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FICHA CATALOGRAFICA (Preparada pelo Centra dle Catalogacao-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Lévi-Strauss, Clavde, 1908- Lotte As Bstruturas elementares do parentesco; te dugg de Mariano Ferreira. Petrbpolis, Vozes, 1982. ‘5340p. ilust. 23cm. Do original em francés: Les structures élé- rmentaires de la parenté. Bibliografa 1. Parentesco, 1, Titulo. I. Série cpp- 301.442 16-0089 CU ~ 301.185 CAPITULO I Natureza e Cultura De todos os prineipios propostos pelos precursores da sociologia nenhum sem duvida foi repudiado com tanta firmeza quanto o que diz respelto |B distingdo entre estado de natureza e estado de sociedade. Nao se pode, com efeito, fazer referéncia sem contradicio a uma fase da evolucio da humanidade durante a qual esta, na auséncla de toda organizagio soctal, rem por isso tivesse deixado de desenvolver formas de atividade que sio parte integrante da cultura. Mas a distinglo proposta pode admitir inter- retagies mais vélidas. Os etndlogos da escola de Elliot Smith e de Perry retomaramna para editicar uma teoria discutivel mas que, fora do detalhe arbitrério do fesquema histérico, deixa aparecer claramente a profunda oposiglo entre dois niveis da cultura humana ¢ o cardter revolucionério da transforma- ‘edo neolitica, © Homem de Neanderthal, com seu provavel conhecimento da linguagem, suas Industrias litieas e rites funerérios, nilo pode ser. con siderado como vivendo no estado de natureza, Seu nivel cultural o opée, ho entanto, a seus sucessores neoliticos com um rigor compardvel — embora em sentido diferente — ao que os autores do século XVII ou do século XVIII atribuiam & sua propria disting’o. Mas, sobretudo, co- ‘megamos a compreender que a distingio entre estado de natureza ¢ es- tado de sociedade', na falta de significagao histérica aceltdvel, apresen- ta um valor l6gico que justifica plenamente sua utilizagSo pela socio- logia moderna, como instrumento de método. O homem é um ser biol- ‘gico ao mesmo tempo que um individuo social. Entre as respostas que dé as excitagées exteriores ou interiores, algumas dependem inteiramente de sua natureza, outras de sua condigio, Por isso nfo né dificuldade alguma em encontrar a origem respectiva do reflex pupilar e da posi- glo tomada pela mo do cavaleiro ao simples contato das rédeas. Mas om sempre a distinglo é tio fécll assim. Freqllentemente o estimulo {isico-biol6gico ¢ 0 estimulo psicossocial despertam reagbes do mesmo tipo, sendo possivel perguntar, como jé fazia Locke, se 0 medo da crianca na escuridio explicase como manifestagio de sua natureza animal ou co- mo resultado das historias contadas pela ama." Mais ainda, na maioria dos casos, as causas nfo sko realmente distintas e a resposta do sujeito constitu: verdadeira integragéo das fontes bioldgicas © das fontes socisis 1 Dslanoe, hole proteivetmente estado de. naturenn ¢ estado de, cite 5 Parse “om “edi, “gue nado. 'd0, ths nh, apace ani. do ion mes” evo. “W. valentine, "ne Ienate Bans ot Post™ Journal" of Genebc Synology, vol 1, 38. a1 de seu comportamento, Assim, € 0 que se verifica na atitude da mie ‘com relacio 20 filho ou nas emogdes complexas do espectador de uma parada militar. # que a cultura nfo pode ser considerada nem simples: mente justaposta nem simplesmente superposta & vida. Em certo sentido substituise & vida, e em outro sentido utilizaa e a transforma para re ear uma sintese de nova ordem, ‘Se 6 relativamente fécil estabelecer a disting#o de principio, a dk Aouldade comega quando se quer realizar a andliso. Esta dificuldade é dupla, de um lado podendo tentarse definir, para cada atitude, uma causa’ de ordem biotdgica