. O último desses conceitos – nacionalismo –
nos à nossa cultura, não permite e exclui qualquer é tido por Sílvio Romero como o critério primor-
possibilidade, no Brasil, de teorizar sem medo. dial ao exame crítico. Machado de Assis seria,
Sempre há, na agenda do crítico brasileiro, coisas com certeza, a sua vítima predileta, pois não re-
mais urgentes a realizar! sumia a estreiteza das características nacionais
impostas pelo critério sociológico.
Em decorrência de nossa auditividade e os-
tentação culturais, somos impedidos de ter um Ao reler Sílvio Romero, Luiz Costa Lima
pensamento original. Isso impossibilita escolher obtém a seguinte conclusão:
ou mesmo avaliar a pertinência de certa obra, cor- Notamos primeiro uma marca afirmativa:
rente ou teoria, pois somos incapazes de tomar a busca de entender a obra literária não
decisões sozinhos: “Dizemos que nos falta um como espécie isolada, mas no conjunto
pensamento original, não só por não termos as das transformações sociais. Perfilaram-se
indispensáveis condições materiais (...), como a seguir marcas negativas: a incapacidade
porque as instituições legalmente capacitadas de observar as conseqüências de uma
para julgar as produções intelectuais tendem a anotação capital − impossibilidade de a
trindade taineana explicar as diferenças
não acatar senão os produtos seguidores de uma
das produções individuais − a incapacida-
linhagem já suficientemente legitimada nos cen- de de refletir conceitos utilizados, que en-
tros que reconhecemos”.18 tão passavam ao estado de meras ferra-
Apesar da crítica bastante aguda, Luiz Cos- mentas. Poderíamos resumir o legado ne-
ta Lima não é ortodoxo no que se refere às rela- gativo, declarando-o resultante da incapa-
ções com os grandes centros. Para ele, é impor- cidade de teorizar e da incapacidade de
tante estarmos a par do que se realiza fora do Pa- ler.19
ís, porém, devemos agir com muita cautela no Com relação a José Veríssimo, nele perpas-
momento de decidir acerca de uma metodologia sa a mesma preocupação com as condições sociais
ou de uma teoria. Para não incorrer nos mesmos que circulam a atividade do intelecto brasileiro, a
erros que tradicionalmente a crítica comete quan- mesma preocupação com o caráter nacional da li-
to ao uso da teoria ou do método, é mister reler teratura, a mesma afirmação anti-romântica em
nosso passado crítico com as lentes raras de Luiz favor da objetividade e do realismo, a mesma ca-
Costa Lima. racterização da crítica empenhada no esforço da
Se fizermos um balanço da crítica literária construção nacional. Contudo, o olhar de Verís-
produzida no Brasil a partir do final século XIX, simo é mais penetrante, pois ele percebeu que as
com Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Jú- amarras de nosso pensamento crítico eram for-
nior, chegaremos à conclusão de que o problema necidas pela sociedade burguesa européia. Em su-
dela está, exatamente, na incapacidade de apreen- ma, os critérios de procedência sociológica e o de
der a especificidade do discurso ficcional por meio proveniência retórica são, guardadas as pro-

18 Ibid., p. 24. 19 Ibid., p. 39-40.

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porções, os traços da crítica literária produzida versificadas, desde a vertente literaria-


tanto por José Veríssimo quanto por Sílvio Ro- mente mais revolucionária (Guimarães
mero: “Se em Sílvio Romero a centralidade da Rosa, a poesia concreta, a valorização
preocupação sociológica provoca a primazia do crescente da poesia de Cabral) até a mais
critério nacionalista, em José Veríssimo este se epigônica e previsível (a continuação da
prosa realista, o sentimento sonetizado).
torna pano de fundo, enquanto na cena trabalha-
Na frente propriamente crítica, o salto
vam preocupação gramatical e retórica. Tais crité-
talvez tenha sido menor, pois, embora as
rios, contudo, já são sobredeterminados pelo có- obras de Afrânio Coutinho, Antonio
digo moralizante tanto de Sílvio quanto de Verís- Candido e Haroldo de Campos − com
simo”.20 todas as diferenças internas e de qualidade
Diferentemente de Sílvio Romero e José − apresentam resultados e preocupações
Veríssimo, Araripe Júnior sustentará um forte metodológicas sem paralelo com a crítica
desejo em sua crítica contra o sociologismo cien- que se desenvolvera de Sílvio Romero a
tificista. Entre o objeto e o indivíduo haveria uma Álvaro Lins, a sua novidade está na frente
mediação flutuante: a possibilidade de o objeto metodológica que abrem e não na discus-
provocar impressões. Impressões que se articula- são especificamente teórica. Para que se
riam a partir do gosto e do temperamento do in- entenda o argumento necessitamos ter
bem presente que metodologia não se
térprete, tendo como pontos fixáveis as figuras
confunde com teoria. Não há por certo
de estilo. Assim, a crítica estilístico-psicológica
uma sem a outra, mas podemos desenvol-
de Araripe Júnior aparecia como o instrumento ver um argumento metodológico ou dei-
mais adequado para analisar a individualidade do xando implícito seu embasamento teórico
artista, se não fosse, infelizmente, a precariedade − como é freqüente em Candido − ou o
das metáforas conceituais empregadas. explicitando por repetições do já escrito −
Em síntese, podemos dizer que, ao refazer o caso de A. Coutinho − ou ainda por de-
sucintamente o percurso crítico traçado por Síl- senvolvimentos assistemáticos − a exem-
vio Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior, a plo do que sucede em Haroldo de Cam-
razão do discurso ficcional não se justifica apenas pos. Não dizemos portanto que o pensa-
por critérios (muito mal empregados, por sua mento crítico permaneceu parado, mas
vez) apenas sociológicos, apenas retóricos ou sim que, numa escala de ruptura, ele se
manteve mais próximo da situação tradi-
fundados na mera impressão. Isso posto, é preci-
cional que o todo da criação literária.21
so dar continuidade a essa reflexão, e não evitá-la,
mesmo que desagrade ao leitor, por meio de um Ora, o ofuscamento teórico e o esforço
questionamento crítico que, inevitavelmente, co- metodológico de Candido o ligam sensivelmente
locará a Formação da Literatura Brasileira, de An- à tradição crítica iniciada, no final do século XIX,
tonio Candido, no banco dos réus. no Brasil. Esse ofuscamento teórico tem, contu-
Em face do exposto acima, vejamos uma do, razão de ser. As idéias de sistema e de estru-
citação de Luiz Costa Lima muito esclarecedora, tura, intimamente ligadas ao método crítico ado-
que diz respeito à nossa situação crítica e à con- tado por Antonio Candido, são, como na cultura
fusão prolongada na atividade crítica entre méto- auditiva, pouco explicitadas e questionadas diante
do e teoria: do que deveriam ser, já que constituem pilares de
A ampliação da base econômica e o ad- uma teoria crítica que procura reconstituir a his-
vento de um público diversificado permi- tória dos brasileiros no seu desejo de ter uma lite-
tiram, desde fins da década de 50, o sur- ratura. Em resumo, o descritivismo, a idéia de
gimento de uma prosa e uma poesia di- uma literatura nacional, o método crítico empre-

20 Ibid., p. 45. 21 Ibid., p. 194.

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gado e a obnubilação teórica da Formação da Li- Hoje em dia, podemos afirmar que temos
teratura Brasileira atestam o alto grau de compro- um pensamento crítico sistemático e consolidado
metimento do seu autor com a cultura auditiva.22 no Brasil. Guardadas as proporções, o papel de
nossos primeiros mestres (Sílvio Romero, José
PASSADO, PRESENTE E FUTURO CRÍTICO Veríssimo, Araripe Júnior e demais críticos que se
Nossa reflexão partiu do questionamento seguiram) foi decisivo para a formação de um
se havia ou não, no Brasil, um sistema crítico cânone crítico notadamente brasileiro. Tal pensa-
consolidado, e como esse sistema teria se com- mento se firmou com a publicação da Formação
portado durante as nossas primeiras incursões no da Literatura Brasileira, de Antonio Candido:
terreno crítico. Percebemos, então, que a crítica essa obra crítica viria a ser o divisor de águas de
louvaminheira foi a primeira manifestação crítica nossa ainda frágil, porém empenhada, crítica lite-
no Brasil. Trata-se de uma vertente que, ainda ho- rária brasileira. Por um lado, teríamos uma crítica
je, repercute na crítica diletante, com ecos, às ve- ao rés-do-chão, que procura desvendar no loca-
zes, em trabalhos de alguns renomados profissio-
lismo as frinchas mais atávicas do universalismo,
nais da crítica. Contra a crítica da corte: a crítica
empreendida por Roberto Schwarz; por outro,
séria, científica, acadêmica e empenhada. É esse
uma crítica que exige não só o reconhecimento
último modelo que abordamos ao falar da crítica
de nosso debilitado contexto intelectual, como
literária produzida no século XIX, da capacidade
de síntese crítica da Formação da Literatura Bra- também a sua superação por meio de uma tra-
sileira, de Candido, do desdobramento do proje- dição teórica tornada visível a olho nu, empreen-
to desse autor, por força da pena de Roberto dida por Luiz Costa Lima. Assim, partindo do
Schwarz, e da releitura de nosso passado crítico, mesmo punhado de cera e de correntes (nossa tra-
porém não menos compromissada, sob o influxo dição crítica), Schwarz e Costa Lima navegam em
do pensamento de Luiz Costa Lima. direção às sereias (obra literária), esquadrinhando,
com seus meiozinhos particulares, a história da crí-
22 LIMA, 1992, p. 153-169. tica literária brasileira.

Referências Bibliográficas
ARANTES, P.E. “Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo”. In: D’INCAO, M.A. & SCARA-
BÔTOLO, E.F. (orgs.). Dentro do Texto, Dentro da Vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia
das Letras/Instituto Moreira Salles, 1992.
CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira. 8. ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1997, vol. I e II.
ELIOT, T.S.“Tradição e talento individual”. In: _____. Ensaios. Trad.: Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989.
LIMA, L.C. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
_____. “Concepção de história literária na Formação”. In: D’INCAO, M.A. & SCARABÔTOLO, E.F. (orgs.). Dentro do
Texto, Dentro da Vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das Letras/Instituto Moreira
Salles, 1992.
_____. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981.
MILLIET, S. Diário crítico. São Paulo: Brasiliense, 1944.
SCHWARZ, R. Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.
_____. Que Horas São? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
_____. A Sereia e o Desconfiado: ensaios críticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
_____. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

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VERÍSSIMO, J.“Das condições de produção literária no Brasil”. In: BARBOSA, J.A. (sel. e apres.). José Veríssimo: teoria,
crítica e história literária. Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/Edusp, 1977.

Dados do autor
Professor no Departamento de Letras da
Universidade Estadual do Centro-Oeste
(Unicentro), Guarapuava/PR, atuando na área de
literatura brasileira e teoria literária. Doutorando em
letras (teoria e história literária) pela Unicamp e
mestre em letras (teoria literária e literatura comparada)
pela Unesp.

Recebimento artigo: 2/fev./04


Consultoria: 9/fev./04 a 5/mar./04
Aprovado: 18/mar./04

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Comunicações
Communications
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Perguntas Epistemológicas de
um Homem Heterossexual.
Comentários sobre alguns
artigos da Impulso 34
EPISTEMOLOGICAL QUESTIONS OF A
HETEROSEXUAL MAN. COMMENTS ON
SOME ARTICLES OF IMPULSO 34*
Resumo Partindo de um olhar sociológico e politológico, essa comunicação faz uma
aproximação epistemológica a dois artigos da seção “Religião, Cultura e Gênero”, da
edição 34 da revista Impulso: “Gênero e os Desafios Epistêmicos para a Teologia e ou-
tros Saberes”, de Tânia Mara Vieira Sampaio, e “A Teologia que sai do Armário: um
depoimento teológico”, de André Sidnei Musskopf. Nessa aproximação, procura-
mos, por um lado, rastrear os limites da idéia de religião em diálogo e, por outro lado,
explorar quais são as propostas dos autores a respeito da objetividade científica (e suas
conseqüências políticas). Também analisamos a concorrência entre os oprimidos impli-
citamente posta em jogo em tais depoimentos teológicos. Por último, fazemos algu-
mas perguntas sobre o papel acadêmico e político, em certos debates, daqueles que
não pertencemos às minorias sexuais ou de gênero.
DANIEL JONES
Palavras-chave EPISTEMOLOGIA – SEXUALIDADE – GÊNERO – DOMINAÇÃO – Universidad de Buenos Aires/
TEOLOGIA. Argentina
elmoro@arnet.com.ar

Abstract From a sociological and political point of view, the present communication
analyzes epistemologically two articles from the Religion, Culture and Gender
section of the journal Impulso: “Gender and Epistemic Challenges for Theology and
other Knowledge”, by Tânia Mara Vieira Sampaio, and “A Theology that Comes out
of the Closet: a theological testimony”, by André Sidnei Musskopf. In this work, we
try, on one hand, to look for the limits of the idea of religion in dialogue and, on the
other hand, to approach which are the authors’ propositions about scientific
objectivity (and their political consequences). We also analyze the competition
between oppressed people, which is implicitly put in practice in these theological
narratives. Lastly, we ask some questions about the academic and political role of
people who are not part of sexual or gender minorities.

Keywords EPISTEMOLOGY – SEXUALITY – GENDER – DOMINATION – THEOLOGY.

