Vigílias Noturnas (Amostra) - August Klingemann

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VIGÍLIAS

NOTURNAS
august klingemann

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VIGÍLIAS NOTURNAS
COLEÇÃO DE PROFUNDIS

Corpo editorial
Alcebiades Diniz Miguel, Bruno Costa, Gustavo de Carvalho,
Júlia Lobão, Karine Simoni, Oscar Nestarez,
Rodrigo Kmiecik, Úrsula Antunes

Copyright ©
Editora Ex Machina 2023

Edição
Bruno Costa

Assistência editorial
Rodrigo Kmiecik

Tradução e introdução
Felipe Vale da Silva

Revisão de texto
B. Costa e R. Kmiecik

Diagramação em LATEX
Bruno Costa e Youssef Cherem

Capa
Rodrigo Kmiecik
sobre tela de William Hogarth
(Tailpiece, or The Bathos, 1764),
colorizada por Tulio Caetano

Agradecimentos
a Gustavo de Carvalho, quem primeiro nos chamou
a atenção para essa obra, e a Felipe Vale da Silva,
que encarou o desafio da tradução.

EDITORA EX MACHINA
www.editoraexmachina.com.br
AUGUST KLINGEMANN

VIGÍLIAS NOTURNAS

Felipe Vale da Silva


TRADUÇÃO & INTRODUÇÃO

·EDITORA EX MACHINA·
INTRODUÇÃO

PUBLICADA EM 1804 por uma pequena casa editorial no vila-


rejo de Penig, Vigílias noturnas constitui uma das obras mais
originais e intrigantes do Romantismo alemão. Trata-se de uma
colagem de digressões feitas por um louco em suas andanças; o
protagonista Kreuzgang, filho de uma cartomante e um alqui-
mista, é apresentado como um vigia noturno fascinado por seu
trabalho. Logo a função de vigiar as ruas da tenebrosa Alema-
nha oitocentista assume dimensões simbólicas. Por ter de tra-
balhar durante a noite, Kreuzgang tem um acesso privilegiado
ao submundo do crime, aos segredos dos adúlteros e aos so-
lilóquios dos suicidas. A sociedade que ele conhece é aquela
vislumbrada pelas janelas dos edifícios, na solidão dos quar-
tos de anônimos — uma sociedade em que pessoas se revelam
sem suas máscaras habituais, desarmadas de suas autodefesas.
A cada capítulo ou “vigília”, assoma-se à narrativa uma nova
faceta da vida alemã no crepúsculo do Sacro Império Romano-
-Germânico. O resultado é um dos textos mais irreverentes da-
quela época, que não poupa nada e ninguém.
Para darmos o exemplo do quadro que abre a narrativa, o nar-
rador-vigia observa um “livre-pensador” (um ateu) sendo velado
por sua família, enquanto três padres se vestem de demônios
para assustá-lo e, supostamente, ganhar sua alma para o catoli-
cismo. Da perspectiva daquele observador excêntrico, a Igreja
se reverte em uma instituição cuja função primordial é fabricar
demônios. Aqui reside a curiosa lucidez do louco Kreuzgang:
por viver a dimensão noturna, ele se torna mensageiro de um