ou social, e de outro lado, procurando por que ‘mecanismo atitudes de origem cultural podem enxertarse em compor tamentos que sto de natureza bioldgica, e conseguir integrélos a si. Ne- gar ou subestimar a oposi¢ao 6 privar'se de toda compreensio dos fe- gmenos socials, ¢ a0 Ihe darmos seu inteiro alcance metodoligico cor remos 0 risco de converter em mistério insoltivel o problema da passagem entre as duas orden. Onde acaba a natureza? Onde comeca a cultura? # possivel conceber varios meios de responder a esta dupla questéo. Mas todos mostraram-se até agora singularmente decepcionantes. ‘© metodo mais simples consistiria em isolar uma crianca recém-nas- cida e obsorvar suas reagdes a diferentes excitagdes durante as primeiras horas ou os primeiros dias depois do nascimento. Podersea entio su: por que as respostas fomnecidas nessas condigdes sio de origem psi- cobioldgicas, e no dependem de sinteses culturais ulteriores. A psicolo- fia contemporanea ‘obteve por este método resultados cujo interesse nto deve levar a esquecer seu carster fragmentério e limitado. Em primeiro lugar, as tinicas observagdes vilidas devem ser precoces, porque podem surgit condiclonamentos ao cabo de poucas semanas, talvez mesmo de dias. Assim, somente tipos de reagio muito elementares, como certas expresses emocionais, podem na prética ser estudados. Por outro lado, as experiéncias negativas apresentam sempre carter equivoco, Porque per- manece sempre aberta a questi de saber se a reagdo estudada esté fausente por causa de sua origem cultural ou porque os mecanismos.fi- siolégieos que condicionam seu aparecimento nfio se acham ainda mon tados, devido a precocidade da observagio. O fato de uma criancinha do andar néo poderia levar & conclusio da necessidade da aprendizagem, Porque se sabe, ao contrério, que a erlanga anda espontaneamente desde ‘que organicamente for capaz do fazéo." Ume situacio andloga pode spre. sentarse em outros terzenos. O unico meio de eliminar estas incertezas serla prolongar a observacio além de alguns meses, ou mesmo de al uns anos. Mas nesse caso ficamos As voltas com dificuldades insoltiveis, Porque 0 meio que satisfizesse as condigdes rigorosas de isolamento ext ido pela experiéncia nfio 6 menos artificial do que o mefo cultural 20 qual se protende substitutlo. Por exomplo, os cuidados da mie durante 9s primeiros anos da vida humana constituem condi¢do natural do de- envolvimento do individuo, © experimentador achase portanto encerra- io em um circulo vicioso, E verdade que 0 acaso parece ter consoguido as vezes aquilo que © artificio € incapaz de fazer. A imaginagao dos homens do século XVIIT 3. MB. MoGraw, ‘The Neuromuscular Maturation of the Humen Infant, Now oeatie inde : . 42 fol fortemente abalada pelo caso dessas “criangas selvagens”, perdidas no campo desde seus primeiros anos, as quais, por um excepcional con- curso de probabilidades, tiveram a possibilidade do subsistir e desenvol- verse fora de toda influéncia do meio social. Mas, conforme se nota ‘muito claramente pelos antigos relatos, a maioria dessas criancas foram ‘anormals congénites, sendo preciso procurar na imbecilidade de que pa- recem, quase unanimemente, ter dado prova, a catisa inicial de seu aban- dono, © nio, como as veres se pretenderia, ter sido 0 resultado." ‘Observagdes recentes confirmam esta manelra de ver. Os pretensos “meninos-lobos” encontrados na fndia nunca chegaram a aicancar 0 nivel normal. Um deles — Sanichar — jamais pode falar, mesmo adulto, Kellog relata que, de duas criangas deseobertas juntas, hé cerca de vinte anos, (© mais mogo permaneceu incapaz de falar e o' mais velho viveu até os sels anos, mas com o nivel mental de uma crianga de dois anos ¢ meio © um vocabulério de com pslavras apenas.