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Introdugio a Ozu" Donald Richie .\ sujiro Ozu, considerado por seus conterraneos 0 mais japonés de todos 0 diretores de cinema, tratava apenas de um grande assunto, a familia japonesa, © de um grande tema, sua dissolugao. A familia japonesa em dissolugao aparece cm cada um de seus 53 filmes de longa metragem. Nas tiltimas peliculas, 0 mundo inteiro cabe numa familia, as personagens sao antes membros de uma familia do que de uma sociedade ~ e o fim do mundo nao parece mais distante do que a porta de c: ‘A familia japonesa, nos filmes de Ozu como na vida real, tem duas extensdes principais: a escola e o escritério. Ambos sio quase lares adotivos, tradicionalmente muito menos impessoais que seus andlogos, nas outras partes do mundo, O estudante japonés encontra um segundo lar na escola ¢ mantém contato préximo com os colegas de classe ao longo da vida; 0 funciondrio de colarinho branco japonés encontra no escritdrio um terceiro lar ¢ ird se identificar com a empresa de uma forma rara no Ocidente. O personagem de Ozu, como o proprio japonés, tende a movimentar-se entre esses ués locais: a casa, a escola 0 escritério!. Assim, os filmes de Ozu constituem uma espécie de drama doméstico, um género que no Ocidente raramente atinge o patamar da arte e, mesmo hoje, € * Fixtrafdo de Donald Richie, Ozu. Berkeley/Los Angeles/Londres, University of California Press, 1974. (N. do E.) Iiitmes em que a casa predomi :posa de uma noite, Até 0 préximo encontro, Mulher de Téquio, Mée tem que ser amada, Filho iinico, Os irméos da familia Toda, Era wma vez um pai, Uma galinha ¢ 0 vento, Pai e filha, Irmds Munekata, Também fomos felizes, O sabor do chd verde sobre 0 arroz, Bra uma vez em Téquio, Crepiisculo em Téquio, Flor do equinécio, Bom dia, Dias de outono, Fim de verdo, A rotina tem seu encanto etc. A escola predomina em: Sonhos da juventude, Rivais d japonesa, Formei-me, mas..., Marchar com alegria, Fui reprovado, mas..., A bela ea barba, Onde esto os sonhos da juventude?, Coral de Téquio etc. O escritério predomina em: Vida de assalariado, Comeco de primavera etc. ¢,na opinio de Onu, Zu nasci, mas. 15 considerado de segunda categoria. Na Asia, onde a familia permanece a unidade social, 0 drama doméstico refinou-se muito além dos exemplos encontrados, digamos, na TV ou no rédio americanos, O drama doméstico de Ozu, entretanto, € de um tipo especial. Nao afirma a familia, como por exemplo Keisuke Kinoshita em seus tiltimos filmes, nem a condena, como Mikio Naruse em muitas de suas peliculas. Antes, embora crie um mundo em que a familia aparece em um ou outro de seus varios aspectos, Ozu focaliza sua dissolugdo. HA poucas familias felizes nos filmes de Ozu, Embora os primeiros deles mostrem dificuldades superadas, em quase todos da fase madura membros da familia esto se separando. Os personagens de Ozu, em sua maioria, esto nitidamente satisfeitos com suas vidas, mas sempre ha indicagdes de que a familia logo deixard de ser o que foi até entdo. A filha se casa e deixa 0 pai ou a mac sozinhos®, os pais véo viver com um dos filhos*; a mae ou o pai morre etc?. A dissolugao da familia constitui uma catastrofe porque no Japaio ~ em contraste com os Estados Unidos, onde deixar a familia é considerado prova de maturidade — 0 conccito de si mesmo depende em grande parte das pessoas com quem 0 individuo vive, estuda ou trabalha. Uma identificagao com a familia (ou 0 cl, a nacdo, a escola, a empresa) é necesséria para uma completa identificagao de si mesmo. No proprio Ocidente, os resquicios de tal necessidade ainda s&o Suficientemente fortes para nos permitir encarar com simpatia os problemas dos personagens de Ozu ca dificil situacaio dos japoneses contemporincos. O pai ou a mae, sentados sozinhos no lar agora vazio, € uma imagem