* Versão mais longa deste artigo foi apresentada no Colóquio Internacional Religião, Cultura e Gênero,
organizado pela Editora UNIMEP e pela revista Impulso (Piracicaba, 19/mar./04). Subvención: beca de
formación doctoral del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET)/Argen-
tina. Agradecimiento: aos instigantes comentários de Néstor Míguez e Lucia Ariza.

Impulso, Piracicaba, 15(36): 131-139, 2004 131


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A Nono, um adolescente gay que sofre no interior argentino.

N
as linhas a seguir, farei alguns comentários sobre dois ar-
tigos da seção “Religião, Cultura e Gênero”, da edição
34 da revista Impulso: “Gênero e os Desafios Epistêmi-
cos para a Teologia e outros Saberes”, de Tânia Mara Vi-
eira Sampaio, e “A Teologia que sai do Armário: um de-
poimento teológico”, de André Sidnei Musskopf. De-
sejo esclarecer que, neste trabalho, me aterei ao campo
epistemológico, partindo de um olhar sociológico/poli-
tológico1.

O QUE E COM QUEM FALAMOS NA RELIGIÃO EM


DIÁLOGO?
Quais são os temas e os campos explorados nos artigos? Segundo
Sampaio,
A urgente tarefa de enfrentar o debate epistemológico na academia,
tomando por base uma perspectiva de gênero, foi aqui assumida por
meio de uma abordagem que contempla a discussão teórica de gênero
e sua articulação com o cotidiano, incluindo o do diálogo entre os sa-
beres. (...) Procura-se ler tais produções, indagando sobre as lingua-
gens implícitas e os silêncios contidos na articulação das palavras.2

Parafraseando essa autora, talvez tenhamos de nos perguntar quais


são os silêncios contidos nessas duas produções de saber? Quais são os li-
mites do diálogo entre os saberes? O objetivo do artigo de Sampaio é “iden-
tificar aportes das teorias de gênero na perspectiva de instrumentais de aná-
lise tanto da área de conhecimento da teologia e das ciências da religião
quanto de seus desdobramentos para a interlocução com outras áreas de
conhecimento”.3 Nem nessa declaração nem no restante do artigo são es-
clarecidas essas ciências da religião. Aliás, as mencionadas contribuições pa-
recem recair exclusivamente sobre o conhecimento da teologia cristã.
Mais à frente isso é explicitado, ao dizer que a interlocução com ou-
tras áreas de conhecimento tem como ponto de partida a revisão teoló-
gica, que volta ao mesmo ponto: uma hermenêutica bíblica como um dos
ramos da teologia.4 Em outras palavras, tanto a pergunta quanto o olhar

1 Não é minha área de trabalho a teologia, nem, muito menos, a hermenêutica bíblica.
2 SAMPAIO, 2003, p. 112-114.
3 Ibid., p. 108.
4 “Dizer o Bem sobre a vida como estética de resistência ao controle da existência é o eixo para propor
esse diálogo interdisciplinar, partindo de uma proposta de revisão teológica” (SAMPAIO, 2003, p. 126. Gri-
fos acrescidos).

132 Impulso, Piracicaba, 15(36): 131-139, 2004


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do artigo movem-se num campo da produção de beres, não deveríamos tentar atenuar as hegemo-
saber. Colocam certas ênfases na análise das rela- nias de uns discursos sobre outros? A apelação a
ções de poder (na verdade, quase exclusivamente uma interdisciplinariedade supostamente iguali-
nas relações sociais de gênero), mas em virtude tária e igualizadora não escurece os conflitos en-
de uma pergunta arqueológica, no sentido fou- tre saberes? É sintomático os quatros artigos da
caulteano de rastreio das condições de possibili- seção “Religião, Cultura e Gênero” serem escri-
dade que permitem o surgimento de certos dis- tos por teólogos e incluírem a palavra teologia (ou
cursos e não de outros.5 O objeto da análise é, alguma outra da mesma família) em seus títulos.
sempre, o texto (bíblico) e suas interpretações. Em segundo lugar, cabe ressaltar que os ar-
Por sua vez, o artigo de Musskopf6 peca no mes- tigos de Sampaio e de Musskopf são antes sobre
mo ponto que o de Sampaio: não é sobre religião, cristianismo que sobre religião – as menções a
mas sobre cristianismo, ficando a discussão nos outras religiões (quando existem) são meramente
limites da teologia, particularmente da herme- enumerativas (ou seja, não fazem a menor análise
nêutica bíblica: delas). Nesse sentido, e em terceiro lugar, o es-
paço do diálogo está claramente delimitado: a te-
Com Uma Brecha no Armário, eu queria ologia cristã, no seu trabalho de hermenêutica bí-
mostrar a existência de um grupo que exi-
blica. Assim, volto a me perguntar se estamos dia-
ge o direito à cidadania religiosa e pode
logando ou se nos encontramos perante um mo-
articular uma teologia própria. (...) A Bí-
blia tem sido em geral usada, com base nólogo (teológico) enriquecido. Quão inclusivos
nos textos de terror, para provar a homos- devem ser o campo e os interlocutores e qual a
sexualidade como algo pecaminoso e an- condição de enunciação deles para falar de diálo-
tinatural. No entanto, a teologia gay pro- go? Existem prioridades enunciativas segundo o
põe uma hermenêutica bíblica para além objeto da reflexão? Nessa linha, qual é o lugar do
desses textos (...) e perguntando como olhar antropológico na abordagem de temas
homens gays lêem a Bíblia.7 como relações de gênero e sexualidade?
Aqui também a luta ocorre no campo dos
textos e, ainda que Musskopf traga os aportes de
OBJETIVIDADE SITUADA É O MESMO QUE
outros saberes para essa análise, ela novamente se CRUISING? OPÇÕES EPISTEMOLÓGICAS E
dá em razão da interpretação bíblica. CONSEQÜÊNCIAS POLÍTICAS
Recapitulando, deveríamos assinalar, pri- No tocante à questão da objetividade/sub-
meiramente, que ambos são estudos teológicos, e jetividade na produção de saber, percebo algumas
não de um campo mais amplo (e indefinido, nes- diferenças significativas entre os dois artigos.
ses artigos) chamado ciências da religião. Ainda Sampaio afirma:
que nos dois textos existam, por exemplo, algu- O propósito de mapear as relações sociais
mas perguntas antropológicas, elas são sempre de de gênero, na multiplicidade dos movi-
e para a teologia. O ponto de partida e o de che- mentos cotidianos presentes nos textos
gada são colocados num mesmo plano, embora normativos das ciências (igualmente nas
isso seja relativamente enriquecido no caminho produções teológicas) (...) já é uma toma-
por outras disciplinas. É esse o sentido da inter- da de posição teórico-metodológica. Essa,
disciplinariedade? Para falar de diálogo entre sa- por sua vez, incide numa atitude de rup-
tura com as pretensões de neutralidade na
5 Cf. FOUCAULT, 1997. produção do conhecimento ou da herme-
6 Trabalharei centralmente com a primeira parte do artigo (MUS- nêutica. (...) Traz também à tona o ques-
SKOPF, 2003, p. 130-136), apresentação das principais teses do livro tionamento de uma objetividade pura
Uma Brecha no Armário: propostas para uma teologia gay (MUS-
SKOPF, 2002). para se associar aos estudos que afirmam
7 MUSSKOPF, 2003, p. 131-134 (grifos acrescidos). ser a objetividade situada a única concebí-

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vel. Além de datada, sexuada e racificada, as mesmas teologia da libertação e teolo-


ela implica tanto eliminar as dualidades gia feminista forneceram o instrumental
sujeito-objeto, objetividade-subjetivida- teórico para a emergência desse sujeito
de, racionalidade-emotividade, público- [gay] (...) gays e lésbicas resgatam suas
privado, pessoal-político etc. quanto experiências, suas formas de experimen-
questionar o caráter genérico, universal e tar, de ver e de encarar o mundo, para po-
atemporal das hermenêuticas e dos co- der emergir como sujeitos de sua própria
nhecimentos. (...) Com base nesses pres- realidade, no fazer da sua própria história
e na construção de uma teologia que res-
supostos de contextualização da objetivi-
ponda às suas vivências. (...) Embora mui-
dade da tarefa analítica, não é estranho ad-
tas vezes não seja considerada uma forma
mitir a subjetividade como parte integran-
autêntica de fazer teologia, dominada ain-
te do método.8 da por padrões de objetividade e univer-
salismo, é na subjetividade e na particula-
Nesse parágrafo convivem, ao menos, dois
ridade do contar histórias de vida que
debates epistemológicos relacionados, mas dife- gays e lésbicas recuperam seu passado de
renciados. O primeiro ocorre ao redor da conce- opressão e dominação.11
pção de objetividade como neutralidade valorati-
va, que Sampaio convida a ultrapassar. Essa con- Numa primeira leitura, parece não haver
cepção da objetividade é própria do eixo muita diferença entre essa e a proposta de Sam-
epistemológico do positivismo (Carnap), do na- paio, especulando, com o que ela concordaria
turalismo (Nagel) e do empirismo lógico (Hem- (como teóloga feminista), sobre partir da experiên-
cia de vida das próprias mulheres. Contudo,
pel) conhecido como consenso ortodoxo. Mas
Musskopf parece renunciar totalmente a alguma
também, em segundo lugar, aparece o debate uni-
idéia de objetividade, mesmo contextualizada,
versalismo/relativismo, na forma de uma crítica
numa distinção que não parece se limitar ao uso
aos enfoques universalistas (em geral, encoberta-
de significantes diferentes. Adverte Sampaio:
mente anglo-saxões e androcêntricos). Apesar
de, em muitas propostas teóricas, conviverem a Todavia, é preciso considerar que admitir
noção de objetividade como neutralidade valora- a subjetividade não significa assumir uma
tiva e a pretensão de universalidade, há casos que relativização total de métodos e resulta-
dos. Não se trata, tampouco, de cada um
reconhecem apenas um dos dois princípios. É o
dizer o que pensa a respeito, nem de legiti-
caso de Habermas,9 que afirma a necessariedade mar qualquer tipo de interpretação. A sub-
do julgamento na compreensão científica e, si- jetividade é compreendida como inte-
multaneamente, assinala o caráter universal – ais- grante do método e integrada ao arca-
tórico, transcultural – da ação comunicativa.10 bouço científico que possibilita a análise e
Portanto, Sampaio propõe uma objetividade con- a produção de saber.12
textualizada (sexuada, racificada, classista) e que Nesse sentido, acho bastante discutível a re-
tome partido, ou seja, uma objetividade capaz de cuperação, feita por Musskopf, da idéia de Koch de
integrar certa noção de subjetividade na tarefa cruising (pegação) como estratégia hermenêutica a
analítica (embora, paradoxalmente, ela mesma as- ser usada nos textos. Cruising refere-se à sensibili-
sinale que essa dualidade deveria ser eliminada). dade de homens gays de encontrar uns aos outros
Por seu lado, Musskopf afirma que em espaços públicos, onde é preciso lidar com
mensagens não faladas dos interlocutores e inter-
8
9
SAMPAIO, 2003, p. 113-114. pretá-las adequadamente. A motivação para utili-
Cf. HABERMAS, 1989; e SCHUSTER & PECHENY, 2002.
10 A respeito da articulação dos dois debates, é interessante o que pro-
põe RORTY (1983): quando acusado de relativista, e ele contra-ataca 11 MUSSKOPF, 2003, p. 132.
definindo a si mesmo como etnocêntrico. Cf. PÉREZ, 2002. 12 SAMPAIO, 2003, p. 114 (grifos acrescidos).