‘ Um relatério de 1999. con- sidera como idiota congénito uma “crianga-babuino” da Africa do Sul, descoberta em 1903 com a idade provaivel de doze a quatorze anos. Na matoria das vezos, alids, as circunstincias da descoberta sio duvidosas. ‘Além disso, estes exemplos devem ser afastados por uma razio de prinefpio, que nos coloca imedistamente no coraclo dos problemas cuja iscussio ¢ 0 objeto desta Introducéo. Desde 1811 Blumenbach, em um estudo dedieado a uma dessas eriangas, 0 Seloagem Peter, observava que nada se poderia esperar de fendmenos desta ordem. Porque, dizia ele com profundidade, se o homem é um animal doméstico é 0 tinico que se domesticou @ s proprio.’ Assim, 6 possivel esperar ver um animal doméstico, por exemplo, um gato, um cachorro ou uma ave de galinheiro, quando se acha perdido ou isclado, voltar ao comportamento natural que era o da espécie antes da intervengio exterior da domesticagéo. Mas nada de semethante pode se produzir com o homem, porque no caso deste liltimo nfo existe comportamento natural da espécie 20 qual 0 individuo Isolado possa voltar mediante regressio. Conforme diaia Voltaire, mais ou ‘menos nestes termos, uma abelha extraviada longe de sua colmeia © incapaz de encontré-la é uma abelha perdida, mas nem por isso se tor- ‘nou uma abelha mais selvagem. As “eriangas’selvagens", quer sejam pro: duto do acaso quer da experimentagio, podem ser monstruosidades cul- turais, mas em nenhum caso testemunhas fiéis de um estado anterior. E impossivel, portanto, esperar no homem a ilustracio de tipos de comportamento de caréter précultural. Seré possivel entéo tentar um caminho inverso e procurar atingir, nos niveis superiores da vida animal, atitudes e manifestagdes nas quais se possam reconhecer 0 esbogo, os sinais precursores da cultura? Na aparéncia, 6 a ‘oposicéo entre comporta- 42M. G. Tard, is et memories sur fe. saurage de Aveyron, ete, Par vis Todi. X fon 'rougevach, Casper Hauser, ‘Tred. ing Lenses 135, 2 els SS eth ysgetan, tie, Wolboy of Yeti Nove loroue in, "B” soars, Wolthitdren™ of" tndla. Arieriogn Journal Of Pryehotogy,” v0 N'Rilog, More’ about tne “wolfantdren of tedie Ted, “vel. >. se, Airis Nols, So the silechilren of” indi 1d "wah 48" 3008” panne {ier tamu sobee este poltmice, J.-A, 1 Sing eR. M."Zinge, Wollahlidren aid He! Men wove Tongue FBN"E"K. Geb, worpenud ana Fuman ‘cad, Kowa fosae oe tor SA Sa Ma ott et al Sa ical’ Treatises of 3. F. ‘Biumendach, Londres 1085," p. 330° 43 ‘mento humano e 0 comportamento animal que fornece a mais notavel flustragdo da antinomla entre a cultura e a natureza. A passagem — se existe — nfo poderla pols ser procurada na etapa das supostas socie- dades animais, tals como sfio encontradas entre alguns insetos. Porque fem nenhtum lugar melhor que nesses exemplos encontram-se reunidos os atributos, impossiveis de ignorar, da natureza, a saber, 0 instinto, o equipamento anatdmico, unico que pode permitir 0 exercicio do instinto, © a transmissio hereditaria das condutas essenciais & sobrevivéncia do Individuo e da espécie. N4o ha nessas estruturas coletivas nenhum lugar ‘mesmo para um esboco do que se pudesse chamar 0 modelo cultural Universal, Isto é, linguagem, instrumentos, instituigGes socials e sistema de valores estéticos, morais ou religiosos. & & outra extremidade da es- cala animal que devemos nos dirigir, se quisermos descobrir 0 esboro esses comportamentos humanos. Seré com relagho aos mamiferos st: eriores, mais especialmente os macacos antropdides. Ora, as pesquisas realizadas hé mats de trinta anos com os grandes macacos slio particularmente desencorajantes a oste respeito. Nao que os componentes fundamentals do modelo cultural universal estejam Th gorosamente ausentes, pois é possivel, & custa de infinitos culdados, con- Guzir certos sujeltos a articularem ‘alguns monossilabos ou dissilabos, fags quals aliés nfo ligam nunca qualquer sentido. Dentro de certos mites, 0 chimpanzé pode utilizar instrumentos elementares e eventual mente improvisi-ios.