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an /melia =} rt Sieg Quuais si os verdadeits interesses Perea tccet Roem seme) erie Hoje, a primeira questao que nos Sete conne ye ee Sacer eu cane sce ey sua forma. Como entender esas Pantin ee aa Orne mea eo See eee nrc ee renee cidas dentro de espacos de controle fercantis que acabam pe Mecompor o vinculo social, a pritica artistica aparece como um campo fértil de experimentacdes sociais. Bourriaud investiga a sensibilidade coletiva em que se inserevem essas novas formas da arte. E detém-se na verlente convivial ¢ interativa dessa revolugdo, procurando saber por que os artistas passaram a produzir mo- delos de socialidade a se situar dentro da esfera inter-humana, Extaica retacional traz a0 leitor essas novas formas de atividade artistica, indo de Maurizio Cattelan, com ratos alimentados com queijo, passando por Bel Paese, até chegar a Noritoshi Hirakawa e seu pequeno classificado & procura de uma jovem que quisesse participar de sua exposigdo. Sao as realizagdes do cotidiano humano, por meio da pratica artis tica e da tentativa da arte em abrir algumas passagens, que efetuam algumas ligagdes e colocam em con= tato diferentes niveis de realidade, NICOLAS BOURRIAUD ESTETICA RELACIONAL DENISE BOTTMANN martins Martins Fontes ae (© Les presses du rel, Dijon, 1598, Livan Ltd, So Paul, par a ptsente edict to. 103 B ai TEGS reeae vac elas aoe 3f on Zlinsy 4 os tain Canlaon Pubic) owned Nae na elon Nica ucaud; adoro Denise eta. SioPeslo: Mastin 208, (Colga'Tass Anes ial ceigna Eastigue elon EN Sree al Aste soiade 2. Acer Sut: Ciara smarts L Tule See Takes para cilogo intone Ware Baia laenal na Todos os direitos desta egdo para o Brasil reservados & ‘Martins Edita Liveara Leda Av: Dr. Arnaldo, 2076 91255.000 San Paulo SP. Brast Tel, (11) 316.0500 Info martssediora com br ewe martnsmartinsontes.com br SUMARIO Introdugio A forma relacional . As priticas artisticas contemporineas ¢ seu projeto cultural : A obra de arte como intersticio social A estética relacional e 0 materialismo aleatério A forma e 0 olhar do outro .. A arte dos anos 1990 Participagio e transitividade Tipologta ‘Conexées e pontos de encontro Convivio ¢ encontros casas .. Colaboragdes e contratos RelagGes profissionais: clientelas Como ceupar uma galeria? (Os espacos-tempos da troca .. As obras ¢ as trocas 15 16 19 25 29 35 35 40 40 2 46 49 52 57 57 Otema da obra Espagos-tempos na arte dos anos 1990 Co-presenga e disponibilidade: a heranca tebrica de Felix Gonzalez-Torres ‘A homossexualidade como paradigma de coabitagao, Formas contemporaneas do monumento CO cititério de coexisténecia (as obras e 08 individuos) ‘A.aura das obras de arte deslocou-se para seu ptblico, ‘Abeleza como solugéo? Relagies-tela “Aart fe hoje Svs ols kena Aaate 60s equipamentos Aleide deslocalizagao ‘A tecnologia como modelo ideoldgico (do rag 20 pro gama) Actmer e a exp A exposigdo-cenério 0s figarantes ‘Aart depos do aideo Rewindlplaytast forward Ruma a democratizag dos pontos de vista? Para uma politica das formas Coabitagbes : 4 “ Notes sobre algumas extensies possiveis de uma estética relacional Sistemas visuals Aimagem é um momento (© que mostram os artisias 1 31 92 2 96 100 100 103 105 107 m am m1 am 112 12 Os limites da subjetividade individual .. A engenharia da intersubjetividade Uma arte sem efeita? © futuro politico das formas Reabilitar a experimentacao Estética relacional e situacées construidas © paradigna estético Félix Guattari ea arte) A subjedvidade conduzida e produzida Desnaturalizar a subjetividade Fstatuto e funcionamenta da subjetividade As unidades de subjetivagéo O paradignaa esttico A critica do paradigma cientificista Oreftdo, o sintoma ea obra A obra de arte como objeto parcial Para uma pris artistico-ecosética ‘A ordem comportamental da arte atual Glossario 13 14 114 116 us 118 120 122 122 125 129 133 133 135 138 a2 144 ua? INTRODUGAO ‘A que se devem os mal-entendidos que cercam a ar- te dos anos 1990, sendo a uma falha do discurso te6rico? Criticose filésofos, em suaimensa maioria, néo gostam de abordar as préticas contempordneas: assim, elas se man- \ém essencialmente ilegiveis, pois nao é possivel perceber .ua originalidade e sua importéncia analisando-as a par- Lirde problemas resolvidos ou deixados em suspenso pelas ages anteriores. F preciso aceitar 0 doloroso fato de que vertas questdes nao sao mals pertinentes ~¢, por extensao, demarcar quais delas so assim consideradas atualmente pelos artistas: quais s4o os verdadeiros interesses da arte contemporanea, suas relagbes com a sociedade, a histéria, 1 cultura? A primeiza tarefa do crftico consiste em recons~ Lituir o complexo jogo dos problemas levantados numa de: lerminada época e em examinar as diversas respostas que Ives sao dadas, Muitas vezes, a critica contenta-se em in- ventariar as preocupasées do passado apenas para poder 10 NICOLAS BOURRIAUD lamentar a auséncia de respostas. Ora, a primeira pergunta em relagao as novas abordagens refere-se, evidentemente, 8 forma material das obras. Como entender essas produ- «Ges aparentemente inapreensiveis, quer sejam processuais, ‘ou comportamentais - em todo caso, “estilhacadas” se- gundo os padrées tradicionais -, sem se abrigar na histéria da arte dos anos 1960? Citemos alguns exemplos dessas atividades: Rirkrit Tiravanija organiza um jantat na casa de um colecionador e deixa-Ihe 0 material necessério para o preparo de uma sopa tailandesa. Philippe Parreno convida pessoas para praticar seus hobbies favoritos no Primeiro de Maio, nu- ma linha de montagem industrial, Vanessa Beecroft ves te cerca de vinte mulheres, que o visitante s6 enxerga pelo vio da entrada, com oupas iguais e perucas ruivas. Mauri- zio Cattelan alimenta ratos com queijo Bel Paese ¢ os ven- de como miltiplos, ou expoe coftes recém-a:rombados Numa praca de Copenhague, Jes Brinch e Henrik Plenge Jacobsen instalam um énibus capotada que, por emula~ ‘cdo, provoca um tumulto na cidade. Christine Hill empre- ga-se como caixa de supermercado e mantém uma sala de gindstica semanal numa galeria, Carsten Héller recria a formula quimica das moléculas secretadas pelo cérebro humano em estado amoroso, monta um veleiro de plés- ‘ico inflével ou cria tentilhées para thes ensinar um novo canto. Noritoshi Hirakawa publica um pequeno classifica~ do num jomal, a procura de uma jovem que aceite partici- STETICA RELACIONAL i par de sua exposigdo, Pierre Huyghe chama pessoas para 'n montagem de um elenco, coloca uma televiséo & dispo- 10 do piblico, expae a foto de operdrios trabalhando a suns metros do canteiro de obras... Muitos outros no- nes e trabalhos se somam a lista: em todos esses casos, a artida mais animadamente disputada no tabuleiro da arte se desenvolve em fuungdo de nogées interativas, conviviais © telacionais, Hoje, @ comunicagao encerta os contatos humanos dentro de espagos de controle que decompiem o vineulo social em elementos distintos. A atividade artistica, por sua vez, tenta efetuar ligagdes modestas, abrir algumas passa- ens obstruidas, pér em contato niveis de realidade apar- lados. As famosas “auto-estradas de comunicagdo”, com seus pedagios e espagos de lazer, ameagam se impor como 10s inicos trajetos possiveis de um lugar a outro no mundo. humano. Se por um lado a auto-estrada realmente permi- le uma viagem mais répida e eficiente, por outro ela tem 0 \lefeito de transformar seus usudrios em consumidores de uilometros e seus derivados. Perante as midias eletréni- «ats, 08 parques recreativos, os espagos de canvivio, a pro- lileragao dos moldes adequados de socialidade, vemo-nos pobres e sem recursos, como 0 rato de laboratério conde~ nado a um percurso invariavel em sua gaiola, com peda- (wos de queijo espathados aqui e ali. Assim, o sujelto ideal da sociedade dos figurantes estaria reduzido a condigao de consumidor de tempo e de espaco, pois o que nao pode ser 12 NICOLAS BOURRIAUD comercializado esté fadado a desaparecer. Em breve, as re- ages humanas nao conseguitso se manter fora desses es- pagos metcantis: somos intimados a conversarem volta de uma bebida e seus respectivos impostos, forma simbéli- ca do convivio contempordneo. Voces querem bem-estar e aconchego a dois? Entéio provem nosso café... Assim, 0 € aco das relagdes habituais é 0 que se encontra mais dura- mente atingido pela reificagio geral. Se quiser escapar ao dominio do previsivel, a relagao humana ~simbolizada ou substitufda por mercadorias, sinalizada por logomarcas ~ precisa assumir formas extremas ou clandestinas, uma vez que o vineulo social se tornou um produto padronizado. Num mundo regulado pela divisao do trabalho e pela superespecializacao, pela mecanizagéo humana pela lei do lucto, aos governos importa tanto que as relagdes hu- ‘manas sejam canalizadas para vias de safda projetadas pa- ra essa finalidade quanto que elas se processem segundo alguns prineipios simples, controlaveis e repetiveis. A “se- paragio” suprema, a que afeta os canais relacionais, cons titui a dltima etapa da transformagao rumo a “sociedade do espetéculo” descrita por Guy Debord. Sociedade em que as relagdes humanas nao so mais “diretamente vivi- das’, mas se afastam em sua representacao “espetacular” E aqui que se situa a problemética mais candente da arte atual: seré ainda possivel gerar relages no mando, num campo pritico ~a historia de arte ~ tradicionalmente des- ti sava Debord, para quem o mundo da arte nao passava de ado A “tepresentacdo” delas? Ao contrério do que pen- FSTETICA RELACIONAL 13 um depésito de exemplos do que seria preciso “realizar” concretamente na vida cotidiana, hoje a pratica artistica es sociais, aparece como um campo fértil de experimenta como um espaco parcialmente poupado a uniformizagao dos comportamentos, As obras que serao aqui tratadas es- bogam virias utopias de proximidade, (Os textos a seguir foram publicados em revistas, prin: cipalmente Documents sur Art, ou em catélogos de expo- sig6es', ¢ passaram por alteragies e reelaboragdes. Outros sao inéditos. Além disso, ao final desta coletnea de en- saios ha um glossdrio que o leitor pode consultar quando aparecer alguma nogao problemética. Para facilitar a com- preensdo da obra, sugerimos que cle consulte desde jé a definigéo da palavra "Arte" 1 "Ls paraigme esthique (Flix Gutta ot Lar) foi publieado pela r= vista Chindres (903), "Relation cera’ foi publicdo no estslogeda blenal de ar te castemparanes de Lyon (1935), A FORMA RELACIONAL A.atividade artistica constitui nao uma esséncia imuté- vel, mas um jogo cujas formas, modalidades e fungdes evo- luem conforme as épocas eos contextos sociais. A tarefa do critico consiste em estudé-la no presente. Um