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zar essa estratégia na interpretação bíblica não é a parceiros tem sido muito discutida e criti-
busca por validação institucional ou externa, mas cada pelos defensores de uma moral sexual
“porque nós queremos, porque nós podemos e restrita ao âmbito do casamento e da pro-
porque é algo que nós gostamos”.13 criação e, assim, heterocentrada. (...) A te-
ologia gay também propõe uma nova ética
Seria injusto não dizer que o próprio Mus-
sexual (...) derivada (...) da valorização do
skopf afirma que a proposta de Koch precisa ser
ser humano na sua integralidade. É uma
melhorada. Portanto, talvez algumas perguntas
ética sexual centrada na autonomia de pro-
colaborem para obter uma proposta hermenêuti-
pósito relacional do sexo, no apoio mútuo
ca que supere a boa vontade ativista, contudo, à integralidade de cada um. (...) Como afir-
pouco rigorosa cientificamente. Se não conside- ma Rosemary R. Ruether, “as relações são
rássemos essa sensibilidade gay como monolítica, morais quando são mútuas, comprometi-
que critérios de validação nos possibilitariam ava- das, fiéis e apóiam o desenvolvimento pes-
liar entre as múltiplas e proliferantes interpreta- soal pleno da outra pessoa”.15
ções surgidas das diferentes sensibilidades? Não
estou falando de uma interpretação única e defi- Uma primeira estratégia discursiva do au-
nitiva, mas de como evitar a proliferação de in- tor é colocar todos os críticos da multiplicidade
terpretações que tenham, por exemplo, como de parceiros entre os defensores de uma moral se-
única base versões ingênuas de empatia. Pensan- xual restrita ao âmbito do casamento e da procria-
do nas conseqüências políticas das posturas ção e, assim, heterocentrada, fazendo, desse modo,
epistemológicas, que outros eixos deveriam se ar- uma desqualificação antecipada a qualquer crítica
ticular, na hora de problematizar a própria idéia e, simultaneamente, homologando termos dife-
de sensibilidade de homens gays? Deixemos mo- renciados. Em primeiro lugar, embora eu aceite
mentaneamente essa pergunta, já que, arrisco, uma sexualidade pré-marital (com uma parceira
aparecem algumas conseqüências do uso dessa estável) e reconheça a centralidade de outros fins
sensibilidade no próprio texto de Musskopf. dessa atividade, além da procriação (por exemplo,
A consciência da corporeidade de ho- a consolidação de um casal), tenho de assinalar a
mens gays revela o pecado presente na inconsistência da justificação da multiplicidade
ideologia patriarcal, heterossexista e ex- de parceiros16 pela autonomia de propósito rela-
cludente, uma vez que questiona esses sis- cional do sexo. Aqui o autor dá um salto lógico
temas e propõe novas formas de relacio- injustificável (ou, ao menos, totalmente injustifi-
namento baseadas na auto-entrega, na cado no âmbito do artigo e do próprio livro).17
mutualidade e no cuidado para com o/a Declarar que a atividade sexual não tem como
outro/a, visando a uma vivência corporal única finalidade a reprodução e como único ce-
saudável, fundada na liberdade, na inclu- nário o matrimônio é muito diferente (e incone-
são e na justiça, pretendidas por Jesus xo argumentativamente) de afirmar a multiplici-
Cristo para todas as pessoas.14 dade de parceiros.18 Em outras palavras, há uma
forte petição de princípios não explicitada.
O que incluem essas novas formas de rela-
cionamento baseadas na auto-entrega, que permi- 15 Ibid., p. 136.
tiriam uma vivência corporal saudável, fundada na 16 E não estou falando de promiscuidade pelo negativamente carre-
liberdade? Diz Musskopf, mais adiante: gado desse significante nos seus significados.
17 Embora não seja o objeto desse comentário, pelo lugar que ocupa na
minha crítica, procurei, no livro Uma Brecha no Armário: propostas
É verdade que nesses espaços [as comuni- para uma teologia gay, argumentos mais consistentes que justificassem
dades] acontecem inúmeros encontros e a postulação da multiplicidade de parceiros. Não os achei. Cf. MUS-
desencontros. Muitos deles acabam em en- SKOPF, 2002, p. 79-81.
18 Por outro lado, como bem me assinalou N. Míguez, o relaciona-
volvimentos sexuais. Tal multiplicidade de mento problemático entre sexo e procriação não se resolve dizendo
que a finalidade do sexo não é a procriação, porque não é ela exclusiva-
mente, mas também é ela (como procriamos, natural e majoritaria-
13 MUSSKOPF, 2003, p. 143. mente, senão pela atividade sexual?). A crítica ao endeusamento do
14 Ibid., p. 134. matrimônio monogâmico ocidental também não resolve o problema.

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Que tipo de apoio mútuo à integralidade de É significativa essa reflexão para levar luz à
cada um pode favorecer ou permitir a constante mencionada dinâmica que muitas vezes implica a
(ou freqüente) mudança de parceiro sexual, isso multiplicidade de parceiros.20 Os discursos que
sem falar da simultaneidade deles? O que esses apologizam essa prática (sejam mediáticos sejam
relacionamentos têm de comprometidos e fiéis? acadêmicos) colaboram para o controle da cor-
Nesse sentido, trata-se de uma discussão muito poreidade e a perda de autonomia nas decisões
atual e que excede o mundo gay para incluir todas (sexuais e afetivas), gerando um padrão hegemô-
as pessoas com atividade sexual e afetiva. Acredi- nico de comportamento que reduz nossos desejos
to que majoritariamente essa multiplicidade de ao consumo de mercadorias. Também concordo
parceiros não tem nada a ver com as mencionadas com Sampaio quanto a tratar-se nesse debate “de
liberdade e desenvolvimento pessoais, e sim com afirmar a dignidade inviolável da corporeidade,
uma lógica de corpos descartáveis e prazeres efê- pois é nela que se objetiva a vida”.21
meros, em que os relacionamentos são tão breves Por sua vez, agrega Musskopf: “Essa não é
quanto egoístas. Poderíamos perguntar quão sau- uma ética que prega a multiplicidade de parceiros,
dáveis são esses relacionamentos/encontros nos mas que avalia sob o critério da qualidade dos re-
planos físico, psicológico, emocional e espiritual. lacionamentos”.22 Talvez seja mais útil, no lugar
Acho que por trás dessa idéia de experimentar de apologizar certas práticas destrutivas na sub-
cultura gay, fazer as perguntas necessárias para
subjaz um raciocínio bastante destrutivo nesses
deconstruir tais práticas. Por que, em geral e
campos, produto da colonização do desejo pelo
como reconhecem os próprios gays, são tão frá-
consumismo e pelas práticas do capitalismo tar-
geis e instáveis esses relacionamentos? Isso tem a
dio. Inscrita numa lógica utilitária dos corpos, tão
ver com uma necessidade de construção identitá-
efemeramente necessários quanto descartáveis,
ria ou com uma clandestinidade imposta, que di-
questiono se essa multiplicidade de parceiros não
ficulta os relacionamentos mais comprometidos
trabalha geralmente para a desvalorização das e, por exemplo, a possibilidade de fazê-los públi-
pessoas. A própria Sampaio, em outro artigo, co- cos? Quanto há de contracultural nessa multipli-
loca algumas questões sobre a corporeidade no cidade de parceiros e de mera reprodução de ló-
plano do mercado mundializado. gicas do próprio sistema de consumo/descarte?
Em um discurso de liberdade de escolha, Nesse sentido, e voltando a falar exclusiva-
de participação ativa nas decisões sobre a mente da assim chamada subcultura gay, concor-
vida, a mídia cumpre o papel de controlar do com a utilização do significante subcultura no
os corpos, ditando padrões únicos de be- lugar de contracultura, sobretudo pelos detalhes
leza para mulheres e homens. (...) A re- significativos omitidos por Musskopf na caracte-
flexão crítica dessa lógica do mercado glo- rização das comunidades gays e lésbicas. A sub-
balizado nos permite uma postura crítica cultura gay nem sempre “adota valores distintos
frente aos discursos normativos que pau- da cultura dominante”.23 Pelo contrário, os simul-
tam nosso cotidiano, ao controle de nossa tâneos processos de despolitização e frivolização
corporeidade, à perda de autonomia das de importante parte desses grupos, cujo símbolo
decisões sobre nossas vontades e desejos, mais evidente são os guetos de consumo e lazer
à redução de nossos desejos ao consumo
de mercadorias, à fixidade dos padrões de 20 Não desejo fechar a possibilidade da existência de outros tipos de
beleza, de moda, de corpo e de áreas de relacionamento que enriqueçam os participantes, ainda que não sejam
necessariamente de longo prazo. Como bem me assinalou L. Ariza,
atuação, à violência gerada nas relações pouco conhecemos da relação do desejo sexual com a dimensão espiri-
sociais, à imposição de regras que arre- tual e com a construção de um vínculo de longo prazo com outra pes-
bentam as relações humanas.19 soa.
21 SAMPAIO, 2002, p. 98.
22 MUSSKOPF, 2003, p. 136.
19 SAMPAIO, 2002, p. 96-98. 23 Ibid., p. 135.

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gay nas grandes cidades,24 fazem dos gays inte- conexões e interdependências que não dê origem
ressante segmento de mercado. Esse fenômeno a desigualdades nem a inferioridades, acredito ha-
pode nos dar mais indícios para pensar o caráter ver uma brecha significativa. Quero dizer que a
de classe da categoria gay. Parece que os gays (co- concepção foucaulteana de poder (incluindo a
mo um dos grupos do coletivo GLTTB), mesmo própria idéia de resistência no interior do concei-
na América Latina e desde o começo dos anos 90, to), mencionada por Sampaio e na base das teo-
são cada vez menos subversivos dos sistemas rias de gênero e queer, nos dá indícios para pensar
econômico, político e moral, integrando-se pro- que a segunda proposta, embora desejável, é um
gressivamente ao que ele tem de pior: não à plena pouco ingênua, politicamente falando. É verdade
cidadania merecida, mas ao consumo que os uti- que, como proposta, é mais simpática e esperan-
liza.25 Em outras palavras, o reconhecimento so- çosa, mas as experiências teóricas e políticas que
cial desses indivíduos se dá por serem comprado- tenho à vista não me permitem ser muito otimis-
res, e não sujeitos com direitos. ta. Vejo, por exemplo, o que acontece na Argen-
A visão romântica de qualquer sujeito his- tina com as conexões e interdependências entre os
tórico (gays, mulheres, negros e pobres, entre estudos sobre as problemáticas dos diferentes fios
outros), além de ingênua e pouco rigorosa, é qua- (mulheres, mulheres feministas, todos os grupos
se inútil na luta política. Uma coisa é saber admi- dentro da sigla GLTTB – sem falar da relação em
nistrar estrategicamente os silêncios perante cer- cada fio e daquela com outros fios de causas mais
tos interlocutores políticos. Outra, muito dife- distantes – aborígenes, pobres e trabalhadores,
rente, é mostrar uma visão idealizada (pelo par- entre outros).
cial dela) numa produção acadêmica. Tanto no mundo acadêmico quanto no ní-
vel mais diretamente político, produz-se entre es-
FIOS INTERDEPENDENTES OU ses grupos uma concorrência para ocupar o lugar
CONCORRÊNCIA ENTRE OS OPRIMIDOS? da minoria mais oprimida, que termina se trans-
EM BUSCA DO SUJEITO TEOLÓGICO formando numa admirável e preocupante capaci-
O artigo de Sampaio propõe superar o po- dade deles de se dividir politicamente e construir
der, no sentido da dominação sobre os outros, e alteridade dentro da alteridade (ora na forma da
pensá-lo com base numa mudança do paradigma mencionada concorrência ora discriminando-se
de hierarquia para o de redes de conexões e in- entre eles mesmos). Um recente ensaio a respeito
terdependências. Nesse caso, a rede compõe-se desse assunto analisa as lógicas perversas da inte-
da diversidade de fios interdependentes, sem que ração entre participantes das organizações de mi-
as diferenças resultem em processos de desigual- norias sexuais e pessoas convivendo com HIV na
dades e inferiorização de uns em relação a outros, América Latina, e como essas lógicas terminam, a
como ocorre na concepção hierárquica de po- longo prazo, destruindo as construções políticas
der.26 comuns dos movimentos como um todo.27
Entre a crítica a uma concepção hierárquica Os dois textos aqui analisados comparti-
e vertical do poder (que o vê como algo concen- lham alguns rasgos que parecem aderir à concor-
trado e sempre evidentemente violento) e uma rência pelo lugar da minoria oprimida. Apesar de
aparentemente desejável alternativa de redes de Musskopf reconhecer essa situação,28 em nenhum
momento preocupa-se em pensar os eixos a serem
24 Danceterias, bares, lojas de roupas especializadas, agências de turismo
articulados com a identidade sexual e tampouco
etc.
25 Essa alarmante tendência à guetização em paraísos concentracioná- em marcar relações significativas entre os grupos
rios de consumo já tinha sido advertida, pouco antes de sua morte, por oprimidos que ultrapassem as meras enumerações
Néstor Perlonguer, um dos mais lúcidos e subversivos ativistas
homossexuais, que morou tanto em Buenos Aires como em São
Paulo. Cf. PERLONGUER, 1997. 27 PECHENY, 2003.
26 SAMPAIO, 2003, p. 112. 28 Cf. MUSSKOPF, 2003, p. 144.

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funcionais à sua própria argumentação sobre os O que essas teologias têm para dizer aos
gays. Efeito similar se produz no texto de Sam- homens heterossexuais?30 O que nós podemos
paio: o sujeito oprimido é o sujeito da própria re- dizer a respeito das opressões das mulheres e dos
flexão (o gay num caso, a mulher em outro), ana- gays? Quais são os riscos dos estudos teóricos,
lisando exclusivamente o eixo que possibilita sua entre eles os teológicos, que põem tanta ênfase na
opressão (a identidade sexual, o gênero, respecti- militância das suas causas?
vamente). Minha experiência no contacto acadêmico
Particularmente em Musskopf, essa arti- com feministas e ativistas gays têm colaborado na
culação com os outros eixos da dominação per- construção de uma imagem de grupos fortemen-
mitiria responder algumas perguntas, já insinua- te conformistas e autocomplacentes com suas
das em outros apartados, que questionam os pró-
práticas teórico-políticas, e que habitualmente
prios pressupostos epistemológicos e políticos
apelam às desqualificações dos seus interlocuto-
do seu artigo: que papel joga a classe, a etnia e a
res com argumentos ao menos falazes.31 Em am-
raça no interior das diferenciações no coletivo
bas experiências (o próprio conformismo e a des-
GLTTB? Em que medida, considerando esses ei-
xos, a categoria gay não deve ser desconstruída e, qualificação do outro), pude perceber uma sober-
provavelmente, superada como significante iden- bia enunciativa muito pronunciada em ativistas/
titário? E aqui essa se une com a outra crítica ao acadêmicos que consideram que o caráter politi-
trabalho, no sentido da apologia da multiplicida- camente justo de sua causa justifica o baixo nível
de de parceiros como suposta expressão de liber- teórico de suas produções. Felizmente, não é o
dade: quanto tem a ver com isso o fato de gay ser caso dos artigos de Sampaio e Musskopf, que me-
uma categoria pensada por e para europeus e es- recem leitura atenta e crítica. Contudo, vale repe-
tadunidenses, brancos e de classe média/alta? tir a pergunta sobre qual o papel dos heterosse-
Um favelado brasileiro ou um villero argentino xuais conscientizados, que trabalham (critica-
pode ser chamado de gay ou reconhecer-se nessa mente) norteados por um mesmo propósito: a
categoria?29 desaparição de toda forma de opressão e a ins-
tauração de uma vida plena para todos os seres
COMENTÁRIOS FINAIS humanos.

