Vista Do O PASSADO PRESENTE NA LITERATURA AFRICANA

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O PASSADO PRESENTE NA LITERATURA AFRICANA Rita Chaves Universidade de Sao Paulo rofundamente marcada pela Historia, a literatura dos paises africanos B de lingua portuguesa traz a dimensiio do passado como uma de suas mairizes de significado. A brusca ruptura no desenvolvimento cultural do continente africano, o contato com mundo ocidental estabelecido sob a at- mosfera de choque, # intervencdo direta na organizaciio de seus povos consti- tuiram elementos de peso na reorganizac&o das sociedades que fizeram a independéncia de cada um de seus paises. To recentes, e feitas no complexo quadro da conjuntura internacional dos anos 70, essas independéncias nao dariam conta do desejo de acertar 0 passo na direcdo do projeto utdpico que mobilizara os africanos. Como heranca, 0 colonialismo deixava uma sucessio de lacunas na histéria dessas terras e muitos escritores, falando de diferentes lugares e sob diferentes perspectivas, parecem assumir o papel de preencher com o seu saber esse vazio que a consciéncia vinha desvelando. Uma visio panoramica da literatura angolana, por exemplo, permite ver que a valorizagio do passado 6, sem dtivida, um dos tépicos do programa elaborado pelo grupo de escritores que se propde a fundar a moderna poesia de Angola. Em fins dos anos 40, reunidos em torno da revista Mensagem , Ant6nio Jacinto, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, para ficar com apenas trés nomes, vio formar a famosa “Geragio dos Novos Intelectuais”, que, elegendo como palavra de ordem a frase “Vamos descobrir Angola”, procura langar uma nova concepedio de poesia. A expressiio “Novos Intelectuais” alude a um grupo anterior que sacudiu Luanda em fins do século XIX com propostas que, embora menos radicais, foram objeto de repiidio e perseguicdo por parte do 18 viaallantica n.7 oul.2004 governo portugués. A nogdo de recuperaciio de uma franja do passado se confirma no uso da palavra “descobrir”. Tratava-se, pois, de uma depuracéo, buscando destaca o que seria 0 genuinamente angolano, ou seja, 0 que 1d estava antes da contaminagio imposta pela sociedade colonial. Compreender a relevancia da proposta de recuperacao do passado, mes- ‘mo que tal processo se faga através de uma reinvengéio, pressupde desvendar a natureza do colonialismo, atentando-se para dados que, ao ultrapassar a esfera da exploragio econdmica a que foram submetidos os povos oprimidos, exprime a politica de despersonalizagdo cultural prépria da empresa. Em estudos dedi- cados & relagiio entre racis 10 ¢ cultura, Frantz Fanon lanca luzes sobre varios aspectos desse problema, apontando as estratégias de inferiorizagdo do domi- nado como fundamentais para a justificagdo das desigualdades a serem perpe- tuadas pelo colonialismo, ainda que o discurso procurasse difundir as hipéteses de reducdo e até extinciio das mesmas. Sua intervencdo no I Congresso de Escritores ¢ Artistas Negros realizado em Paris, no ano de 1956, enfatizava a ligacdo estreita entre colonialismo e racismo: II n’est pas possible d’asservir des hommes sans logiquement les inferioriser de part en part. Et le racisme nest que léxplication émotionnelle, affective, quelquefois intellectuelle de cette infériorisation. (FANON, 1964, p.47). Nesse espirito, 0 processo de submissiio demanda ages que conduzam a uma total desvalorizagiio do patriménio cultural do dominado. No limite, ele deve ser desligado de seu passado, o que significa dizer, exilado de sua propria histéria. No lugar, acenam-Ihe com a possibilidade de integrar uma outra, mais Iuminosa, mais sedutora, cujo dominio The asseguraria um lugar melhor na ordem vigente. A artificialidade se impe, desfigurando o sujeito que tem cortada a ligacdo com seu universe cultural sem chegar jamais a ter acesso efetive uo universo de seu opressor. O artificio, quando eficiente, trans- forma o colonizado numa caricatura. Dai que, para Fanon, a libertaco esté diretamente associada ao momento em que se percebe a armadilha e se deci- de escapar desse jogo perverso. E 0 primeiro passo se di na revalorizagio da tradi¢Go rompida, que nunca é completamente destruida, uma vez que ficam sempre, mesmo que dormindo sob a terra, alguns tragos desse inventario: (...) On retrouve le sens du passé, le culte des ancétres Le passé, désormais constellation de valeurs, s‘identifie & la Vérité. Opassado presente na Literatura Africana 149 Cette redecouverte, cette valorisation absolue d’allure quasi déréelle, objectivement indéfonsable,révet une importance