certo aspec- to do programa da modernidade jé esté totalmente enc ado (mas nao o espirito que o animava — insistamos nesse ponto em nossos tempos pequeno-burgueses). Esse esgo- lamento esvaziou o conterido dos critérios de julgamento bostético que nos foram legados, mas continuamos a apli- civ-los &s praticas artisticas atuais. O novo ndo é mais um critério, a nao ser entre os detratores ultrapassados da ar- Je moderna que retém do detestado presente apenas aqui- Jo que sua cultura tradicionalista Ihes ensinow a abominar na arte do passado, Para criar ferramentas mais eficazes e pontos de vista mais adequados, é importante aprender 1s transformagSes atualmente em curso no campo social, captar 6 que jé mudou e 6 que continua a mudar. Como 16 NICOLAS BOURRIALD. entender 08 comportamentos artisticos manifestados nas exposigSes dos anos 1990, ¢ sous respectivos modos de pensar, a ndo ser partindo da mesma situagdo dos artistas? As priticas artisticas contempordneas e seu projeto cultural A modernidade politica, nascida com a filosofia das Luzes, baseava-se na vontade de emancipacao dos indivi duos e dos povos: 0 progresso das técnicas e das liberde- des, 0 recuo da ignorancia e a melhoria nas condigbes de trabalho deveriam liberar a humanidade e permitir a ins- tauragio de uma sociedade melhor. Existem, porém, vérias versdes da modernidade. Assim, 0 século xx foi palco de uma luta entre trés visbes de mundo: uma concepgio ra- cionalista-modernista cerivada do século xvi, uma filoso: fia da espontaneidade e da liberagao através do irracional Gadafsmo, surrealismo,situacionismo) eambas se opondo as forcas autoritérias ov utilitaristas que pretendiam mol- dar as relagdes humanas e submeter os individuos, Em vez de levar a desejada emancipacao, o progresso das técnicas e da “Razo” permite, através de uma racionalizacéo geral do proceso de produgéo, a explora¢ao do hemisfério sul, a substituicdo cega do trabalho humano pelas maquinas, além do recurso a téenicas de sujeigdo cada vez mais sofis- Hcadas. Assim, o projeto emancipador modemo foi substi- tuido por intimeras formas de melancolia As vanguardas do século xx, do dadafsmo a interna cional situacionista, inscreviam-se na linhagem desse pro- | SRETICA RELACIONAL 7 jeto moderno (transformar a cultura, as mentalidades, as condigdes de vida individual e social), mas ndo esquegamos que ele era anterior as vanguardas e delas se distinguia sob muitos aspects, Pois a modernidade nao se reduz a uma \cleologia racionalista nem a um messianismo politico. Ha de se denegrir a vontade de melhorar as condigdes de vida de trabalho s6 porque malograram suas tentativas con- cretas de realizagdo, repletas de dle visbes histéricas ingénuas? O que se chamava vanguar- «la certamente foi desenvolvido a partir do “banho” ideol6- jhico oferecido pelo racionalismo moderno, mas, posto isso, leologias totalitérias ou seus pressupostos filos6ficos, culturais e sociais so total- mente diversos. E claro que a arte de hoje prossegue nessa luta, propondo modelos perceptivos, experimentais, erfti- cos € participativos, seguindo 0 rumo indicado pelos fil ‘olos das Luzes, por Proudhon, Marx, pelos dadaistas ou por Mondrian. Se a opinio puiblica tem dificuldade em re- conhecer a legitimidade ou o interesse dessas experiéncias, © porque elas nao se apresentam mais como preniincios de uma inexaravel evolugao historica: pelo contrario, elas se isoladas, sem uma visdo global do mundo que possa lhes conferir o peso de uma ideologia. Nao foi a modernidade que morreu, e sim sua verso \dealista e teleolgica O combate da modernidade ocorre nos mesmos ter- mos do passado, exceto pelo fato de que a manguarda dei- mostram fragmentérias xou de ir & frente como batedora, e a tropa imobilizou-se, temerosa, num bivaque de certezas, A arte devia preparar 18 NICOLAS BOURRIALD ou anunciar um mundo futuro: hoje ela apresenta modelos de universos possiveis Os artistas que inscrevem sua pratica na esteira da modernidade histérica ndo pretendem repetir suas formas rem seus postulados, tampouco atribuir A arte as mesmas fungSes que elaatribuia, Sua tarefa ésemelhantea que Jean- Frangois Lyotard conferia & arquitetura pés-moderna, a qual “se vé condenada a gerar uma série de pequenas mo dificagdes num espago herdado da modernidade a aban- donar uma reconstrugdo global do espago habitado pela humanidade”', Aligs, Lyotard parece indiretamente la- meniar esse estado de coisas: ele define a situagiio de ma- neita negativa, usando © termo “condenada’, E se, pelo contrdrio, essa “condlenagao” constituisse a oportunidade histérica a partir da qual, nos tiltimos dez anos, vem sur- gindo a maioria dos mundos artisticos que conhecemos? Essa “oportunidade” cabe em poucas palavras: aprender a Ahabitar methor o mundo, em vex de tentar construs-lo a par- tir de uma idéia preconcebida da evelucdo histérica. Em outros termos, as obras jd ndo perseguem a meta de for- mar realidades imaginarias ou utdpicas, mas procuram constituir modos de existéncia ou modelos de aco dentra da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhi- da pelo artista. Althusser dizia que sempre se toma a trem do mundo em movimento; Deleuze, que “a grama pressio na no meio’, e nao por cima nem por baixo: o artista habi- Jean-Francois Lyotard, Le pos au ents, Pais, Ga lige, ches Bibi, 85, p10 I STETICA RELACIONAL 9 ta as circunsténcias dadas pelo presente para transformar bo contexto de sua vida (sua relagio com o mundo sensivel ou conceitual) num universo duradouro, Ele toma o mun- oem andamento: é um locatério da cultura, para retomar a ‘expresséo de Michel de Certeau’, Hoje, a modernidade pro- longa-se em priticas de bricolagem e reciclagem do dado cultural, na invengdo do cotidiano e na ordenacda do tem- po vivide, abjetos tao dignos do atengdo e estudo quan lo as utopias messiénicas ou as “novidades” formais que 1 caracterizavam no pasado, Nada mais absurco do que afirmar que a arte contemporanea ndo apresenta nenhum projeto cultural ou politico, e que seus aspectos subversi- vos nao se enrafzam em nenhum solo teérico. No entanto, .cu projeto, referente as condigGes de trabalho e de produ- to dos objetos culturais, bem como as formas variaveis da vida em sociedade, parecerd insipido aos espitites forma- dos nos moldes do darwinisme cultural ou aos amantes lo “centralismo democratico” intelectual. E chegado, como liz Maurizio Cattelan, 0 tempo da “dolce utopia”. A obra de arte como intersticio social A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que oma como horizante teérico a esfera das interagées hu Inanay € seu contexto social mais do que a afirmagéo de lum espago simb6lico autonome e privada) atesta uma in- es Galinard 1 Mishel de Certeny, Manires ete, Pr 20 NICOLAS BOURRIAUD versio radical dos objetivos estéticos, culturais e politicos postulados pela arte moderna. Em termos sociolégicos ge- rais, essa evolugio deriva sobretudo donascimento de uma cultura urbana mundial e da aplicaso desse modelo cita- dino a praticamente todos os fendmenos culturais. A ur~ banizagdo generalizada que se desenvelveu apés o final da Segunda Guerra Mundial permitiu um aumento extraor- dinério dos intercdmbios sociais e uma maior mobilidade dos indi rio e das telecomunicagées e & progressiva abertura dos lo- cais isolados, simultaneamente a uma maior abertura das ‘mentalidades). Devido as estreitas dimensdes dos espagos habitaveis nesse universo urbano, assiste-se, paralelamen- ‘duos (gragas ao desenvolvimento rodoferrovid- te, a uma redugio na escala dos méveis ¢ dos objetos, que se orienta para uma maior facilidade de manejo: se, por muito tempo, a obra de arte péde ostentar um ar de luxo senhorial nesse contexto citadino (0 tamanho da obra, bern comoo tamanho do apartamento, servia para distinguir do joao-ninguém seu proprietirio), a mudanga da fungao e do modo de apresentagtio das obras mostra uma urbanizagio crescente da experiéncia artistica. © que esté desaparecen- do sod nossos olhos ¢ apenas essa concepeao falsamen- te aristocratica da disposicao das obras de arte, ligada a0 sentimento de adquitir um territério, 8m outros termos, jd nao se pode considerar a obra contempordnea como um espasp a ser percorrido (@ “volta pela casa” do propriet rio é semelhante do colecionador), Agora ela se apresenta como uma duragio a ser experimentada, como uma aber- | SUETICA RELACTONAL 21 Jura para a discussdo ilimitada, A cidade permitiu e ge- neralizou a experiéncia da proximidade: ela é 0 simbolo \angivel e 0 quadro histérico do estado de sociedade, es- ne “estado de encontro fortuito imposto aos homens”, na expressiio de Althusser’, em oposigdio Aquela selva den «1 ¢ “sem histéria” do estado de natureza na concepsao de Jean-Jacques Rousseau, selva que impedia qualquer en- contra fortuito mais duradouro, Esse regime de encontro casual intensivo, elevado a poténcia de uma regra abso- lula de civilizagao, acabou criando praticas artisticas cor respondentes, isto & uma forma de arte cujo substrato & dado pela intersubjet lar juntos, 0 “encontro” entre observador e quadro, a ela~ 1 a historicidade desse fenémeno:a arte lade © tem como tema central 0 es- io coletiva do sentido. Deisomos de lado o problema smpre foi relacio- nal em diferentes graus, ou seja, fator de socialidade e fun- daclora de didlogo. Uma das potencialidades da imagem & wu poder de reliance [sentimento de ligacao], reiomando o termo de Michel Maffesoli: bandeiras, siglas, fcones, si- ais criam empatia e compartilhamento, geram vinculo: \ arte (as praticas derivadas da pintura e da escultura que « manifestam sob a forma de exp cularmente propicia 4 expresso dessa civilizagao da pro- simidade, pois ela estreita o espaco das relagdes, a0 contrério. io) mostra-se parti- Seals auzusser, Kents philosoph 4. Miche) Maffesoli, La conemplation du monde, Pels, Grasset, 1998 le. do mundo, tad: Francleo Setines, Porto Alegre, Atos fe se poltigues, Pais, stock INIEC, 22 NICOLAS BOURRIALD da televisio ou da literatura, que remetem a seus respec- tivos espagos de consumo privado; ao contrdrio também. do teatro e do cinema, que tetinem pequenas coletividades diante de imagens univocas: com efeito, nessas salas nao se comenta diretamente o que se vé (a discussio fica para depois do espetéculo), Inversamente, durante uma exposi- io, mesmo que de formas inertes, estabelece-se a possi- bilidade de uma discussdo imediata nos dois sentidos do terme: percebo, comento, desloco-me num mesmo espa- go-tempo. A arte é 0 lugar de producao de uma socialida- de espec conjunto dos “estados de encontro fortuito” propostos pe- la Cidade, Como uma arte concentrada na produgao de tais modlos de convivio € capaz de relangar e completar o proje- to emancipador moderno? Como ela permite o desenvolvi- ‘mento de novos enfoques culturais e politicos? ica: resta ver qual € 0 estatuto desse espaco no Antes de passar para exemplos concretos, 6 importante reconsiderar o lugar das obras no sistema global da econo- mia, simbélica ou material, que rege a sociedade contem- porainea: para nds, allém de seu cardter comercial ou de seu valor semantico, a obra de arte representa um intersticio social. O termo inttersticio foi usado por Karl Marx para de- signar comunidades de troca que escapavam a0 quadro da economia capitalista, pois ndo obedeciam lei do lucro: es- cambo, vendas com prejuizo, produg6es autérquicas etc, O intersticio é um espaco de relagdes humanas que, mesmo inserido de maneita mais ou menos aberta e harmonio sa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca STETICA RELACIONAL 23 além das vigentes nesse sistema, F exatamente esta a na- tureza da exposigéio de arte contempordnea no campo do comércio das representagdes: ela cria espagos livres, gera duragdes com um ritmo contrério ao das duragdes que or- denam a vida cotidiana, favorece um intercdmbio humano diferente das “zonas de comunicagao” que nos sao impos- tas. O contexto social atual restringe as possibilidades de relagdes humanas ¢, ao mesmo tempo, eria espayos para tal fim. Os banheitos piiblicos foram criados para que as ruas ficassem limpas: é com esse mesmo espfrito que se desen- volvem as ferramentas de comunicacdo, enquanto as ruas ddas cidades ficam limpas de qualquer esc6ria relacional & as relagdes de vizinhanca se empobrecem. A mecenizacao etal das fung6es sociais reduz progressivamente 0 espa- go relacional. Aié alguns anos atrés, o servicgo de desperta~ dor pelo telefone era executado por pessoas: agora é uma vor sintética que se encarrega de nos acordar.. O guiché automético tornou-se o modelo para cumprir as fungdes: sociais mais elementares, e 0 comportamento dos profis- sionais segue os moldes de eficiencia das maquinas que vom a substituélos, executando tarefas que, antes, ofere- ciam ocasides de contato, de prazer ou de conflite. A arte contempordnea realmente desenvolve um projeto politico quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relagdes. Quando Gabriel Orozco coloca uma laranja na ban- cade um mercado brasileiro vazio (Crazy Tourist, 1991) ou 24 NICOLAS ROURRIAUD instala uma rede no jardim do Museu de Arte Moderna de Nova York (Hamoc en e MoMA, 1993), ele est operando no centro do “infrafino social”, esse mini culo espaco de ges- tos cotidianos determinado pela superestrutura constitut- da pelas “grandes” trocas, Sem legendas, as fotografias de Orozco documentam infimas revolugdes no cotidiano uc bano ou semi-urbano (um saco de dormir em cima da gra- ma, uma caixa de sapatos vazia etc): elas mostram essa vida silenciosa (still Ife, natureza morta) hoje formada pe- las relagdes com 0 outro, Quando Jens Haaning transmite histérias engracadas em turco, por alto-falante, numa pra- ga de Copenhague (Turkish Jokes, 1994), cria instantanea- mente uma microcomunidade - a dos imigrantes unidos por um iso coletivo que subverte sua condigio de enilaclos ~ formada na obra e em relagdo & obra. A exposigio é 0 lo- al privilegiado onde surgem essas coletividades instanta- neas, regidas por outros principios: uma exposigio criaré, segundo o grau de participagdo que o artista exige do es- pectador, a natureza das obras, os modelos de socialida- de propostos ou representados, um “dominio de trocas” particular. E esse “dominio de trocas” deve ser julgado de acardo com critérios estéticos, isto é, analisando-se primei- 10 a coeréneia de sua forma e depois o valor simbélico do “mundo” que ele nos propée, da imagem das relagdes hu- ‘manas que ele reflete, No interior desse interst io social, 0 attista deve assumir os modelos simbdlicos que expée: to- da representagio (masa arte contemporinea cria modelos, e nao propriamente representagoes; ela se insere no tecido ISTETICA RELACIONAL 25 social sem propriamente se inspirar nele) remete a valores ransferiveis para a sociedade. Atividade humana baseada ho comércio, a arte é ao mesmo tempo objeto € sujeito de uma ética, tanto mais que, ao contrario de outras ativida «les, sta tinica fungao & se expor a esse comeércio. Aarte é um estado de encontro fortuito. Acstética relacional e 0 materialismo aleatério ‘A estética relacional inscreve-se numa tradigio mate- tialista, Ser “materialista” nao significa se ater & banalida- «le dos fatos, tampouco supde aquela forma de estreiteza mental que consiste em ler as obras em termos puramen- te econdmicos. A tradicao filosctica que sustenta essa lética relacional foi admiravelmente definida por Louis Althusser, num de seus diltimos textos, como um “mate- rialismo do encontro fortuito” ou materialismo aleatério. Esse materialismo tem como ponto de partida a contin- éncia do mundo, que néo tem origem nem sentido pree- xistente, nem Razdo que possa Ihe atribuir uma finalidade, Assim, a esséncia da humanidade é puramente transindi- vidual, formada pelos lagos que unem os individuos em formas sociais sempre hist6ricas (Marx: a esséncia huma- Vio ha “firm da hist6- na é 0 conjunto das relagdes sociais). ria” nem “fim da arte” possiveis, porque a partidasempre é retomada em fungao do contexte, isto é, em fungéo dos jo- adores e do sistema que eles constroem ou criticam. Hu= bert Damisch considerava as teorias sobre o “fim da arte” 2 #0 NICOLAS FOURRALD, como resultado de uma lamentével confusio entre 0 “fim do jogo” (game) e o “fim da partida” (play): quando 0 con- texto social muda radicalmente, 0 que se anuncia é uma ova partida, sem que seja colocado em questio o senti- do do jogo em si®. Mas esse jogo inter-humano que consti- tui nosso objeto (Duchamp: “A arte é um jogo entre todos ‘5 homens de todas as épocas”) ultrapassa 0 quadro da- uilo que, por comodidade, é chamado de “arte”; assim, as “situagdes construidas” preconizadas pela Internacional si- tuacionista pertencem inteiramente a esse “jogo”, mesmo que Guy Debord Ihes negasse, em tiltima instancia, qual- quer cardter artistico, vendo nelas, pelo contrério, a “supe ago da arte” por meio de uma revolugao da vida cotidiana, A eestética relacional constitui no uma teoria da arte, que suporia 0 enunciado de uma origem e de um destino, e sim uma teoria da forma, © que chamamos de fornia? Uma unidade coerente, uma estrutura (entidade autonoma de dependéncias internas) que apresenta as caracterfsticas de um mundo: a obra de arte nao detém © monopdlio da forma; ela é apenas um subconjunto na totalidade das formas existentes. Na tra- digao filoséfica materialista inaugurada por Epicuro ¢ Lu- crécio, os dtomos caem paralelamente no vazio, seguindo umaleve inclinagao, Seum desses étomosse desvia do cur- 80, ele “provoca ia colisio [encontro fortuito] com o éto- 5: Huber Damisch, Fendi jae cadmion, Paris, Edu Seui, 1984 STETICN RELACICA 27 mo vizinho ¢ de colisdo em colisio um engavetamento ¢ 0 nascimento de um mundo”... Assim nascem as formas: do desvio e do encontro aleatério entre dois elementos até en- Lo paralelos. Para criar um mundo, esse encontro fortuito tem de se tornar duraiouro: os elementos que o constituem devem se unificar numa forma, isto é, “os elementos tém dle dar liga (assim como dizemos que alguma coisa ‘dew. g0”)". “A forma pode ser definida como um encontro for- tuito duradouro.” Assim podem ser descritas as linhas e ‘as cores que se inscrevem na superficie de um quadro de Delacroix, os refugos que enchem os “quadros Merz” de Schwitters, as performances de Chris Burden: além do ti- po de disposicao na pagina ou no espago, eles se mostram duradouros a partir do momento em que seus componen- es formam um conjunto cujo sentido “vem” do momento de seu nascimento, suscitando novas “possibilidades de vi- da”, Assim, toda obra é modelo de um mundo viavel. Toda obra, até 0 projeto mais critico e demolidar, passa por esse estado de mundo vidvel, porque ela permite o encontro for tito de elementos separados: por exemplo, a morte eas dias em Andy Warhol. € o que diziam Deleuze ¢ Guattari quando definiam a obra de arte como um “bloco de afetos, e perceptos": a arte mantém juntos momentos de subjetivi- dade ligados a experiéncias singulares, sejam as magas de Cézanne ou as estruturas listradas de Buren. A composi- io desse aglutinante, por meio do qual étomos colidindo chegam a constituir um mundo, naturalmente depende do contexto histérico: 0 que o piiblico informado atual enten- 28 NICOLAS BOURRIALD de por “manter juntos” nao é 0 mesmo que se imaginava no século pasado, Hoje a “cola” é menos visivel, pois nos- 8a experiéncia visual se tornow mais complexa, enriquecida por um século de imagens fotograficas e depois cinemato- gralicas (introducao do plano-seqiiéncia como nova uni- dade dindmica), a ponto de podermos reconhecer como uum “mundo” uma colegao de elementos esparsos (a ins- talacao, por exemplo) que nao esto ligacos por nenhuma matéria unificadora, nenhum bronze. Outras tecnologias talvez venham a permitir que o espirito humano reconhe- sa tipos de “formas-mundos” ainda desconhecidos: por ‘exemplo, a informatica privilegia a nogao de programa, que altera a cancepgao de certos artistas sobre seus trabalhos, Assim, a obra dle um artista assume a condigao de um con- junto de unidades que podem ser reativadas por um obser- vador-manipulador, Aqui insisto, ¢ certamente de maneira bastante enfatica, sobre a instabilidade e a diversidade do conceito de “forma’, cuja abrangéncia pode ser vista na fa- mosa exortagao do pai da sociologia, Emile Durkheim, a Considerar 08 “fatos sociais” como “coisa: Pois a “coi- 8a” attistica as vezes se apresenta como um “fato” ou um conjunto de fatos que surgem no tempo ow no espaco, sem que sua unidade (geradora de uma forma, um mundo) se- ja questionada, O quadro amplia-se; além do objeto isola- do, ele agora pode abarear a cena inteira: a forma da obra de Gordon Matta-Clark ou de Dan Graham nio se reduz a forma das “coisas” que esses dois artistas “produzem’: cla nao 6 0 simples efeito secundario de uma composigi, co- ESTETICA RFLACIONAL 29 mo suporia uma estética formalista, e sim 0 principio ativo desenrola através de signos, ob- de uma trajetdria que s D jetos, formas, gestos. A forma da obra contemporanea vai além de sua forma material: ela é um elemento de ligacao, um prinefpio de aglutinagdo dinamica, Uma obra de arte é um ponto sobre uma linha A forma eo olhar do outro Se, como esereve Serge Daney, “toda forma é um ros- to que nos olha’, 0 que se torna uma forma quando esté mergulhada na dimensio do didlogo? O que é uma