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Colegio Espo Critica Conseho edinril Aledo Besi Antonio Candido Augusto Masi Davi Arsigusi J, lors Sussekind Gilda de Mello e Sous Roberto Schware Alfredo Bosi CEU, INFERNO Ensaios de critica literdria ¢ ideoldgica fA) tivraria TA) Duas Cidaces: editoralll34 ‘Oswald de Andrade (1890-1954), em desenho de Lasar Segall realizado pasa ilustrar os poemas de Gintieo dos cinscos para flute e vioiae, publicado em 1942. Moderno e modernista na literatura brasileira A emergéncia do novo é sempre um ponto nevrilgico para a histéria da literatura. Obras como Paulicéia desvaira- da de Mario de Andrade ¢ Memdrias sentimentais de Joao Miramar de Oswald de Andrade, ja formalmente moder- nistas, poderiam ter sido escritas sem a abertura dos seus autores a0 que se estava fazendo na Franca ou, via Franga, na Iedlia fuurista, na Alemanha expressionista, na Russia revolucionéria e cubofucurista? Parece que nio. ‘Avvirada do primeiro pés-guerra foi internacional e fez brechas em todos os sistemas culeurais que mostravam indi- cios de saruragao. No Brasil, a area em que 0 conflito pro- vincianoleitadino se fazia sentir com mais agudeza era Sto Paulo, Aqui a rupcura foi possivel, porque s6 aqui o pro- cesso social e econémico gerava uma sede de contempo- rancidade junto a qual o resto da Naso parecia ainda uma vasta provincia de Parnaso, Oswald viu bem, na introdu- sao de Serafim Pante Grande: “Q movimento modernista, culminado no sa- rampio antropofégico, parecia indicar um fendmeno avangado, Sio Paulo possufa um poderoso parque in- dustrial. Quem sabe sea alta do café no ia colocar a 3 208 Céu, inferno literatura nova-rica da semicolénia ao lado dos custo- 508 surtealismos imperialistas?” E mais adiante: “A valorizagao do café foi uma opera- so imperialista. A poesia Pau-Brasil também. Isto tinha que ruiz com as cornetas da crise”, A parte 0 tom despachado e a visada redutora das fta- ses do grande satirico de si mesmo que foi Oswald, hé bas- tante fogo atrés dessa fumaca. Os jovens de 22, que tive- ram a seu favor a simpatia do governo do Estado, as pigi- nas do Correio Paulistano e alguns salées da alta burguesia, encarnavam, em termos de psicologia social, o desejo do novo ¢ do refinado, ainda que chocantemente novo e refi- nado, sentimento menos acesstvel a grupos saidos de ou- tras dreas, naquela altura do processo Hé uma condigéo paulistado Modernismo, que mar- catia alguns escritores de indole mais conservadora (Gui- Ihetme de Almeida e um certo Cassiano Ricardo) ¢ conse- guiria sublimar-se na arte dos radicais: Mario e Oswald. Quanto a Anténio de Alcintara Machado ¢ Sérgio Milliet, tiveram, cada um, uma face paulistana tio marcada quan- to a face internacional. A combinagao de uma nova perspectiva historica, 0 novo espaco-tempo da cidade grande de pés-guerra, com uma bateria de estimulos artisticos europeus, tornou pos- sivel, bistoricamente, Semana de Arte Moderna de 1922 Como a tonica do grupo foi a modernizagio da linguagem, © segundo fator, estético, tem aparecido sempre camo so- bredeterminante, A Semana pretendeu ser a abolicio da Repiiblica Velha das Letras. - Teria sido impossivel aos melhores talentos da nova Sio 210 Moderno e madernista na literatura brasileira Paulo alhearem-se a estilos que estavam desmanchando 0 verso, desarticulando a sintaxe ¢ transmutando 0 vocabu- lirio da liceracura pés-naturalista e pés-simbolista. 22 foi o ponto de encontro de escritores que incorporaram ao seu fazer literdrio aqueles modos de pensar, falar, escrever. Nis- co, evidentemente, opuseram-se ao Parnaso ea Academia, pois 0 contemporaneo, para reconhecer-se como tal, dé as costas ao estilo ¢ ao gosto que ainda parece resistir. E também verdade que, mesmo considerando 0 micleo de 22, deve-se matizar a impressio de ruptura dristica com aquele passado meio académico, meio simbolista, 22 nao impediu que a ptosa de Os condenados de Oswald de An- drade fosse composta em moldes retérico-danaunzianos, nem que a mesma tendéncia presidisse ao roteiro literdtio de Menotti del Pichia, nem que o