subjective incomparable. Au sortir de ces épousailles passionnées, 'autochtone aura décidé, ‘conaissance de cause’, de lutter contre toutes les formes déexploitation et d’aliénation de I homme. Par contre léccupant a cette époque multiplie les appels assimilation, puis a Vintegration, & la communauté (...) Nul néologisme no peut masquer la nouvelle évidenco : a plongée dans le gouffre du passé est condition et source de liberte. (FANON, 1964, p.49-50) Com efeito, embora estivesse mais familiarizado com o colonialismo francés na Argélia, Fanon oferece argumentos validos para se entender o funcionamento do colonialismo portugués em Angola. Também ali as tentati- vas de apagamento da historia anterior 4 chegada dos europeus se fizeram sentir em muitos niveis. Nunea é demais lembrar que o ponto de vista apre- sentado era sempre o do homem europeu, culto, cristfio, superior na civiliza- iio de que se fazia representante. Eo processo de alienactio ia mais longe, 20 impor também a geografin da metrépole como repertério de conhecimento: nas escolas eram ensinados os nomes dos rios de Portugal, deseritas as suas montanhas, a sua rede de estradas de ferro ¢ as suas estagdes climiiticas. O espaco africano ficava apagado e 0 homem que ali vivia jogado na abstragio de referéncias impalpiveis. A desterritorializacdo, mais que um conceito, tor- nava-se uma experiéneia didria. Como “recompensa’, oferecia-se a faliicia de uma assimilagdo que jamais seria completa e nunea renderia o que o discurso oficial prometia. No caso portugués, além de outros motivos, a fragilidade da economia nacional constituia j4 na origem um impedimento ao acesso de uma maior parcela da populacio ao universo definido como civilizado. A as- sustadora taxa de analfabetos na altura da independéncia é reveladora do fracasso ou das mentiras do projeto: em Angola superavam os 95%. Nao é de estranhar, portanto, que a idéia de libertacéio que marca 0 processo literdrio angolano seja assim atravessada por esse desejo de resga- te de um passado distante. Regressar no tempo seria também um modo de apostar numa identidade tecida na diferenca. Para os outros fins que ape- nas comegavam a ser projetados, jd nos anos 40, parecia produtiva a nogio de unidade subjacente a essa idéia de passado, tal como no Brasil a literatu- ra romintica do século XIX procura fazer do indio, enquanto habitante da 150 viaallantica n.7 oul.2004 era pré-colombiana, um dos simbolos da identidade brasileira. Num univer- so tensionado pela ocorréncia de tantas rupturas, 0 apego a certas marcas da tradigéio se ergue como um gesto de defesa da identidade possivel. Embleméticos dessa postura sio os poemas “Namoro” e “Makezu", de Viriato da Cruz, ambos publicados em No reino de Caliban IT, uma antologia organizada por Manuel Ferreira (1988, p.164-167). Em ambos, se depreende 0 intuito de valorizagio de elementos da pritica popular como um patriménio identificado com a resisténcia que era preciso alimentar. A danga como ele- mento de integraciio no primeiro e o alimento tradicional como explicagdo de uma distinta energia no segundo ganham estatuto de signo de uma identida- de a sor preservada, Contra as imagens reificadas da literatura colonial, os poetas selecionam alguns daqueles que seriam os sinais positives de uma visio de mundo propria do meio que queriam libertar. O passado, como se vé, 6, entio, localizado na historia pré-colonial, ow mesmo num tempo em que as cores da dominacdo néo surgiam tao carrega- das. Nesse novo tempo de aspereza, nostalgicamente se impée como recurso o regresso a um periodo outro, onde se podiam plantar as sementes de uma nova ordem. Dessa forma, que poderia parecer um tanto retrégrada, configu- ra-se um dinamismo que torce 0 movimento: os poemas desnaturalizam a situagdo em vigor e aludem hipétese de transformaciio. Assim postas as coisas, voltar ao passado se transforma numa experiéneia de renovaciio e é a partir dessa estratégia que sfio lancadas as bases para uma literatura afinada com o projeto de libertacéio. Como marcas dessa investida estardio presentes aquelas imagens associadas 4 natureza e as formas de cultura popular: a mulemba, 0 imbondeiro, as frutas da terra, as misicas, as dangas, etc. No corpo desse programa, a nocilo de passado apareceré também em ligacdo com a infincia, fase da vida em que o desenho da exelusio social se revela atenuado. Para além da referéncia ao estreito contato com a mae, matriz primordial na literatura de Angola, seja a prépria, soja como metonimia da terra africana, o universo infantil 6 retomado como um mundo em comu- no, onde o cédigo da cisdo no tinha se projetado. Um excelente exemple dessa linha estd em “O grande desafio” de Anténio Jacinto (1988, p.139), poe- ma que oferece um painel da sociedade Iuandense, trabalhando dois tempos da vida dos homens que ali viviam. Na primeira fase, a infincia é evocada como um tempo de plenitude, delineado pelo senso de igualdade que supera- Opassado presente na Literatura Africana 151 ria a discriminagio de racas ¢ classe social. O jogo de futebol — 0 desafio — constitui um espaco lidico de afirmacio dos valores positivos. Na segunda fase, a idade adulta faz saltar a crueza da separagiio dos caminhos. 