to comum nas peliculas de Ozu que serve como padrao. Essas pessoas mudaram. Sabemos que, de algum modo, iro sobreviver, mas sabemos também a que prego. Nao estéo amarguradas, entendem que o mundo é assim, mas encontram-se carentes. Ganham nossa simpatia porque nao sio vitimas de suas prdprias falhas, nem presas de uma sociedade mal organizada; sao frutos do acaso, das coisas da vida tal como ela €. E ali esto, como todos nds, frutos semelhantes do acaso. Embora a maioria dos filmes de Ozu trate da dissolugao da familia (como 0 faz grande nimero de romances japoneses, e também ocidentais), a énfase mudou no decorrer de quase 40 anos de cinema. Nos primeiros filmes importantes, 0 diretor enfatizava as condigdes sociais externas que se impunham aos personagens: a tens&o familiar causada pelo desemprego do pai cm tempos dificeis, a incapacidade dos filhos de compreenderem a subserviéncia do pai que precisa manter 0 emprego etc. Apenas nos tiltimos filmes, Ozu deu maior importncia ds presses sobre a condigao humana vindas de dentro. Essa mudanga foi jogada contra cle: “Ozu costumava abordar a sociedade com mentalidade aberta; tentava capturar os aspectos complicados da exis! cotidiana. (...) Sempre demonstrou uma fiiria ardente contra a injustica social, mas seu realismo comegou a se degenerar ¢ decair. (...) Lembro-me de quando Capricho passageiro ¢ Uma histéria de ervas flutuantes foram langados. Muitos 2Com excegio das primeiras comédias e de filmes como Capricho passageiro, O que foi que a senhora esqueceu?, O sabor do chd verde sobre o arrot etc. Por exemplo: Pai e filha, Também fomos felizes, Creptisculo em Téquio, Dias de outono, A rotina tem seu encanto etc. 4Por exemplo: Formei-me, mas... Filho tinico, Os irméos da familia Toda ete 5Por exemplo: Bra wna ver wm pai, Era uma ver em Téquio, Fim de verdo et. 16 de nés ficamos profundamente decepcionados ao constatar que Ozu havia abandonado os temas sociais sérios.” Embora se reconhegam “as conquistas pioneiras de Ozu”, ao criar um realismo novo para o cinema japonés € se considere Eu nasci, mas... “a primeira obra de realismo social do cinema japonés”, os filmes apés 1933 sdo clasificados de omissos. “Os jovens criticos que assistiram apenas aos filmes do pés-guerra 86 conhecem um lado de Ozu. (...) Seu dominio técnico ¢ gosto sao certamente impecdveis; ¢ a compreensio penetrante e madura da vida que cintila neles é profunda, Mesmo assim, a triste verdade 6 que as maiores virtudes de Ozu, aquelas que o consagraram no perfodo ial, nao se encontram mais.” Essa critica é convincente, podemos contestar apenas suas premissas basicas: que o realismo precisa ser social, ¢ a realidade proletaria é, de certa forma, mais auténtica do que a burguesa. Evidentemente Ozu nao abandonou o realismo, mas abandonou, sim, a idéia de que a infelicidade advém exclusivamente das injusti¢as sociais, Passou a reconhecer que a infelicidade é causada pelo fato de sermos humanos e, conseqiientemente, aspirarmos a uma situagao impossfvel de atingir?. ‘Abandonou, igualmente, o naturalismo das primeiras peliculas, o que, em parte, se deve & instabilidade familiar tipica de seus filmes. A familia lutadora de classe média ou baixa, qualquer que seja a corrente social a que se ligue, desapareceu de seus filmes®, A partir de meados da década de 1930, a familia tornou-se, com: excegoes, da classe profissional ¢, nos anos apés a guerra, com excegdes também, da classe média-alta. O senso de realidade de Ozu, entretanto, ndo mudov’. Ainda estamos ouvindo a critica de que os interiores, nas tiltimas peliculas de Ozu, sio excessivamente bonitos ¢ bem arrumados. Mas a busca de asscio ¢ beleza é afinal um dos atributos da vida burguesa, em todos os lugares, ¢ a vida burguesa ndo menos real do que a proletéria por ser mais agradvel — fato que