29 Com os casos argentinos tenho tido contato em mais de uma opor- 30 A única referência que achei, marginal por certo, é o provocativo,
tunidade. Com relação aos brasileiros, recentemente, no Rio de mas confuso, desafio lançado por Musskopf para a vivência corporal
Janeiro, jantei, num quiosque na rua, com três adolescentes favelados dos heterossexuais. Cf. MUSSKOPF, 2003, p. 133.
homossexuais. Eram negros, pobres e tinham adotado vários rasgos 31 Por exemplo, a inevitável contingência histórica de haver nascido
estéticos femininos (unhas compridas, sobrancelhas depiladas, hexis homem e a inadmissível escolha de uma mulher como companheira
corporal feminina etc.). Não é hora de pensar outra categoria? amorosa.

Referências Bibliográficas
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HABERMAS, J. Teoría de la Acción Comunicativa. Buenos Aires: Taurus, 1989. Tomo I: introducción, apartados 3 e 4.
MUSSKOPF, A.“A Teologia que sai do Armário: um depoimento teológico”. Revista Impulso, Piracicaba, Editora UNI-
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______. Uma Brecha no Armário: propostas para uma teologia gay. São Leopoldo: EST, 2002.
PECHENY, M. “Lógicas de acción colectiva de los movimientos por los derechos sexuales: un análisis con aires
abstractos de experiencias bien concretas”. Primer Encuentro Regional Sexualidades, Salud y Derechos
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PÉREZ, G. “Hablar, actuar, juzgar”. In: SCHUSTER, F.L. (org.). Filosofía y Métodos de las Ciencias Sociales. Buenos Aires:
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de las Ciencias Sociales. Buenos Aires: Manantial, 2002, p. 237-263.

Dados do autor
Licenciado em ciência política e doutorando em
ciências sociais (Universidad de Buenos Aires).
Docente convidado na matéria psicologia social
(FCS/UBA) e na de metodología da investigação
(Universidad Nacional de la Patagonia San Juan Bosco).

Recebimento artigo: 13/fev./04


Consultoria:27/fev./04 a 15/mar/04
Aprovado: 18/mar/04

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Resenhas & Impressões


Reviews & Impressions
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Liberdade Comunicativa e
Engenharia Genética
COMMUNICATIVE FREEDOM AND
GENETIC ENGINEERING*
Die Zukunft der menschlichen Natur.
Auf dem Weg zur einer liberalen Eugenik?,
de Jürgen Habermas

Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001,


ISBN: 3-518-58315-8; 125p.

[A humanização da natureza] é para ser entendida de três maneiras. Pri-


meiro, o ser humano humaniza a natureza; isto é, ele a transforma naquilo
que serve a si mesmo e assim cria – em um entrelaçamento da transfor-
mação da natureza e o desenvolvimento da personalidade humana, que
requer uma clarificação mais exata – a modelação cultural de sua natu-
reza. Segundo, o ser humano humaniza a natureza dentro de si mesmo, no
decorrer do longo processo civilizador que a espécie humana se engajou.
Finalmente, o ser humano em si é uma humanização da natureza, desta-
cando-se do reino animal; a natureza do ser humano se torna humana. EDUARDO MENDIETA
AXEL HONNETH & HANS JONAS1 State University of New York
(SUNY) at Stony Brook, Nova
York/EUA
emendieta@notes.cc.sunysb.edu

A
revolução biotecnológica, desencadeada tanto pelos
avanços prodigiosos em sistemas de informação quanto
pela convergência da ciência e da tecnologia, no decorrer
do último século, originando, desse modo, o que agora
se tem chamado de tecnociência (technoscience), levanta
uma série de questões que dizem respeito às nossas cren-
ças mais fundamentais sobre a natureza humana. Essas
questões, por sua vez, colocam em dúvida a natureza da
nossa modernidade política. A revolução biotecnológica nos tem permi-
tido intervir diretamente nos processos de produção de biomassa e bio-
plasma. Enquanto a maioria da história filogenética da humanidade tem
sido vivida no trabalho da terra, na plantação – sempre fomentando uma
indústria de procriação, cruzamento, seleção, criação e preservação da di-
versidade de plantas e de animais –, somente no último século o que sem-

1* Tradução do inglês para o português de NUNO COIMBRA MESQUITA.


1 HONNETH & JOAS, 1988, p. 9-10

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pre ocorreu casualmente, e à mercê do rigor dos que qualquer outro tipo de informação a ser pro-
padrões caóticos do tempo, pôde ser industriali- duzido e acumulado pelas transnacionais da bio-
zado. Essa industrialização da agricultura, na se- tecnologia, que negligenciam a produção da vida
gunda metade do século XX, foi chamada de re- na era biotecnológica.
volução verde (green revolution). Anunciada pe- Essa breve caracterização da revolução
los negócios agrários das nações industrializadas, biotecnológica nos permite ter uma idéia do tipo
ela significaria o fim da fome e o começo de uma de questão por ela levantada sobre a essência hu-
era de superabundância de colheitas. Nenhuma mana: na condição de seres vivos, somos igual-
criança passaria fome na era da agricultura indus- mente reduzíveis à informação, como qualquer
trializada. outra forma de bioplasma na biosfera? Podemos
Da mesma forma, ainda que não visivel- dispor da nossa informação genética como nos
mente relacionado a isso, o mesmo século viu o valemos de nossos perfis de informação que os
uso transnacional da medicina para erradicar pes- nossos mastercards e visas “inteligentes” carregam
tes, pragas e epidemias. Esquecemos que a cruel- embutidos nos seus microchips e tarjas magnéti-
dade humana do último século comparou-se à fú- cas? Não devemos procurar remover doenças
ria devastadora e ofuscante dos micróbios e vírus, congênitas incapacitantes? Não precisamos dis-
alguns dos quais só foram erradicados por ponibilizar ao público kits de diagnóstico genéti-
esforços transnacionais (varíola, gripe, malária, co que nos permitam tomar decisões mais infor-
cólera etc.). As sociedades tornaram-se popula- madas sobre o tipo de crianças que queremos dar
ções a serem zeladas e monitoradas cuidadosa- à luz? E, se podemos consentir, e de fato exigir, o
mente pela bioforça (biopower) do Estado da uso generalizado dos testes e aparelhos de diag-
saúde; o Estado tornou-se o médico geral da so- nóstico genético (da mesma forma que admiti-
ciedade. A medicina foi socializada, normalizada, mos testes de gravidez e pílulas do dia seguinte
politizada e altamente cientificada, precisamente sobre o balcão), por que também não permitir
porque os seus benefícios tiveram de ser maximi- técnicas de melhoramento genético que procu-
zados e os seus custos, minimizados. ram não só remover os disgênicos, mas, na ver-
Tanto a medicina quanto a agricultura e, si- dade, selecionar os eugênicos? Podemos, real-
multaneamente, a criação de animais vêm passan- mente, discernir o limite entre a eugenia negativa
do por um processo sem precedentes de cientifi- e a positiva em convenções não puramente cul-
cação e industrialização (isto é, a tecnociência) turais, que reconheçam a arbitrariedade da deci-
com a introdução da bioinformática. O que a são de não cortar do genótipo de alguém certas
bioinformática nos possibilita fazer é elevar a um características e potencialidades?
patamar mais alto a industrialização da agricultu- Essas questões, até bem recentemente vis-
ra e a socialização da medicina: ambas têm se vol- lumbradas apenas no domínio do puramente es-
tado a um novo paradigma conceitual e a um peculativo e do comércio exclusivo da ficção
novo regime tecnológico. A vida é informação, científica, já dão uma indicação de como discus-
em si manipulável, unificável, reformulável, tra- sões sobre nossa natureza humana prognosticam
duzível e, ao final, transformável em mercadoria teses sobre nossa modernidade política. Se nossa
(commodifiable). A revolução biotecnológica re- natureza humana é tão maleável, tão alienável à
quer a informatização da vida e a transformação nossa vontade de pureza, então a dignidade hu-
em mercadoria (commodification) de toda a in- mana é uma noção anacrônica. E se não há dig-
formação, e, portanto, a transformação em mer- nidade humana, com que base podemos defender
cadoria de todas as formas de vida. A vida é in- o respeito e a preservação dos direitos humanos?
formação, a informação é uma mercadoria, a Se a modernidade política é o casamento da liber-
mercadoria é um valor de troca, a vida é uma tro- dade com a razão, no qual elas estão em uma ten-
ca de valor nem mais nem menos importante do são dialética perene, mas no qual a liberdade dos

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indivíduos aparece à mercê de objetivos instru- inabilidade de prover respostas pós-metafísicas à


mentais de criadores e engenheiros, e a razão é pergunta “o que é a forma correta ou certa de vi-
feita refém de um poder tecnológico, então essa da?”. Por outro, pretende desenvolver argumen-
própria modernidade política não está em perigo? tos que rejeitem uma forma já operativa, e toma-
Ao fazer de nós mesmos nossos próprios criado- da como certa, de eugenia liberal apoiada na pri-
res, não estamos também pondo em perigo nosso mazia dos direitos negativos, a qual, ademais e
projeto mais importante: o de modernidade po- mais importante, ameaça ruir pela própria natu-
lítica, em que a liberdade coletiva é equilibrada reza da modernidade política, porque, involunta-
com a liberdade dos indivíduos, as liberdades ne- riamente, leva a uma alteração do auto-entendi-
gativa e positiva são precariamente equilibradas mento das espécies.
numa liberdade política obtida por meio da auto- Essas duas frentes argumentativas relacio-
legislação democrática?2 nam-se a dois princípios na ética discursiva e na de-
É esse grupo de questões, sobre o destino mocracia deliberativa de Habermas: o de que teo-
de nossa natureza e o projeto de modernidade rias morais pós-convencionais modernas devem, e
política, que está na essência do mais recente li- só podem, ser orientadas por uma interpretação
vro de Jürgen Habermas: The Future of Human deontológica e cognitivista de normas morais, e o
Nature. On the way to a Liberal Eugenics? (O de que direitos políticos admitem, e requerem,
Futuro da Natureza Humana. A caminho de uma uma justificação racional comparável, ainda que
eugenia liberal?). Publicado no final de 2001, logo não equivalente, a normas morais. Em outras pa-
após Habermas ter recebido o Prêmio da Paz da lavras, tanto normas morais quanto direitos políti-
Associação Alemã de Vendedores de Livros, o li- cos têm uma dimensão normativa fundada na dife-
vro compõe-se de dois textos. O primeiro é uma renciação societária de esferas de valores (o estéti-
palestra curta de Habermas feita na ocasião do re- co, o científico, o político e o moral).
cebimento do Prêmio dr. Margrit-Egnér, da Uni- A seguir, entretanto, ao invés de procurar
versidade de Zurique, em 2000. O segundo, que reconstruir-lhe todos os argumentos, e verificar
ocupa três quartos do livro, toma por base a re- se eles são escrutáveis, tentarei recuperar a essên-
trabalhada Conferência Christian-Wolff, de 28 de cia conceitual das intuições de Habermas (I).
junho de 2001, na Universidade de Marburg. Acredito que muitos dos raciocínios de Haber-
O primeiro texto traz o título esclarecedor mas, nesse livro, surpreenderão tanto os críticos
“Begründete Enthaltsamkeit: Gibt es postmeta- simpáticos quanto os contrários à sua posição
physische Antworten auf die Frage nach dem filosófica. Surpreenderão os primeiros, porque
‘richtigen Leben’?”, podendo ser traduzido Habermas parece estar se afastando de sua defesa
como “Abstinência justificada: existem respostas obstinada de uma perspectiva deontológica a
pós-metafísicas para a questão do que é uma ‘vida questões morais, e causarão surpresa aos segun-
correta’?”. O segundo é intitulado “A caminho dos, pois ele dá mostras de sujeitar-se às pressões
de uma eugenia liberal? O debate a respeito do para reconhecer a corporeidade de agentes éticos
auto-entendimento das espécies”. Estendo-me e o entrelaçamento entre questões da vida boa
sobre o título dos capítulos, respectivamente, com as da vida justa. Estou menos interessado
porque eles já nos dizem muito sobre os objeti- aqui em descobrir qual a extensão do recuo de
Habermas de suas perspectivas deontológicas, e a
vos argumentativos de Habermas. Por um lado,
sua aceitação de perspectivas quase aristotélicas e
ele sustenta uma autolimitação, ou abstinência,
neo-hegelianas sobre ética e moralidade. Gostaria
em face das possibilidades abertas pela genono-
de reconstruir, e porventura retratar (II), as intui-
mia e pela engenharia genética, não obstante a
ções de Habermas em sete argumentos, ou pas-
2 Sobre meu entendimento da modernidade política, cf. WELLMER, sos, básicos. Numa seção final (III), utilizarei Ha-
1998, p. 3-38. bermas contra ele mesmo para desenvolver uma