* Relagdes temporérias de solidariedade ou de su: bordinaglo podem sparecer e desfazerse no interior de um determinado grupo. Finalmente, & possivel que alguém se divirta em reconhecer em algunas atitudes singulares o esboco de formas desinteressadas de ativi- dade ou de contemplagio. Um fato notdvel que so sobretudo os senti- mentos que associamos de preferéncia & pgrte mais nobre de nossa na tureza, cuja expressio parece poder ser mais facilmente identificada nos antropdides, como o terror religioso e a ambigilidade do sagrado.” Mas se todos estes fendmenos advogam favoravelmonte por sua presenga, sio ainda mais elogiientes — e em sentido completamente diferente — por sua pobreza, Ficamos menos impressionados por seu esboco elementar do q pelo fato — confirmado por todos os especialistas — da impos. sibilide, a0 que parece radical, de levar esses esbocos além de sua expresso mais primitiva, Assim, 0 fosso que se poderia esperar preencher Por mil observagdes engenhosas na realidade 6 apenas desiocado, para parecer sinda mais intransponivel. Quando se demonstrou que nenhum ‘obstéculo anatomico impede o macaco de articular os sons da linguagom, © mesmo conjuntos silabicos, sé podemos nos sentir ainda mais admi- rados pela trremedidvel auséncia da linguagem e pela total incapacida de de airibuir aos sons emitidos ou ouvidos 0 carater de sinals, A mes- ma verificagio impdese nos outros terrenos. Explica a conclustio pes. simista de um atento observador que se resigna, apds anos de estudo © de experimentagio, a ver no chimpanzé “um ser empedernido no es- treito ciroulo de ‘suas imperfeigées inatas, um ser ‘regressivo’ quando sm Pattee te eet teal oo Ti. feanier, he ‘Mentality’ of Apes, apthdice '& “segunda eicéo. 44, comparado ao homem, um ser que nfio quer nem pode enveredar pelo ‘caminho do progresso”. ‘Porém, ainda mais do que pelos insucessos diante de tentativas bem efinidas, ‘chegamos a uma oonvicedo pela verificagio de ordem mais eral, que nos leva a penetrar mais profundamente no amago do pro- blema. Queremos dizer que 6 impossivel tirar conclustes gerais da ex. pperiéncls. A vida social dos macacos nfio se presta & formmlago de ne- Thuma norma, Em presenca do macho ou da fémea, do animal vivo ou marto, do jovem e do velho, do parente ou do estranho, 0 mucaco comporta-se com surpreendente versatilidade. Nao somente 0 comporta- mento do mesmo sujeito nao € constante, mas nao se pode perceber nenhuma regularidade no comportamento coletivo. Tanto no dominio da vida sexual quanto no que se refere as outras formas de atividade, 0 estimulante, externo ou interno, ¢ os ajustamentos aproximativos por ‘in- fuéncia dos erros e acertos, perecem fornecer todas 0s elementos ne- cessérios & solugio dos problemas de interpretagéo. Estas incertezas ‘aparecem no estudo das relacdes hierérquicas no interior de um mesmo grupo de vertebrados, permitindo contudo estabelecer uma ordem de Subordinaglo dos animais uns em relagio aos outros. Esta ordem € no- tavelmente estével, porque 0 mesmo animal conserva & posigio dominan- te durante perfodos de ordem de um ano. E no entanto a sistematiza- gio torna.se impossivel devido a freqiientes irregularidades. Uma gall- nnha subordinada a duas congéneres que ocupam um lugar mediocre no ‘quadro hierérquico taca no entanto