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Território é ser!

Do mar, da terra, da floresta e das serras


moldou-se um olhar, um modo
de estar e pensar e agir
em meio a tudo ao redor: vida Territórios tradicionais
toda forma de vida entrelaçada do Norte de Ubatuba
vivendo e morrendo nesse chão e alimentando
quem vem depois
no ciclo natural do planeta.
Aqui, nestas vastas florestas tropicais
o céu como teto para a liberdade,
o mar como estrada para as distâncias
a terra como mãe para o alimento
gerações nasceram e morreram até essa
e assim seguirá
Território é ser
e sempre seremos!

Santiago Bernardes,
poeta caiçara de Ubatuba

2 3
FICHA TÉCNICA OTSS - EXPEDIENTE FIOCRUZ:

Realização: Coordenação Geral:


Sociedade Amigos do Puruba (SAPU) Edmundo Gallo (Fiocruz), Vagner do Nascimento (Fórum CAI«
CAI «ARAS DO
Grupo Sementes do Promirim de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e
AMOPRO – Associação dos Moradores Ubatuba)
da Comunidade Caiçara do Promirim
SAFE – Sociedade de Amigos do Félix Coordenação de Gestão Territorializada:
ASAF – Associação de Amigos do Félix Fabiana Miranda
A.B.P.P.F. – Associação de Barqueiros
das Praias do Prumirim e Félix Colegiado de Coordenação Estratégica:
Associação dos Remanescentes de Edmundo Gallo, Vagner do Nascimento, Fabiana Miranda,
Quilombo do Sertão de Itamambuca Marcela Cananea, Julio Garcia Karai, Indira Alves França,
Associação comunitária da Barra Seca - Sidélia Silva, Leonardo Freitas, Ana Maria Correia, Mauro
Caiçara Nativo, Nativo Caiçara (em formação) Gomes, Vinícius Carvalho.