forma essencialmente relacional? Patece-nos interessante discutir essa questio tomando a definkdo de Daney como ponto de referéncia, justamente por causa de sua ambivaléncia: ja ‘que as formas nos olham, como devemos olhé-las? Geralmente, a forma 6 definida como um contor- rno que se opde a um contetido, Mas a estética modernis~ ta fala em “beleza formal” referindo-se a uma espécie de (con)fusao entre forma e fundo, a uma adequagio inven- tiva da primeira ao segundo. Uma obra é julgada por stia forma plastica: a critica mais usual as novas praticas artis- ticas consiste em thes negar qualquer “eficdcia formal” ow em apontar suas falhas na “resoluco formal”. Observan- do as praticas artisticas contemporaneas, deveriamos falar mais em “formagées” do que em “formas": ao contrario de um objeto fechado em si mesmo gracas a um estiloe a uma assinatura, a arte atual mostra que $6 existe forma no en- 2 NICOLAS BOLRRIALD contro fortuito, na relagéo dindmica de uma proposigéo ar- tistica com outras formagées, artisticas ou ndo. Nao existem formas na natureza, no estado selvagern, porque € nosso olhar que as cria, recortando-as na espes- sura do visivel. As formas desemvolvemt-se umas a partir das outras. O que ontem seria considerado informe ou “infor- mal" jé nao 0 € mais. Quando a discussao estética evolui, 0 estatuto da forma evolui com ela c através dela, Nos romances de Witold Gombrowicz, vemos como cada individuo gera sua prépria forma através de seu com- portamento, sua maneira de se apreseniar e se dirigir aos outros. Ela nasce nessa zona de contato em que o individuo se debate com 0 Outro para Ihe impor aquilo que julga ser © seu “ser”. Assim, para Gombrowicz, e retomando uma terminologia sartreans, nossa “forma” é apenas uma pro- Priedade relacional que nos liga aos que nos reificam pe- lo olhar. O individuo, quando acredita que se esta olhando objetivamente, no final das contas esté contemplando ape- nas © resultado de intermindveis transagbes com a subjeti- vidade dos outros. Para alguns, a forma artistica escaparia a essa fata- lidade por ser intermediada por uma obra. Nés, pelo con- trério, julgamos que a forma s6 assume sua consisténcia (€ adquire uma existéncia real) quando coloca em jogo in- teragGes humanas; a forma de uma obra de arte nasce de uma negociacao com inteligivel que nos coube, Através dela, o artista inicia um didlogo. A esséncia da prética ar- tistica residivia, a 1m, na invencao de relagdes entre sujei- 31 J SIETICA RELACIONAL tos; cada obra de arte particular seria a proposta de habitar uum mundo em comum, enquants o trabalho de cada artis- ta comporia um feixe de relagdes com 0 mundo, que gera- tia outras relagdes, ¢ assim por diante, até o infinito, Aqui estamos nos antipodas da versio autoritaria da iarte que se encontza nos ensaios de Thierry de Duves, para quem toda obra nao passa de uma “soma de juizos" histé- ricos € estéticos, euunciados pelo artista no ato da realiza~ cio, Pintar seria se inscrever na histéria através deescolhas plisticas, Estamos na presenga de uma estética de tribunal, segundo a qual o artista se coloca perante a histéria da arte na autarquia de suas convicgdes, uma estética que rebaixa a pritica artistica ao nivel de uma critica histériea proces- Jim emiticlo, perempt6rio € sual: 0 “julgamento” pratico at irrecorrivel, éa negacao do didlogo, tinico a conferir a for- ma-um estatuto produtivo, o de um “encontro fortuito”. No quadto de uma teoria “relacionista” da arte, a intersubjeti- vidade nao representa apenas o quadro social da recepgaio da arte, que constitui seu ‘meio’, seu “campo” (Bourdieu), mas se torna a propria esséncia da pratica artistic em virtude dessa invencao de relagGes que a forma se converte em “rosto”, como sugeria Daney. Essa formula, sem diivida, lembra um conceito fundamental do pensa- mento de Emmanuel Lévinas, pata quem 0 rosto é 0 signo da proibigio ética. O rosto, afirma ele, 6 “o que me ordena Pais fd de La Dithérence, 18 ‘.Thiery de Dave, Essls dats, 32 NICOLAS BOURRIAUD servir a outrem”, “o que nos profbe matar”?, Toda “relagdo intersubjetiva” passa pela forma do rosto, que simboliza a Tesponsabilidade que nos cabe em relagao ao outro: “o vin- culo com o outro s6 se dé como responsabilidade”, escreve Lévinas, Mas nao haveria um outro horizonte para a éti- caalém desse humanismo que reduz aintersubjetividade a ‘uma espécie dle interservilismo? A imagem - metéfora do rosto, segundo Daney ~ s6 seria capaz de criar proibigées através do fardo da “responsabilidade”? Quando explica que “toda forma é um rosto que nos olha’, ele ndo quer di- zer apenas que somos responsaveis por ela. Para entender isso, basta voltar ao significado profundo da imagem em Daney: para o critico, a imagem é “imoral” quando nos co- loca “onde nao estévamos”s, quando “toma o lugar de uma outra”, Nao se trata apenas de uma referéncia a estética Ba- zin-Rossellini ao postular o “realismo ontolégico” da arte cinematografica, a qual, embora esteja na origem do pen- samento de Daney, nio 0 esgota. Segundo ele, a forma nu- ma imagem 6 apenas a representagdo do desejo: produzir uma forma é criar as condigdes de uma troca, como devol- ver um saque numa partida de ténis. Se estendermos um pouco mais 0 raciocinio de Daney, a forma é o desejo que foi delegado a imagem. Aquela 6 0 horizonte a partir do qual esta pode ter um sentido, designando um mundo deseja- do que 0 espectador entéio considera passivel de discus- so, e a partir do qual seu proprio desejo pode ricochetear. 3. Ersmanvel Levinas, Biju et infin Panis, Pyar, 1982p. 93, 8 Serge Daney,Perséodeance, Paris, Ed, POL, 129% p38, ESTETICA RELACIONAL 33 isa troca se resume a um bindmio: alguém mostra algo a alguém que The devolve & sua maneira. A obra procura captar meu olhar, como o recém-nascico “pede” o olhar da mae: Tzvetan Todorov mostro, em La Vie comma [A vi- da ent comuml, que a esséncia da socialidade consiste muito ‘mais na necessidade de reconhecimento do que na compe- tigdo ou na violéncia’, Quando um artista nos mostra al- guma coisa, ele expde uma ética transitiva que situa sua obra entre 0 “olhe-me” e o “olhe isso”, Os iiltimos textos de Daney lamentam o fim da dupla “Mostrariver", que re- presentava a esséncia de uma democracia da imagem, em favor de uma ontra dupla, televisiva e autoritiria, “Promo- verlreceber”, que marca o advento do “visual”, Na concep do de Daney, “toda forma é um rosta que me olha” porque cela me chama para dialogar. A forma é uma dinamica que se inscreve no tempo efou no espaco. Ela s6 podenascer de uum encontro fortuito entre dois planos de realidade: pois a homogeneidade ndo produz imagens, e sim o visual, isto é, “a informagao em circuito fechado”. a 3 Tzeetan Todorov, La vie commune, Pars, Ed. du Seu, lta en cont, tds Denise Biman © Eleonora Bottmann, fs 1906 \ ARTE DOS ANOS 1990 Participacao ¢ transitividade Sobre uma estante de metal hé um fogGozinho ace- so que mantém em ebuligo uma panela de agua. Em volta da estante, espalham-se materiais de acampamento, sem nenhuma composicéo, Junto & parede ha caixas de pape- 10, na maioria abertas, contendo pacotes de sopas chine~ sas desidratadas que o visitante pode consumir a vontade, acrescentanco a dgua fervente que esta & sua disposigao. Essa pega de Rirkrit Tiravanija, realizada no Aperto 93 da Bienal de Veneza, escapa a qualquer definigao. Escultu- 1a? Instalacao? Performance? Ativismo social? Ultimamen- te esse tipo de peca tem se multiplicado. Nas exposicdes intenacionais, vemos uma quantidade crescente de estan- des que oferecem varios servigos, obras que propdem a0 observador um contrato especifico, modelos de socialida- de mais ou menos conctetos. A “participagio” do espec- 36 NICOLAS BOURRIALD tader, teorizada pelos happenings e pelas performances Fluxus, tornou-se uma constante na prética artistica. © es paga de reflexdo aberto pelo “coeficiente de arte” de Mar cel Duchamp, que tenta delimitar exatamente 0 campo de intervengao do receptor na obra de arte, hoje consiste mu ma cultura interativa que apresenta a transitividade do ‘objeto cultural como fato consumedo. Com isso, esses ele: ‘mentos apenas corroboram uma evolucéo que ultrapassa largamente o dominio exclusivo da arte: € no conjunto dos vetores de comunicagéo que o grau de interatividade é am: pliado. Por outro lado, o surgimento de novas técnicas, co- moa internet ea multimidia, indica um desejo coletivo de criar novos espagos de convivio ¢ de inaugurar novos tipos de contato com o objeto cultural: assim, a “sociedade do espeticulo” se seguiria a sociedade dos figurantes, na qual cada um encontraria, em canais de comunicagao mais ou menos truncados, a ilusdo de uma democracia interativa. Atransitividade, to antiga quanto o mundo, constitui ‘uma propriedade concreta da obra de arte. Sem ela, a obra seria apenas um objets morto, esmagado pela contempla- do. Delacroix 4 escrevia em seu didrio que um quadro bom “condensava” momentaneamente uma emogao que 0 olhar do espectador deveria reviver e prolongar. Essa no- 80 de transitividade introduz no dominio estético a de: sordem formal inerente ao didlogo; ela nega a existéncia de um “lugar da arte” especifico em favor de uma sividade sempre inacabada e de um desejo jamais saciado cur ESTETICA RELACIONAL, 37 de disseminagio, Jean-Luc Godard, alids, insurgia-se con- tra essa concepsio fechada da pratica artistica, explicanda que une imagem precisa de dois. Se essa proposigao pare- ce retomar Duchamp ao dizer que sdo 0s espectadores que _frzem 0s quedros, ela vai além ao postular o didlogo como a propria origem do proceso de constituigio da imagem: desde seu ponto de partida jé é preciso negociar, pressupor 0 Outro... Assim, toda obra de arte pode ser definida como uum objeto relacional, como o lugar geométrico de uma ne- gociaco com intimeros correspondentes & destinatérios Cremos ser possivel explicar ¢ especificidade da arte atual com 0 auxilio da idéia de produgao de relagbes externas ao campo da arte (em oposigdo as relagSes internas, que Ihe oferecem substrato socloeconOmico): relagdes entre indi viduos ou grupos, entre o artista e 0 mundo e, por tran- sitividade, relagdes entre 0 espectadar ¢ o mundo, Pierre Bourdieu considera o mundo da arte como um “espago de relagies objetivas entre posigies’, isto é, um microcosmo definido por relagdes de forga e embates com que 08 pro- dutores tentam “conservé-lo ou transforma-1o”', O mundo da arte, como qualquer outro campo social, é relacional por esséncia na medida em que apresenta um “sistema de po- sigGes diferenciais” que permite sua leitura. As derivagdes dessa leitura “relacional” so mailtiplas: no émbito de seus trabalhos sobre as