os criticos de Ozu jogam injustamente contra ele. Sc houve alguma mudanga, foi que os filmes posteriores de Ozu ganharam em senso de realidade, ¢ a transcenderam, o que é mais importante para sua arte. Seu interesse no recai sobre a quintesséncia da familia. Atinge o transcendental tendo como base a familia mundana, burguesa ~ que nao se perturba com as revoltas is nem desanima com os infortinios financeiros -, em que o senso do é 1alvez mais prontamente revelado. Ozu capturou exatamente essa “existéncia do dia-a-dia”, de forma realistica e, portanto, comovente. ‘Assim, a vida com que Ozu se ocupa em tantos de seus filmes é a vida tradicional da burguesia japonesa. Uma vida singularmente carente dos dramaticos Akira Iwasaki, “Ozu to Nihon no eiga” (Ozu e o cinema japonés), em Kinema jumpo tokushu, 10 de fevereiro de 1964. Tpara citar apenas 0 exemplo mais evidente: no fim de Era wna vez em Téquio, a inma mais nova diz: “A vida nao é decepcionante?”, ¢ a cunhada, com um sorriso, responde: “Sim, 6”. 8u2¢sas familias proletérias aparecem em Coral de Téquio, Capricho passageiro etc; a sitima delas aparece em Relato de wn proprieté Sora deu a seguinte explicacdo para as diferengas nos seus dltimos filmes, aos criticos Shinbi lida © Akira Iwasaki: “Quando jovem, voc€ comega a subir a montanha; depois, a certa altura, descobre um novo caminho, entdo desce e segue por ele. Pessoas assim tém o que se chama um ‘desabrochar tardio’. Tomei um caminho e, quando estava quase no topo, tive um forte sentimento de que devia tomar outro caminho, Mas jé nfo posso comegar de baixo, tudo de novo,” “Entrevista ‘com Oz", Kinema jumpo, junho de 1958, reproduzida parcialmente neste volume. 17 altos e baixos encontrados numa sociedade menos agudamente controlada. Isto nao implica, entretanto, que essa vida tradicional seja menos afetada pelas verda- des humanas universais; ao contrario, nascimento, amor, casamento, companhei- rismo, solidao, morte, tudo ganha contornos particularmente amplos numa socie- dade tradicional, j4 que tantas outras coisas esto excluidas. Uma vida tradicional também significa uma vida baseada numa suposta continuidade. Como observa Chesterton em algum lugar: “Tradico significa dar crédito 4 mais obscura das classes, nossos ancestrais. E a democracia dos mortos. A tradigdo recusa render-se A arrogante oligarquia daqueles que, por acaso, ainda esto andando por af.” A vida tradicional presume que o individuo faz. parte de algo maior: uma comunidade no tempo, abrangendo os mortos ¢ os que ainda ndo nasceram. Que o homem se compe de varios tipos de natureza, inclusive da natureza humana. A vida tradicional dé origem a uma atitude to comum na vida didria japonesa, como nos filmes de Ozu. Embora exista uma expresso japonesa muito titil para cla, mono no aware (a qual examinaremos mais adiante), essa atitude ganhou uma excelente descrigao, em inglés, de W. H. Auden, quando (em outro contexto) es- creveu: “Ha alegria no fato de estarmos todos no mesmo barco, sem excecao. Por outro lado, ndo podemos deixar de desejar que nao tivéssemos problemas ~ diga- mos, que fssemos de certo modo irracionais como os animais, ou anjos desen- carnados. Mas isto é impossivel; entéo rimos porque simultaneamente protesta- mos ¢ aceitamos.”!