o animal que possui a categoria mals clevada, Ovservam-se relagées trisngulares, nas quais A domina B, B domina Ce C domina A, a0 passo que todos'os trés dominam 0 resto do grupo." ‘© mesmo acontece no que diz respeito as relagies © gostos indivi uais dos macacos antropéides, entre os quais as irregularidades so ain- da mais acentuadas. “Os primatas apresentam muito maior diversidade fem suas preferénclas alimentares do que os ratos, 05 pombos ¢ as, ga linhas." No dominio da vida sexual, também, encontramos neles “um quadro.que_corresponde quase intelramente_a tamento sexual do homem... tanto nas modalidades normais. quaito nas marifestaqdes.miais notvels hgbitualmente-chamadas~"enormais", porque se choca com as convengées sociais”."* Por esta individualizagio dos comportamentos, 0 orangotando, o gorila eo chimpanzé assemelhamse singularmente ao ho- mem, *- Malinowski) esté portanto enganado quando diz que todos os fatores due definem o comportamento sexual dos machos antropéides 10,N, Koh, Ta Conduite, du petit du chimpansé et de Yenfant de Yhomme, dowrmal ae" Pevcncgie "clas iat. Sui oe uae artigos da, rhamno AHL’ Heshoranes cur Vntaligance du eh pa, i teeinode ct “eno d'apees, sede Bee Tyee 3, teas Les Apttae scricn adapaiver cu ‘og iileur 70, vol " iL, WC, Allee, Social Dominance, and Subordination among Vertebrates, em Levels of Zaipratia! IR hla ahd Social Sysiems, olopca Shmpona, Ye” Vint “Eame TE AE Magn Comgunng Datvor Pera, VE Food Pretec ot einai, Jeune of Comraie apse, fl, a BS, Seen se" Fete hie fis Sea Bir. Quarter Revie Tee Sorkin A Eroernt of Antbeopold Research, American Jourat of Poveho. teat, ere! rie ewes Boa goer oo ‘himparade: Comparative Prychotory Monovraphs, vol TS, m3) 108, we 45 sio comuns a todos os membros da espécle “funcionando com uma tal uniformidade que, para cada espécte animal, basta um grupo de dados fe um $6... a8 variagSes sfo tho pequenas'e tho insignificantes que 0 zodlogo esté plenamente autorizado a ignoré-las”."" ‘Qual 6, a0 contrério, a realidade? A poliandria parece reinar entre ‘0s macacos gritadores da regio do Panamé, embora a proporglo dos machos com relagio as fémeas seja de 28 a 72. De fato, observam-se relagSes de promisculdade entre uma fémea no cio e varios machos, mas sem se poder definir preferéncias, uma ordem de prioridade ou ligagdes duraveis.'" Os gibdes das florestas do Sifo viveriam em familias ‘mondgamas relativamente estaveis. Entretanto, as relacdes sexuais ocor- rem indiferentemente entre membros do mesmo grupo familiar ou com lum individuo pertencente @ outro grupo, confirmando assim — dirseia = a crenga indigena de que os gib6es so a reencarnacio dos amantes Infelizes.” Monogamia e poligamia existem lado a lado entre os rhesus", fe 05 bandos de chimpanzés selvagens observados na Africa variam en ‘tre quatro e quatorze individuos, deixando aberta a questio de seu re gime matrimonial.” Tudo parece passarse como se os grandes maca- cos, j4 capazes do se libertarem de um comportamento especifico, no pudessem chegar a estabelecer uma norma num plano novo. O compor- famento instintivo perde a nitides @ a precisio que encontramos na maioria dos mamiferos, mas a diferenga € puramente negativa e 0 do- minlo abandonado pela natureza permanece sendo um territério ndo- ‘ocupado. Esta ausénola de regra parece oferecer o critério mais seguro que permita distinguir um proceso natural de um processo cultural. Nada ‘ha de mais sugestivo a este respeito do que a oposigio entre a atitude da crianga, mesmo muito jovem, para quem todos os problemas sio regulados por nitidas distinedes, mais nitidas © 2s vezes imperiosas do que entre os adultos, e as relagées entre os