0 dado da exclusiio se Jevanta, expondo com nitidez as fronteiras que se criaram. A injustiga do presente, todavia, néio parece uma fatalidade pois o poema termi- na registrando a esperanga de um novo desafio, ou seja, a esperanga de um tempo que reinstale as leis da comunhiio que vigoraram no passado. Se esse apego a0 passado pode ser percebido na escolha temiitica, no dominio da estrutura postica podemos detectar outros sinais desse enraizamento. Estamos pensando na presenca da tradigdo oral que sutilmen- te corta essa producio literdria. Surge explicita ou implicitamente um tom de conversa sugerindo a interlocugdo propria da oralidade. Sem descurar do tra- balho com as imagens que remarca a dimensiio poética de seus textos, em todos eles hii uma histéria que se conta e, assim, 0 poema ganha densidade quando lido em voz alta. Comportando uma certa carga dramatica, a tonalida- de narrativa tinge a cena poética, dai decorrendo um especial jogo lirico. A presenea do passado nesses termos é mais funda e mareada pela con- tradig&o que sela a condicao colonial. Num mundo em que a escrita vem inserida num clima de trégicas transformagées, a relagéio com a tradic&o oral se da como um dilema, um dos tantos com que se debate o escritor angolano Sobre 0 assunto, pronunciou-se 0 poeta e ficcionista Manuel Rui em dois brilhantes ensaios nos quais aborda a complexidade das relagdes entre esses dois universos culturais de que se forma a identidade angolana. Para ele, a postura invasiva do europeu estabelece uma incompatibilidade que 6 é re- vertida pela forea da transformagao que a resisténcia assegura. Sintetizada no jogo entre a escrita ¢ o oral, a questio se abre: E agora? Vou passar o meu texto oral para a escrita? Nao. E que a partir do momento em que eu o transferir para o espaco da folha branea, ele quase que morre, Nao tem arvores, Nao tem ritual. Nao tem as criancas sentadas segundo o quadro comunitario estabelecido, Nao tem som. Nao tem danca. ‘Nao tem bracos. Nao tem olhos. Nao tem bocas. O texto siio bocas negras na escrita quase redundam num mutism sobre a folha branca. O texto oral tem vezes que 86 pode ser falado por alguns de nés. E ha palavras que s6 alguns de nés podem ouvir. No texto escrito posso liqui- 152 viaallantica n.7 oul.2004 dar este eddigo aglutinador. Outra arma secreta para combater o outro ¢ impodir que ele me descodifique para depois me destruir. Come escrever a histéria, 0 poema, 0 provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita ¢ submetendo-me a0 rigor do cédigo que a escrita ja comporta? Isso nao. No texto oral ja disse no toco e néo o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro. Nao posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou 6 minar a arma do outro com todos os elementos possiveis do meu texto. Invento outro toxto, Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instru- mento escrita um texto escrito meu da minha identidade. $6 que agora porque o meu espaco e tempo foi agredido para o defender por vezes dessituo do espago e tempo o tempo mais total. O mundo no sou eu so. O mundo somos nés e os outros. (RUI, 1987) A consciéncia da ruptura aberta pelo colonialismo é clara e ilumina a inevitabilidade da situagiio que mesmo a independéncia nfio pode solucionar. Diante do panorama que se abre, niio hi regresso e a sugestiio do poeta é 86 uma: dinamizar o legado, apropriar-se daquilo que outrora foi instrumento de dominagio e foi, seguramente, fonte de angistia. A recuperagio integral do passado ¢ invidvel. Seu esquecimento total se coloca como uma mutilagio a deformar a identidade que se pretende como forma de defesa e de integragio no mundo. A harmonia - tal como era, ou deveria ser - foi atingida e néo podendo ser recuperada, ha de ser reinventada com aquilo que o presente oferece. Interferir, desescrever, inventar apresentam-se como palavras de ordem nesse processo de revitalizaciio do territério possivel. Destituido