2
Congada de bastão de São Benedito
do Sertão Puruba Coordenação de Campo | Povos:
Observatório de Territórios Sustentáveis e Allan Yu Iwama, Anna Maria Andrade,
Saudáveis Bocaina (OTSS) Cristiano Lafetá
Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos
Reis, Paraty e Ubatuba (FCT) Pesquisadores de Campo (FCT) | Povos:
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Ana Carolina Santana Barbosa, Fabiana Ramos,
Gabriel Nogueira, Guilherme Euler, Julio Garcia Karai, ÍNDICE
Coordenação Geral Povos: Ivanildes Kerexu Pereira, Jardson dos Santos,
Fabiana Miranda Luisa Vilas Boas Cardoso, Priscila Azevedo, Raquel Albino,
Santiago Bernardes Projeto Povos ..............................................................08
Coordenação de Campo | Norte Ubatuba 2:
Allan Yu Iwama e Santiago Bernardes Assessoria Jurídica:
Entendendo o Pré-Sal .................................................10
Thatiana Lourival Como estes mapas são feitos .....................................14
Pesquisadores de Campo | Norte Ubatuba 2:
Ana Carolina Santana Barbosa, Allan Yu Iwama, Guilherme Validadores | Movimentos Nacionais:
Como usar esses mapas a favor da comunidade .......16
Euller Braga, Ivanildes Kerexu Pereira, Janaina Cassiano Julio Garcia Karai, Comissão Guarani Yvyrupa (CGY)
dos Santos, Luisa Vilas Boas Cardoso, Santiago Bernardes Marcela Cananea, Coordenação Nacional de Comunidades
Tradicionais Caiçaras (CNCTC) Territórios Norte Ubatuba 2 ........................................18
Textos: Ronaldo dos Santos Coordenação Nacional de Articulação Introdução .....................................................................24
Allan Yu Iwama, Anna Maria Andrade, Cristiano Lafetá, das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
Fabiana Miranda, Gabriela Muruá, Santiago Bernardes Puruba, Sertão e Praia ................................................ 40
EM MEMÓRIA:
Prumirim.......................................................................62
Revisão Técnica: Antônia “Macuca” Santana,
Allan Yu Iwama, Anna Maria Andrade, Cristiano Lafetá, Praia Vermelha do Norte (1948-2021) Aldeia Boa Vista.............................................................92
Helena Tavares, Luisa Vilas Boas Cardoso, José Roberto Santos, caiçara de Ubatuba
Santiago Bernardes, Vinícius Carvalho
Félix.............................................................................120
Mauro Ailton dos Santos (Airton Wera),
Aldeia Jaexa Porã Boa Vista de Ubatuba – Quilombo do Sertão de Itamambuca...........................144
Mapas: Guarani Mbya (1987-2021)
Janaina Cassiano dos Santos, João Oswaldo Cruz, Nicholas Aldeia Rio Bonito.........................................................170
Marcos Souza (“Marcão") comunidade
Saraiva, Tiê Passos caiçara do Poruba praia Praia Vermelha do Norte.............................................192
Fotos:
Nelson Januário Leite, Quilombo Barra Seca....................................................................212
do Sertão de Itamambuca (1928-2021)
Allan Yu Iwama, Anna Maria Andrade, Eduardo di Napoli,
Felipe Scapino, Guilherme Euller Braga, Marina Duarte de
Souza, Santiago Bernardes Mapas
Projeto Gráfico e Editoração de Imagens:
Microterritório Norte Ubatuba 2 ..................................20
Eduardo di Napoli, Tiê Passos Maritório Norte de Ubatuba 2 .....................................22
Diagramação: Puruba, Sertão e Praia ................................................ 58
Leticia B Dias, Tiê Passos Prumirim.......................................................................90
Ilustrações e infográficos: Aldeia Boa Vista...........................................................118
Tiê Passos Félix..............................................................................142
Transcrição de Entrevistas: Quilombo do Sertão de Itamambuca...........................168
Heloísa Vianna
Aldeia Rio Bonito..........................................................190
Tradução e transcrição em Guarani: Praia Vermelha do Norte.............................................210
Ivanildes Pereira da Silva - Kerexu
Ronaldo Mariano Rodrigues - Karai
Barra Seca....................................................................236