verso de Guilherme de Almeida se cristalizasse numa poética artesanal que o en- formou até as tiltimas obras. E todos eram homens de 22. Mas, feitas as necessérias ressalvas, fica de pé que mui- to de absolutamente novo se deu nos poemas da Pasdlictiae nna prosa de Miramar, por exemplo. O conhecimento do vers Fibreeos contatos com o Cubismo eo Fucurismo ajudaram a criagio de uma nova sensibilidade e a produgio de obras de inegavel ruptura estética. Depois, veio a reflexao, a c ciéncia critica, a laboriosa metalinguagem: as revistas Kla- xon, Terra Roxa e Outnis Terras (paulistas), Extética ¢ os ma- nifestos do Pau-Brasile da Antropofagic glosaram as idéias da Semana e lhes deram novos matizes de poética ¢ ideolo- gia que, no conjunto, formam o legado tebrico de 22. Mas é chegada a hora de repensar o problema em si da emergéncia do novo, o problema da situagdo interna em que aparece o texto modernist. ns a Céu, inferno Quando se dii uma aparéncia de novidade, € preciso determinar a 4rea cm que se operou o desligamento e, 20 mesmo tempo, 0 outro contexto a que tende a ligar-se o fio despregado, No interior de uma Nagao apenas juridicamen- te unificada, fora-se articulando, desde a segunda metade do século XIX, um subsistema diverso do sisceia inclus! vo. Para tanto, nao bastou que aparecessem os talentos mo- dernistas. Era necessério que esses talentos se movessem no solo sélido de uma cidade moderna, capital do estado mais “desenvolvido” do Brasil. Entao, as imagens novas da in- diistria, da maquina, da metrépole, do burguts, do prole- tdrio e do imigrante, e, sinal de relevo, do intelectual so- frido e irénico, puderam surgit na poesia de Mario ¢ no mosaico futurista de Oswald de Andrade. Miramare Serafim setiam pontos de vista impensiveis sem a unio de uma alta burguesia pauliscana com wma in- teligéncia viajeira, curiosa e critica. Seus focos de conscién- cia movem-se com desembarago no interior de uma classe inquieta, pronta para zarpar — real ou metaforicamente — pata os centtos principais da modernidade (“Paris, umbigo do mundo”) ¢ para queimar as pontes com uma linguagem ainda “metrificada” ¢ “nacionalista”, conforme as palavras iniciais do Serafim. Em termos de vida literdria, até mes- mo o Rio belle épogue de 1915 parecia a0 jornalista Oswald “estupidez letrada de semicolonia” contra a qual se fazia necesséria uma dose de anarquismo, ou seja, de boémia. A fuga do Parnaso, 0 contato com grupos que jé ti nham levado longe a dissolucao de valores morais ¢ artis- ticos, produzem um novo modo de ver aspectos fundamen- tais da existéncia. A interagao familiar, 2 educagao da in- fancia, as relagdes homem-mulher, homem-paisagem, a vi- 212 Moderno @ modernista na literatura brasileira da em sociedade, as instituigGes politicas e religiosas, tudo vai mudando de imagem e de significado no nivel da cons- cigncia, Estilhaca-se 0 espelho em que esta reflete e prolon- gaa cultura recebida, E 0s cacos, ainda aio rejuntados por uma nova ideologia explicita, vio-se dispondo em mosai- co quando os apanha o andamento de uma prosa solta, répida, impressionisca ‘Miramar e Serafim se construiram a partir de um sen- timento autodissolvente da vida grupal de uma certa clas- se: uma série dispersa de atitudes (que se da quando uma tradigao entra cm crise, mas nao foi ainda substituida) ani- rma fiapos de meméria, minutos de sensagdo. A prosa expe- rimental acharia nesse novo estado de coisas ¢ de espirito a sua fecunda matriz. Prosa em que hd uma alta freqiién- cia de construgSes nominais, de periodos breves, de deslo- camentos de significado. Prosa que aspira a impresséo ime- diata e forte, a velocidade; prosa que persegue o estilo tele- grafico c a metdfora lancinante,' ¢ que vai selar alguns dos melhores textos produzidos entre 22 ¢ 30 Uma nova ética, antinacuralista, passa a reger 0s pro- cedimentos de descrigao e de narracéo: “Arce nfo consegue reproduair nacureza, nem este € seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Bris Cubas), ora in- conscientemente (a grande maioria) foram deforma- dores da naturcea. Donde infiro que o belo artistico " Oswald de Andrade, “A guisa de preficio", em Memérias sen- vimentais de Joito Miramar. 