de tanta coisa, o africano recupera-se na desalienacdo, ponto de partida para afirmacdo de seu mundo, para sua afirmacio um mundo que ja é outro, no qual ele precisa conquistar um lugar. Nao seria legitimo nem produtivo falar em pureza de raca, etnia, cultura. A empresa colonial Jevou muita coisa, mas deixou outras. Trata-se, pois, de aproveitar a heranca, conquistar seu uso, tal como se conquistou a bandeira, para citar uma das imagens tio caras ao mesmo Manuel Rui. Foram muitas as rupturas agenciadas pelo colonizador. Entre as mais drasticas, esta 0 afastamento entre o colonizado e sua lingua de origem. E nesse campo, a situagiio atinge um patamar dramatico. Porque aqui se impde um corte de canter irreversivel. Impedido de falar a sua lingua, 0 dominado Opassado presente na Literatura Africana 153 também nfo tem total acesso a lingua do colonizador. Seu universo fica assim comprometido pelo risco da incomunicabilidade, que levaria & morte de toda e qualquer forma cultural. Para fugir & situagéio de emparedamento, a saida deve se guiar pelo pragmatismo, ou seja, para expressar a luta contra o mal que se abateu sobre 0 seu mundo, 6 necessirio valer-se de um dos instrumentos de dominagéio: a lingua do outro. Praticamente toda a literatura angolana é eseri- ta em Portugués. Mas a aceitagdo niio serd passiva. E a resisténcia af se vai mostrar na insubmissiio & gramitica da ordem. No campo semantico, lexical ¢ até sintatico, se registram construgdes que procuram aproximar a lingua poé- tica da fala popular. Essa mesclagem confirma a diregéio da travessia: o encon- tro com aqueles grupos mantidos até entdo A margem. Ali certamente estava a reserva de autenticidade que 0 discurso poético vai buscar para se reciclar em contraposig&o ao que Ihe oferece a fala do ocupante. Nesse aspecto, 6 preciso esclarecer que a maestria de alguns escrito- res se manifesta de forma inequivoca. Sua atitude nao é propriamente a de reproduzir simplesmente os desvios praticados por aqueles que nfio domi- nam o chamado registro culto do cédigo lingitistico que so obrigados a usar. A “impericia” dos falantes é transformada em virtualidade estilistica pelos autores que se valem das potencialidades da lingua enquanto sistema, para introduzirem variagdes que, sem mimetizar estaticamente a fala da camada social da qual recortam seus principais personagens, refletem a capacidade de apropriagio de um instrumento que também serviu para opri- mir. Um grande exemplo dessa pratica constitui a obra de José Luandino Vieira. Autor de contos (estérias, como ele prefere chamar) e romances, Luandino traz para os seus textos, escritos predominantemente entre o inicio da déeada de 60 ¢ meados dos anos 70, marcas particulares do proces- so criativo plenamente identificado com o desojo de autonomia em relacdo ao padrio lusitano. A desobediéncia traduz-se na adoc&o de procedimentos que envolvem o campo lexical, morfoldgico ¢ sintdtico, valendo-se de neolo- gismos, de ompréstimo das linguas bantu e de tudo o mais que considere valido para conferir uma feigGo africana & linguagem. A utilizagdo de ex- pressées do kimbundo, a lingua bantu falada na regidio em tomo de Luanda (como muadié, monandengues, maka), o recurso aos provérbios veiculados nas linguas nacionais, a criagiio de termos através de processos de contami- nagio entre varias linguas, a transferéneia de normas gramaticais das lin- 154 viaallantica n.7 oul.2004 guas bantu para o portugués, e 0 uso sem preconceitos de corruptelas pré- prias da fala popular constituem a base do fenémeno da apropriacio do idi- oma imposto. Tal como surge em narrativas como as de Luandino, a lingua ja nfo 6 a que os colonizadores trouxeram. Na desobediéncia do escritor exprime-se a identificagio com esse universo de excluidos aos quais 0 colonialismo arrancou quase tudo. Na “deformagéo” lingiiistica mediada pela presenga das linguas dos antepassados, portanto, também se vislumbra a ponta de um tempo anterior a cortar 0 presente hostil. Apés a independéncia, a essa nog&o de passado instaurado no periodo pré-colonial, junta-se outra. A cuforia da vitoria converte em passado 0 pré- prio tempo colonial. E o momento entéo de centrar-se nesse periodo como forma de engrandecer 0 presente. A celebragio eleva as antinomias: aos he- rois do passado remoto se vo aliar os herdis que participaram na construgao desse presente em contraposiciio aqueles que o discurso colonialista apresen- tava como vencedores do mal. No embate entre os mitos manifesta-se 0 contraponto entre dilematicas visdes de mundo. “Havemos de voltar”, famoso