° Talvez, 0 japonés, aceitando 0 conflito de ser humano, iria suspirar em vez de sortir, iria celebrar este mundo passageiro ¢ insatisfatério em vez de simplesmente ach4-lo absurdo. Mas a atitude subjacente, profundamente conservadora, permanece a mesma e anima a todos, exceto os muito jovens, na familia de Ozu. Se a familia constitui o assunto quase invaridvel de Ozu, as situagdes em que Se apresenta so surpreendentemente poucas!!, A maioria dos filmes trata de rela- cionamentos entre geragées. Freqiientemente um dos pais est ausente por morte ou desaparecimento'?, e compete ao conjuge remanescente criar 0s filhos. A dis- solugdo da familia, j4 iniciada, completa-se pelo casamento do filho tinico ou mais velho, ou a morte do cOnjuge restante. Em outros filmes, os membros da familia afastam-se uns dos outros; os filhos tentam, 3s vezes com sucesso, recon- ciliar-se com a situagdo de casados!, Ou, novamente, o filho considera sufocan- tes as restrigdes da familia tradicional e, contra sua vontade, as desafia'*. H4, talvez, algumas outras variagdes desse tema, mas no muitas, TW. Hl Auden. “Forgotten laughter, forgotten prayer”. New York Times, 2 de feverciro de 1971 MeNa verdade, Ozu descreveu apenas relagdes entre pais ¢ filhos (...); vendo a felicidade e a tristeza deles, percebemos que se trata do conceito de homem de Ozu." Tadao Sato, Ozu Yasujiro geijutsu (A arte de Yasujiro Oza). Yéquio, Asahi shinbun, 1971 12 xemplos: Mulher de Téquio, Capricho passageiro, Uma histéria de ervas flutuantes, Filho nico, Os irmaos da familia Toda, Era uma vez um pai, Pai e filha, Crepisculo em Toquio, Ervas flutuantes, A rotina tem seu encanto e '3Exemplos: Um casal em mudanca, A beleza fisica, Espasa perdida, Iniciagéo ao casamenio, Um albergue em Téquio, O que foi que a senhora esqueceu?, Uma galinha ¢ 0 vento, O sabor do chd verde sobre o arroz ec. 1M4Exemplos: Tokkan Kozo, Senhorita, Eu nasci, mas. Capricho passageiro, O sabor do ché verde sobre o arro2, Creptsculo em Téquio, Flor do equindcio, Bom dia ete. 18 Assim como so poucas as ilustragées de Ozu para seu tema, suas histérias, comparadas com a maioria das que encontramos em peliculas de longa metragem, sdo escassas. Um resumo de um filme de Ozu (por exemplo, a filha mora com 0 pai e no deseja se casar; posteriormente descobre que o plano de novo casamento do pai ndo passa de um estratagema para ndio impedir a futura felicidade dela) parece muito pobre para servir de base a um filme de duas horas. Entretanto, Ozu, de certo modo, usa a hiséria apenas como um pretexto: ndo deseja mostrar a historia, mas a maneira como os personagens reagem aos acontecimentos € Os padrdes criados por essas relagdes. Ozu utilizou histérias cada vez mais simples em seus filmes, ¢ raramente se serviu de enredo!>, Em suas tiltimas peliculas, a hist6ria pouco ultrapassa uma anedota. Algufias das razes para isto serao discutidas mais adiante. No momento, basta observar que Ozu talvez, antes de mais nada, estivesse interessado em padrdes, no desenho que Henry James chamou “a figura no tapete”. Os padroes de Ozu se refletem em suas histérias. Um personagem passa da seguranga para a inseguranga, deixando a companhia de muitos para ficar sozinho; ou entéo um grupo se transforma, perde membros, acomoda-se, ou, inversamente, uma personagem mais jovem se muda para uma nova esfera, experimentando emogées confusas; ou ainda uma pessoa abandona o ambiente de costume, voltando depois com uma nova compreensdo. Esses padrées sio fixados, tal qual, uns sobre os outros; raramente um filme de Ozu mostra apenas um padrao ou uma historia. Através das semelhangas e diferencas entre padrdes ¢ hist6rias, com seus paralelos ¢ perpel ilares, le constréi um filme, soma de seus pensamentos a respeito do mundo ¢ das pessoas que nele vivem. Conseqiientemente, os filmes de Ozu precisam de muito pouco: um tema, varias histérias e alguns padrdes. A técnica também, conforme anteriormente mencionado, é extremamente restrita: angulos invaridveis da cAmera, que no se movimenta, ¢ um uso limitado de pontuagao filmica. De modo semelhante, a estrutura do filme quase no varia. Em decorréncia das fortes limitagdes do estilo, ndo surpreende que todos os filmes se parecam. De fato, deve ter havido poucos artistas com uma obra tio consistente. No cinema, Ozu 6 tinico, Algumas dessas recorréncias dignas de nota so