ISBN 978-65-87063-29-4
5
N ó s , o s po v o s tr a d i c i o n ais
d e Angr a d o s R ei s , Pa rat y
e Ub a tu b a , d i z end o
Pela primeira vez,
qu a nto s s o m o s , c o mo
nós por nós mesmos.
v i v em o s e o qu e b u s c am o s
pa r a a pl ena r ea l i z a ç ã o
d o s no s s o s d i r ei to s .
Projeto Povos:
Território, Identidade e Tradição
Onde o Projeto
Conheça a mais abrangente iniciativa de cartografia social já
realizada na Bocaina. Protagonizada pelas próprias comunidades, a Povos ocorre?
caracterização envolve territórios indígenas, quilombolas e caiçaras
de Angra dos Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba (SP) O Projeto Povos ocorre nos municípios de Uma observação importante é que esta
Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba. Para sua organização em agrupamentos de territórios
realização, foram definidos 11 agrupamentos – ou microterritórios - não quer dizer
Qual é exatamente o território O Projeto Povos utiliza metodologias de territórios que reúnem laços culturais, que as comunidades caracterizadas não
tradicionalmente ocupado pelos de cartografia social que permitem às ambientais e territoriais comuns. É o caso, tenham fortes e profundos laços com outras
quilombolas? Quais são as condições de comunidades desenhar, com ajuda de por exemplo, do agrupamento de territórios comunidades. Ou seja, essa divisão apenas
saneamento dos indígenas? E quais são os profissionais, mapas dos territórios que tradicionais do Carapitanga, que partilham ajuda a organizar os trabalhos de campo do
desafios dos caiçaras em relação ao acesso ocupam. Este tipo de mapeamento social a mesma Sub-Bacia Hidrográfica em Paraty projeto.
à educação? Estas são apenas algumas geralmente envolve populações tradicionais (RJ).
das informações que serão reveladas pelo e é um instrumento utilizado para fazer
Projeto Povos, iniciativa que vai colocar de valer os direitos desses grupos frente a
vez, no mapa do Brasil, os territórios de grandes empreendimentos, problemas
64 comunidades e localidades tradicionais relacionados à grilagem de terras e ao não
indígenas, caiçaras e quilombolas de Angra cumprimento de leis que dizem respeito à
dos Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba (SP). delimitação de terras indígenas, à titulação
de territórios quilombolas
Reivindicação histórica do Fórum de
Caracterização e à regularização fundiária Paraty
Comunidades Tradicionais (FCT), a de territórios caiçaras,
realização do Projeto Povos é uma de 64 territórios entre outros.
exigência do licenciamento ambiental tradicionais
federal, conduzido pelo Ibama, para Além de informações
a produção de petróleo e gás pela
ocorre até 2023 técnicas, os mapas sociais
Petrobras na Bacia de Santos. Quem são construídos de forma
executa é o Observatório de Territórios participativa e apresentam o cotidiano de
Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), uma comunidade em linguagem simples
uma parceria entre o FCT e a Fundação e acessível. Neles, são colocados espaços
Oswaldo Cruz (Fiocruz). de roças, rios, lagos, casas, equipamentos
C caiçaras
sociais como unidades de saúde e escolas
i indígenas
Participam também a Coordenação Nacional e outros elementos que as populações Q quilombolas
de Articulação das Comunidades Negras envolvidas considerem importantes. Aliás,
Rurais Quilombolas (CONAQ), a Comissão são as comunidades que decidem o que
Guarani Yvyrupá (CGY) e a Coordenação querem caracterizar. No Projeto Povos, Ubatuba Paraty Angra dos Reis
Nacional de Comunidades Tradicionais nenhuma informação é tornada pública SP RJ RJ
Caiçaras (CNCTC), que completam o conselho sem a prévia autorização das comunidades
do projeto com a missão de garantir que envolvidas e das representações nacionais
todos os direitos das comunidades sejam dos povos e comunidades tradicionais
respeitados. (Conaq, CGY e CNCTC).

8 9
Como estes mapas 4) Refletindo o
Território

são feitos?
Depois, é hora de apresentar à comunidade
a primeira versão do mapa final e validar
com os participantes cada dado coletado.
Um momento, também, para corrigir
eventuais erros e acrescentar informações
Com a participação de pesquisadores indígenas, caiçaras e quilombolas, importantes que não tenham aparecido nas
o Projeto Povos mapeia só o que as comunidades querem caracterizar. etapas anteriores.
Conheça, passo a passo, como se dá essa construção coletiva.
5) Nosso mapa
Ícones dos mapas do Projeto POVOS

1) Chegança 2) Mapa Falado A última etapa se divide em dois momentos.


O primeiro consiste em revisitar o material
produzido durante toda a caracterização
Realizada com a participação do Fórum Nessa atividade, a comunidade é convidada e validar coletivamente o mapa final. Em
de Comunidades Tradicionais (FCT), a fazer um desenho livre, em um papel em sequência, a comunidade define quais
a “chegança” é o passo inicial da branco, representando seu território. Neste informações quer que se tornem públicas e
caracterização. Ela envolve lideranças e desenho, o território e seus elementos vão quais prefere que sejam de uso restrito da
articuladores locais para esclarecer dúvidas surgindo a partir do exercício da memória comunidade.
sobre o projeto e para garantir que os mapas e da definição, pela própria comunidade,
sejam construídos por muitas mãos. do que ela quer e acha importante que seja
caracterizado.