poema de Agostinho Neto parecia atualizar-se na conquista conseguida. As marimbas, 0 quissange, 0 carnaval, “as tradiedes” inscrevem-se como sinais da identidade projetada, num processo correspondente ao que movia a esco- Tha dos codinomes dos guerrilheiros na luta real. Hoji Ya Henda, Ndunduma, Kissange, extraidos das linguas africanas, so alguns exemplos dessa opgio que fazia da luta pela independéncia politica uma batalha pela construgio da identidade cultural. Instrumento de afirmagio da nacionalidade, a literatura serd também um meio de conhecer o pais, de mergulhar num mundo de histérias nao contadas, ou mal contadas, inclusive pela chamada literatura colonial. Duas narrativas, Nzinga Mbandi, de Manuel Pedro Pacavira, e A konkhava de Feti, de Henrique Abranches, ja nos primeiros anos, vao fazer da incursao pela mitologia, de base historica ou nao, 0 seu método de compreensiio do passado muito remoto para interpretacio do presente. Personagens lendarios sio recuperados no recorte que interessava as circunstancias do momento, 0 que significava erguer um ponto de vista diverso daquele que até ento vigorava. ‘Tratava-se, sem duvida, de voltar-se contra o proceso de reificacao que esta na base do modo colonial de ver o mundo. Para alcancar a complexidade do procedimento, que nem chega a ser inesperado, podemos recorrer as ligdes Opassado presente na Literatura Africana 155 sempre iluminadas de Eric Hobsbawm. Em “O sentido do pasado”, que inte- gra o volume Sobre Histéria, o famoso historiador inglés sintetiza: (...) A atractio do passado como continuidade e tradigdo, como ‘nossos antepassados’ é forte. Mesmo o padrao do turismo presta testemunho disso. Nossa simpatia espontanea pelo sentimento no deve, porém, nos levar a negligenciar a dificuldade de descobrir por que isso deve ser assim. (...) Os novos burgueses buseam pedigrees, as novas nagées ou movimentos anexam a sua histéria exemplos de grandeza e realizagio passadas na razao direta do que sentem e star faltando dessas coisas em seu passado real — quer esse sentimento seja ou nio justifieado. (HOBSBAWM, 1997, p.33) No que se refere ao quadro colonial, aprendemos com Fanon que tal comportamento 6 perfeitamente justificdvel. 0 mecanismo, se bem que nao completamente racionalizado, obedece a um impulso de compensagio que visa repor a auto-estima. Essa contraposigio ao vazio deixado 6 uma manei- ra de ressignificar a conquista da independéncia, legitimando aquela idéia de comunidade imaginada de que nos fala Benedict Anderson em Nagdo e consciéneia nacional. A relevancia do contexto nesse momento de afirmagiio coletiva 6 profun- da, o que assegura a presenca de um forte contetido edificante & produgiio dessa fase. Acreditava-se, entio, na necessidade premente de separar as aguas e a retérica do entusiasmo com a sua dose de ingenuidade contagia a linguagem, porque contagia a prépria visio de mundo em curso. A poesia, sobretudo, 6 espaco de um vibrante engajamento. Em seu interior, sem hesitacdo, condena- se o passado colonial e, na sagracdo do passado mais remoto, louva-se esse presente que deveria ser assentado em outros valores. Movimentados por um projeto utdpico, de investimento no futuro, o passado seria uma espécie de ponto de partida de uma viagem que teria ficado ao meio com a invasio coloni- al. Reatar as duas pontas dessa corrente pée-se como condieio para a conquista da utopia que mobilizara a luta. Nao podemos esquecer que a independéncia angolana assinada em novembro de 1975 vinha bafejada pela euforia de outras independéncias de estados africanos e do fim da ditadura salazarista em Portu- gal. Tudo, portanto, parecia convergir para um tempo novo. Parte do repert6- 156 viaatldntiea n.7 oul.200¢ rio poético, de Manuel Rui, ao celebrar a resisténcia e a vitéria é bastante representativa desse sentimento. O entusiasmo, contudo, nio foi capaz de sustentar os planos e dar corpo aos sonhos. Logo nos primeiros anos que se seguiram ao periodo colonial, & alegria ¢ ao entusiasmo vieram se somar as frustragies, a conseiéneia pesada dos limites, a sensagio de impoténeia. A energia da palavra nfio faz frente aos obstéculos postos pelos complicadores econdmicos ¢ politicos dos novos esta- dos. O perfodo chamado pés-colonial 6 também uma usina de perturbagdes. Segundo o professor Russell Hamilton, em palestra recentemente proferida na USP, é necessdrio entender bem 0 sentido desse prefixo “pés” quando aplicado & situagiio colonial. Para tal, 0 estudioso estabelece um paralelo com a expressiio pés-modernismo: O pés-modernismo transcende 0 modernismo, tanto 