membros de um grupo si miesco, inteiramente abandonadas 20 acaso e dos encontros, nas quais © comportamento de um sujeito nada informa sobre o de seu congénere, nas quais a conduta do mesmo individuo hoje nio garante em nada seu comportamento no dia seguinte. que, com efeito, hd um circulo vicioso ao se procurar na natureza a origem das regras institucionais que supdern — mais ainda, que sto j4 — a cultura, © cuja instauragio no ‘interior de um grupo dificiimente pode ser concebida sem a interven¢so dda linguagem. A constincia © a regularidade existe, a bem dizer, tanto na natureza quanto na cultura, Mas na primeira aparecem precisamente no dominio em que na segunda se manifestam mais fracamente, © vice- versa. Kin um caso, 6 0 dominio da heranca biolégiea, em outro, 0 da tradiggo externa. Nao se poderia pedir a uma iluséria continuidade en- tre as duas ordens que explicasse os pontos em que se optem. 16, B., Malinowski, Sex and Repression ix Sanage Scclely, Nova Yorque-Londres wat, 1 ig. "R. carpenter. A Field study of the Behavior and Social Relations | of Howling Monkeys.” Comparative Payehology, Monographs, vols. 201, 1go109, p. 18 eG, Me Carpenter, A” eiela Stccy inv Siam. Of toe" Behavior atid Social Relations Sit, Qo" stots “ar. “Comparative “Peycolony onograph, vl. 16, 0-8 Soh ig, caer, oma pate ote, ate, Rene Mines le mh GOR RAE tse. urtie tc Mo ‘nographs, vol, 8, n.'1, 1061, sér. 35, p. 73. - = 46 Por conseguinte, nenhuma andlise real permite aprender o ponto de passagem entre os fatos da natures e os fatos da cultura, além do mecanismo da articulaggo deles. Mas a discussio precedente no nos ofereceu apenas este resultado negativo. Forneceu, com a presenca ott 2 ustnela da regra nos comportamentos nfo sujeitos as determinagdes instintivas, 0 critério mais valido das atitudes sociais. Em toda parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da cultura. Simetricamente, 6 f4cll reconhecer no universal o critério da nnatureza. Porque aquilo que 6 constante em todos os homens escapa necessariamente ao dominio dos costumes, das técnicas ¢ das inslituigoes pelas quais seus grupos se diferenciam e se opsem. Na falta de andlise real, 05 dois critérios, o da norma e 0 da universalidade, oferecem 0 rineipio de uma analise ideal, que pode permitir — a0 menos em certos casos e em certos limites — isolar os elementos naturais dos elementos culturais que intervem nas sinteses de ordem mais complexa. Estabele- fgamos, pois, que tudo quanto é universal no homem depende da ordem Ga natureza @ se caracteriza pela espontaneidade, e que tudo quanto esta ligado a uma norma pertence & cultura e apresenta os atributos do relative e do particular. Encontramo-nos assim em face de um fato, ou antes de um conjunto de fatos, que nfo esté longe, & luz das definigdes precedentes, de aparecer como um escindalo, a saber, este conjunto com- plexo de crencas, costumes, ostipulagies e ‘instituigdes que designamos sumariamente pelo nome de proibigdo do incesto. Porque a protbicio do incesto apresenta, sem o menor equivoco € indissoluvelmente reunidos, fs dois caracteres nos quais reconhooemos os atributos contraditérios de duas ordens exclusivas, isto é, constituem uma regra, mas uma re- gra que, unica entre todas as regras sociais, possui ao’ mesmo tempo cardter de universalidade."