descritas a seguir. Muitos dos titulos so semelhantes: Come¢o de primavera, Fim de primavera (no Brasil, Pai ¢ filha), Comeco de verdo (no Brasil, Também fomos felizes), Fim de outono (ou Dias de outono). Esses titulos lembram um dos romances de Henry Green e os titulos ¢ a estrutura geral, 0s romances de Ivy Compton- Bumett. Obviamente, Ozu nao era daquele tipo de diretor que diz tudo o que deseja sobre um assunto, voltando-se ent&o para outro. Nunca disse tudo que precisava sobre a familia japonesa, Parecia-se com um contemporaneo prdximo, Giorgio Morandi, artista que passou a vida desenhando, gravando ¢ pintando vasos, vidros e garrafas, Como o prdprio Ozu declarou durante uma campanha publicitéria para seu filme A rotina tem seu encanto, “sempre digo as pessoas que nada fago além 15Cabe distinguir, aqui, entre “hist6ria” ¢ “enredo”. Uma histéria é “a narrativa de acontecimentos ordenados na seqiiéncia do tempo. Um enredo também é uma narrativa de acontecimentos, cuja énfase recai na causalidade. ‘O rei morreu, e entdo a rainha morreu’ é uma histéria. ‘O rei morren, € entéo a rainha morreu de dor’ € um enredo.” E. M. Forster, Aspects of the novel . Londres, Amold, 1927. 19 de tofu (massa de feijao branco, ingrediente essencial na alimentagao japonesa), pois sou estritamente um vendedor de tofiu!®.” Ozu nao apenas utilizava freqiientemente 0 mesmo ator no mesmo tipo de papel, em geral representando a mesma espécie de personagem (Setsuko Hara e Chishu Ryu sdo exemplos notérios), mas também o mesmo argumento em diversos filmes. Uma histria de ervas flutuantes repete Ervas flutuantes, Pai e filha assemelha-se muito a Dias de Outono que, por sua vez, se parece com A Totina tem seu encanto. A hist6ria secundaria de Também fomos felizes (criangas fugindo do Jar) torna-se a principal de Bom dia etc. Os personagens também se repetem. As filhas em Pai e filha, Também fomos felizes, Flor do equindcio, Dias de outono ¢ A rotina tem seu encanto, embora representadas por diferentes atrizes, so, essencialmente, 0 mesmo personagem envolvido com o mesmo problema: se devem ou ndo casar-se ¢ deixar o lar. Personagens secundérios também sao freqiientemente quase idénticos. A irmi insensivel em Os irmdos da familia Toda torna-se a irma insensivel de Era uma vez em Téquio, e mostra sua insensibilidade da mesma forma (pedindo alguma coisa ap6s 0 funeral dos pais). Sempre (Pai e filha, O sabor do cha verde sobre o arroz, Era uma vez em Téquio, Comeco de primavera, Bom dia) ha um velho assalariado para se aposentar que, bébado, rememora ¢ questiona sua vida. A partir de Os irmdos da familia Toda, (incluindo Flor do equinécio, Dias de outono, Era uma vez em Téquio, A rotina tem seu encanto), aparece uma Proprictaria de restaurante japonés levemente ridicula. Os personagens também tendem a conservar os mesmos nomes. Em alguns casos, s4o t40 invaridveis como a malha que Ozu costumava usar como fundo para os letreiros principais de todos os filmes sonoros. O pai geralmente se chama “Shu” alguma coisa, de preferéncia “Shukichi”, vindo “Shuhei” logo atrds, A filha tradicional chama-se com freqiiéncia “Noriko” (como em Pai e filha, Também fomos felizes, Era uma vez em Téquio, Fim de verdo), enquanto a amiga ou a irma modemas tém 0 nome de “Mariko” (As irmas Munekata, Dias de outono). O irmao mais mogo chama-se muitas vezes “Isamu” (Os irmdos da familia Toda, Também fomos felizes, Bom dia), e assim por diante. Isto nao se deve primordialmente ao fato de Os nomes possuirem conotagdes especiais (embora “Shukichi” soe antiquado e “Mariko” mais moderno para os japonés), mas antes porque Ozu era deliberadamente cocrente com 0 que jd criara. As atividades dos personagens de Ozu também sao coerentes. Quase todos admiram a natureza civilizada que véem nos jardins, ou em Kyoto ou Nikko; todos