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linha de argumentação diferente, ainda que não dade, isto é, a liberdade é um reconhecimento du-
hostil, com respeito ao diagnóstico genético plo: o da pessoa como co-sujeito comunicativo,
(PGD) e à genonomia. mas também como ser corpóreo.
Quarto, minha liberdade é minada, mais
I ainda, quanto ao meu direito a um futuro aberto
O texto de Habermas é extremamente rico ser impedido tanto pelo PGD quanto pela enge-
e repleto de digressões sugestivas. Por essa razão, nharia genética. Em outras palavras, qualquer
gostaria de me concentrar em sete argumentos, tipo de manipulação genética é um impedimento
os quais eu começarei a enumerar de uma manei- de um futuro indeterminado pela loteria da natu-
ra que não segue necessariamente a ordem de reza. Se podemos projetar humanos, então, su-
apresentação no texto impresso, mas que acredi- postamente, também estamos determinando o
to capturar a lógica da argumentação. seu futuro e, conseqüentemente, a liberdade de-
Primeiro, o diagnóstico genético de pré- les de ser aquilo o que fariam de suas vidas é im-
implantação (PGD) e qualquer forma de engenha- pedida.
ria genética não só corroem, mas também são Quinto, uma vez que a liberdade dos futu-
uma afronta direta às nossas noções de integrida- ros seres humanos está em questão, por causa de
de corpórea. Tanto o PGD quanto a engenharia ge- nossas manipulações e intervenções genéticas,
nética transformam o que nos é dado pela natu- tanto a liberdade moral deles quanto a nossa es-
reza no que é fabricado por nós, no que nos con- tão em risco: a deles, porque eles não teriam uma
cedemos por meio da tecnologia. Dessa forma, base na qual construir sua autonomia moral, dado
nossa integridade corpórea é cortada, já que nos- que ela seria antecipada pelo nosso fechamento
sos corpos, dados a nós pela loteria da natureza, de seu futuro; e a nossa, porque teríamos tratado
tornam-se algo que nos concedemos pela produ- outros seres humanos, ainda que somente os fu-
ção. turos, como meios, e não como fins, como obje-
Segundo, tanto o PGD quanto a engenharia tos, e não como co-sujeitos. Gerações futuras se
genética contribuem para o colapso da distinção tornariam escravas das nossas escolhas instru-
entre ter um corpo e ser um corpo, e, desse mo- mentais e nós teríamos nos tornado escravos de
do, nossa relação com a identidade pessoal e, por- nosso poder tecnológico, que contaminara qual-
tanto, com a identidade moral e a autonomia tem quer tipo de restrição ou abstenção moral.
sido minada. Ser um corpo não é o mesmo que Manipulações e intervenções genéticas desafiam a
ter um corpo, e é precisamente a sua não-conver- identidade moral da humanidade contemporânea,
gência que nos permite cumprir nossas identida- tanto quanto os futuros humanos.
des pessoais. Somos os nossos corpos, mas eles Sexto, tal desafio às nossas identidades mo-
não nos esgotam, pois somos sempre mais do rais presentes e futuras significa que estamos pi-
que eles. As manipulações genéticas fundem ser sando num vácuo moral intolerável, pois nem
um corpo e ter um corpo, pois o corpo que te- mesmo o cinismo tem lugar num mundo onde
mos é aquele que nos concedemos a nós mes- qualquer coisa é possível, precisamente por estar
mos: intenção e produto tornam-se um só. em nosso poder. Sétimo, e último, na medida em
Terceiro, na medida em que tanto a nossa que falhamos em levantar os tipos de questões
integridade corpórea quanto as nossas identida- morais discutidos, e nos sujeitamos ao fait accom-
des pessoais são minadas, nossa liberdade tam- plis das revoluções sociais tecnologicamente diri-
bém o é. A liberdade não funda-se apenas no re- gidas, temos deixado de cumprir nossa responsa-
conhecimento simbólico ou recíproco por ou- bilidade para com e por nossas futuras gerações.
tros, mas também na preservação e no reconhe- Dessa maneira, podemos ter quebrado irrepara-
cimento de nossa integridade corpórea. A velmente a continuidade entre gerações que ga-
liberdade da pessoa é a liberdade de sua corporei- rantam a preservação dos feitos civilizacionais.

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Gerações futuras recordarão de nós com des- da espécie não significa especulação antimoderna,
crença e ressentimento. Talvez comecem a pensar mas, precisamente, discussão sobre os próprios
em si mesmas como espécie diferente, não só prospectos da liberdade e da razão, numa era sem
pelo que teremos causado a elas, no que diz res- precedentes de transformação da humanidade em
peito a otimizá-las a ponto de não mais se asse- mercadoria.
melharem a nós, mas precisamente pelo que lhes
fizemos e que elas mesmas não fariam às suas II
contrapartes morais. Tendo feito já uma reconstrução simpática
Em face desses desafios, Habermas oferece aos principais argumentos de Habermas, gostaria
três contra-argumentos. Dada a gravidade dos ti- de verificar se eles são defensáveis, até em suas
pos de desafios colocados pela intervenção gené- próprias fontes e pressuposições. Seguirei a mes-
tica, um ponto de vista puramente deontológico ma seqüência anterior.
e pós-metafísico não é suficiente, pois está em O PGD e a engenharia genética não são
jogo o próprio futuro da humanidade. Nesse ca- mais afrontas à integridade corpórea do que qual-
so, devemos nos remontar a uma ética da espécie quer outro tipo de intervenção médica, como
(Gattungsethik), na qual partimos dos fundamen- marca-passos, órgãos sintéticos, próteses, inocu-
tos da espécie, e não da ótica procedimental da lação de vacinas, introdução de flúor em água po-
adjudicação das normas morais. Nesse caso, a tável, exame minucioso do nível de vitaminas,
preservação dessas condições torna possível a gordura e proteínas em comidas e prescrição de
moralidade, nomeadamente a integridade corpó- cirurgiões gerais de certos níveis mínimos de
rea e a identidade moral. Uma ética da espécie é nutrição. Alguém poderia argumentar que essas
capaz de nos guiar nas proximidades do vácuo intervenções médicas não modificam nossa inte-
moral, aberto pelos prospectos da otimização e gridade corpórea da maneira como a engenharia
da manipulação genética sem fronteiras. genética o faz, pois não se destinam a projetar,
Relacionado a essa ética da espécie está o mas meramente ajeitar ou curar. No entanto, se-
fundamento ético do ponto de vista moral. Dito guir certas dietas, visitar regularmente o médico,
de outra forma, anteriormente ao comprometi- tomar vacinas e ser operado para receber implan-
mento com a justificação abstrata, universalista e tes ou remover tumores não são formas de pro-
deontológica de normas morais, precisamos op- jeto? Talvez a questão seja se estamos alterando a
tar por uma posição ética em relação à humani- herança genética (germ-line, material genético
dade. A ótica da justiça é posterior à da ética, ori- transmitido de uma geração a outra pelos game-
entada por valores substantivos, isto é, materiais, tas), isto é, todo o genótipo humano, de tal ma-
sobretudo integridade corpórea e identidade mo- neira que suas características adquiridas ou elimi-
ral. Em terceiro lugar, diante do possível colapso, nadas possam ser repassadas. Mas esse é outro as-
ou morte, do projeto da modernidade política, sunto, diferente do questionamento sobre se a
um ato político de autodeterminação deve ser to- integridade corpórea foi afrontada.
mado de maneira a rejeitar toda manipulação ge- A discussão é se temos o direito de passar
nética. Ele não é mero decreto político, mas a ou impor a nossos descendentes características
auto-afirmação em forma de ato político: a von- escolhidas por e para nós mesmos, sem que fu-
tade política a serviço da autopreservação ética. turas gerações sejam levadas em consideração.
Desse modo, a eugenia liberal é rejeitada em Não é claro que a engenharia genética represente
nome da modernidade política. A abstenção fun- uma nova ordem qualitativa de engenharia con-
dada ou justificada e a autolimitação não repre- testando os próprios fundamentos da identidade
sentam um recuo na modernidade, e sim a pró- humana. Há, de fato, maior nível de risco, pois
pria afirmação do projeto da modernidade políti- podemos estar introduzindo ou removendo do
ca. E o debate acerca do auto-entendimento ético genoma humano características cujas presenças

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ou ausências não são nítidas. Na visão de Hans namento com meu corpo? Qual a diferença entre
Jonas, dois elementos da engenharia genética a ter o corpo alterado pré-conscientemente, antes
diferenciam de outras formas de engenharia: o de construir uma identidade singular, e tê-lo mo-
experimento é o ato, pois estamos experimentan- dificado após adquirir essa consciência? Ainda
do com a vida, e as mudanças podem ter caráter que possuísse um de meus membros, mesmo um
irreversível.3 Essas duas características, entretan- de meus sentidos (digamos, a visão) removido,
to, relacionam-se menos com o fato de serem do ou comprometido irreparavelmente, depois de
âmbito da engenharia, e mais com o que diz res- adquirir certa identidade, poderia reconstituir mi-
peito ao biológico, porque qualquer coisa que nha identidade pessoal para lidar com o dano à
tenha a ver com organismos é ipso facto uma minha integridade corpórea. É característica úni-
modificação de sua existência e um ato irrever- ca dos humanos suas identidades não serem cor-
sível.4 póreas, mas simbólicas, sendo tal identidade sim-
Em outro nível, estamos falando sobre a in- bólica negociada, mantida, reconhecida ou recu-
tegridade corpórea de seres humanos não-exis- sada quase diariamente. A engenharia genética
tentes, que ainda não nasceram e que cresceriam não altera essas questões metafísicas.
e se socializariam nos seus corpos construídos. Chegamos aqui ao segundo ponto: o PGD e
Qual a relação desses humanos em potencial com a engenharia genética não contribuem para a fu-
seus corpos, em contraste com nossa própria re- são do ser um corpo e do ter um corpo mais do que
lação com nossos corpos? Posso dizer que, se al- qualquer outra coisa que temos feito ou podemos
guém viesse e me tirasse um dos órgãos ou mem- fazer a nós mesmos como entidades corpóreas.
bros sem meu consentimento, minha integridade Mesmo humanos modificados pela engenharia
corpórea ficaria abalada, mesmo que permane- genética precisariam assumir a responsabilidade
cesse eu mesmo, ainda que agora em sentido al- pela sua existência, não importa o quanto seus
terado. Por outro lado, tenho o direito, é claro, corpos tenham sido modificados. A liberdade de-
de doar um ou mais de meus vários órgãos. No les nunca seria incapacitada, mesmo que o seu
primeiro caso, o estrago à minha identidade horizonte de escolhas houvesse sido alterado.
simbólica é devastador, porque involuntário; no Contanto que a vida humana continue a ser vida
segundo, o dano é mínimo ou não-existente, ou biológica, e essa vida biológica tome a forma de
talvez ainda cheio de significado, pois desejo um organismo metabólico, sempre existirá a la-
próprio. cuna entre ser um corpo e ter um corpo.
Ser alterado pela engenharia genética é Todos os organismos, em que ser orgânico
como ter um órgão roubado ou dado órgãos a significa estabelecer uma auto-sustentação meta-
mais ou superórgãos? E se eu tivesse nascido com bólica, possuem uma relação dupla com sua subs-
um rim defeituoso, um coração muito fraco ou tância material. Como afirma Hans Jonas, se eles
um membro disforme: qual seria o meu relacio- são “dependentes da disponibilidade dessa subs-
3 Cf. JONAS, 1974, p. 141-167. Sobre o contraste abordado por Jonas
tância, o organismo é, mesmo assim, indepen-
entre a engenharia geral e a engenharia biológica, cf. ibid., p. 142-146. dente da identidade particular da matéria. A sua
4 Leon R. Kass, nomeado por George W. Bush diretor do Conselho de
própria identidade funcional não coincide com a
Bioética, argumenta que a engenharia genética difere qualitativamente
de outras formas de engenharia, porque, primeiro, altera a herança identidade substancial de seus componentes ma-
genética (germ-line) e, segundo, cria novas capacidades e normas de teriais, que, ainda assim, a constituem completa-
saúde, além de boa forma. A primeira preocupação, como argumenta-
rei, seja talvez o aspecto mais forte dessa linha de argumentação. A mente a qualquer momento”.5 Somente após a
segunda é a mais fraca, pois as capacidades e normas humanas vêm ocorrência do novo passo evolucionário, no qual
mudando há gerações. A expectativa de vida prolongada, as drogas de
fertilidade, o sistema de saúde socializado e as novas tecnologias repro- a consciência se separa de seu substrato biológi-
dutivas estão confundindo nossas expectativas sobre o que o ser co, o abismo entre Leib (ser um corpo) e Körper
humano pode fazer e quando. Ao mesmo tempo, novas doenças
começaram a proliferar: câncer pulmonar e de mama, problemas do
coração, DSTs, HIV, obesidade e diabetes. Cf. KASS, 1999, p. 32-38. 5 JONAS, 1996, p. 59-74; citação na p. 66.