redes, 0 Cercle Ramo Nash (artistas da colegdo Devautour) sustenta que “a arte é um sistema alta- 4. Pierre Bourdieu, Raisons pratigurs, Paris, Ed. du Seuil, 1994, p. 68 [Ed. teas: Roztvs pins, acl: M, Corda, Campinas, Papirus, 1996) 38 NICOLAS BOURRIALD mente cooperativo: a densa rede de interconexdes entre os membros implica que tudo o que ocorrer nela acabara sen- do uma fungao de todos os membros", o que Ihe permite afirmar que “6 a arte que faz a arte, nfo os artistas”, Assim, estes seriam simples instrumentos inconscientes ao servigo de leis que 0s ultrapassam, como Napoledo ou Alexandre, © Grande, na teoria da Histéria de Tolstdi... Nao partilho dessa posicao ciberdeterminista, pois se a estrutura inter- na domundo da arte realmente estabelece um jogo limita do de “possiveis", essa estrutura, por sua vez, depende de uma segunda ordem de relagies, estas externas, que pro- duzem e legitimam a ordem das relagdes internas. Em su- ma, arede “Arte” € porosa, e sdo as relagdes dessa rede com ¢ conjunto dos campos de produgao que determinam sua evolugio, AL da arte como a histéria dessa produgdo de relagées com 0 mundo, levantando ingenuamente a questéo da natureza das relages externas "inventadas" pelas obras. Para esbocar um quadro histérico geral, digamos que estas se situavam, de inicio, num mundo transcendente, s, seria possivel escrever uma histéria onde a arte tinha como abjetivo estabelecer modos de co- municagio com a divindade: ela desempeahava o papel de ‘uma interface entre a sociedade humana e as forgas invisi- veis que regiam seus movimentos, ao lado de uma natureza representante da ordem exemplar que, compreendida, ex- pressatia os desfgnios divinos. Aos poucos, a arte abando nou tal pretensao, passando a explorar as relacdes existentes entre 0 Homem e © mundo, Essa nova ordem relacional, FSTETICA RELACIONAL 39 dialética, se desenvolveu a partir do Renascimento ~ que privilegiava a posigao fisica do ser humano em seu univer- so, embora ainda fosse dominado pela figura divina ~ com. © auxilio de novos recursos visuais, como a perspectiva de Alberti, o realismo anatémico ou o sfumato de Leonardo. Essa finalidade da obra de arte 36 veio a ser radicalmente questionada pelo cubismo, que tentava analisar nossas re- ages visuais com o mundo através dos elementos mais tri- viais da vida cotidiana (a ponta de uma mesa, cachimbos, vvioldes), a partir de um realismo mental que reconstituia 0s mecanismos méveis de nossa apreensao do objeto, ‘Ocampo relacional aberto pelo Renascimento italiano passou, entio, a ser aplicado a objetos cada vez mais res- tritos: a pergunta “qual é nossa relagao com 0 mundo fis! 02” a principio abrangia toda a realidade e depois passou a se referir a segmentos limitados dessa mesma realidade. Essa progressdo, evidentemente, ndo foi linear coexistem. pintores como Seurat, analisia rigoroso de nossos modos de percep¢io visual, e Odilon Redon, que tentatrazer a luz rnossas relagdes com 0 invisivel. Mas, de modo geral, a his- toria da arte pode ser lida como a hist6ria dos sucessivos, campos relacionais externos, que mudam de acordo com. prdticas determinadas por sua propria evolugdo interna: é a historia da produgdo das relagdes com o mundo, interme- diadas por uma classe de objetos e préticas especificas. Essa histéria, hoje, parece ter tomado um novo ru- mo: depois do campo das relagbes entre Humanidade e divindade, a seguir entre Humanidade e objeto, a prética 40 NICOLAS BOURRIAUD attistica agora se concentra na esfera das relagbes inter-hu- manas, coma provam as experiéncias em curso desde 0 co- mego dos anos 1990, © artista concentra-se cada vez mais decididamente nas relagSes que seu trabalho ird criar em seu pablico ou na invengao de modelos de socialidade. Es- sa produc&o especifica determina nao sé um campo ideo légico e prético, mas também novos dominios formais. Em outras palavras, além do carter relacional intrinseco da obra de arte, as figuras de referéncia da esfera das relagdes humanas agora se tornaram “formas” integralmente artis- ticas: assim, as teunides, os encontros, as manifestacdes, 08 diferentes tipos de colaboracao entre as pessoas, 03 jo- £808, as festas, 0s locais de conviv , em suma, todos os mo- dos de contato e de invengdo de relagbes representam hoje objetos estéticos passiveis de andlise enquanto tais. A pin- tura e a escultura séio aqui consideradas apenas casos par- ticulares de uma produgao de formas que visa a algo muito diferente de um simples consumo estético. Tipologia Conexdese pontos de encontro Um quadro ou uma escultura caracteriza-se, a prio- 1, por sua disponibilidade simbdlica: excluindo-se as im- possibilidades fisicas evicentes (horério de funcionamento dos museus, distancia geogrdfica), uma obra de arte pode ser observada a qualquer momento; ela esté a vista, ofere- ISTETICA RELACIONAL at condo-se & curiosidade de um puiblico teoricamente uni- versal. Ora, a arte contempotinea muitas vezes opera sob © signo da nao-disponibilidade, apresentando-se num. momento determinado. A performance & 0 exemplo mais classico: uma vez realizada, resta apenas uma documen- tacdo sobre ela, Esse tipo de pratica pressupde um contra to com 0 cbservador, uma “combinagio” cujas cléusulas tendem a se diversificar desde os anos 1960: a obra de ar~ tendo 6 mais aberta a um puiblico universal nem ofere- cida ao consumo numa temporalidade “monumental”; ela se desenrola no tempo do acontecimento para um pabli- co chantado pelo artista. Em suma, a obra suscita encontros casuais e fornece pontos de encontro, gerando sua propria temporalidade, Nao se trata necessariamente de encontros com um piblico: Marcel Duchamp, por exemplo, inventou os “Rendez-vous dart” (Encontros de arte], determinan- do arbitratiamente que, numa certa hora do dia, o primei- 10 objeto que estivesse ao alcance seria transformado em ready-made. Outros chamavam o piiblico para constatar um fendmeno localizado, como Robert Barry ao anunciar que, em “um certo momento da mana de 5 de marco de 1969, meio metro etibico de hélio foi solto na atmosfera” por sua iniciativa. Assim, 0 espectador vai ao local para constatar um trabalho, que existe como obra de arte apenas em vir~ tude dessa constatacio. Em janeiro de 1970, Christian Bol- tanski enviou a alguns conhecidos um pedidy de socorro em forma de carta, com um contetido tao vago que parecia uma carta-padrao, a exemplo dos telegramas de On Ka- 42 NICOLAS BOURRIALD wara informando aos destinatérios que continuava “ainda vivo", Hoje, a forma do cartao de visitas (usado por Domni- nique Gonzalez-Foerster, Liam Gillick, Jeremy Deller) ou da agenda de enderecos (alguns desenhos de Karen Kilim- nik), a importancia crescente do vernissage no dispositive da exposigéo (Parreno, Joseph, Tiravanija, Huyghe), além dos esforcos de originalidade na contecgio dos convites (residuo da mail-art), indicam a importancia dessa “fun sao de ponto de encontro” que constitui o campo artistico © funda sua dimensao relacional Convivio e encontros casuais Uma obra pode funcionar como dispositive relacio- nal com certo grau de aleatoriedade, maquina de provocar © gerarencontros casuais, individuais ou coletivos. Para cl- taralgumas figuras dos tiltimos vinte anos, é 0 caso da série dos Casual passer-by de Braco Dimitrijevic, que celebravam. com o maximo exagero onome e o rosto de um transeunte andnimo num outdoor ou ao lado do busto de algum per- sonagem famoso. Stephen Willats, no comego dos anos 1970, registrou minuciosamente as relagdes existentes entre 98 moradores de um mesmo prédio. E boa parte do traba- Tho de Sophie Calle consiste em apresentar seus encontros com desconhecidos: quer esteja seguindo um passante, re- vistanclo quartos de hotel depois de conseguir emprego co- mo camareira ou pedindoa cegos que definam a beleza, ela formaliza a posteriori uma experiéncia biogréfica que a le- ISTETICA RELACIONAL 43, va a “colaborar” com as pessoas com quem se deparou. Ci- temos ainda a série I met, de On Kawara, 0 restaurante que Gordon Matta-Clark abriu em 1971 (Food), 0s jantares or- ganizados por Daniel Spoerti ou a loja de brinquedos La céiille qui sourit, que George Brecht e Robert Filliou monta~ ram em Villefranche: a formagao de relagdes de convivio & ‘uma constante histérica desde os anos 1960. A gerasao dos anos 1990 retoma essa problemética, mas sem o problema da dofinigdo de arte, central para as décadas de 1960 e 1970. ‘A questo nao é mais ampliar os limites da arte, e sim tes- tar sua capacidade de resisténcia dentro do campo social global, Assim, a partir de um mesmo conjunto de praticas, ‘vemos surgir duas probleméticas totalmente diversas: on- tom, a insisténcia sobre as relagGes internas do mundo ar- tistico, numa cultura modernista que privilegiava 0 “novo” e convidava a subversio pela linguagem; hoje, a énfase so- bre as relagdes externas numa cultura eclética, na qual a bia de arts resiste ao rolo compressor da “sociedade do peticulo”. As utopias sociais e a esperanca revolucionéria deram lugar a microutopias eotidianas e a estratégias mi- miéticas: qualquer posicdo erttica “direta” contra a socieda- de 6 imitil, se baseada na ilusdo de uma marginalidade hoje impossivel, até mesmo reaciondria, HA quase trinta anos, Félix Guattari jé saudava esas estratégias de proximidade que fundam as préticas artisticas atuais: 3. Ch os textos de Lc Lippand, como Dematerializston ofthe artwork (Lon tes, Stadio Vista, 1979), oud Rosalind Krauss, “Sculpturein he expanded fil eSktnber re 5 (Cambridge, Mastochusatts, 1979) [Aesculre no campo ampli Go, Revista Gis, Ro de faneto] ec 44 NICOLAS BOURRIAUD Assim como penso que ¢ ilusério apostar numa trans- formagao gradual da sociedade, da mesma forma creio que as tentativas microscépicas, tipo comunidades, comités de bairro, organizagao de uma creche na fa- culdade ote, desempenham um papel absolutamente fundamental A filosofia critica tradicional (@ Escola de Frankfurt, cem particular) nao alimenta mais a arte, a nao ser como folclore arcaico, espléndida ninharia sem eficécia alguma: a fungio critica e subversiva da arte contemporanea ago- Ta se cumpre na invengao de linhas de fuga individuais ou colttivas, nessas construgdes provisérias e némades com que o artista modela e difunde situagdes perturba- doras. Por isso a atual febre dos espacos de convivio revi- dos, cacinhos onde se elaboram modos heterogéneos de socialidade. Para sua exposi¢ao no CCC, Angela Bullo- ch instala um café em que as cadeiras, depois de acolher um certo ntimero de visitantes, acionam um trecho de mti- sica do Kraftwerk (1993)... Georgina Stars, para a exposi- a0 Restaurant em Paris, em outubro de 1993, descreve sua