prestam uma atengo aguda nas condiges do tempo, mencionando-as com maior freqiiéncia que quaisquer outras personagens de cinema; ¢ sempre gostam de conversar. Também apreciam bares e cafés. Os primeiros, em filmes sucessivos, chamam-se “Wakamatsu” ou “Luna”, os tiltimos, “Bow”, “Aoi” e “Bar Accacia”. Neles os personagens as vezes embebedam-se, embora prefiram fazé-lo em Pequenos restaurantes japoneses sem nome ou pequenas lojas de bebidas. Mais comumente, sentam-se e delcitam-se com o leve sabor estrangeiro, tao gratificante ao japonés da cidade. (H4 muitas referéncias ao estrangeiro nos filmes de Ozu, a maioria do cinema; fala-se de Gary Cooper em Pai e filha, de Jean '6citado por Akira Iwasaki, num ensaio sem titulo sobre Ozu, Publicado pela Shochiku como pré- pablicidade. 20 Marais em O sabor do ché verde sobre o arroz, de Audrey Hepburn em Também fomos felizes. No fundo do cendrio de Esposa de uma noite ha um grande cartaz ‘de Broadway Scandals; Marlene Dietrich tem um cartaz em O que foi que a senhora esqueceu?, assim como Joan Crawford em Filho tinico, e Shirley Temple em Uma galinha e 0 vento). Também comem com maior freqiiéncia que a maioria dos personagens do cinema, parecendo preferir a comida japonesa, embora lidem com facas ¢ garfos com a mesma facilidade que com palitos, assim como sentem-se igualmente a vontade em cadeiras ¢ esteiras de tatami. Compartilham, no entanto, esta agilidade com os outros personagens do cinema japonés - ¢ com os proprios japoneses. Enganam-se os criticos ocidentais que pensam que Ozu est comentando a influéncia ocidental em seu pais: esta simplesmente refletindo a vida japonesa tal como € agora. pai ou 0 irmao aparecem de maneira tipica sentados no escritério (quase nunca os vemos realmente trabalhando), e a mac ou a irma fazendo servigos domésticos (estender toalhas para secar 6 uma ocupacao favorita, mas ha outras: Os irmdos da familia Toda e Também fomos felizes tém cenas idénticas, nas quais as mulheres arrumam a cama tipo futon), ou servindo cha a visitas, sempre presentes nas residéncias. As criangas costumam estudar inglés (0 que foi que a senhora esqueceu?, Era uma vez um pai, Era uma vez em Téquio, Bom dia), ¢ a filha € datildgrafa em inglés (Pai e filha, Também fomos felizes). A familia (¢ sua extensio no escrit6rio) gosta de jogos (go em Uma historia de ervas flutuantes ¢ Ervas flutuantes, mah-jongg em Uma galinha e 0 vento Pai e filha, enigmas em Eu nasci, mas... € Capricho passageiro), quebra-cabega anedota. A familia dedica-se ainda a outro passatempo, cortar as unhas dos pés, uma atividade digna de mengao por ocorrer com mais freqiiéncia aqui (Pai e filha, Também fomos felizes, Dias de outono) do que na vida japonesa. Poucas so as atividades externas, que incluem, por exemplo, piqueniques ou ciclismo (Pai e filha, Comeco de primavera, Dias de outono), pesca (Uma historia de ervas flutuantes, Era wna vez um pai, Ervas flutuantes) ou jogar golfe (O que foi que a senhora esqueceu?, A rotina tem seu encanto). A atividade: externa (embora ndo um esporte) ilustrada com mais freqiiéncia € viajar de trem. Certamente, 0 cinema desde seu inicio focalizou ens. Lumitre, Gance, Kinoshita, Hitchcock, Kurosawa, todos tinham fascinagdo por cles. Mas Ozu provavelmente bate o recorde. Quase todos os seus filmes incluem cenas com trens, e em muitos deles a seqiiéncia final passa-se dentro ou perto de um trem. Uma historia de ervas flutuantes, Era uma vez um pai, Flor do equindcio, Ervas flutuantes ¢ outros terminam em wens. Era uma vez em Téquio, Comego de primavera ¢ outros exibem trens nas cenas finais. Uma razdo para todos esses trens é simplesmente o gosto de Ozu'’. A outra € que, para o japonés — se ja ndo mais para nds — os trens continuam sendo veiculos de mistério ¢ mudanga. oO apito melancélico do trem a distancia, a idéia de todas aquelas pessoas sendo levadas para recomegar a vida em outro lugar, o grande descjo ou nostalgia da viagem — undo isso tem ainda grande poder emocional para o japonés. 