213 Céu, infarno seri tanto mais artistico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo nacural.” (Mario de Andrade, “Preficio interessantissimo”) “O trabalho contra o detalhe naturalista — pela sintese, ou 4 morbider romantica — pelo equili- brio gedmetra e pelo acabemento técnica; contra a c6- pia, pela invengizo ¢ pela surpresa? ‘Uma nova perspectiva. Aoutta, ade Paolo Uccello,criou 0 naturalismo de apogeu. Era uma ilusto ética. Os objecos distan- tes no diminufam. Fra uma lei de aparéncia. Ora, 0 momento € de reagio & aparéncia. Reagio a cépia. Substicuic a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irénica, ingénua.” (Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pasw-Brasid) Prefere-se o efeito da sintese & mimicia descritiva. Ea historia esticada no tempo cede aos faite diverse & anedota fulminante. O modelo dessa escrita € 0 jornal ou o cine- ma. E do que restou da convencio académica faz-se paré- dia: 0 grande exemplo é sempre, a “Carta pras Icamiabas” de Macunaima, 2 Lembre-se 0 Suplemenso ao Manifico Ténico da Literatura Fu turista, de Marinetti: “... resumindo todas as explicagdes sem enchi- mento ¢ evitando a mania perigose da perda de tempo cm todos os cantos da frase, nos trabalhos minuziosos do cinzelador, do joalheiro cou do engraxate”. ae Moderno ¢ modernista na literatura brasileira 0 Brasil na visao dos modernistas A ruptura paulista de 22 nao foi obra do acaso, mas ponto critico de um longo processo histérico de diferencia- gfo. A formacéo do grupo, a necessidade de reuniées amiu- dadas, a urgéncia de um manifesto, o happening final, sio sintomas todos do ctescimento firme de um modo de pen- sar que se sabe contrastado, mas que jd sente no ar a possi- bilidade de um desafio publico. A partir da Semana, os modernistas si0 um ponto de vista dentro da histéria da cultura nacional. Nessa altura cabe perguntar: como era visto 0 Brasil desse angulo de observacio? Os inovadores, na fase de afirmaco, que se coscuma chamar “herdica’, nao podiam ver outro Brasil que nao fosse: — ow a Sao Paulo arlequinal, espago da modernidad, —ou0 serritério mitico de Macunaima e da Antropo- fagia, de Martim Cereré e de Cobra Norato; um Brasil cujas contradigées se resolviam magicamente no reino da pala- ‘vra pottica. E cempo de reconsiderar 0 brasileirismo do perfodo inicial do movimento a luz da sua nacureza, ficcional e es- tética, No comeco do século, um Euclides da Cunha e um Lima Barreto (para citar os maiores) tiveram condigbes exis- tenciais para explorar criticamente, agonicamente, 0 veio do nacionalismo, porque, de alguma forma, eles se deba- tiam no interior de nossos varios contrastes, litoral/sertao, cidade/campo, branco/mestigo, bacharel/analfabero, ¢, a partir deles, construfram as suas obras, nas quais o protes- to ea critica conservaram, nas dobras da bandeira, um certo ar de familia, um jeito de escrever que vinha do Realismo 215 Céu, interno ¢ dos ideais progressistas da geracio de 1870. Mas Oswald, Mario, Alcantara Machado, os paulistas por exceléncia do movimento, jé nao poderiam parrilhar dessa escrita: enxer- gavam o Brasil como um mito enorme, provéico, de que se iam simbolos seminais os totens amazénicos. As fortes ¢ belas imagens antropofigicas de Tarsila, os manifestos de Oswald e 2 rapsédia de Mario de Andrade nao poderiam ter nascido senfo da cabeca de artistas que imaginavam liidica e surrealmente o Brasil, aquela vaga e estranha e miil- tipla realidade pré-induscrial que nfo era a cidade de So Paulo, © mesmo se poderia dizes, mutatis mutandis, dos fantasmas gerados no ventre do grupo de Anta, com seus mitos caboclo-tupis que desaguariam em um nacionalismo clanico, de direita O mito, jé se sabe, concilia as contradigées que nao Ihe é dado pensar: “Me sinto branco agora, sem ar neste ar-livre (das Américas! Me sinto sé branco, s6 branco em minha alma {erivada de ragas!” (Mario ée Andrade, “Improviso do Mal de América”, feverciro de 1928) © Modernismo rompeu, de fato, com