0 cientifico, racio- nal do iluminismo como, no Ambito literario, 0 roméntico e realista do século XIX e, no século XX, o Modernismo hispano-Americano e Brasilei- ro. Portanto, em termos estéticos, 0 pés-modernismo é uma espécie de vanguardismo, Com respeito ao pés do pés-colonialismo, penso que te- ‘mos que levar em conta que 0 colonialismo, ao contrario do modernismo, traz logo & monte uma carga de significadores e referentes politicos ¢ s6cio-econémicos: Portanto, os antigos colonizados e os seus descenden- tes, mesmo com o fim do colonialismo oficial, avancam para o futuro de costas, por assim dizer. Isto 6, ao contrério dos pés-modernistas, que carregam o passado nas costas mas que fixam os olhos no futuro, os pés- colonialistas encaram o passado enquanto caminham para o futuro. Quer dizer, que por mal e por bem o passado colonial esta sempre pre- sente e palpavel. (1999) Sem entrar nas polémicas abertas em torno das teorias da pés- colonialidade, interessa-nos apenas discutir aspectos da realidade que se abre apés a independéncia, ¢ sobretudo quando o tempo se marca pelo desencanto. Assim chegamos aos anos 90 que viriam consolidar a sensac&o de perplexidade diante da inviabilidade do projeto acalentado. A continuidade da guerra, as imensas dificuldades no cendrio social, 0 esvaziamento das propostas politicas associadas ao estatuto da independéncia, a incapacidade de articular numa con- cepeSo dinamica a tradic&io e a modernidade compuseram um panorama aves- Opassado presente na Literatura Africana 157 so ao otimismo. Novamente, regressa-se ao passado, a varias dimensées do passado, para se tentar compreender o presente desalentador. Como um pro- cesso que niio se totalliza, porque deve ser por natureza e definicdo, revitalizado cada passo, a construgiio da identidade incorpora indagagSes ¢ questionamentos também sobre os anos da Tuta que levou a0 11 de novembro, dia em que se proclamou a independéneia do pais. Novas vozes silo convoeadas num evidente processo de desmitificagio. A retrovisiio, instrumento poderoso do historiador, 6 apropriada pela literatura e refazem-se os ciclos. Ainda sob o calor dos fatos muito recentemente vivids, uma significati- va parte da producdo literdria angolana se vai dedicar & pesquisa histérica como base da criacdo. Romances de Pepetela e de José Eduardo Agualusa, donos de dois percursos to diversos, encontram-se nessa opgiio pela incursio no passado. Pepetela, autor de Mayombe, um romance que traga a épica da luta guerrilheira, fard anos mais tarde uma espécie de balango dessa geragiio que apostou na independéncia e que, enquanto grupo, se esfacela na experi- éncia complicadissima de gerir 0 pais que a utopia queria ter construido. Em A geracao da utopia, publicado em 1992, os fantasmas de certa forma anunci- ados j4 em Mayombe tomam forma, ganham nomes e tornam dissoluta a idéia de naciio. Agora identificado com 0 periodo de gestacdo da liberdade, o passado néio 6 nem glorificado, nem rejeitado. Transforma-se em objeto de reflexiio mesmo para quem tio vivamente participou desse itinerdrio. No centro dessa procura, nao 6 demais referir, permanece a questiio da identidade, uma das linhas de forea que organiza a literatura angolana. Dis- cutido, questionado, reformulado na produgiio ensafstica das chamadas cién- cias sociais em varios paises, em Angola esse problema é enfaticamente abor- dado pelo repertério literdrio. Socidlogo por formacio, esse grande romancis- ta da lingua portuguesa exercita o gosto pela investigacdo, tomando empres- tados & historiografia alguns métodos e fontes. Em Lueji, publicado em 1989, o interesse pelos documentos se manifesta na estruturacio da matéria ficcional. Assentada em dois planos temporais, o tempo mitico da Rainha Lueji a fundadora do Império Lunda - e o final do milénio, a narrativa procura articular as bases do que deveria ser a nagiio angolana. Escrito no final dos anos 80, o romance situa no final da década de 90 o presente das agdes a serem narradas. Um tempo recuado e um tempo prospectivo construiriam o suporte de uma identidade que vincularia ao resgate da tradigéio a nogio de 138 viaallantica n.7 oul.2004 modernidade necesséria & sobrevivéncia daquele povo. E para conhecimento dessa tradiciio, o escritor vale-se de muitos recursos. A bailarina Lu (codinome de Lueji), uma espécie de alter ego do autor, na montagem do bailado, que constitui uma das agies do enredo, vale-se de uma rigorosa pesquisa, consul- tando antropélogos, historiadores ¢ até mesmo os diérios de Henrique de Carvalho, militar portugués, que em viagens