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(ter um corpo) será ligado6 e, quando essa rup- existência, viver suas liberdades e começar a agir.
tura for dada, a engenharia genética será debatida, Porém, poderíamos contestar, o conhecimento
pois teremos começado uma nova era em que os de que se é uma pessoa modificada pela engenha-
vivos terão se tornado mecânicos e os mecânicos ria genética não significa um fardo. Ao saber mui-
terão se tornado vivos – por exemplo, o cyborg, to, assim como Édipo, não estaremos atraindo o
do qual os recentes nanorrobôs são suas criaturas nosso próprio destino? A liberdade humana não
vivas (zoa: criaturas vivas) primordiais.7 se apóia numa ignorância básica sobre o que nos
Em terceiro lugar, a liberdade humana per- é destinado? Não sofremos todos, modificados
manecerá um mistério, uma dessas questões ou não geneticamente, pelo fardo de saber tanto
filosóficas perenes sobre que futuro os filósofos demais quanto de menos? Apenas se cedermos a
ainda estarão imaginando. Somente a forma mais uma forma extrema de determinismo, teremos
extrema do determinismo genético pode ser um condições de aceitar que as modificações genéti-
ponto de partida para pensar que a liberdade dos cas promovem o fechamento de um futuro aber-
futuros humanos será danificada ou restringida. to dos humanos geneticamente modificados.9
Mas o determinismo genético é ideologia. Não Com ou sem a engenharia genética, a eventuali-
há um gene para a liberdade humana. De fato, à dade de a ação ser determinada e de nossas esco-
luz do próprio entendimento de Habermas sobre lhas serem já preestabelecidas permanecerá um
a liberdade comunicativa, a liberdade significa problema metafísico perene.
algo em que somos socializados. Liberdades, tan- Quinto, a identidade moral de gerações fu-
to negativas quanto positivas, são feitos sociais, turas não correria perigo mais por causa de nos-
preservados e assegurados por instituições rela- sas otimizações genéticas do que por estarmos
cionadas com a integridade corpórea, mas não re- extinguindo a biodiversidade, transformando ir-
duzidos a ela. A liberdade de futuros humanos reparavelmente a biosfera, exaurindo fontes de
modificados pela engenharia genética não será água potável e falhando em fazer provisões para
determinada pelos seus genes, e sim pelos tipos fontes renováveis às futuras gerações. E, mais di-
de instituições políticas por nós desenvolvidas e retamente, porque falhamos em prevenir os
legadas. genocídios ocorridos e em fechar a lacuna entre o
Terceiro Mundo pobre e o Primeiro Mundo rico.
Quarto, devemos rejeitar, por razões simila-
A distância entre nós e as gerações futuras me-
res, a idéia de a engenharia genética promover o fe-
lhoradas geneticamente é menor do que entre os
chamento de um futuro aberto dos humanos ge-
pobres do mundo atual e o cidadão médio das
neticamente modificados. A futuridade humana,
nações industrializadas. Veja-se, por exemplo,
ou natalidade, para usar a expressão de Hannah
que a diferença de renda entre a quinta nação
Arendt, relaciona-se à liberdade humana, por sua
mais rica e a quinta mais pobre, de 30 para 1, nos
vez, realmente a habilidade de iniciar, de começar
anos 50, passou, em 1990, a ser 60 para 1 e, em
o novo, de ser o início de uma nova ação. A ação 1995, 74 para 1. Nos últimos 40 anos essa dife-
é a contraparte social da natalidade.8 Gerações fu- rença mais do que dobrou. A biotecnologia, não
turas ainda precisariam tomar as rédeas de sua
9 Cf. o ótimo artigo de GREENSPAN, 1993, p. 31-43. Esse autor,
6 Habermas toma por base a distinção de Helmut Plessner entre Leib e entretanto, acredita que a engenharia genética não apresenta um desa-
Körper e, em geral, sua antropologia filosófica fenomenológica. Cf. a dis- fio à nossa noção de liberdade como autocontrole, à virtude como uma
cussão de Plessner e os créditos de Habermas a ele, particularmente em realização e, conseqüentemente, à idéia de um caráter moral como um
seus trabalhos pré-comunicativos, em HONNETH & JOAS, 1988. feito: “O que ela [a engenharia genética] pode parecer ameaçar é o
7 De acordo com KURZWEIL (1999, p. 280), esse novo passo valor que colocamos na liberdade como autocontrole, na medida em
evolucionário será tomado até o ano 2099, apenas 94 anos a partir de que torna o autocontrole indireto, no sentido de ser mediado por algo
agora. Pode parecer otimista demais, no entanto, pensando bem, há que não os processos de pensamento do agente e suas conseqüências
apenas 77 anos não tínhamos computadores nem ido à Lua. Tampouco comportamentais naturais” (p. 42). Tratando-se da própria discussão
possuíamos noção de que a vida orgânica poderia ser entendida quanto de Greenspan sobre o livre-arbítrio, não consigo, contudo, perceber
a correntes de informação. como o autocontrole não permanece um desafio, um obstáculo, um
8 ARENDT, 1959. salto de fé até para os seres mais otimizados geneticamente.

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complementada pela engenharia genética, só au- O fardo moral pela possibilidade de efeitos
mentaria essas disparidades. A ruptura na identi- desastrosos da engenharia genética não pode ser
dade moral de geração para geração é inevitável, carregado pela humanidade como um todo, mas
de fato condição necessária da própria formação são responsabilidades que somente certas socie-
moral da humanidade. Todo o ser humano deve dades contemporâneas têm assumido. E mesmo
negociar, de ano a ano, de década a década, o seu quando tais responsabilidades podem ser atribuí-
retrato moral. das apenas a determinadas sociedades, cabe a seus
Analogamente, os mundos de vidas cultu- cidadãos avaliar e assumir por meio de um debate
rais só podem perseverar na medida em que eles público esses fardos morais. E aqui vejo a força da
permitem transmissões culturais submetidas ao intervenção pública de Habermas, relativa aos
processo duplo de rejeição e aceitação. A identi- possíveis efeitos desastrosos do PGD e da enge-
dade moral de futuras gerações será algo negocia- nharia genética, nomeadamente nos instigando a
do por elas à luz de suas próprias tarefas, algumas nos engajar numa discussão mais ampla e delibe-
legadas por nós, outras impostas por elas mes- rada sobre os benefícios e riscos de uma forma
mas. Estariam as nossas próprias identidades mo- conveniente, e qualitativamente diferente, de en-
rais severamente danificadas porque teríamos es- genharia capaz de alterar a própria natureza da
colhido perseguir a engenharia genética ou por humanidade.
termos falhado em até mesmo deliberar publica- Sexto, chegamos a um abismo moral por
mente sobre suas possíveis conseqüências adver- pensar que tanto podemos estar otimizando a
sas? A humanidade como tal é, em qualquer mo- nós mesmos por meio da engenharia genética
mento, moralmente responsável pela sua identida- quanto por termos falhado em fazer o suficiente,
de? À humanidade como tal é capaz de ser atribuí- ou qualquer coisa que seja, pela disparidade cres-
da, em qualquer momento, uma identidade moral? cente entre ricos e pobres. Alguém teria como ar-
A humanidade é personificada numa hete- gumentar realmente que, se o primeiro argumen-
rogeneidade de sociedades formadas por deter- to é, na verdade, a função de nossos escrúpulos
minados tipos de mundos de vidas culturais, por morais, o segundo significa a falha da nossa co-
sua vez, atravessados horizontal e verticalmente ragem moral. Ao mesmo tempo, não importa o
pela heterogeneidade. Na melhor das hipóteses, quanto deliberemos sobre a modificação genética
poderemos ser capazes de falar da moralidade de do genoma humano, gerações futuras segura-
certas sociedades e, mesmo assim, essa suposta
mente desafiarão nossa própria auto-apresenta-
identidade moral não está dada a priori, mas é
ção moral. E, nessa questão, está sempre a prer-
precisamente um tópico de deliberação. O pró-
rogativa dos humanos contemporâneos e futuros
prio Habermas usou tal argumento no contexto
de desafiar nossas auto-apresentações morais e
de Historikerstreit. E colocou no seu discurso de
retratos que sustentam a vitalidade de formas cul-
aceitação do Prêmio Sonning:
turais de vida.
Além da culpa que pode ser atribuída aos Em sétimo e último lugar, não há como sa-
indivíduos, entretanto, diferentes contex- ber antecipadamente se nossas ações de omissão
tos podem significar fardos históricos di- ou comissão relativas à otimização genética da es-
ferentes. Com as formas de vida nas quais pécie humana representarão uma falha, ou cum-
nascemos e que selaram nossa identidade,
primento, de nosso dever para com as futuras
assumimos vários tipos diferentes de res-
ponsabilidades históricas (no sentido de
gerações – ainda não está claro se os benefícios são
Jasper). Pois a maneira como continua- maiores ou menores do que os riscos. Fechar ca-
mos as tradições nas quais nos encontra- minhos a futuros desenvolvimentos biotecnoló-
mos cabe a nós mesmos.10 gicos seria certamente uma falha de nossa respon-
sabilidade para com futuras gerações. Negar-se
10 HABERMAS, 1989, p. 249-267, citação na p. 251. deliberadamente a permitir mudanças irreversí-

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veis talvez seja o dever mínimo que possibilite a sentado todas as culturas igualmente próximas ao
nossos futuros descendentes a prerrogativa de universal e, portanto, igualmente distantes de rei-
anular e revogar tais limitações auto-impostas. vindicações universalistas (da forma como Kant e
Eric Lander, diretor do centro de genoma do Hegel esperaram uma vez argumentar).14
Whitehead Center do MIT, afirma: Quero agora concentrar-me em duas lições
centrais aprendidas dessa transição para uma orien-
eu baniria, absolutamente baniria, a terapia
tação pós-metafísica no pensar e para o mundo de
do gene da herança genética [germline] hu-
mano. Não porque eu ache, com certeza,
vida [the life world]. A primeira é o reconheci-
que não deveríamos atravessar esse limiar, mento da necessidade de respeito às diferenças
mas porque acredito que é um limiar tão culturais e, portanto, de passar da construção da
decisivo a ser cruzado, que gostaria que a razão substantivista – metafísica e ontológica – à
sociedade tivesse de rejeitar essa presun- construção da razão procedimental. Essa última
ção algum dia, tivesse de revogar um ba- não prejulga se determinadas personificações da
nimento quando achasse ser a hora de razão são menos ou mais racionais do que aquelas
eventualmente tentar algo como isso.11 pelas quais nós mesmos pensamos a razão (no-
vamente como Kant, Hegel e até Marx pressupu-
Essa ética minimalista da abstenção autoli-
seram). Um entendimento pós-metafísico da ra-
mitante é o mínimo que podemos fazer para as
zão significa entendê-la quanto a normas de
gerações futuras. E nem uma antropologia filosó-
justificação e adjudicação, ou seja, práticas de dar
fica nem uma ética das espécies são necessárias
e testar razões. Na medida em que a razão é pro-
para fundá-la.
cedimental, também está situada e permeada de
contextos históricos de praxes e tradições. Poder-
III se-ia argumentar, então, que a razão procedimen-
A transição a um paradigma pós-metafísico tal é pós-eurocêntrica ou antietnocêntrica, procu-
no pensar, podemos argumentar conjuntamente rando, dessa maneira, um diálogo não apenas en-
com Habermas, foi prognosticada e trazida pela tre disciplinas e ciências, mas também entre cul-
lógica da transformação intrafilosófica e intra-in- turas e tradições. A razão procedimental abre-se
telectual: do pensar a identidade para a razão pro- ao transcendental partindo de dentro, e não do
cedimental, da filosofia da consciência à variação ponto de vista sub specie aeternitatis da razão uni-
lingüística, das reivindicações exorbitantes da the- versal.
oria ao repensamento deflacionário da filosofia A segunda lição tem a ver com o lançamen-
na qualidade de ajudante das ciências sociais e na- to do projeto da modernidade política, que, de
turais.12 Essa própria transição, entretanto, deve muitas perspectivas, ainda está a caminho e em
também ser entendida no plano de experiências processo de clarificação. Como foi sugerido an-
históricas: descoberta do Novo Mundo, Reforma teriormente, o projeto da modernidade política
Protestante e guerras confessionais concomitan- relaciona-se com a tentativa de equilibrar dialeti-
tes, a identificação de culturas históricas e, sobre- camente as reivindicações da razão com as da li-
tudo, a percepção da humanidade como objeto berdade. Outra maneira de dizer isso seria reivin-
de estudo (etnografia e antropologia).13 Uma dicar que liberdades fossem legitimadas por um
orientação pós-metafísica no pensar não é apenas processo de deliberação racional, possível apenas
imperativo conceitual, mas também produto de se os humanos forem fortalecidos por liberdades
experiências históricas do mundo que têm apre- políticas. O poder político tem autoridade por-
que é deliberado, quer dizer, foi racionalmente
11Eric Lander apud BRAVE, 2001, p. 3.
12
desenvolvido, e está a serviço das liberdades po-
Cf. HABERMAS, 1992, cap. 3, p. 28-53.
13 Cf. ELLIOTT, 1989, especialmente cap. III: “The discovery of
America and the discovery of man”. 14 Cf. DUSSEL, 1998, particularmente a introdução.