o sertanismo estilizado dos prosadores parnasianos. Mas nao 0 fez sendo para pOrem prética um primitivismo mais radical ¢, em certo sentido, mais Fomantico; e assim fazendo, 0 imagi- Batio de 22 se encontrava com o renovado irracionalisma europeu. Era um primitivismo culto, que nao tolerava mais, 0 jeito parnasiano de falar da vida ristica. Em nome de uma 218 Moderna e modernista ne literatura brasileira pottica do inconsciente, 22 opds-se as sensaborias do pe- niiltimo nativismo. O Angulo de visio era o de intelectuais mais informados e mais inquietos que se propunham de- sentranhar a poesia das origens, o substrato selvagem de uma “raga”; e que desejavam intuir 0 modo de ser brasile ro aquém da civilizacao, ou entéo surpreendé-lo na hora fe- cunda do seu primeiro contato com o colonizador. S6 em torno de 30, e depois, 0 Brasil histérico e con- creto, isto é contradivétio e jd nao mais mitico, seria o Obje- to preferencial de um romance neo-realista ¢ de uma litera- tura abertamente politica. Mas ao longo dos anos propria~ mente modernistas, o Brasil é uma lenda sempte se fazendo: “E no meio-dia quente Amulengando maneiro Um aboio to chorado Que acuava no corpo doce O sono do brasileiro. (.] E foram brincar pra sempre Pelos pagos abencoados Do meio-dia do céu. No céu é sempre meio-dia. Nao tem noite, nao tem doenga E nem oucra malvadez... A gente vive brincando... E nao se morre outra vez.” (Mario de Andrade, “Lenda do céu”) Para esse Brasil, entre polimorfo ¢ amorfo, esquivo a determinagées histdricas precisas; para esse pais tupi-bar- ri Cu, interno roco-surreal; para esse mundo sem tempo mergulhado na fruigdo da origem, tragével apenas pelos meandros do ins- tinto, a palavra a ser proferida ressoava, necessariamente, a das poéticas lastreadas de irracional: Dadé, Expressio- nismo, Surrealismo. Abolidas internamente as cadéncias da tradigao acadé- mica, cumprida a ruptura, o fio desprendido se estende para buscar outras fontes de energias estas, seladas pela crise eu- ropéia, potenciam o desprezo das cansadas convengées. O paralelismo faz-se com presteza: na Franca de 20, ser revo- luciondrio em literatura era liqiidar os vestigios da culeu- ra clissico-nacional e descer pelo pogo do Inconsciente; no Brasil-22, € liberar 0 poema dos metros, ¢ a prosa dos ri- tuais escolazes para explorar o lendério tupi —o nosso In- consciente... Romper, c4 e If, significava abolir 0 passado de ontem e sair & procura de um eterno presente. “O con- trapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesto aca- demica’, era 0 que pedia o Manifesto Pau-Brasil. Modernismo, meio século depois Passados cingjienta c tantos anos, feitos os reconheci- mentos devidos, estamos de novo preocupados com a mo- dernidade de 22. Os fragmentos fucuristas de Miramare rapsédia lidica de Macunatma si0 apontados como altos modelos de vanguarda ficcional. A quebra, que neles se operou em relagéo & prosa tradicional, é encarecida como estimulo para outras rupturas que hoje se deveriam em- preender. Faz-se jus & complexidade semantica e artistica daquelas obras fundamentais do Modernismo, Nelas figu- 218 Moderna e modernista na literatura brasileira rou-se a maior riqueza de motivos e de formas que a cons- ciéncia do homem poético de 22 pode engendrar. Nelas estilizou-se a indefinisZo do caréter nacional; indefinigao necessariamente instavel e prestes a coagi em varian- tes do mesmo cardter, ora ciipido, ofa triste, ora cordial, ora malandro. Nelus parodiauauu-se os sesiduos de vernaculis- ‘mo que persistiam na Velha Republica Brasileira de Letras. Daj a sua polissemia e, a0 mesmo tempo, a sua mais densa historicidade. ‘Mas qual a nova razio desses reconhecimentos, qual © novo estimulo para tancas releicuras? Vimos como o contexto paulista, com a sua constela- ao de tracos materiais e espirituais peculiares, trazia con- sigo uma linguagem onde entravam, de cheio, 2 moder- nidade da técnica ¢ as vozes de uma libido extravasada em ritmo de trépico. Compunham um acorde dissonante, to- cado em fortissimo, 0 ruido das méquinas ¢ as “impulsdes do eu litico”. ‘As