3) Localizando o
território no mapa
A etapa seguinte consiste na transposição
do mapa falado para uma foto de satélite, 6) Ganhando o
localizando os elementos do desenho em
uma base georeferenciada. Nesta etapa,
mundo
o objetivo principal é garantir que os Percorrido esse caminho, o material
participantes consigam dimensionar seu segue para impressão e é devolvido para
território em um mapa e visualizar demais as comunidades. Também validadas pelas
delimitações territoriais já estabelecidas comunidades e suas representações
por órgãos governamentais, como nacionais, as publicações finais são
Unidades de Conservação e demarcações já distribuídas para bibliotecas e órgãos de
realizadas. governo e da sociedade civil cuja atribuição
seja zelar pelos direitos dos povos e
comunidades tradicionais da Bocaina.

14 15
Como usar estes
mapas a favor das Segurança
comunidades alimentar e
nutricional:
O projeto permitirá às comunidades
ampliarem seus conhecimentos sobre as
Os mapas construídos pelas comunidades são instrumentos de espécies agrícolas manejadas por elas e
promoção de direitos. Entenda algumas formas de como podem ser também por suas comunidades vizinhas.
Isso fortalece o conhecimento do território
utilizados para a defesa dos territórios tradicionais e facilita possíveis trocas de sementes e de
técnicas de plantio.

Garantia de Fortalecimento Práticas de saúde:


territórios: da educação O projeto permitirá também às comunidades
O projeto não assegura que haverá titulação,
demarcação ou regularização fundiária de
diferenciada ampliarem seus conhecimentos sobre as
práticas de cuidado corporal e espiritual
Esta publicação e os mapas gerados pela
territórios tradicionais. Mas irá contribuir utilizadas por ela e por comunidades
cartografia social podem ser usados
para que as reivindicações das comunidades vizinhas. Isso também facilita possíveis
nas escolas pelos professores para
cheguem aos órgãos competentes trocas de sementes e de conhecimentos
aproximar os conteúdos curriculares à
responsáveis por fazer isso. em relação a procedimentos de cura e
realidade vivida pelos estudantes em suas
prevenção a partir das plantas medicinais.
comunidades.
Acesso a políticas
públicas: Fortalecimento do
O projeto também não construirá FCT:
infraestruturas nas comunidades, mas vai
contribuir para levar ao conhecimento dos
Qualificação de O mapa feito pela comunidade contribuirá
também para fortalecer as bandeiras
governos e órgãos públicos qual é a situação licenciamento de luta do Fórum de Comunidades
de cada comunidade em relação a serviços
e equipamentos públicos nas áreas de ambiental: Tradicionais nas áreas de Turismo de
Base Comunitária, Educação Diferenciada,
educação, saúde, saneamento, trabalho e Outra conquista importante é que estes Saneamento Ecológico, Economia Solidária
renda, entre outras decididas pelas próprias dados passarão a ser consultados pelo e Agroecologia e a combater todas as
comunidades. Ibama quando houver uma nova solicitação formas de racismo e violência contra as
de licença ambiental para grandes comunidades.
empreendimentos que possam impactar as
comunidades tradicionais de Angra dos Reis,
Paraty e Ubatuba.

16 17
Sebastião Lúcio de Oliveira e Pedro Feliciano de Moura
na Praia do Léo volta da pesca do camarão sete barbas

18 19
20 21
22 23
Norte de
Ubatuba 2
A caracterização do Microterritório Norte de Ubatuba 2 é resultado
de um trabalho de pesquisa-ação realizado com o protagonismo das
comunidades participantes, que contam suas histórias, narram seus
modos de vida e relatam seus usos sobre os territórios. Este trabalho
utiliza técnicas de cartografia social e tecnologias que permitem utilizar
as informações das comunidades na forma de mapas, que são assim
construídos por elas mesmas, algo nunca feito na região.