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líticas dos cidadãos. Em nome da liberdade, po- apropriadamente com instrumentos éticos, e sim
demos sempre contestá-lo e ele precisa justificar- políticos. A articulação ética dos desafios da ge-
se ou se torna tirânico e, portanto, refutação da li- nonomia ofuscou o seu caráter legal e político.
berdade: razão e liberdade encontram-se num Está em jogo o equilíbrio entre os direitos comu-
equilíbrio precário. nitários das sociedades e os direitos negativos dos
A tentativa de fundamentar uma resposta cidadãos. A apresentação ética das questões en-
política aos desafios do PGD e da engenharia ge- volvidas na genonomia ameaça esconder as di-
nética no auto-entendimento ético das socieda- mensões relacionadas aos direitos negativos dos
des e, ainda, justificar certo ato político que rejei- cidadãos em determinar sua própria vida correta.
te a engenharia genética em nome de uma ética São esses direitos negativos que Habermas coo-
das espécies representa duas jogadas argumenta- nesta quando, individualmente, convoca o nome
tivas que traem essas duas lições centrais. Por um de uma eugenia liberal seguido por um ponto de
lado, fundar uma resposta ética aos desafios apre- interrogação (como faz no subtítulo de seu li-
sentados pela genonomia no plano de uma ética vro). Podemos entender o juramento hipocrático
das espécies – aceitação da qual é precondição como resposta ao julgamento nosso pela nature-
para a moralidade pós-convencional procedimen- za e à morte que desencadeamos uns nos outros.
tal e cognitivista, marca registrada das sociedades A vida para o ser humano não é apenas um
modernas – significa recuar do aspecto pós- processo metabólico, mas, sobretudo, uma ativi-
eurocêntrico e antietnocêntrico da razão pós- dade social. Se a metafísica nasce com sepulturas,
metafísica. O argumento pela aceitação de uma como Jonas escreveu tão bem, a justiça surgiu
ética das espécies mascara a imposição do enten- com a questão da vida: sua preservação, sustento
dimento ocidental essencial ao ser humano. Não e crescimento. Para o ser humano, a vida é uma
há razão para repetir aqui a pluralidade de pers- questão de justiça: o direito à vida, antes de ser o
pectivas culturais que faz os humanos distintos direito à forma correta de vida, é o direito à pró-
ou não de outras espécies. pria vida. É esse direito que está na essência da
Seria realmente desastroso, numa era de Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os
cosmopolitismo dialógico ou, segundo Walter benefícios concedidos pelas tecnologias reprodu-
Mignolo, cosmopolitismo crítico,15 passar por bai- tivas e pela genonomia desenvolveram-se precisa-
xo do manto de um imperativo ético, uma chan- mente para melhorar esse direito à vida. Mas, ao
tagem etnocêntrica: ou você é moral, aceitando mesmo tempo, não podemos dizer qual deveria
nossos valores éticos, e rejeita a engenharia gené- ser o conteúdo dessa vida, nem ditar como ela
tica, ou você não é, pois recusa nossos valores éti- será conduzida e vivida. Por essa razão, o domí-
cos, não podendo, portanto, ascender ao moral, nio sobre os vivos e a vida é um tipo de bioforça
estando, assim, duplamente excluído do registro negativa e não prescritiva.
moral. Tais ultimatos e ameaças de ser posto Enquanto o direito à vida de todos for as-
numa lista negra são vestígios das piores formas segurado e protegido, a maneira como a vida é vi-
de eurocentrismo. Numa era em que movimen- vida e a forma que ela toma não poderão ser con-
tos de globalização de base, como os de mulhe- troladas, prescrevidas ou proscritas. E é essa bio-
res, de paz, antiarmas nucleares, ambientais e ver- força auto-refreada e abstêmia da modernidade
des, surgiram de uma consciência sincretista política que explica as tendências simultâneas e
transcultural, transnacional e pós-nacionalista, aparentemente discrepantes na cultura moderna
esses gestos teóricos criam dissonância. contemporânea, nomeadamente a aceitação si-
Por outro lado, a resposta aos desafios co- multânea da cultura da auto-otimização com a
locados pela genonomia não pode ser alcançada culturalização da deficiência. Em outras palavras,
quando mal começamos a entender o desejo das
15 MIGNOLO, 2000, p. 721-748. pessoas de prevenir a transmissão do dano gené-

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tico, estamos igualmente compreendendo a von- tonomia política.17 Por esse motivo, a justiça é o
tade de estimular a vida não marcada como do- outro lado da solidariedade. Como o próprio Ha-
ente, e sim desafiada e requerendo nosso cuidado bermas argumenta, a liberdade [freedom] e a
e atenção.16 Uma cultura na qual a deficiência é compaixão, a liberdade [liberty] e a dependência
vista como aspecto cultural e não somente como interligam-se em nosso projeto de modernidade
doença a ser erradicada, talvez seja a epítome do política.18 E é essa liberdade comunicativa que a
que Habermas tem defendido tão eloqüentemen- ética das espécies e a auto-afirmação política da
te em seu trabalho: a liberdade comunicativa. Na modernidade política, motivada por uma pers-
liberdade comunicativa a injúria (dependência) e pectiva ética, colocaram em perigo.
a integridade (autonomia) sintetizam-se em au-
17 Idem, 1989/1990, p. 32-52.
16 Cf. KITTAY, 1999. 18 SHIVA, 2003.

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DUSSEL, E. Ética de la Liberación en la Epoca de la Globalización y la Exclusion. Madrid (México): Trotta, 1998.
ELLIOTT, J.H. Spain and its World 1500-1700. New Have/Londres: Yale University Press, 1989.
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______. The New Conservatism: cultural criticism and the historian’s debate. Cambridge: The MIT Press, 1989.
HONNETH, A. & JOAS, H. Social Action and Human Nature. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
JONAS, H. “Evolution and freedom: on the continuity among life-forms”. In: ______. Mortality and Morality: a
search for the Good after Auschwitz. Evanston/Illinois: Northwestern University Press, 1996.
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KURZWEIL, E. The Age of Spiritual Machines. New York: Viking, 1999.
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Impulso, Piracicaba, 15(36): 143-154, 2004 153


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Dados do autor
Filósofo, responsável pela tradução e publicação
de vários trabalhos de Jürgen Habermas, Karl-Otto
Apel e Enrique Dussel nos EUA. Entre suas publicações,
constam The Adventures of Transcendental Philosophy. Karl-Otto Apel‘s
Semiotics and Discourse Ethics (Rowman & Littlefield, 2002), Religion and
Rationality. Essays on Reason e God and Modernity (MIT Press, 2002),
além de vários artigos sobre teoria crítica e globalização.

Recebimento artigo: 25/fev./04


Consultoria: 2/mar./04 a 17/mar./04
Aprovado: 18/mar./04

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Uma Leitura dos Alimentos


Geneticamente Modificados
sob a Ótica da Complexidade
APPROACHING GENETICALLY MODIFIED
ORGANISMS WITHIN THE SCOPE OF THE
COMPLEXITY THEORY
Transgênicos: bases científica da sua segurança,
de Franco Maria Lajolo & Marília Regini Nutti
São Paulo: Editora SBAN, 2003, 110p. ISBN 85-89559-01-7

Biotecnologia e Nutrição, de Neuza Maria Brunoro


Costa & Aluízio Borém
Diadema: Nobel, 2003, 214p. ISBN 85-21312-44-X

O
s alimentos geneticamente modificados (AGM) têm
encontrado muita resistência para o seu consumo. MARIA RITA
De certa forma, a diferença entre a realidade da bio- MARQUES DE
tecnologia e a propaganda da indústria está cada vez OLIVEIRA
mais gritante, o que vem gerando muita insegurança. Curso de Nutrição da UNIMEP
Certamente, a simplificação da complexidade por mrmolive@unimep.br
parte da indústria e de geneticistas contribui para tal
insegurança. Segundo o francês Edgar Morin, nossas
angústias e tormentos existenciais clamam por uma resposta que nos ali-
vie. A simplificação objetiva eliminar a incerteza e nos oferecer a resposta
desejada, mas não sem custo. Há ainda a consideração de que a possibi-
lidade de manipular o material da vida representa uma questão para a hu-
manidade, talvez da mesma grandeza da noção de que a Terra não era o
centro do Universo. Leva-nos a repensar nossos valores éticos, políticos
e culturais, zelando para que se faça um bom uso dessas descobertas e nos
cobrando um posicionamento perante a sociedade.
A polarização dessa discussão ocorre na maioria das publicações so-
bre a questão, sendo em geral editadas por ativistas contrários à tecnolo-
gia ou por pesquisadores, por vezes, envolvidos na magia e empodera-
mento da descoberta. O papel moderador entre os extremos tem ficado
por conta das agências governamentais. Olhando, ora do lugar dessas
agências, ora do lugar do pesquisador, as obras Transgênicos: bases cientí-
fica da sua segurança e Biotecnologia e Nutrição nos ajudam a entender

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como essas agências vêm tratando o assunto e dos por outras tecnologias e também na falta de
como estão as pesquisas na área. questionamento aos medicamentos transgênicos,
Os livros em questão – O primeiro deles, que já têm consumo regular. Naturalmente, tais
do professor Franco Lajolo da Universidade de argumentos por si não respondem a questão a
São Paulo e da pesquisadora da Embrapa Marília respeito dos AGM, o mais coerente seria assumir
Nutti, da Embrapa, publicado pela Sociedade as incertezas e a complexidade desse processo.
Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN), é Pode ser bem fácil para a engenharia gené-
escrito numa linguagem de fácil entendimento, tica colocar um gene inédito num organismo,
explicando a produção dos AGM, os potenciais mas é impossível dizer como esse gene irá operar.
riscos à saúde, a avaliação da segurança, a legisla- No estágio atual, os geneticistas não possuem
ção brasileira sobre rotulagem e as pesquisas na- controle sobre o que exatamente acontece com o
cionais. Já o livro dos professores da Universida- organismo. Se ocorrer a transferência de um gene
de Federal de Viçosa (UFV) Neuza Costa e Alu- de um organismo para outro, o gene poderá agir
ízio Borém faz referências aos mesmos temas, exatamente como no organismo original, ou na
ainda que de forma menos abrangente, dedican- parte errada, ou na hora inadequada, ou ainda afe-
do-se mais à descrição das possibilidades da bio- tar a função dos genes que já estão no organismo
tecnologia para a nutrição. receptor. Porém, esse é um risco que, acredita-se,
Sobre os riscos potenciais para a saúde, es- ocorre apenas no processo de desenvolvimento
pecialmente, o livro publicado pela SBAN, reafir- do organismo geneticamente modificado (OGM),
ma nossas incertezas. Em tese, alguns perigos não se descartando a possibilidade da perda de
existem, mas até o momento não há registros de controle do processo.
ocorrência de efeitos adversos graves. Vale a lei da Aquilo que esconde, rejeita aquilo que
precaução, cabendo cada caso receber um trata- exibe – Os dois trabalhos não abordam os peri-
mento particular. gos ecológicos, entretanto, o medo da dissemina-
A avaliação dos AGM, até que possam ser ção acidental ou deliberada na biosfera de OGM
consumidos, tem sido feita com base nos meto- nocivos à vida no planeta é o tema mais persis-
dologias convencionais, importando conhecer o tente nos discursos dos que têm posição contrá-
histórico de toxidade e de alergenicidade dos ali- ria aos AGM. Os custos sociais (tanto ecológico,
mentos originais, o que, pelo princípio da equi- quanto econômico) desses avanços tecnológicos
valência substancial, determinará o tipo de avalia- são amplamente criticados por cientistas e ativis-
ção a que esse alimento será submetido. Além tas, como a indiana Vandana Shiva. O seu Mono-
dessas preocupações comuns aos demais alimen- culturas da Mente1 faz importantes referências à
tos, a possibilidade de transferência de genes para forma como as pesquisas na área estão sendo
bactérias intestinais e a possível criação de orga- conduzidas e ao jogo de interesses e ganância das
nismos resistentes a antibióticos é relevante, mas grandes potências. Nessa trama, a seleção bioló-
tem sido considerado muito improvável. Con- gica passa a ser a possibilidade de comércio e pa-
forme mostra a publicação da SBAN, é bem pe- tenteamento do material genético.
quena a quantidade de DNA recombinante que se A revolução biológica, desde os seus pri-
ingere, sendo que, como sofrem hidrólise no in- mórdios, tem mostrado que a origem da vida não
testino, não chegam a ser absorvidos intactos reside em sua matéria, mas em sua organização,
pelo organismo. na qual o elemento central deixa de ser a estrutu-
Especialmente o livro os professores da ra do gene e passa a ser o comportamento sistê-
UFV argumenta em defesa da segurança dos AGM mico dos elementos celulares. O determinismo
para o consumidor, pautando-se na ignorância do genético rejeita a auto-organização da vida. Se-
público com relação aos efeitos nocivos à saúde
associados aos alimentos convencionais já obti- 1 SHIVA, V. Monoculturas da Mente. São Paulo: Gaia, 2003.