maquinas tinham-se transformado no iltimo topos da poesia futurista onde valiam como metiforas da Poténcia: “Nés cantaremos as grandes massas agitadas pe- lo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; cantaremos as marés multicores e polifénicas das revolugées nas ca- pitais modernas, cantaremos o vibrante fervor notur- no nos arsenais e dos estaleiros incendiados por vi lentas luas elétticas, as estacées dvidas, devoradoras de serpentes que deicam fumaga, as pontes semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios faiscantes a0 sol com um luzir de facas, os navios avencurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de peito largo que - 29 Céu, interno Pisoteiam sobre os trillos como cnormes cavalos de ago embridados de cubos, eo véo resvalante dos aero- planos, cuja hélice tatalaao vento como uma bandci- a e parece aplaudir uma turba entusidstica,” (Matineti, Manifesto do Futurismo, 1909) Oswald, mais sintético: “A fixagio do progresso pot meio de catélogos ¢ aparelhos de televisio. E os trans- fusores de sangue” (Manifesto Antropéfago). Das fontes ja dissera em outro manifesto: “O trabalho da geracio futii- rista foi ciclépico. Acertar o relégio império da literacura nacional”. Aos surrealistas, & onda freudiana, coubera destapat as rolhas da censura e deixar que se soltassem os gritos do Inconsciente: “Existe uma ordem, inda mais alta, na fiiria de- sencadeada dos elementos.” (Matio de Andrade, “Preficio interessantissimo") Mas talvez o mais imporcante seja observar que os mo- derniscas da primeita hora —renres ainda ao Fucurismo — tendiam & fusio de técnica instinto: “A poesia deve ser concebida como um violento assal- to contra as forgas ignotas para reduzi-las a se prostcarem diante do homem" — é a palavra de ordem de Marinetci, Oswald, vinte anos depois, no Manifesto Antrapéfago: “O instinto carafba./ $6 a maquinaria’, E para Macunaima, a maquina é também um signo dorado de poderes mégi- cos, a forga que pode matar embora certamente nao saiba amar: 220 Moderno © madomista na literatura brasileira “Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa deveras forguda. Tupa famanado que os filhos da mandioca chamavam de Maquina, mais cantadei- ra.que a Mie d'gua, em bulhas de sarapantar.” Espelhando o préprio olhar, o Modcrnismo paulista fixou a sua identidade como poesia da Revolucio Indus- trial e Técnica: “Uma visio que bata nos cilindros dos moi- nos, nas turbinas eléicas, nas questées cambiais”.,.. Mas estendendo os olhos para a Nagio, nio poderia apanhé-la na sua riqueza tas: vin a Hlorestay & eH Sito, o selvagem sempre bom mesmo quando mau, ¢, na verdade, aquém do Bem e do Mal. E diante da alternativa softida por todos os povos coloniais — ow 0 fitturo tec- nolégico ou o passado aborigene — preferiu resolver o im passe fugindo & escolha. Pela fusio mitica: “O instinto ca- raiba./ S6 a maquinaria”. E 0 resto? Eo presente brasileiro, tudo aquilo que nao era nem 2 Sao Paulo da industria nem a ribo remota dos tapanhumas? ‘A partic da crise de 30 até 0 pés-guerra, a prosa do resto do Brasil lou pela boca de um realismo ora ingénuo ora ctitico, jf n fio modernista em sentido estreito, mas cet camente moderno. Falou no romance de Graciliano Ramos, de José Lins do Rego, de Marques Rebelo, de Erico Veris- simo, de Jorge Amado, de Cornelio Pena, de Dyonelio Ma- chado, Para todos eles, como para alguns ensaistas sociais seus coetineos, um Caio Prado Jr., um Gilberto Freyre, um Alceu Amoroso Lima, 0 Modernismo fora apenas uma por- ta aberta: 0. caminho jé era outro, o da cultura como inte- ligéncia hist6rica de toda a tealidade brasileira presente, isto 221 Céu, interno &,aquele imenso e dificil “resto”, aquele denso intervalo fi- sico e social que se estende entre os extremos do mundo in- digena e do mundo industrial A modernidade de um romance como Angistia, de Graciliano Ramos (para ficar s6é com um ponto alto), con- siste em ter trabalhado até a maceracin a imagem do ince- lectual que morde a prépria impoténcia e, com a mesma intensidade, acusa as raz6es objetivas dessa impoténcia, que