O Norte de Ubatuba 2 abrange nove A rodovia BR 101 percorre o litoral


comunidades entre indígenas, caiçaras e brasileiro e, no trecho em que liga Rio
quilombolas. de Janeiro a Santos, a estrada corta não
somente um territótio, mas também
Os indígenas que habitam esse território um modo de vida, separando famílias
são os Guarani Mbya, localizados na e comunidades de um lado a outro da
Terra Indígena Boa Vista, no Sertão do estrada.
Prumirim, e organizados em três aldeias,
ou Tekoas: Tekoa Jaexaa Porã (Aldeia Nessa região, a Serra do Mar fica muito
Boa Vista), Tekoa YYakã Porã (Aldeia próxima às praias e os impactos da rodovia
Rio Bonito) e Tekoa Akaray Mirim, mais incidem diretamente no relevo e nos rios
recente, no Sertão do Puruba. que banham a região, principalmente na
época das chuvas, no verão. A rodovia se
As comunidades caiçaras são: Puruba torna uma represa para as águas, causando
praia e sertão, Prumirim, Félix, Praia inundações e danos às comunidades.
Vermelha do Norte e da Barra Seca. Os rios que passam pelas áreas
das comunidades são: Rio Quiririm, Rio
Já a comunidade quilombola está no Puruba, Rio Prumirim, Rio Itamambuca
Sertão de Itamambuca. e Rio Indaiá/Capim Melado que deságua
entre as praias da Barra Seca e do
Perequê-açu.

Praia e Rio Puruba

24 25
As comunidades deste território têm Vivendo na Mata Atlântica, entre rios, Existe ainda outra unidade de
características comuns na cultura, na manguezais, praias, restingas e florestas, conservação no território, na área do
economia e no ambiente em que vivem há as comunidades caiçaras e quilombolas mar, a Área de Proteção Ambiental
muitos séculos, numa relação direta com herdaram muitas práticas dos povos Marinha-APAM-LN, de uso sustentável,
a natureza, dela coletando materiais para originários indígenas como a roça, criada em 2008 e que só teve seu plano
uso como cipós, madeiras, ervas, frutos, principalmente da mandioca e a feitura de manejo assinado em junho de 2022.
plantando e pescando seus alimentos. da farinha dela, a pesca, o artesanato e o
Antigamente a caça era utilizada também conhecimento das plantas, além de muitas
como fonte de alimentação. palavras que dão nome aos lugares e As caracteríssticas fundamentais
as coisas do dia a dia. Dos povos mais
Os povos originários indígenas que antigos receberam também a arte de fazer
do territórios tradicionais dos
ocupavam este litoral na época da canoas, que misturada ao conhecimento indígenas Guarani Mbya, dos
colonização eram os Tupinambás, que de navegação dos portugueses gerou a
foram exterminados pelos invasores caiçaras e dos quilombolas serão
canoa caiçara. Herdaram também outras
através de guerras e de doenças para as práticas dos invasores europeus, como apresentados nas próximas
quais eles não tinham resistência. O povo a religião cristã e a língua portuguesa,
guarani ocupou este território através de
páginas. As informações
que mesclada com palavras tupinambás
migrações constantes em busca da “Terra formou o modo de falar típico do caiçara. reunídas são fruto da pesquisa
sem mal”, um lugar onde o mal (mba’e
de campo realizada em cada
meguâ) não existe. Essa inspiração faz A partir de 1970, com a chegada da
com que o povo guarani siga lutando por rodovia BR-101, estas comunidades uma das comunidades citadas.
suas terras, por seu modo de ser e viver passaram a enfrentar ameaças constantes
A equipe de pesquisadores
(Nhandereko), diferente do modo de vida e perdas de seus territórios, travando
do homem branco (juruá), que coloca disputas em função da especulação do Projeto Povos é formada
cercas e transforma tudo em propriedades imobiliária, do turismo e do modo de vida por técnicos e comunitários,
privadas e em mercadoria, inclusive urbano, os quais trouxeram impactos
a própria terra, algo completamente negativos às culturas tradicionais. gente do próprio território,
inconcebível para o povo guarani. valorizando o conhecimento local
Outra ameaça é a política ambiental
As comunidades caiçaras se formaram a instalada de forma agressiva através do e respeitando as formas de como
partir da mistura forçada com colonizador Parque Estadual da Serra do Mar-PESM, as comunidades decidem ser
europeu, principalmente dos portugueses, de proteção integral, criado em 1977,
com os povos originários indígenas e num que ocupa grande parte do território e representadas.
segundo momento com os povos trazidos criminaliza as práticas ancestrais dos
da Africa e que aqui foram escravizados. povos nativos.
“Nós por nós mesmos.”
As comunidades quilombolas são O PESM surgiu com uma
constituídas pelos descendentes dos proposta de ser um parque
africanos que eram utlizados como mão que preservasse a cultura
de obra escrava e que permaneceram
caiçara, mas não foi isso o que
ocupando as terras das antigas fazendas
aconteceu. Depois, eles perseguiram
e dos quilombos depois do fim da
e criminalizaram as práticas
escravidão, em 1888.
tradicionais”.
José (Zeca) Júlio Barbosa, 58 anos,
caiçara do Félix, 2021