pelo nordeste do pais recolhera © que ele chama a lenda de Lueji. Mas vale-se, também, em rico contraponto do depoimento da avé, pertencente a linhagem da rainha mitolégica. Com os olhos postos nos documentos que examina no Arquivo Histérico e no Museu do Dundo ¢ os ouvidos atentos aos registros da meméria que a mais-velha com ela compartilha, Lu se torna portadora de duas vertentes de um saber que quer dividir com a gente de seu tempo, os espectadores do balé que vai apresentar. Na concepefio de seu trabalho artistico, a apropriagio da modernidade no dispensa a evocacdo dos bens de raiz. Com isso se cruzari- am dois tempos e dois espacos, apontando-se para a noco de totalidade que, em outres niveis, também foi roubada ao homem moderno. A perspectiva do romance, incorporando 0 senso histérico, nao dispensa a invencdo. Pelo contrario, a imaginac&o do escritor percorrerd os espacos vazios, as frestas que os discursos jd formulados néio conseguem preencher e, de forma deliberada, a historia se vai completar apoiando-se agora na consci- ancia de quem nfo quer ocultar a sua intervengio no modo como se constro- em as versdes, os mitos e/ou as lendas em torno dos fatos que ganham consis- téncia, tenham de fato ocorrido, ou nao. As fronteiras tornam-se difusas, esbatidos que ficam os limites entre 0 factual, o cientifico, 0 analitico e o artistico. Tudo a partir de uma nocio do real para que outras nogdes se cri- em. O passudo, assim visto, 6 matriz de indagagio, 6 porto para se interregar a respeito do presente, 6 cxereicio de prospecgio do futuro. Esse aprego pela meméria, noutros textos de Pepetela, surge em jogo com 0 conhecimento que parece resultar da experiéncia. Somos colocados diante de situacdes que se podem enquadrar no conjunto das sugestées trazidas pelos tempos no espaco que 6 sempre angolano. Se em Yaka, cuja primeira edicio 6 de 1984, uma espécie de visita pela genealogia dos Semedo, familia que chegara a Angola no comeco do século XX permite conhecer aspectos diversos da ocupacio colonial e seus agentes, em A geracdo da utopia, sero radiografados os protagonistas da campanha que levara a fuga Opassado presente na Literatura Africana 159 daqueles ocupantes. Objetos do olhar atento do narrador, os personagens angolanos apresentam-se como sujeitos da Historia, da que foi vivida e da que 6 contada, quase convertida em ficctio. Ou melhor, transferida para o universo ficcional, a base histérica mescla-se is subjetividades, compondo certamente um quadro maior do que o oferecido por uma eventual descri- cdo ou mesmo aniilise de dados extrafdos da seqiiéncia de fatos. O conceito de Histéria que 0 romance atualiza aproxima-se de um registro da memsria coletiva em que a multiplicidade de vozes 6 um vetor apto a conduzir 0 balango das acdes sobre o qual o leitor deve refletir. O narrador ja nao dispée da autoridade total porque Ihe falta a {6 no absoluto. Sua atitude é de desconfianga e os sinais da relatividade pontuam o texto projetando por tantas paginas a sombra da desilusio. Nesse compasso, dramaticamente, se clabora a experidneia da perda protagonizada por uma geracéio que ao rever to criticamente 0 passado despede-se a0 mesmo tempo da idéia de futuro, como aponta Isabel Pires de Lima num ensaio intitulado “Em busea de uma nova patria: 0 romance de Portugal e de Angola apés a descolonizacao” (1997, p.128-141). O desencanto, de tio intenso, descolore as formas de utopia que iluminara projeto politico e deu contornos a um proceso literario. Esse voltar-se para tras, com base em documentos, constitui igual- mente um dos instrumentos utilizados por José Eduardo Agualusa que nao partilhou da experiéncia de acompanhar de perto o nascimento do pais Com menos de 40 anos, Agualusa nasceu e viveu no Huambo até ir para Portugal, logo apés a independéncia. Ali escreve o belissimo romance A conjura, premiado pela Unido dos Escritores Angolanos em 1989. Na com- posicfio do enredo 14 esta uma insurreig&o contra o dominio portugués orga- nizada por um grupo de representantes do que comumente se identifica como a elite crioula que em varias fases da histéria ocupou um lugar assinalsvel na sociedade angolana. Misturando a imaginagao as informa- Ses que resultam de consultas a documentos, utilizando-se de uma lingua- gem arguta e clegante, 0 romance 6 ilustrativo dessa vertente de recontar a Historia abrindo espaco a vozes até entao abafadas. Em Nagao crioula, publicado em 1996, também escrito fora de Luan- da, uma vez que o escritor vivia nesse tempo em Portugal e fez parte da pesquisa no Brasil, o procedimento se mantém. A