esto na estrutura material e moral da provincia onde ca- pitalismo ¢ desequiltbrio s4o sinénimos perfeitos. Nao ca- bia na consciéncia de Graciliano, nem no melhor roman- ce de 30-40, tematizar as conquistas da técnica moderna ou entoar os ritos de um Brasil selvagem. O mundo da experiéncia sertangja ficava muito aquém da industria ¢ dos seus encantos; por outro lado, sofria de contradi¢ées cada vex mais agudas que nfo se podiam exprimir na mitologia tupi, pois exigiam formas de diccao mais chegadas a uma sobria ¢ vigilante mimese critica. Enfim, o Estado Novo e a Segunda Guerra exaspe- taram as tensdes ideolégicas; e entre os frutos maduros da Sua introjecdo na consciéncia arcistica brasileira contam-se obras-primas como A rosa do povo de Carlos Drummond de Andrade, Poesia liberdade de Mutilo Mendes ¢ as Me- mérias do cércere de Graciliano Ramos. A viragem foi tao forte que acabou atingindo os numes do Modernismo _paulista: é 0 romance, ¢ a poesia, éo drama do tiltimo Os- wald e do tiltimo Mario, entre 30 ¢ 40, movidos por um desejo agdnico de assumir uma outra perspectiva, pés- modernist ° _modernista 22 Moderna © madarnista na literatura brasileira Por volta de 1955-60, amortecida a memoria da guer- ra, entra o Brasil a entreter relagées de concubinato com as muleinacionais e sua tecnologia de ponta. Hif um novo e ex- citante surto de industrializacio, de urbanizagio e, mais uma vez, uma realidade sevorial privilegiada, 0 eixo Sao Paulo- Rio, se diferencia em ritmo acelerado na direcao do frenesi consumista e do contato estieito com modos de vives, pen- sar ¢ falar incernacionais. Mais uma vez, aparecem condi- ges objetivas para a formacio de uma cultura sofisticada, dispondo agora de um raio de difusio muito maior e mais rapido, dada a eficécia dos novos meios de comunicacio. O olho do intelectual de 60 viu-se medusado pela as- uronave, pelo computador ¢ pela TY, assim como a cons- ciéncia do intelectual de 20 fora seduzida pelo auomével, pelo avigo e pelo cinema mudo. A contemporaneidade re- clama do escritor os seus direitos. A técnica penetra de novo no texto como tema e como escrita. Recomeca-se, cingiien- ra anos depois, a pensar em termos de monzagem do que se deve dizer e de como se deve dizer. Eo “testo” do pais? E aquela coisa vaga que ainda es- taria fora de circuito ou migrando na esperanca de abrigar- sea sua sombra? Nao € possivel contemplé-la com demo- ras, canto incomoda a visao do diferente. O resto é um ndo- sei-qué destinado a virar massa, nao necessariamente mas- sa politica, mas massa-instinto, massa canibalesca, massa a ser “deglutida” pela civilizagio do consumo que, de resto, ja esta absorvendo, massa-trépico. Para esse esquisito e fas- cinante resto-outro, a visto tecnomitica compord uma co- bertura neo-antropofagica, pressuposto dos tropicalismos brasileiros. O que a técnica do capital ainda néo dominou de todo, faca-o a voz do instinto, Que a matéria bruta ¢ ce- 23 Ce, interno ga tenha seu lugar no sistema, é necessdtio; que ela solte ur- 0s ¢ guinchos a serem combinados com o som de instrus mentos clettnicos, ¢ auspiciivel. Asfalto por cima, instinto Por baixo, Reatualiza-se a proposta oswaldiana: “Obuses de clevadores, cubos de arranha-céus e a sAbia preguiga solar A reza. O Carnaval” (Manifesre Pas-Brasil) A existéncia ¢ a consisténcia de uma coisa chamada “massa’ € 0 suporte ideolgico necessério a boa parte das Proposigdes neo-antropofigicas. A massa, porque ¢ massa, nao conheceria mediagées: nao esté articulada em classes concrastantes, em grupos diferenciados, em setores de tra- balho, de cultura, de religizo. Ela “existe”, absolutamente Construida & imagem e semelhanga do grande puiblico, ela € uma espécie de monstro sagrado cujo unico modo de do- mar é dar de comer, O escritor, ciente disso, concorreria com outros fornecedores deimagens para ministrar-Ihe ali- mentos na forma, e sé na forma, em que a massa pode re cebé-los. O imediato, a sincronia autocentrada no texto es- Pacial ¢ no trocadilho seriam © banco de prova da nova

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