26 27
Saúde Caminhos acesso da estrada velha da Casanga à
direita, logo após a entrada da praia de
Os postos de saúde ou Unidades Básicas Itamambuca, percorrendo cerca de um
Desde a década de 1970 o principal quilometro até a entrada da aldeia. A
de Saúde (UBS) no Norte de Ubatuba 2
acesso às comunidades caiçaras, partir daí, é preciso estacionar o carro e
atendem a um conjunto de comunidades,
indígenas e quilombolas do Norte de seguir a pé por uma trilha e atravessar
não havendo uma UBS em cada uma,
Ubatuba 2 é pela rodovia BR-101. Antes, o Yakã Porã (Rio Bonito). Quando o rio
o que em alguns casos seria o mais
os caminhos eram feitos em trilhas enche não é possível passar. A aldeia
apropriado, não só devido as distâncias
ancestrais e por mar. Eram os “caminhos luta há anos pela construção de uma
entre as comunidades como também pelas
antigos”, percorridos a pé e de canoa. passarela pela prefeitura, assim como
especificidades em saúde que cada povo
O tempo andava mais devagar, havia pela liberação de um acesso para
apresenta. Atualmente, a UBS Taquaral
pessoas que nunca haviam saído para carros pelo Morro do Tiagão, situação
atende as comunidades da Barra Seca.
muito longe de suas comunidades. E, na que está em processo judicial e sendo
A Praia Vermelha do Norte é atendida
memória do povo, apesar das distâncias, acompanhada pela Comissão Guarany
pela UBS Itamambuca, localizada no
havia mais proximidade entre as Yvyrupa-CGY.
loteamento de Itamambuca, que atende
pessoas, pois ao percorrer as trilhas se
também a comunidade do Quilombo do Pouco mais à frente na estrada velha da
passava de comunidade em comunidade
Sertao de Itamambuca. Em relação a Casanga chega-se ao Quilombo Sertão de
e muitas vezes se fazia pernoite nelas.
saúde da aldeia Rio Bonito, os indígenas Itamambuca.
Tinha-se mais tempo para colocar em
tem cadastro no Posto de saúde do
dia as prosas e as notícias.

Transporte
Itamambuca, mas são atendidos pela
equipe de saúde indígena da Aldeia Boa O acesso para a Aldeia Boa Vista (Tekoa
Vista, que faz visitas e atendimentos na Jaexaa Porã) se dá por um caminho
Há apenas uma empresa de ônibus com
Aldeia Rio Bonito. Também existe um de terra, a partir da rodovia BR-101 à
linhas para o norte de Ubatuba, embora
agente de saúde indígena da própria altura do Km 30, acessível com veículo
a demanda seja grande. Há ainda uma
aldeia (Rio Bonito). motorizado até o posto de saúde. Em
diminuição dos horários das linhas durante
seguida há uma trilha margeando o
Já a UBS Puruba, localizada na praia do feriados e fins de semana, gerando
rio Prumirim, de 10 a 15 minutos, para
Puruba, atende as comunidades do Félix, dificuldades para as comunidades, além
acessar a Tekoa/Aldeia. O acesso à
Puruba e Prumirim. Na Aldeia Boa Vista, de atrasos nos horários e valor alto da
Aldeia Akarai Mirim se faz pelo sertão
há um posto de saúde para atender as passagem.
do Puruba, através de trilha.
demandas locais.