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mundo invertido, onde tudo está impregnado pelo seu oposto.
Na Alemanha ali retratada o clero não traz tranquilidade espi-
ritual para seus fiéis, a administração imperial só desorganiza a
sociedade, os acadêmicos só falam bobagens e as artes não pas-
sam de ornamentos para uma elite intelectual entediada. Por
fim, trata-se de um lugar onde só os loucos como Kreuzgang
têm chance de soar minimamente lúcidos.
Gerald Gillespie, tradutor da edição recente da obra para o
inglês, arrisca elencar Kreuzgang ao rol das grandes persona-
gens filosóficas que, no século XIX, deflagraram a Modernidade
como uma crise — não como uma era de avanço civilizatório.
Cem anos antes do Zaratustra de Nietzsche e quarenta antes do
Sócrates de Kierkegaard, essa foi uma personagem que extra-
polou a nostalgia daquela época de resignação romântica para
apresentar uma interpretação do universo em que as possibilida-
des de integração entre seres humanos e o mundo exterior estão
para sempre comprometidas. Aqui residiria sua antecipação da
filosofia existencial que, em certa medida, ainda é um registro
determinante da cultura de nossos tempos: Vigílias Noturnas
são produto da crise de consciência de um louco castigado com
um intelecto brilhante e sem muita reverência pelas ideologias
da época. Nem por isso tal crise de consciência recai em um
niilismo autodestrutivo — durante a narrativa há descrições de-
talhadas de suicídios, e a morte está em toda a parte. Apesar
disso, Kreuzgang transforma sua vida em uma jornada de des-
vendamento do caráter último da realidade, por mais horrível
que ela se revele. Esse é o mecanismo genuíno do gênero gótico
como o entendemos hoje; um mecanismo criado quando gran-
des expoentes do gênero ainda estavam para ser escritos, diga-se
de passagem, e sequer havia um nome bem estabelecido para a
categoria. [Excerto da introdução de Felipe Vale da Silva]

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VIGÍLIAS NOTURNAS
PRIMEIRA VIGÍLIA
O LIVRE-PENSADOR MORIBUNDO.

OOU o sino da madrugada; envolvi-me em meu dis-

S farce de aventureiro, tomei minha lança e minha


trompa, saindo escuridão adentro — em seguida,
após me cingir com uma cruz contra os espíritos malignos, anun-
ciei as horas.
Era uma daquelas noites insólitas em que luz e trevas revezam
entre si, de forma frenética e inusitada. No céu, as nuvens se
deslocavam, impulsionadas pelo vento, como imagens colossais
fantásticas; a Lua aparecia e sumia em rápida alternação. Lá
embaixo, nas ruas, imperava um silêncio de morte; lá no alto,
na atmosfera, a tempestade se aninhava tal qual um espírito
invisível.
Eu me sentia bem e me alegrava com o som de meus passos
solitários e ecoantes, pois via-me, em meio à multidão de mui-
tas pessoas adormecidas, como o príncipe do conto de fadas na-
quela cidade encantada onde um poder maligno transformara
todos os seres vivos em pedra; sentia-me como o único sobrevi-
vente após uma praga generalizada ou um dilúvio.
Essa última comparação me fez estremecer — fiquei feliz em
avistar uma lamparina bruxuleante isolada que ainda queimava
sobre a cidade numa mansarda solitária.
Bem sabia eu quem regia lá em cima nas alturas; tratava-se
de um poeta infeliz que perambulava pela noite, pois só então
seus credores estariam dormindo, e somente as musas não se
imiscuíam a seu círculo.

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Não pude me refrear de fazer o seguinte discurso:
“Ó tu, que perambulas aí em cima, eu te entendo bem, pois
eu já fui teu igual! Mas renunciei a essa ocupação em troca de
um ofício honesto capaz de sustentar o homem e que, de modo
algum é de todo desprovido de poesia para quem sabe onde en-
contrá-la. Cruzo teu caminho tal qual o satírico Estentor1 e in-
terrompo os sonhos de imortalidade que regularmente sonhas aí
nas alturas, eu, aqui embaixo na Terra, rememorando o tempo
e a transitoriedade. Somos, os dois, vigilantes noturnos; é uma
pena que tuas vigílias noturnas não te rendam nada nesta época
de frio prosaísmo, ao passo que as minhas sempre rendem coisa
ou outra. Quando eu ainda poetava pela noite como tu, tive que
passar fome como tu passas, além de cantar para ouvidos sur-
dos; é o que ainda estou fazendo, embora esteja sendo pago para
tal. Ó amigo poeta, a quem quiser sobreviver à nossa época não
se permite escrever poesia! Mas se o trovar é para ti algo inato e
és incapaz de te conter, torna-te um vigilante noturno como eu
— esse é o único posto sólido onde serás pago e não morrerás
de fome. — Boa noite, irmão poeta.”
Levantei a cabeça e identifiquei sua sombra na parede. Ele
fez uma pose trágica, com uma mão aos cabelos, a outra segu-
rando a página da qual provavelmente recitava para si os versos
que o imortalizarão.
Toquei a trompa, declarei-lhe as horas em voz alta e segui
meu caminho.
Alto lá! Eis que ali um doente faz sua vigília — igualmente
imerso em sonhos, tal e qual poeta, embora em verdadeiros so-
nhos febris!
O homem foi um livre-pensador no passado, e assim perma-
neceu até seus momentos derradeiros, como Voltaire. Então eu
o vejo pelo vão da veneziana; ele parece pálido e calmo, olha
para o Nada para o qual espera rumar dentro de uma hora, a
fim de dormir seu sono sem sonhos para todo o sempre. O tom