angiistia de “jantar sozinha” e monta um texto para ser distribuido aos clientes solitérios do restaurante, Ben Kin- ‘mont, por sua vez, oferece-se para lavar a louga de pessoas escolhidas ao acaso ¢ mantém uma rede de informagoes 3 Fl, Gusta arn maa, ari Rec 22 bn: A rests moka ats Sab Bale Roo ae Pra Be siliense, 1987}. me ESTETICA RELACIONAL 45 sobre seus trabalhos. Lincoln Tobier varias vezes montou uma estacao de radio em galerias de arte, convidando o ptblico para uma discussao transmitida ao vivo. ‘A forma de festa teve particular interesse para Philippe Parteno, cujo projeto de exposigdo no Consortium de Dijon (janeiro de 1998) consistia em “ocupar duas horas de tem- po em vez de metros quadrados de espago”, com a organi- zagao de una festa cujos componentes levavam a produgio de formas relacionais: aglomeragbes de pessoas em volta de objetos artisticos em situagdo... Rirkrit Tiravanija, por ou~ tro lado, explorou o aspecto socioprofissional do convivio, propondo, durante Surfaces de réparation (Dijon, 1994), um espaco de descanso ~ que inclufa uma mesa de pebolim e uma geladeira cheia ~ para os artistas da exposicdo... Para concluir os exemplos de desenvolvimento desses convivios no ambito de uma cultura da “amizade”, citemos o bar cria~ do por Heimo Zobernig paraa exposigio Unité, ou os Pas tticke de Franz West, Outros artistas, no entanto, irrompem. no tecido telacional de maneita mais agressiva, © traba- Iho de Douglas Gordon, por exemplo, explora a dimensio “selvagem” dessa interacao, intervindo ~ de modo parasi- tério ou paradoxal ~ no espago social: chamou ao telefone os clientes de um café, enviow miiltiplas “instrucdes" a de- terminadas pessoas. Mas o melhor exemplo de comunica- cio intempestiva, perturbadora das redes de comunicagao, certamente € uma pega de Angus Fairhurst: com 0 auxt- lio de materiais de pirataria, ele colocava duas galerias de arte em contato telefénico, cada qual achando que a outra 46 NICOLAS BOURRIAUD, gue havia ligado, e a discussdo terminava numa confuso indescritivel... Criagdes ou exploragdes de esquemas rela- cionais, essas obras constituem microterrit6rios relacionais intermediados por superficies-objetos (os boards de Liam Gillick, 0s cartazes de rua de Pierre Huyghe, as videocon- feréncias de Eric Duyckaerts) ou oferecidos & experiéncia imediata (as visitas de Andrea Fraser a exposig6es). Colaboracées ¢ contratos Esses artistas que propem como obras de arte: a. momentos de socialidade e b. objetos produtores de socialidade as vezes também utilizam um quadro relacional pro- viamente definido para extrair prinefpios de produgao. A exploragao das relagdes existentes, por exemplo, entre 0 ar- tista e sou galerista pode determinar formas e projeto, Do- minique Gonzalez-Foerster, cujo trabalho trata das relagdes Que urem a existéncia vivida a seus suportes, imagens, es- acos ou objetos, declicon varias exposigdes a biografia de seus galeristas: Bienvenue d ce que vous croyez voir (1988) Teunia uma documentacdo fotogréfica sobre Gabrielle Maubtie, ¢ The daughter of a Taoist (1992) mesclava, nu- ‘ma apresentacao de feitio intimista, as lembrangas infantis de Esther Schipper e objetos organizados formalmente se- gundo seu potencial alusivo e cromatico (equi, um predo- minio do vermelho). Assim, Gonzalez-Foerster explora 0 contrato técito que liga ofa galerista a “seu” artista, um ins- FSTETICA RFLACIONAL 47 crevendo-se reciprocamente na historia pessoal do outro. Suas biografias aos pedacos, cujos principais elementos, aparecem como “indices” por cliente, sem dvida evocam a tradigao do retrato, quando a encomenda constitufa 0 vinculo social fundador da representagao artistica. Mau- rizio Cattelen também trabalhou diretamente sobre a pes soa fisica de seus galeristas: 20 desenhar para Emmanuel Perrotin uma fantasia de coelho félico, que devia ser usada durante toda a exposigéo, ou ao dedicar a Stefano Basilico uma roupa que dava a impressdo de que ele estava com @ galerista lleana Sonnabend sobre os ombros... am Samo- re, de modo mais indireto, pede aos galeristas que tirem fotos para, depois, escolhé-las e colocé-las em molduras. Mas esse bindmio artista/curador, inscrito na instituico, é apenas a primeira etapa das telagées humanas capazes de determinar uma produsao artistica; os artistas vao além, colaborando com personalidades do mundo do espetéculo: por exemplo, 0 trabalho da mesma Dominique Gonzalez Foerster com a atriz Maria d2 Medeiros (1990), ou a série de intervens: no para o imitador Yves Lecoq, com as quais ele pretendia remodelar a imagem de um homem da televiséo (Un hom me public, Marselha, Dijon, Gand, 1994-95). Noritoshi Hirakawa, por sua vez, cria formas a partir de encontros provocados: assim, para sua exposigao na ga~ leria Pierre Huber, em Genebra (1994), ele publicou um pe ‘5 piblicas organizadas por Philippe Parre- queno andineio para contratar uma moga que aceitasse ir com ele até a Grécia, numa estada que constituiria o ma- 48 NICOLAS BOURRIALD terial da exposigdo. As imagens que ele expoe so sempre realizadas apés um contrato especifico com sua mode- lo, que nem sempre aparece nos clichés. Outras vezes, Hi- rakawa recorre a algum offcio, como quando pediu a varios videntes que previssem seu futuro, gravou as previsées € colocou num walkman, ao lado de fotos e dispositives que evocayam o universo da vidéneia, Alix Lambert, para uma série chamada Wedding piece (1992), abordou os lacos con- tratuais do casamento: casando-se em seis meses com qua- {10 pessoas diferentes e divorciando-se em tempo recorde, Lambert entrou nesse “jogo de papéis para adultos” que € a instituigao matrimonial, usina de reificagao das relagSes humanas, Ela expe 0s objetos produzidos por esse univer- so contratual: certiddes fotos oficiais e outras lembrangas, Aqui, artista ingressa em universos produtores de formas (visita a vidente, oficializagdio de uma ligagao ete) preexis- tentes, materiais disponiveis a todos. Certas manifestacées artisticas, cujo melhor exemplo continua a ser Unité (Fir- ‘miny, junho de 1993), permitiram que os artistas trabalhas- sem com um modelo relacional amorfo, como no caso da populagio de um grande conjunto habitacional. Diversos participantes trabalharam diretamente para modificar ou objetivar as relagbes sociais, como o gruze Premiata Dit- ta, que interrogou metodicamente os moradores do imével onde se realizava a exposicdo para extrair dados estatisti- cos, Ou ainda Fareed Armaly, cuja instalagao baseada em documentos sonoros inclufa entrevistas com os inquilinos que podiam ser ouvidasmum fone de ouvido, Clegg & Gutt- STETICA RELACIONAL 49 man apresentaram no centro de seu dispositive uma espé- cle de mével-biblioteca, com um formato que lembrava a arquitetura de Le Corbusier, para guardar as fitas cassete com os trechos musicais favoritos de cada morador. Os hé- bitos culturais dos moradores eram, assim, objetivados por uma estrutura arquitetdnica e depois reagrupados em fitas, para chegar a compilagdes que todos podiam consultar du- rante a exposigo... Forma alimentada e produzida pela in- toragdo coletiva, a Discothique de prét de Clegg & Guttman, cujo principio foi retomado no mesmo ano para a exposigao Backstage no Kunstverein de Hemburgo, encarna plenamen- te esse regime contratual da obra de arte contemparanea. Relagées profissionais: clientelas Essas diversas priticas de exploragao dos vinculos so- ciais, como vimos, se referem @ tipos preexistentes de rela~ 20, em que o artista se insere para extrair formas. Outras praticas recriam modelos sociaprofissionais e aplicam mé- todos de produgao: o artista, aqui, atua no campo real da produgao de servigos e mercadorias e pretende introduzir no espago de sua prética uma certa ambigiiidade entre a fungio utilitéria e a fungao estética dos objetos apresen- tados. E essa oscilagio entre # contemplagao e 0 uso que tentei identificar com 0 nome de realismo operatério!, no ata est noc dla nos Qe gua elie open 1 fut ont Flavena (CC Toare onto 1998 catloge) Produits dep toppers noe in Apert eal de venera 195, cade 50 NICOLAS BOURRIALD caso de artistas tao diferentes quanto Peter Fend, Mark Dion, Dan Peterman e Niek Van de Steeg, au ainda de “empresas” mais ou menos parédicas, como Ingold Airli- nes ¢ Premiata Ditta, (Poderfamos aplicar 0 mesmo termo a pioneiros como Panamarenko ou ao “Artist's placement group” de John Latham). © ponto em comum entre es- ses artistas é a modelizagdo de uma atividade profissional, com 0 correspondente universo relacional enquanto dis- positiva de produgdo artistica. Essas ficges que imitam a economia getal, como no caso de Ingold Airlines, Servaas Inc. ou “o atelié” de Mark Kostabi, se cantentam em cons- truir réplicas de uma companhia aérea, de um pesqueiro ou de um atelié de produgao sem extrair delas as conse- jando-se, assim, a uma dimensdo parddica da arte. O caso da agéncia Les ready- ‘mades appartiennent @ fout te monde, ditigida pelo saudoso Philipe Thomas, ¢ um pouco diferente. Faltou-Ihe tempo para passar para uma segunda etapa, ¢ sou projeto de atri- buigio de assinaturas ficou um pouco afetado apés a ex- posicéo Feux pales (1990) no CAPC de Bordeaux. Mas 0 sistema de Philippe Thomas, em que as pecas produzidas qiiéncias ideologicas e préticas, lim eram assinadas pelo comprador, revelou a obscura orclem relacional que subjaz as relagdes entre artista e coleciona- dor, Um narcisismo mais discreto esté na origem das pecas apresentadas por Dominique Gonzalez-Foerster no ARC e no CAPE de Bordeaus’, os “Eseritéri 3 biogrificos” onde 5. ExposigBes Uhiver de Vemour e Trap, ESTETICA RELACIONAL 51 6 visitante que marcasse hora poderia apresentar os epis6- dios importantes de sua vida para que a artista formalizas- se sua biogratia. Com a prestagao de pequenos servigos, 0 artista preen- che as falhas do vinculo social: a forma realmente se tor- na esse “rosto que me olha”, Tal é a modesta ambigao de Christine Hill, que executa as tarefas mais subalternas (fa- Zor massagens, engraxar sapates, ser caixa mum supermer- cado, animarreunides de grupo etc.) movida pela angtistia gerada pelo sentimento de inutilidade. Assim, com pe- quenos gestos, a arte converte-se num programa virtuo- so, conjunto de tarefas realizadas a0 lado ou sob o sistema ecandmico real para recosturar pacientemente o tecido das relagdes, Carsten Holler aplica sua formagao cientifica de alto nivel para inventar situagdes ou objetos que lidam. com 0 comportamento humano: uma droga que desenca- deia 0 sentimento amoroso, cenografias barrocas ou expe- rigncias paracientificas. Outros, como Henry Bond e Liam Gillick no projeto Documents, iniciado em 1990, adaptam sua fungdo