As comunidades ainda usam o


Tanto para acessar a Aldeia Rio Bonito
(Tekoa Yakã Porã) como o Quilombo
Saneamento
conhecimento tradicional das plantas
Sertão de Itamambuca é possível Nas cidades litorâneas geralmente não
para o cuidado da saúde. De acordo
ir de veículo pela estrada velha da há um amplo sistema de tratamento
com a memória dos moradores, num
Casanga, antiga via que liga o Perequê- de esgoto e de abastecimento de água.
passado recente, os partos ainda eram
açú a Itamambuca. Pela BR-101, a Em Ubatuba, desde 1975, a empresa
realizados em casa. Com o trabalho de
entrada pode ser feita por veículo na que faz a gestão dos serviços de água
parteiras muita gente veio ao mundo nas
rotatória do Perequê-açú, percorrendo e esgoto é a Sabesp, mas não alcança
comunidades.
aproximadamente 5 km até a entrada do mais do que 50% da necessidade total do
Quilombo de Itamambuca e um pouco município e seus serviços estão focados
mais para a entrada da aldeia. Para mais na região central. No Norte de
quem segue pela BR-101 no sentido de Rio Puruba Ubatuba 2 não há serviço de coleta de
Paraty-Ubatuba, é preciso entrar no
28 29
esgoto ou abastecimento de água e as
comunidades utilizam fossas sépticas e
captam água das nascentes e rios locais.
População
Já na aldeia Rio Bonito não há nenhum
sistema de saneamento. Os dados populacionais foram extraídos
a partir dos relatórios e diagnósticos
O Comitê de Bacias Hidrográficas do
de turismo na região, além de dados do
Litoral Norte (CBH-LN), órgão responsável
Censo 2010 do IBGE e coleta de dados
pela gestão das águas no Litoral Norte do
Estado de São Paulo, aponta que os rios
População estimada na Secretaria de Assistência Social e
Unidades Básicas de Saúde de Ubatuba e
Quiririm/Puruba, Prumirim, Itamambuca em cada comunidade também dos relatos das comunidades.
e Indaiá/ Capim Melado possuem grande
disponibilidade de abastecimento de do MT
água. Mas nas temporadas de verão, tanto
nas áreas mais centrais onde a Sabesp
opera quanto no Norte da cidade há COMUNIDADE POVOS POPULAÇÃO
problemas com falta de água. No centro, 87 pessoas
PURUBA Praia Caiçara
o aumento da população visitante gera a (censo 2010)

dificuldade pela defasagem dos serviços


Aproximadamente 109 moradores
e no Norte esse aumento da população (Monteiro, Patrícia et al. Turismo de Base
PURUBA Sertão Caiçara comunitária e Plano de Negócios, 2015) e
se soma a inexistência do serviço público
de abastecimento. As chuvas de verão 46 famílias (de acordo com a comunidade)
também causam problemas na qualidade 370 habitantes
PRUMIRIM Caiçara
da água a ser consumida. No entanto, (Censo 2010)

é preciso, além das questões técnicas


ALDEIA BOA VISTA 220 habitantes,
a serem superadas, que haja diálogo Guarani Mbya sendo aproximadamente 53 famílias
(Tekoa Jaexaá Porã)
com as comunidades tradicionais para (ISA, 2021)

se pensar qual seria o melhor sistema


Aproximadamente 20 caiçaras
de atendimento à região, pois devido FÉLIX Caiçara resistentes. 13 descendentes do Júlio
às características locais instalar o Osório Barbosa (5 filhos, 6 netos e 2 bisnetos)
mesmo modelo de saneamento e de
QUILOMBO SERTÃO 60 famílias, totalizando
abastecimento de água do centro pode
Quilombola aproximadamente, 300 pessoas
não ser a melhor solução. Sistemas DE ITAMAMBUCA (de acordo com a comunidade)
com tecnologias alternativas e eficazes
poderiam ser aproveitados nessa ALDEIA RIO BONITO 12 famílias (CERE) e 47 habitantes
Guarani Mbya
região, como prevê o próprio plano de (Tekoa Yaka Porã) (de acordo com a comunidade)

saneamento municipal.
Caiçara 300 habitantes
(Censo 2010)