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gundo Morin, “revela aquilo que esconde, rejeita das patentes para OGM. Ressalta-se que os AGM
aquilo que exibe”.2 A descrição de como a mani- acima citados são resistentes a inseticidas ou her-
pulação do gene de uma única enzima pode inibir, bicidas, o que vem invalidar o discurso social e
ativar ou aumentar a sua expressão, para interferir confirmar o monopólio das multinacionais inte-
apenas em passos específicos do metabolismo das ressadas em vender seus produtos. Nesse senti-
plantas, feita pelos autores de Viçosa, nos revela, do, as pesquisas realizadas no Brasil, em especial
de certa forma, esse determinismo. pela Embrapa, e divulgadas no livro da SBAN, são
A principal contribuição da obra dos pro- um contraponto a essa realidade unilateral. Daí, o
fessores de Viçosa é a ampla revisão das pesquisas imperativo de se garantir condições para que con-
que vêm sendo realizadas no campo da nutrição. tinuem.
A revisão sobre os alimentos com propriedades Ainda na publicação da UFV, o capítulo so-
funcionais (adicionais) de proteção específica à bre bioética e AGM é pautado na questão impera-
saúde aguça a imaginação para as possibilidades tiva da produção de alimentos em grande escala
de manipulação de todos os nutrientes pela enge- para suprir a demanda do planeta. Hoje, a produ-
nharia genética no desenvolvimento de alimentos ção mundial é suficiente para atender essa de-
que promovam a saúde. As pesquisas em anda- manda, apesar da fome que grassa nos países me-
mento estão trabalhando na modificação da com- nos desenvolvidos. Ainda não é possível saber se
posição e do tipo de gordura dos alimentos, no ela continuará sendo, tendo em vista o esgota-
aumento da concentração de minerais e vitami- mento dos recursos e possíveis mudanças climá-
nas, na redução dos fatores antinutricionais e até ticas. No futuro, a biotecnologia só terá lugar se
no desenvolvimento de vacinas alimentares. acompanhada de medidas sociais e políticas ade-
Contudo, o livro não deixa claro quais AGM estão quadas. Essa outra face da ética é pouco explora-
em fase de desenvolvimento ou já foram aprova- da pelos autores.
dos para consumo, o que pode confundir o leitor.
A leitura do capítulo “Biotecnologia na
A Organização Mundial da Saúde (OMS)
nutrição e saúde” desse livro mostra que tal tec-
relaciona os AGM atualmente consumidos (mi-
nologia está caminhando a passos de gigante. En-
lho, soja, colza, chicória, espinafre e batata), con-
tretanto, talvez não tenha havido tempo para cui-
siderando-os relativamente seguros. Aponta que
dar de todos os rebatimentos possíveis desse pro-
essa tecnologia tem potencial para produzir ali-
cesso: definir-se a quem ele servirá e que usos fa-
mentos a menor preço e com maior durabilidade,
zer ou mesmo se realmente necessitamos dessa
valor nutricional e produtividade. Embora mos-
nova geração de AGM que vem por aí numa ava-
tre preocupações com a biodiversidade, com os
lanche. Não seria essa a hora de fazer frente ao
pequenos agricultores e com a regulamentação
modelo posto e estabelecer uma maneira ética e
2 MORIN, E. O Método 2 – A vida da vida. Porto Alegre: Sulina,
responsável de colocar esses avanços da ciência a
2001, p. 401. serviço da humanidade? Quem poderá nos dizer?

Dados sobre a autora


Doutora em ciência dos alimentos (FCF/USP) e
coordenadora do Curso de Nutrição da UNIMEP.

Recebimento artigo: 3/maio/04


Consultoria: 5/maio/04 a 12/maio/04
Aprovado: 28/maio/04

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REVISTA IMPULSO

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO


PRINCÍPIOS GERAIS
1. A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e resenhas
nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte do espaço de cada edi-
ção a um tema principal, a partir das seguintes seções: “Temática”, apresentando os artigos temáti-
cos; “Conexões Gerais”, para ensaios não temáticos; “Comunicações & Debates”, para textos
curtos e fora dos padrões acadêmicos mais tradicionais; e “Resenhas & Impressões”, para críticas,
resenhas e comentários em geral.
2. Os artigos podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de trabalho:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre de-
terminado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bi-
bliografia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
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são fundamentadas tais decisões e devolvidos os originais com anotações dos pareceristas; (e) se
indicado para publicação “com ressalvas”, o artigo deve ser novamente submetido à Editora: os tre-
chos alterados devem ser realçados por cor ou sublinhados; essa nova versão será entregue em
papel (uma cópia) e em arquivo eletrônico, acompanhada do texto original apreciado pelos parece-
ristas; (f) eventuais ilustrações devem ser encaminhadas separadamente, em seus respectivos arqui-
vos eletrônicos em suas extensões originais; (g) antes da impressão, o(s) autor(es) recebe(m)
versão final do texto para análise.

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6. Os artigos devem ser encaminhados ao editor da IMPULSO, em três cópias, constando de uma os
dados do(s) autor(es) e das outras duas apenas o título do artigo (portanto, sem identificação de
autoria), acompanhadas de ofício com:
• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;
• concordância com as presentes normatizações;
• informações sobre o(s) autor(es): titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua, en-
dereço para correspondência, telefone fax e e-mail.
7. Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.
8. Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções grama-
ticais, adequações estilísticas e editoriais).
9. Não há remuneração pelos trabalhos. Por artigo, o(s) autor(es) recebe(m) 1 (um) exemplar da
revista e 10 (dez) separatas do seu artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista com
desconto de 30% sobre o preço de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, a
preço de custo equivalente ao número de páginas e de cópias delas.

ESTRUTURA
10. Elementos do artigo (em folhas separadas):
a)IDENTIFICAÇÃO
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente o
conteúdo do texto;
• nome do(s) AUTOR(ES), titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denominado
ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o(s) autor(es) deve(m) indicar os termos-chave (mínimo de três e má-
ximo de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c)TEXTO
• deve ter INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Cabe ao(s) autor(es) criar os
entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro
comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano;
total de páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de trabalhos acadêmicos a serem
resenhados, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre
a instituição na qual foi produzida.
d)ANEXOS
• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e)DOCUMENTAÇÃO
NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no cor-
po do texto.1
CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico),
após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENOME
do autor, ano da publicação e página em que se encontra a citação.2

1 Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o
empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiús-
cula, seguido do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.
2 FARACO; GIL, 1997, p. 74-75.

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CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de qua-
tro centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e pos-
terior por uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, in-
dicando o SOBRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3
Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de
publicação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o pa-
drão abaixo.
A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer
no fim do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o se-
guinte padrão:

LIVROS
SOBRENOME, N.A. (pré-nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; até três autores: separar por
“;”, mais de três: registrar o primeiro deles seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Número da edi-
ção. Cidade: Editora, ano completo, volume. Ex.:
ROMANO, G.“Imagens da juventude”. In: LEVI, K. (org.). História dos Jovens. São Paulo: Atlas, 1996.
EHRLICH, E. [1913]. Grundlegung der Soziologie des Rechts. 4. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1989.
GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/ITAL, 1984.
RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B. (orgs.) Teoria Crítica, Estética e Educação. Piracicaba/Campinas:
Editora Unimep/Editora Autores Associados, 2001.
• SOBRENOMES CUJA FORMA COMPOSTA É A MAIS CONHECIDA e SOBRENOMES ESPA-
NHÓIS. Ex.: MACHADO DE ASSIS, J.M.; EÇA DE QUEIROZ, J.M.; GARCÍA MÁRQUEZ, G.; RO-
DRÍGUEZ LARA, J.
• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM mesmo autor: após a primeira citação completa, introduzir
a nova obra da seguinte forma:
______. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997.
• OBRAS sem autor definido:
Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2. ed. São Paulo, 1987.

PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade: Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data. Ex.:
REFLEXÃO. Campinas: Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975.
• No todo:
TÍTULO DO PERIÓDICO. Local de Publicação (cidade): Editora, volume, número, mês e ano
VEJA. São Paulo: Editora Abril, v. 31, n. 1, jan. 1998.
• ARTIGOS DE revista:
AUTOR DO ARTIGO.4 “Título do artigo”. Título da revista (abreviado ou não), local de publicação, número do
volume, número do fascículo, páginas inicial-final, mês** e ano.
ESPOSITO, I. et al. “Repercussões da fadiga psíquica no trabalho e na empresa”.Revista Brasileira de Saúde, São
Paulo, v. 8, n. 32, p. 37-45, out.-dez./1979.
• ARTIGOS DE jornal:

3 FARIA, 1996, p. 102.


4 Em caso de autoria desconhecida, a entrada é feita pelo título do artigo, colocando-se a primeira palavra toda em caixa maiúsculo.
** Os meses devem ser abreviados de acordo com o idioma da publicação. Quando não houver seção, caderno ou parte, a paginação do artigo pre-
cede a data.

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AUTOR DO ARTIGO.* “Título do artigo”.Título do jornal, local de publicação, dia, mês** e ano. Número ou título do
caderno, seção ou suplemento e página inicial e final do artigo.
OLIVEIRA, W.P. de. “Judô: educação física e moral”.O Estado de Minas, Belo Horizonte, 17/mar./1981. Caderno de
esporte, p. 7.

DISSERTAÇÕES E TESES
AUTOR. Título: subtítulo. Ano de apresentação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Grau e área de
concentração). Instituição, local.
RODRIGUES, M. V. “Qualidade de vida no trabalho”. 1989. 180f. Dissertação (Mestrado em Administração). Facul-
dade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FONTES ELETRÔNICAS
A documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis:
• sobrenome e nome do autor;
• título completo do documento (entre aspas);
• título do trabalho no qual está inserido (em itálico);
• data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização;
• endereço eletrônico (URL) completo (entre parênteses angulares: < >);
• data de acesso.
Exemplos:
Site genérico
LANCASHIRE, I. Home page. 13/set./1998. <http://www.chass.utoronto.ca:8080/~ian/index.html>. Acesso: 10/
dez./1998.
Artigo de origem impressa
COSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5. O Globo, 6.12.98. <http://www.oglobo.com.br>. Acesso: 6/
dez./1998.
Dados/textos retirados de CD-rom
ENCICLOPÉDIA ENCARTA 99. São Paulo: Microsoft, 1999.Verbete“Abolicionistas”.CD-rom.
Artigo de origem eletrônica
CRUZ, U.B.“The Cranberries: discography”.The Cranberries: images. Fev./1997. <http://www.ufpel.tche.br/~ bira/
cranber/cranb_04.html>. Acesso: 12/jul./1997.
OITICICA FILHO, F. “Fotojornalismo, ilustração e retórica”. <http://www.transmidia.al.org.br/retoric.htm>. Acesso:
6/dez./1998
Livro de origem impressa
LOCKE, J. A Letter Concerning Toleration. Translated by William Popple. 1689. <http://www. constitution.org/jl/
tolerati.htm>.
Livro de origem eletrônica
GUAY, T. A Brief Look at McLuhan’s Theories. Web Publishing Paradigms. <http://hoshi.cic.sfu. ca/~guay/Para-
digm/McLuhan.html>. Acesso: 10/dez./1998.
KRISTOL, I. Keeping Up With Ourselves. 30/jun./1996. <http://www.english.upenn.edu/~afilreis/50s/kristol-
endofi.html>. Acesso: 7/ago./1998.
Verbete
ZIEGER, H.E.“Aldehyde”.The Software Toolworks Multimedia Encyclopedia. Vers. 1.5. Software Toolworks. Boston:
Grolier, 1992.
“Fresco”. Britannica Online. Vers. 97.1.1. Mar./1997. Encyclopaedia Britannica. 29/mar./1997. http://www.
eb.com:180.

162 Impulso, Piracicaba, 15(36): 157-161, 2004


002301_impulso_36.book Page 163 Thursday, July 22, 2004 4:20 PM

E-mail
BARTSCH, R. <abnt@abnt.org.br>“Normas técnicas ABNT – Internet”.13/nov./1998. Comunicação pessoal.
Comunicação sincrônica (MOOs, MUDs, IRC etc.)
ARAÚJO, C.S. Participação em chat no IRC #Pelotas. <http://www.ircpel.com.br>. Acesso: 2/set./1997.
Lista de discussão
SEABROOK, R.H.C. <seabrook@clark.net> “Community and Progress”. 22/jan./1994. <cybermind@jefferson.
village.virginia.edu>. Acesso: 22/jan./1994.
FTP (File Transfer Protocol)
BRUCKMAN, A. “Approaches to Managing Deviant Behavior in Virtual Communities”. <ftp://ftp. media.mit.edu/
pub/asb/papers/deviance-chi-94>. Acesso: 4/dez./1994.
Telnet
GOMES, L. “Xerox’s On-Line Neighborhood: A Great Place to Visit”. Mercury News. 3/maio/1992. telnet
lamba.parc.xerox.com 8888, @go #50827, press 13. Acesso: 5/dez./1994.
Newsgroup (Usenet)
SLADE, R. <res@maths.bath.ac.uk>“UNIX Made Easy”.26/mar./1996. <alt.books.reviews>. Acesso: 31/mar./1996.
11. Os artigos devem ser escritos em português ou espanhol, podendo, contudo, a critério da Comis-
são Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
Os trabalhos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papel
branco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas.
12. As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do
texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo a
garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúscu-
las. (a) TABELAS: editadas em Word ou Excel, com formatação necessariamente de acordo com as
dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do
texto; não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas; (b) FOTOGRA-
FIAS: com bom contraste e foco nítido, sendo fornecidas em arquivos em extensão “tif” ou “gif”;
(c) GRÁFICOS e DESENHOS: incluídos nos locais exatos do texto. No caso de indicação para publi-
cação, essas ilustrações precisarão ser enviadas em separado, necessariamente em arquivos de
seus programas originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.); (d) figuras,
gráficos e mapas, caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim
preta. As convenções precisam aparecer em sua área interna.

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