1 Também gosto de balei ~€ coleciono todo tipo de m disse ele uma vez, comentando suas predilegdes, “e gosto de latio jicamento”. Entrevista com Yasujiro Ozu, 1959. 2 © 1962/Shochiku A rotina tem seu encanto “Como preparagio para A rotina tem seu encanto (...), relemos Dias de outono (...)€ Flor do equindcio (...)." (Do diario de Kogo Noda, roteirista de Ozu) 22 Flor do equinécio 23 Em alguns filmes, Ozu expressa de maneira direta a nostalgia de um lugar anteriormente visitado. Em As irmas Munekata, uma cena mostra duas irmas sentadas nos degraus de Yakushiji, a mais velha muito deprimida. Posteriormen- te, esta retorna com o homem que ama, ¢ ficamos sabendo que eles se encontra- ram Id anteriormente, quando comegou 0 namoro. Seus sentimentos, na cena com a irm, recebem assim uma explicagéio, sem termos visto 0 acontecimento que os Provocou. As vezes uma ocorréncia em um filme é mencionada em outro, mes- mo com personagens diferentes. Em Dias de outono, durante uma viagem, a mae se recorda de uma lagoa de carpas em Shuzenji; trata-se das mesmas carpas que aparecem em O sabor do ché verde sobre o arroz, feito oito anos antes. Uma mes- ma fala, que expressa a sensaco do fluir da vida, reaparece em alguns outros fil- mes. Por exemplo, “Owarika?” (“E 0 fim?”), exclamagao tipica de Ozu em sua simplicidade, clareza e uso do verndculo familiar. O pai a pronuncia em Era uma vez em Téquio quando fica sabendo que a esposa esté A morte; é usada também, segundo se informa, pelo pai, quando agoniza em Fim de verdo e, novamente, pelo pai ao saber que as mogas teriio que fechar 0 Bar Accacia, em As irmas Munekata. Entretanto, a fotografia constitui o mais poderoso indice de nostalgia. Embora 98 retratos da familia, da escola, da empresa preservem ainda, no Japao, algo da instituigéo que representaram no Ocidente, exerce-se a atividade formal de fotografar com uma freqiiéncia surpreendente nos filmes de Ozu. Ha fotografias de grupos, por exemplo, dos alunos com o professor, em frente ao Kamakura Buddha, em Era uma vez um pai; o retrato do casamento em Dias de outono; 0 retralo de familia em Os irmdos da familia Toda, Também fomos felizes, Relato de um proprietdrio. Exceto no primeiro exemplo citado, no chegamos a ver a fotografia pronta, Ninguém toma o retrato da finada mac para fit4-lo com ternura. Antes, 0 que vemos € a familia reunida (invariavelmente pela ultima vez), sorrindo corajosamente para um futuro incerto, A nostalgia ndo reside nas teflexdes posteriores, mas no prdprio esforgo de preservar a imagem de si. As vezes 0s personagens de Ozu lamentam nao terem fotos de pessoas amadas que perderam, mas 0 uso real da fotografia se restringe a futuros noivos ¢ noivas. A morte, nos filmes de Ozu como na vida, é a simples auséncia. Todas essas semelhangas (¢ existem muitas outras) das peliculas entre si sur- giram, em parte, porque Ozu encarava cada filme como a continuagZo ou uma Teacao ao precedente. As anotagdes de Kogo Noda — conhecido roteirista ¢ colabo- rador em mais da metade (27) dos filmes -, no didrio que conjuntamente manti- nha com Ozu em Tateshina, sio significativas: “1? de Fevereiro de 1962. Como Preparaco para o trabalho (em A rotina tem seu encanto) lemos alguns roteiros antigos. 3 de Fevereiro. Conversamos sobre 0 novo filme, (...) sera no estilo de Flor do equinécio ¢ Dias de outono. Pensamos numa hist6ria sobre um vitivo sua filha, ¢ uma mulher tentando achar uma noiva para ele (...). 10 de junho. Co- mo referéncia, relemos Dias de outono. (...) 