1
Na Ilíada de Homero (canto 5, versos 784-791), Estentor é descrito como
um dos heróis que lutou contra Troia e dono de uma voz portentosa. [Todas
as notas são do tradutor, exceto quando indicadas.]

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rosáceo da vida abandonou-lhe o rosto, para contudo florescer
em seus arredores, nos rostos de seus três belos filhos. O mais
novo questiona, em sua ignorância infantil, seu rosto pálido e
rígido, pois ele não sorri mais como antes. Os outros dois o mi-
ram com seriedade, ainda incapazes de pensar sobre a morte
em suas vidas verdejantes.
A jovem esposa, em contrapartida, com os cabelos soltos e
o belo busto desabotoado, contempla o túmulo negro com de-
sespero, vez e outra enxugando o suor da testa enregelada do
moribundo de forma quase mecânica.
Ao lado dele, incandescente em sua ira, está o padre com seu
crucifixo erguido a converter o livre-pensador. Sua fala se inten-
sifica como uma maré, e ele ilustra o Além mediante imagens
ousadas — não como a bela aurora do novo dia, com suas arca-
das floridas e anjos, mas como o selvagem inferno de Bruegel,
com suas chamas e abismos, mais todo o terrível submundo de
Dante.
Inútil! O enfermo permanece mudo e rígido, observando com
uma tranquilidade terrível uma folha cair após a outra, sentindo
a crosta gélida da morte subir cada vez mais até seu coração.
O vento noturno soprou por meus cabelos e sacudiu as ve-
nezianas carcomidas, tal qual o espírito invisível da morte que
se aproxima. Estremeci — o enfermo de repente observou seu
entorno com atenção, como se por milagre estivesse recupe-
rado, sentindo em si uma vida renovada e superior. Esse de-
flagar breve e luminoso de uma chama já moribunda, prenún-
cio seguro da morte iminente, simultaneamente lança um lume
brilhante sobre o quadro noturno posto diante do moribundo;
reluziu rápido e efêmero adentro do universo lírico e primave-
ril de fé e poesia. Essa é a dupla iluminação na noite retratada
por Correggio, a qual funde o raio terrestre e o celestial num só
esplendor maravilhoso.2
O doente se agarrou firme e resolutamente a uma esperança
mais elevada, assim desencadeando uma circunstância grandi-
osa. Na alma do padre houve um trovejar furioso; então ele
2
Referência ao quadro La Notte, finalizado entre 1529 e 1530.