a um campo bem definido: tendo noticia das Informagdes no momento em que elas “cafam” no telex das agéncias de imprensa, Bond e Gillick iam aoslocais do. acontecimento na mesma hora em que os “colegas” e ob- tinham uma imagem totalmente defasada em relagao aos critérios habituais da profissdo. Em todo caso, eles aplica- ‘vam estritamente os métodos de produgao da grande im~ prensa, assim como Peter Fend, com sua sociedade OECD, ou Niek Van de Steeg reprocuzem as condigdes de trabalho 52 NICOLAS BOURRIAUD, do arquiteto. Comportando-se no mundo da arte segundo 08 pardimettos de “mundos” heterogéneos, esses artistas introduzem universos relacionais regidos pelas idéias de cliente, encomenda e projeto. Quando Fabrice Hybert ex- pée no museu de arte moderna de Paris, em fevereiro de 1995, o conjunto dos produtos industriais contidos real ou ‘metaforicamente em sua obra, tal como foram diretamen- te enviados pelos fabricantes e destinados & venda ao con sumidor por intermédio de sua sociedade UR (Unlimited responsability), ele coloca o espectador numa posicao in- cémoda, Longe do ilusionismo de Guillaume Bil e da re- producao mimética das trocas mercantis, esse projeto se vincula a dimensao desejante da economia: através de sua atividade de importagio e exportagao de cadeiras com 0 Magreb ou da transformagio do museu de arte moderna de Paris em supermercado, Hybert define a arte como uma fungio social entre outras, permanente “digestdo de da- dos” cujo objetivo seria reencontrar os "desejos iniciais que comandaram a fabricagio dos objetos”. Como ocupar uma galeria? As trocas que acorrem entre as pessoas, na galeria ou no museu, também podem servir como material bruto pa- ra um trabalho artistico, O vernissage muitas vezes faz par- te integrante do dispositivo da exposi¢ao, modelo de uma circulagao ideal do ptiblico: 0 vernissage de Lexposition du vide de Yves Klein, em abril de 1958, é um protétipo. Da PSTETICA RELACIONAL 3 presenga dos guardas republicanos na entrada da galeria Iris Clort até o coquetel azul oferecido aos visitantes, Klein tentou abranger todos os aspectos do protocolo usual do vernissage, dando-Ihes uma fungao poética que cercava seu objeto: o vazio, Assim, para citar uma obra similar, o tra- balho de Julia Scher (Security by Julia) consiste em colocar dispositivos de vigilancia nos locais de exposig&e: agora ¢ © fluxo humano dos visitantes ¢ sua possivel regulagao que se tornam matéria-prima e tema da pega. Logo, atotalida- de do proceso expositivo serd “ocupada” pelo artista. Em 1962, Ben mora e dorme na galeria One, em Lon- dres, durante quinze dias, munido apenas de alguns aces- s6rios indispensaveis. Em Nice, em agosto de 1990, Pierre Joseph, Philippe Parreno Philippe Perrin também vaio “morat” na galeria Air de Paris, em sentido proprio ¢ fi gurado, com a exposigao Les ateliers due Paradise: primeira vista, pode parecer um remake da performance de Ben, mas ‘0s dois projetos se referem a universos relacionais radical- mente diferentes, com fundamentos ideolégicos e estéticos tao divergentes quanto suas respectivas épocas. Quando Ben mora na galeria, ele quer dizer que 0 dominio da arte std em expansdo, chegando a incluir o perfodo desono eo calé-da-manha do artista. Por outro lado, quando Joseph, Parreno e Perrin ocupam a galeria, 6 para converté-la num atelié de produgo, um “espago fotogénico” em co-gestéo com 0 abservedor, segunda papéis muito precisos. No ver- nnissage de Les Ateliers due Paradise, em que todos usavam. ‘uma camiseta personalizada ("O medo’, “O gético” ete), 54 NICOLAS BOURRIAUD as relagtes que se estabeleciam entre os visitantes eram transformadas num roteito, escrito ao vivo pela cineasta Marion Vernoux no computador da galeria: o jogo das re- lagdes humanas era materializado segundo os prinefpios de um jogo de video interativo, “filme em tempo real” vir vido e produzido pelos trés artistas. Assim, vérias pessoas de fora contribufam para construir um espago de relagdes: nao s6 outros artistas, mas também psicanalistas, bailari- nos, amigos etc. Esse tipo de trabalho “em tempo real", no qual criagdo e exposigdo tendem a se fundir, foi retomado pela exposigdo Work, Work in progress, Work na galeria An- drea Rosen (1992), com Felix Gonzalez-Tortes, Matthew McCaslin e Liz Larner, e depois por This és the show and the show is many things em Gand, em outubro de 1994, antes de encontrar uma forma mais teérica com minha exposi- io Thaffic. Nos dois casos, cada artista podia intervir du- rante toda a exposico para modificar sua pega, substituf-la ou propor performances e acontecimentos. A cada modifi- cago, evoluindo 0 contexto geral, a exposigao desempe- nha © papel de uma matéria déctil, que ganha forma pelo trabalho do artista. © visitante ocupa um lugar preponde~ rante, pois sua interagdo com as obras ajuda a definir a es- trutura da exposigio, Ele se v8 diante de dispositivos que requerem dele uma decisdo: nos Stacks ou montes de bom- bons de Gonzalez-Torres, por exemplo, pode pegar qual- quer coisa na pega (um bombom, uma folha de papel), que vai pura e simplesmente desaparecer caso cada um exerca esse dircito: o artista apela a seu senso de responsabilide- FSTETICA RELACIONAL 55. de, pois o visitante deve entender que seu gesto contribui para @ dissolugio da obra. Qual a posi¢go a adotar diante de uma obra que distribui seus componentes e ao mesmo tempo quer salvaguardar sua estrutura? A mesma ambi- gilidade se apresenta ao espectador de seu Go-go dancer (1991), um rapaz de sunga que se agita numa base mintis- cula, ou dos Personnages vivants & réactiver, que Pierre Jo- seph coloca nas exposigéies durante os vernissages; diante de La niendiante agitando sua matraca (exposigao No man’s time, Villa Arson, 1991) s6 podemos desviar 0 olhar, en- trincheirado em seus enfoques estéticos, que reificam ines- crupulosamente um ser humano ao equipari-lo as obras, que 0 cercam, Vanessa Beecroft opera num registro pare- cido, mantendo 0 observador a distancia: em sua primeira exposigao individual, na galeria Esther Schipper em Col6- ria, em novembro de 1994, a artista tirava fotos, citculando entre uma dezena de mocas de roupas idénticas ~com uma cacharrel, calgas e perucas louras -, enquanto uma barreira que interditava 0 ingresso na galeria permitia que apenas dois ou trés visitantes por vez enxergassem a cena de lon- ge. Estranha populacdo sob o olhar curioso de um espec- tador-voyeur: personagens de Pierre Joseph saidos de um imagindrio fantastico popular; duas irmas gémeas expos- tas sob dois quadros de Damien Hirst (Art cologne, 1992); uma stripper executando seu show (Dike Blair); um pedes- tre andando numa esteira rolante, num caminhao de pai- néis transparentes que segue o percurso de um parisiense escolhido ao acaso (Pierre Huyghe, 1993); um saltimbanco 56 NICOLAS ROURRIAUD tocando realejo com um mico na coleira (Meyer Vaisman, galeria Jablonka, 1990); ratos alimentados com Bel Paese de Maurizio Cattelan; aves que Carsten Héller embebeda com pedagos de pio mergulhados em uisque (video cole- tivo Unplugged, 1993); borboletas atrafdas por telas mono- crométicas revestidas de cola (Damien Hirst, In and out of ove, 1992) — animais e pessoas cruzam-se em galerias que funcionam como tubos de ensaio para experiéncias com 0 comportamento individual ou social. Quando Joseph Beuys passava alguns dias fechado com um coiote ({ like America and America likes ie), ele estava se entregando a uma de- monstragio de seus poderes e indicando uma possivel re- conciliagdo entre 0 homem e o mundo “selvagem”, Aqui, pelo contrario, na maioria das pegas citadas, 0 autor néo tem uma idéia prévie do que vai ocorrer: a arte se faz na galeria, tal como Tristan Tvara dizia que “o pensamento se fazna boca”, OS ESPAGOS-TEMPOS DATROCA As obras e as trocas Aaatte, por ser da mesma matéria de que sao feitos 08 contatos sociais, ocupa um lugar singular na produgéo co- letiva, Uma obra de arte possui uma qualidade que a dife- rencia dos outros produtos das atividades humanas: essa qualidade é sua (relativa) transparéncia social, Uma boa obra de arte sempre pretende mais do que sua mera pre- senga no espaco: ela se abre ao didlogo, & discussio, a essa forma de negociacao inter-humana que Marcel Duchamp. chamava de “o coeficiente de arte” ~ e que é um proceso temporal, que se da aqui e agora. Essa negociagio se rea- liza numa “transparéncia” que caracteriza a obra de arte como produto do trabalho humano: de fato ela mostra (ou sugere) seu processo de fabricagdo e producio, sua posi- 0 no jogo das trocas, o lugar - ou a fungdo ~ que atribui ao espectador, ¢, por fim, 0 comportamento criador do ar- 58 NICOLAS BOURRIAUD lista (isto 6, a sucessio de atitudes e gestos que compdem seu trabalho e que cada obra individual reproduz, como se fosse uma amostra ou ponto de referéncia). Assim, ca~ datela de Jackson Pollock liga tao estreitamente a tinta en- torada a um comportamento artistico que uma aparece como imagem do outro, como seu “produto necessario”, nas palavras de Hubert Damisch’. No inicio da arte esta o comportamento adotado pelo artista, esse conjunto de dis- porigdes e atos que conferem a obra sua pertenca ao pre- sente. A obra de arte é “transparente” porque os gestos que @ caracterizam e Ihe dao forma, sendo livremente escolhi- dos ou inventados, fezem parte de seu fema, Por exemplo, © sentido da Marilyn de Andy Warhol, para além do ico- ado provesso industrial de produgdo adotado pelo artista, re- gido por uma indiferenga mecdnica em relagdo aos temas escolhidos. Essa “transparéncia” do trabalho artistico se ‘opse ao sagrado e aos idedlogos que procuram na arte os meios de renovar a imagem do religioso. Essa transparén- ia relative, forma apriorfstica da troca artistica, ¢ insupor- tavel para o carola, Sabe-se que qualquer produgéo;depois de ingressar no circuito das trocas, assume uma forma so- ne popular que é a imagem de Marilyn Monroe, deri cial que no guarda mais nenhuma relagéo com sua uti- lidade original: ela acquite um valor de troca que recobre © oculta parcialmente sua primeira “natureza”. Ora, ume obra de arte nao tem fungao titil a priori ~ nao que seja so- 1. Hubert Damisch, Fendi jaune cadmin,Pariss Ed du Seu, 198, p. 6. FSTRTICA RELACIONAL 59 yel, “de tendéncia cialmente inttil, mas disponivel, flexi infinita’: ou seja, ela se entrega ao mundo da troca e da co- municagio, do “comércio” nos dois sentidos do termo, To das as mercadorias tém um valor, isto é, uma substdncia comum que permite sua troca; essa substncia, segundo Marx, é a “quantidade de trabalho abstrato” utilizada para produzir tal mercadoria. Ela é representada por uma quan- tia de dinheizo, que