* Nio hd praticamente necessidade de demons trar que a proibigio do inoesto constitui uma regra. Bastard lembrar que a proibicio do casamento entre parentes préxitnos pode ter um campo de aplicagio variivel, de acordo com 0 modo como cada grupo Gefine 0 que entende por parente préximo. Mas esta proibicio, sancio: hada por penalidades sem diivida varldvels, podendo ir da imediata exe- cugdo dos culpados até a reprovacdo difusa, © as vezes somente até a zombarla, esté sempre presente em qualquer grupo social. Com efeito, niio se poderia invocar neste assunto as famosas exce- g0es com que a sociologia tradicional se satisfaz freqtientemente, ao mos- tra como so poucas. Porque toda socledade faz excegio & ‘proibigo do incesto quando s consideramos do ponto de vista de outra sociedade, cya Tegra € mais rigorosa que a sua. Tremese ao pensar no numero de excegdes que um indio paviotso doveria registrar a este respelto. Quando nos referimos as trés excecdes cldssicas, 0 Egito, o Peru, 0 Havaf, 2 que alids 6 preciso acrescentar algumas Outras (Azande, Madagéscer, Birmania, etc.), no se deve perder de vista que estes sistemas so exce (goes relativamente ao nosso proprio, na medida em que a proibicio Abrange af um dominio mais restrito do que entre nds. Mas a nolo 79. Se petinamos » des etnlogos contort pare inca, wna, ini se BapaneT atest 2 prosarel. gt ‘nove este prseeto d ve fie, lee jaa esigharafy ‘ormalmente como’ a, nies. snattoioas universal" Ct. A obey neice noo te atrapa, “America: Journal of Socoioy, a aT de excegio 6 inteiramente relativa, e sua extensio seria muito diferente para um australiano, um tonga ou um esquim6. ‘A questio nfo consiste portanto em saber se existem grupos que permitem casamentos que sio excluidos em outros, mas, em vez disso, fem saber se hé grupos nos quais nenhum tipo de casamento 6 profbido. ‘A resposta deve ser entio absolutamente negativa, e por dois motivos. Primeiramente, porque 0 casamento nunca 6 autorizado entre todos os parentes préximos, mas somente entre algumas categorias (meisirm& com excluséo da irmi, irm& com exclusio da mie, ete). Em segundo luger, porque estas uniGes consangtiineas ou tém cardter temporério e ritual ‘ou cariter oficial e permanente, mas neste ultimo caso slo. privilégio de uma categoria social multo restrita. Assim 6 que em Madagiscar a mie, a rma e as vezes também a prima sfo cOnjuges proibidos para 88 pessoas comuns, a0 passo que para os grandes chefes € os rels so- mente a mie — mas assim mesmo a mile — 6 fady, “protbida”. Mas hé {iio poucas “exeegdes” & protbigio do incesto que esta ¢ objeto de ex trema susceptibilidade por parte da consciéncia indigena. Quando um matriménio 6 estéril, postula-se uma relagio incestuosa embora ignorada, @ as cerimOnias expiatérias prescritas sic. automaticamente celebradss. " (© caso do Egito antigo ¢ mais perturbador, porque descobertas re- centes* sugerem que 0s casamentos consangtlineos — particularmente entre irma e irmio — representaram talvez um costume espalhado entre (0s pequenos funciondrios e artesfos, e no limitado, conforme se acre- ditava outrora”, & casta reinante e as mais tardias dinastias. Mas em matéria de incesto mio poderia haver excego absoluta. Nosso’ eminente colega Ralph Linton observounos um dia que na geneslogia de uma fe- milia nobre de Samoa, estudada por ele, em oito casamentos consecuti- vos entre irmio e irm& somente so refer a uma irmi mais moga, e que a opinigo indigena tinha condenado como imoral. O casamento entre o i mio e a irm& mais velha aparece pois como uma concessBo 20 direlto de primogenitura, e nfo exclui a proibicio do incesto, porque, além da mie e da filha, a irm& mais moca continua sendo um cOnjuge proibido, ou pelo menos desaprovado, Ora, um dos raros textos que possuimos sobre a organizagao social do antigo Rgito indica uma interpretacgo and- Joga. Tratase do papiro de Boulag n. 5, que relata a historia da filha de um rel que quer casarse com seu irmio mais velho. A mie pon- dora: “Se nfo tiver filhos depois desses dois, niio é obrigatério