11 de Junho. Como referéncia, rele- mos Flor do equindcio”'*, Tal método de construg4o (mais comum para os tilti- mos filmes do que os primeiros) inevitavelmente resultava em fortes semelhangas '800u Yasujiro — hito to shigoto (Yasujiro Ozu: 0 homem e sua obra). Téquio, Banyusha, 1972 24 © 1951/Shochiku Setsuko Hara, em Também fomos felizes “Ozu raramente perguntava sobre o que seria a hist6ria. Perguntava, Si, que tipo de pessoas entraria no filme.” 25 © 1951/Daiei Hinoshi Kawaguchi e Ayako Wakao, em Ervas flutuantes © 1961/Toho Ganjiro Nakamura (centro), em Fim de verdo 26 entre os filmes, principalmente pelo fato de Ozu ¢ Noda definirem os géneros em termos dos proprios trabalhos anteriores. Assim, muitas so as semelhangas e poucas as diferengas no universo extraor- dinariamente limitado do cinema de Ozu, Trata-se de um mundo pequeno, fecha- do, governado por regras aparentemente inflexiveis, controlado por leis passiveis apenas de deducao. No entanto, diferentemente do mundo de Naruse, estreitamente centrado na familia, o de Ozu nao provoca claustrofobia, nem as regras, aparente- mente inflexiveis, dao origem 3 idéia romantica de destino que vemos no mundo de Mizoguchi, de aparéncia mais ampla. O que impede esses extremos em Ozu so os personagens, 0 tipo de pessoa que representam ¢ a forma como reagem a vida. A humanidade simples ¢ auténtica desses personagens, sua individualidade no interior da semelhanga, torna dificil e, na verdade, enganoso, categorizé-los co- mo estive fazendo nas paginas anteriores!®, Embora poucas as historias, as peli- culas nao parecem repetitivas; embora a anedota seja resumida, isto nunca acon- tece com o filme; embora os papéis sejam similares, 0s personagens no 0 S40. ‘A natureza humana em scus varios aspectos: eis, essencialmente, sobre 0 que versa o cinema de Ozu. Deve-se acrescentar, no entanto, que, na qualidade de asidtico tradicional e conservador, ele nfo acreditava numa esséncia, como pode nos sugerir a expressio “natureza humana”, Cada personagem ¢ nico ¢ indivi- dual, embora todos sejam baseados em tipos conhecidos: nunca encontramos “tipos represemtativos”. Assim como nio existe algo chamado Natureza, apenas seres isolados como arvores, rochedos, riachos, a Natureza Humana nao existe, mas sim, unicamente, homens ¢ mulheres individuais. Os asidticos sabem disso melhor que os ocidentais, ou ao menos agem como se soubessem, ¢ este conhecimento é responsavel, em parte, pelo individualismo do personagem de Ozu; sua entidade nunca € sacrificada em beneficio de uma presumida essenc1a. Por restringir nossa visdo ¢ confinar nosso interesse, Ozu nos permite compre- ender o maior e tinico paradoxo estético: menos significa sempre mais. Em outras palavras, a diversidade invariavelmente indica quantidade; a restrigHo resulta em amplificagao; variacées intermindveis sdo encontradas numa inica entidade. Ozu nunca disse isto e, por tudo que sei, nunca 0 pensou. Nunca questioned seu interesse num personagem ou sua habilidade em crid-lo, No entanto, esse interesse nunca falhou. Quando sentava-se para escrever 0 rotcifo, confiante em seu repert6rio de temas, raramente perguntava sobre o que seria a historia. Perguntava, sim, que tipo de pessoas entraria no filme. (Tradusio de Maria Liicia Sampaio de Almeida) 19sobee esse assunto, Omi expressou-se da seguinte mancira: “Que quero dizer com Mt personagem? Bem, numa palavra, humanismo, A obra que ndo transmite humanismo pio Walor, Tata-se do objetivo de toda arte, No cinema, a emogio sem humanismo é defeituoss. © pessoa com expressdo facial perfeita nio esti necessariamente capacitada 4 ¢xProt® humanismo, De fato, a expressio de emogio freqiientemente prejudica a expresao de humanist. Saber controlar a emogao e exprestar o humanismo através desse controle: eis « trea diretor.” “Humanismo e técnica”, in Kinema jumpo, dezembro de 1953 27

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