é 0 “equivalente geral abstrato” de to- das as mercadorias entre si. Quanto a arte, ¢ Marx foi 0 primeiro a dizé-o, ela representava a “mercadoria absolu- ta", visto que era a propria imagem do valor, Mas do que se fala exatamente? Do objeto de arte, nfo de sua pratica; da obra tal como 6 tomada pela economia getal, nao de sua economia propria, Ora, a arte represen ta uma atividade de troca que ndo pode ser regulada por nenhuma moeda, nenhuma “substancia comum’:ela é dis- tribuigao de sentido em estado selvagem — uma troca cuja forma é determinada pela forma do proprio objeto, e nao pelas determinag6es que Ihe sao exteriores. A pratica do ar- tista, seu comportamento enquanto produtor, determina a relagdo que seré estabelecida com sua obta: em outros ter~ ‘mos, o que ele produz, em primeito lugar, so relagSes entre as pessoas ¢ 0 mundo por intermédio dos objetos estéticos. O tema da obra Todos os artistas cujo trabalho deriva da estética rela- cional possuem um universo de formas, uma problemética 60 NICOLAS BOURRIALD © uma trajetsria que Ihes so préprias: nenhum estilo, te- ma ow iconografia os une, © que eles compartilham é mui- to mais importante, a saber, o fato de operar num mesmo horizonte pratico e teérico: a esfera das relagdes humanas. ‘Suas obras lidam com os modos de intercdmbio social, a interago com o espectador dentro da experiéncia estética Proposta, os processos de comunicagao enquanto instru- mentos concretos para interligar pessoas e grupos. Todos, portanto, atuam num campo que pode ser cha: mado de esfera relacional, que 6 para a arte de hoje aqui lo que a produgéo em massa foi para a pop art e a arte minimalista. Todos fundam sua pratica artistica numa proximida- de que, sem depreciat a visualidade, relativiza seu lugar no protocolo da exposigdo: a obra de arte dos anos 1990 trans- forma o observador em vizinho, em interlocutor direto. E justamente a atitude dessa geragao diante da comunicagao que permite defini-la em relacéo as anteriores: se a maioria dos artistas que apareceram na década de 1980, de Richard Prince a Jeff Koons, passando por Jenny Holzer, valoriza- ‘va oaspecto visual das midias, seus sucessores privilegiam © contato © @ qualidade tatil Fles privilegiam o imediatis- ‘mo em sua escrita plastica, Esse fendmeno pode ser expli- cadosociologicamente, ao saber que a década recém-finda, mareada pela crise econémica, era pouco propicia as inicia- tivas espetaculares e visiondrias. Razées puramente esté- ticas também: nos anos 1980, o ponteiro tinha parado nos movimentos dos anos 1960, principalmente a pop art, cuja UESTETICA RELACIONAL, 61 eficécia visual sustenta a maioria das formas propostas pe- Jo simulacionismo, Bem ou mal, nossa época identifica-se até em seu “clima” de crise ~com a arte “pobre” e expe- rimental dos anos 1970, Esse efeito de moda, por superfi- cial que seja, permitiu reavaliar as obras de artistas como Gordon Matta-Clark ou Robert Smithson, enquanto 0 su- cesso de Mike Kelley favoreceu recentemente a releitura da junkart californiana de Paul Thek ou de Tetsumi Kudo. As sim, a moda ctia microclimas estéticos com efeitos inclusi- ‘ve em nossa leitura da historia recente: em outrostermos, a rede organiza suas malhas de outra maneita e “deixa pas- sar” outros tipos de trabathos ~ que, por sua vez, influen- ciam o preseate. Dito isso, 0s artistas relacionais constituem um grupo que, pela primeira vez. desde o surgimento daarte conceitual, nos meados dos anos 1960, nao se apdia absolutamente na reinterpretagio de tal ou tal movimento estético do passa- do; a arte relacional nao 6 0 revival de nenhum movimento, ‘© retorno a nenhum estilo; ela nasce da observacio do pre- sente e de uma reflexdo sobre o destino da atividade artis tica, Seu postulado basico ~a esfera das relagdes humanas como lugar da obra de arte — ndo tem precedentes na hist6- ria da arte, mesmo que, « posteriori, apareca como eviden- te pano de fundo de qualquer pratica estética e como tema ‘modernista por exceléncia: basta reler a conferéncia apre- sentada por Marcel Duchamp em 1954, “O processo cria- tivo", para se convencer de que a interatividade ndo é uma idéia nova... A novidade estd em outro lugar, Ela reside no 62 NICOLAS BOLRRIAUD fato de que essa geragdo de artistas nao considera a inter- subjetividade e a interagao como artificios teéricos em vo Ba, nem como coadjuvantes (pretextos) para uma pritica tradicional da arte: ela as considera como ponto de partida e de chegada, em suma, como os principais elementos a dar forma a sua atividade. O espago em que se apresentam suas obras é 0 da interagao, o da abertura queinaugura (Georges Bataille diria: “dilacera”) todo © qualquer dislogo. © que elas produzem sio espacos-tempos relacionais, experién las inter-humanas que tentam se libectar das restrigdes ideolégicas da comunicago de massa; de certa manei- 1a, Sio lugares onde se elaboram socialidades alternativas, modelos eriticos, momentos de convivio construido, Sabe- se, porém, que o tempo do Homem novo, dos manifestos futurizantes, dos apelos a um mundo melhor com as chaves na mao, jé passou: vive-se hoje a utopia no cotidiano sub- jetivo, no tempo real das experimentagdes concretas e de- liberadamente fragmentérias, A obra de arte apresenta-se como um intersticio social no qual sao possiveis essas expe- riéncias e essas novas “possibilidades de vida’: parece mais urgente inventar relagées possfvels com os vizinhos de hoje do que entoar loas ao amanha. # sé, mas é muito. E em to- do caso isso representauma alternativa desejavel ao pensa- mento depressivo, autoritério e reaciondrio que, pelo menos na Franga, se apresenta como teoria da arte sob a forma de uma recobrada “sensatez”: mas a modernidade nao morreu, se identificamos como moderna o gosto pela experiéncia estética e pelo pensamento capaz de se aventurar, opondo- se aos conformismos timidos defendidos por nossos fil6- ESTETICA RFLACIONAL 63 sofos bitolados, os neotradicionalistas (a “Beleza’, segundo © inqualificavel Dave Hickey) ou os passadistas militantes ao estilo de Jean Clair. Mesmo que desagrade a esses inte- gralistas do bon goftt de ontem, a arte atual assume e re- toma plenamente a heranga das vanguardas do século xx, mas recusando seu dogmatismo e sua teleologia. Notem bem, esta tiltima frase foi pensada por muito tempo: agora 6 hora de escrevé-la. Pois a modemismo se banhava num. “imaginario de oposigdo", retomando os termos de Gilbert Durand, que procedia por separagbes e oposigées, amitide desqualificando 0 passado em favor do futuro; baseava-se no conflito, enquanto o imaginatio de nossa época se preo- cupa com negaciagdes, vinculos, coexisténcias. Hoje no se procura mais avangar por meio de posigées conflitantes, € sim com a invengdo de novas montagens, de relagdes pos- siveis entre unidades distintas, de construgdes de aliangas entre diferentes parceiros. Os contratos estéticos, tal como 05 contratos sociais, sfo tomados pelo que sao: ninguém mais pretende instaurar a idade de ouro na terra, e ficare~ ‘mos contentes em criar nodi vivendi que permitam relagdes sociais mais justas, modos de vida mais densos, combina- ‘goes de existéncia miiltiplas e fecundas. Da mesma forma, a arte no tenta mais imaginar utopias, e sim construir es- pagos concretos. Espagos-tempos na arte dos anos 1990 Esses procedimentos “relacionais” (convites, distri- buigdo de papéis, encontros casuais, espagos de convivio, 64 SOLAS BOURRIALD Pontos de encontro etc) so apenas um repertério de for- ‘mes comuns, vefculos por meio dos quais se desenvolvem. Pensamentos singulares e relagdes pessoais com o mun- do. A forma posterior que cada artista daré a essa produgio relacional tampouco ¢ imutdvel: esses artistas apreencem seus trabalhos de um ponto de vista triplo, ao mesmo tem- Po estético (como “traduzi-los” materialmente?), histori- co (como se inscrever num jogo de referéncias artisticas?) € social (como encontrar uma posi¢ao coerente no estado atual da produgao e das relagdes saciais?), Se essas prati- cas certamente tém suas referéncias formais ¢ tedricas na arte conceitual, no Fluxus ou no minimalismo, por outro lado utilizam-nas apenas como um vocabulério, um su- porte lexical. Jasper Johns, Robert Rauschenberg ¢ os No- ‘os realistas basearam-se no ready-made para desenvalver suaretérica do objetoe seus discursos sociolégicos. Quan- do a arte relacional se refere a situagGes e métodos concei- tuais ou de inspirago Fluxus, ou a Gordon Matla-Clark, Robert Smithson, Dan Graham, é para articular modos de Pensamento que no tém nada a ver com eles. A verdade ra questao seria a seguinte: quais so os modos de expo- sigdo justos em relacdo ao contexto cultural ¢ om relagio & histéria da arte, tal como se atualiza no presente? O video, Por exemplo, hoje se torna um suporte dominante: mas, se Peter Land, Gillian Wearing ou Henry Bond, para citar apenas alguns, privilegiam 0 registro em video, nem por isso sda “video-artistas”. Esse meio simplesmente se mos- tra o mais adequado para a formalizagio de certos projetos ESTETICA RELACIONAL 65 © ages, Outros artistas produzem uma documentagao sis- temitica de seus trabalhos, extraindo ligdes da arte concei tual, mas em bases estéticas radicalmente diversas: longe da racionalidade administrativa que funda a arte conceitual (@ forma do contrato de cartério, ubiqua na arte dos anos 1960), a arte telacional inspira-se mais em processos ma- leaveis que regem a vida comum, Pode-se falar em comu nicagdo, mas aqui também os artistas atuais se situam no pélo oposto dos artistas da déceda anterior que utilizavam. as midias: estes abordavam a forma visual da comunicacao de massa e os cones da cultura popular, ao passo que Liam Gillick, Miltos Manetas ou Jorge Pardo trabalham sobre modelos reduzidos de situagdes comunicacionais. Pode-se interpretar como uma mudanca na sensibilidade coletiva: agora, joga-se o grupo contra @ massa, a vizinhanga con- tra a propaganda, o low tech contra o high tech, o tatil contra © visual. E, scbretudo, hoje o cotidiano se apresenta como terreno muito mais fecundo do que a “cultura popular” ~ forma que sé existe em relagdo e oposic&o a “alta cultura’, Para eliminar qualquer diivida sobre um suposto retor- ho a uma arte “conceitual’, lembremos que esses trabalhos no celebrama imaterialidade: nenhum desses artistas pri- vilegia as performances ou 0 conceito, termos que, aqui, j4 nao significa muita coisa. Em suma, nao hd mais o pri- mado do processo de trabalho sobre os modos de mate- tializagio desse trabalho (ao contrério da pracess art e da arte conceitual, que, elas sim, tendiam a fetichizar o pro-

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