cass Jos um com outro?" Também aqui parece tratarse de uma formula de proibicio que autoriza 0 casamento com a irm& mais velha, mas repro- Yea com a mais moca. Veremos adiante que os antigos textos japoneses descrevern 0 incesto como unifio com a irm& mais moga, sendo excluida @ mais velha, alargando assim o campo de nossa interprotagio. Mesmo Hhesses casos, que poderiamos ser tentados a considerar como limites, a 21. HM, Dubols, 8.1, Monographie des Batsiléo, Travaus et Mémoires de U'Intitut enthialogie, Paci, vol bt. 108, S262 BMA: Marry, "Marrlgh in. Aiclnt Eerpt em, Congres fnteratinat des Sconces Bae 1 sur feiuion hisighe ef phovophigte des idee, mo- iblotingae "de Pcie Matas dee Hates tudes fa igm ln ae WU? winietsperie, Sock! Lie tt Lonazes. 10s, p.”tss, es BEG. Wspero, “Contes populaires’ de Egypte anclonne, Paris 389, p. 31 48 la regra da universalidade no 6 menos aparente do que o caréter norms: tivo da instituigéo, Eis aqui, pois, um fendmeno que apresenta simultaneamente 0 ca- réter distintlvo dos fatos da natureza eo carter distintive — teorica mente contraditério do precedente — dos fatos da cultura. A prolbigio do incesto possui a0 mesmo tempo a universalidade das tendéncias © dos instintos e 0 cariter coercitivo das leis e das instituig6es. De onde provém entio? Qual ¢ seu lugar e significacio? Ultrapassando inevitavel- mente os limites sempre histdricos. e geogréficos da cultura, coextensiva no tempo e no espago com a espécie bioldgica, mas reforcando, pela proibigdo social, a acdo espontinea das forcas naturais a que se’ opbe por seus caracteres prdprios, embora identificandose a elas quanto a0 campo de aplicagio, a proibigio do incesto aparece diante da reflexto socioldgica como um Uerrivel mistério. Poucas prescricbes sociais preser- varam, com igual extensio, em nossa sociedade a auréola de terror res: peitoso que se liga As coisas sagradas. De maneira significativa, ¢ que teromos necessidade de comentar e explicar mais adiante, o incesto, em forma prépria e na forma metaférica de abuso de menor (conforme diz © sentimento popular, “da qual se poderia ser o pai”), vem a encontrar-se mesmo, em certos paises, com sua antitese, as relagbes sexuals interra ciais, que no entanto so uma forma extrema da exogamia, como os dois mais poderosos estimulantes do horror e da vinganca coletivas. Mas este ambiente de temor mégico no define somente o'clima no qual, ainda mesmo na sociedade modems, a instituigio evolul. Este ambiente envalve também, no plano tedrico, debates aos quais, desde as origens, f sociologia se dedieou com uma tenacidade ambigua: "A famosa ques: tao da proibiclo do incesto, declara Lévy-Bruhl, esta vezata quaestio de que 0s etnélogos ¢ os socidlogos tanto procuraram a solucio, nfo admite nenhuma, Nao ha oportunidade em colocéla, Nas sociedades das quais acabamos de falar é inutil perguntar por que razao o incesto ¢ prolbido. Esta proibicdo nfo existe...; ninguém pensa em profbila. £ alguma col- ssa que nfio acontece. Ou, se por impossivel isso acontecesse, seria alguma coisa inaudita, um monstrum, uma transgressio que espalhia 0 horror & © pavor. As sociedades primitivas conhecem a proibigéo da autofagia ou do fratricidio? Hssas sociedades nio tém nem mais nem menos razio para proibir o incesto”." No nos espantaremos em encontrar tanto constrangimento em um autor que nio hesitou contudo diante das mais audaclosas hipsteses, se considerarmos que os sociélogos sio quase undnimes em manifestar, di ante deste problema, a mesma repugnincia e a mesma timider. 25. LéwpBruhl, Le Surmaturel et la Nature dons ta. mental te, Pais vest pe att . a cee 49

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