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torceu o rosto em feições afogueadas tal qual um desvairado,
banindo todo o Tártaro até a hora derradeira do moribundo.
Este apenas sorria e balançava a cabeça.
Naquele momento tive certeza de sua constância; pois so-
mente à criatura finita a ideia da total aniquilação é inviável,
ao passo que o espírito imortal não estremece diante dela. As-
sim, uma criatura livre pode sacrificar-se livremente a tal pen-
samento, como as mulheres indígenas que corajosamente se ati-
ram às chamas, devotadas à sua aniquilação.
Tendo aquilo em vista, uma loucura selvagem pareceu tomar
conta do padre. Fiel ao seu caráter, ele então discursou na pes-
soa do próprio Diabo, alguém que lhe era mais próximo — isso
porque só descrevê-lo devia parecer ineficiente demais. Nesse
papel ele se expressou como um mestre, genuinamente diabó-
lico no mais ousado dos estilos, alheio aos trejeitos débeis do
Diabo moderno.
Para o enfermo aquilo se tornava insuportável. Ele se virou
com pesar, contemplando as três rosas primaveris que flores-
ciam ao redor de seu leito. Então todo o amor ardente que trazia
no coração reacendeu-se pela última vez; sobre o rosto pálido
percorreu-lhe um tom roseado, como uma lembrança de seu
vigor. Ele pediu para trazerem os meninos e beijou-os com di-
ficuldade, então levou a cabeça pesada ao busto volumoso da
mulher, pronunciando um suave “Ah!” que mais parecia ser de
luxúria que de dor, extinguindo-se afetuosamente nos braços do
amor.
O padre, fiel ao seu papel de Diabo, esbravejava, levando em
consideração a observação de que a audição de um moribundo
continua suscetível a estímulos por algum tempo — ele prome-
tia-lhe firme e sucintamente, em seu próprio nome, que o Diabo
não só destruiria sua alma, mas também lhe requisitaria o corpo.
Com isso, ele irrompeu rua afora. Eu fiquei deveras confuso;
em minha confusão, de fato achei se tratar do próprio Diabo, e
quando ele estava prestes a passar por mim, estendi minha lança
ao seu peito. “Pros diabos!”, ele disse bufando. Nisso, recompus-
-me e disse: “Perdoai-me, reverendo, imaginei que estivésseis

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tomado por uma espécie de possessão, e por isso estiquei a lança
até vosso coração, como num voto de ‘Deus esteja convosco!’
Desta vez dai-me algum crédito!”
Ele seguiu seu caminho.
Ai! E ali no quarto a cena havia se tornado ainda mais dócil. A
bela mulher segurava suavemente seu pálido amado nos braços,
como quem segura uma pessoa adormecida; em sua adorável
inexperiência, ela ainda não suspeitava da morte, crendo que o
sono o fortaleceria para uma vida renovada — eis uma crença
adorável, que num sentido mais elevado não era de todo enga-
nosa. Seus filhos estavam ajoelhados, sérios, ao lado da cama, e
apenas o mais novo tentou acordar o pai. A mãe, por sua vez,
pestanejando-lhe os olhos silenciosamente, colocou a mão em
sua cabeça cacheada.
A cena era demasiado bela; afastei-me para não ver o mo-
mento em que a ilusão se desfaria.
Com a voz abafada, cantei uma canção fúnebre debaixo da
janela, a fim de abafar o alarme do monge a tons suaves no ou-
vido, para aqueles ouvidos que ainda eram capazes de escutar.
A música possui relação íntima com os moribundos; ela consti-
tui o primeiro rumor doce do Além, e a musa da canção é a irmã
mística que aponta o caminho para o céu. Assim adormeceu Ja-
kob Böhme para todo sempre a ouvir aquela melodia distante
que ninguém, exceto os moribundos, são capazes de ouvir.3

FIM DA AMOSTRA DE VÍGILIAS NOTURNAS, DE AUGUST


KLINGEMANN, PREFACIADO, ANOTADO E TRADUZIDO
DIRETAMENTE DO ALEMÃO POR FELIPE VALE DA SILVA

3
Jakob Böhme (1575-1624), místico medieval e filósofo neoplatonista am-
plamente lido em círculos esotéricos até hoje. Na geração de Klingemann foi
reabilitado como importante propositor do panteísmo, ou de uma divindade
despersonalizada, diluída na natureza — o autor voltará a citá-lo como uma
das leituras formativas de seu protagonista Kreuzgang.

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