estéria se constrdi a par- tir de elementos registrados, revelados ou sugeridos a partir dos arquivos 160 viaallantica n.7 oul.2004 consultados. Mais uma vez é 0 século XIX que se oferece como paleo onde se desenrolam agées ligadas ao trafico de escravos, ao funcionamento da soci- edade colonial, & ficticia ocupagio da Africa pelos portugueses, 4 campanha abolicionista no Brasil. Entre os personagens criados pela imaginagio do autor, circulam outros ja inventariados pela Histéria ou por outros autores de fiegfio. Assim 6 que Fradique Mendes salta da obra de Ega de Queirés para ser transformado em protagonista desse romance cuja estrutura 6 de- finida pelo recurso das cartas. O retomar do passado, dentro de modelos variados ¢ com intencdes diferentes, com efeito, converte-se numa pratica recorrente na prosa de ficgdio contempordnea daquele pais. Qualquer operagdo colonial, embora esteja centrada na exploracio econdmica, no se descuida da dimensio simbélica de que se devem reves: tir suas agdes. Os fendmenos ligados aos cultos a ideologias, as culturas sio efetivamente envolvidos numa atmosfera favordvel & dominacdo imposta. Sobre a questio, vale a pena citar o Professor Alfredo Bosi : A colonizacao 6 um processo ao mesmo tempo material ¢ simbélico: as praticas econdmicas dos seus agentes esto vinculadas aos seus meios de sobrevivéneia, & sua meméria, aos seus modos de representagio de si € dos outros, enfim aos seus desejos e esperancas. Dito de outra maneira: nao ha eondigao colonial sem um enlace de traba- Thos, de eultos, de ideologias e de culturas. Nessa lavra de antigas semeaduras e novos transplantes, nem sempre os enxertos sio bem logrados. As vezes o presente busca ou precisa livrar-se do peso do passado; outras, e talvez sejam as mais numerosas, 6 a forga da tradico que exige o rittornelo de signos ¢ valores sem os quais o sistema se desfaria. (BOSI, 1993, p.377) Assim sendo, também a ruptura da dependéncia reclama ages que ultrapassem a esfera material. O desejo de construgio de uma identidade nacional que sela a configuragio do sistema litersrio em Angola explica, eniiio, a releviincia que se di ao espaco no repertério de seus autores justificadamente preocupados com a necessidade de simbolicamente reali- zarem apropriagio do territério invadido. Do mesmo modo, no plano da Opassado presente na Literatura Africana 161 meméria, assoma a necessidade de uma depuracdo. Nao se trata de um regresso a0 tempo que precedeu A cisiio para recuperar in totun os signos daquela ordem cultural, mas sim de resgatar alguns dos referentes que se podem integrar aos tempos que se seguem. Em confronto muito direto com a ruptura imposta por esse complicado processo histérico, conhecendo e formando-se numa sociedade em que a frag- mentagio é um dado do cotidiano, o gesto de refletir incisivamente sobre a formagio da realidade que o rodeia e as formas que ela vai ganhando é um ato de resisténcia quase natural ao escritor angolano. Vivendo a experiéncia de um presente hostil, experimentando o breve alivio de uma conquista a ser celebrada, ou vivenciando um tempo de futuro tao incerto, 0 escriter de An- gola tem o scu imagindrio povoado por dimensdes do passado e, quase sem- pro, 0 regresso a esse tempo anterior conduz o seu exercicio de pensar a sua contemporaneidade e vislumbrar hipéteses para um mundo que, por razies diversas e em variados niveis, Ihe surge como um universo A revelia BUBLIOGRAFIA AGUALUSA, José Eduardo. A conjura. Luanda: Unido dos Escritores Angolanos, 1989. - José Eduardo. Nagao crioula. Rio de Janeiro: Griphus, 1998. BOSI, Alfredo. Dialética da colonizacao. Si Paulo: Companhia das Letras, 1993. FANON, Frantz. Pour Ia révolution alticaine. Paris: Francois Maspero, 1964. FERREIRA, Manuel. No reino de Caliban. Lisboa: Platano Rditora, 1988 HAMILTON, Russell. A literatura dos PALOP e a teoria pés-colonial. In Via Atlantica, Sio Paulo, n.3, 12-22, 1999. HOBSBAWN, Eric. Sobre histdria. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1997. LIMA, Isabel Pires de. Em busca de uma nova patria: 0 romance de Portugal e de Angola apés a independéncia . In Via Alidnties, So Paulo, nl, 128-141,1997. MONTEIRO, Manuel Rui. Eu ¢ 0 outro - 0 invasor (ou em trés poueas linhas uma mancira do pensar o texto). In MEDINA, Cremilda. Sonha, mamana Africa. Sio Paulo: Epo péia, 1987, PEPETELA. A geracéo da utopia. 2ed. Lisboa: Dom Quixote, 1993. . Lueji. Luanda: Unidio dos Escritores Angolanos, 1988. Mayombe. Sio Paulo: Atica, 1980. . Yaka. Sio Paulo: Atica, 1984.

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