PRAIA VERMELHA 300 habitantes


Caiçara
DO NORTE (Censo 2010)

Foto aérea do núcleo familiar caiçara do Puruba praia

30 31
(PESM), de 1977, uma categoria de Jaexaá Porã (Aldeia Boa Vista), Yyakã
proteção integral que criminaliza as Porã (Aldeia Rio Bonito) e Akaray
práticas ancestrais como as roças, o Mirim (Aldeia do Sertão do Puruba).
extrativismo e a própria manutenção Ela possui aproximadamente 97%
das moradias. Há ainda outra Unidade de sua área sobreposta pelo Parque
de Conservação no território, no mar, Estadual da Serra do Mar, gerando
a Área de Proteção Ambiental Marinha conflitos em relação a suas práticas
do Litoral Norte (APAMLN), de 2008, de uso e manejo de recursos naturais
que é de uso sustentável, ou seja, dentro de seu próprio território.
ainda que com restrições, permite
atividades tradicionais. Há também a São áreas reconhecidas pela FUNAI
incidência regras federais como, por e que estão em revisão, sendo o
exemplo, instruções normativas. Em mapeamento muito importante
2019, depois de muitas tentativas, para contribuir nos processos de
foi constituído o Plano de Manejo da Demarcação e de proteção aos
APAMLN contando com a importante territórios indígenas, de seus direitos
atuação da Coordenação Nacional de e de suas culturas.
Comunidades Tradicionais Caiçaras
(CNCTC) e do Fórum de Comunidades O Quilombo do Sertão de Itamambuca,
Tradicionais Angra-Paraty-Ubatuba, é reconhecido pelo Relatório Técnico-
Encontro das culturas tradicionais de Ubatuba que através do seu GT-Pesca/ Científico do Itesp de 1998 e pela
na Escola José Belarmino Sobrinho Maricultura (grupo de trabalho de Fundação Cultural Palmares através
defesa e apoio aos pescadores/ do Portaria nº 2 de janeiro de 2006. O
pescadoras e maricultores Quilombo do Sertão de Itamambuca
tradicionais) conseguiu garantir também tem seu território sobreposto
direitos para atividades ligadas à
Educação As crianças e jovens da Praia Vermelha pelo Parque Estadual da Serra do Mar
pesca no Plano de Manejo, que está (PESM), situação que causa problemas
do Norte e da Barra Seca estudam
em vigência desde junho de 2022. na utilização de trilhas para a práticas
em escolas no bairro do Perequê-açú
Há três escolas municipais no Norte de Turismo de Base Comunitária e
(Escola Dionísia Bueno Velloso), no Aprimorar o diálogo entre as Unidades
de Ubatuba 2, do Puruba à Barra também para o feitio de roças.
centro (Escola Dr. Esteves da Silva e de Conservação e as comunidades
Seca, que atendem as comunidades
Capitão Deolindo de Oliveira Santos) e tradicionais é essencial para a As comunidades caiçaras têm
próximas ou em seu entorno: (1)
creches no bairro Pedreira e Taquaral. constituição de políticas efetivas para muitos problemas em seus
a E.M. José Belarmino Sobrinho, preservação ambiental, que não territórios por não haver um marco
no Puruba, com atendimento até o desrespeite a história e os direitos
Unidades de
legal estabelecido em relação a
Ensino Fundamental; (2) a E.M Honor dos povos tradicionais da região. demarcação de seus territórios como
Figueira, situada dentro da loteamento
Itamambuca, com atendimento do Conservação Afinal, essas comunidades são parte
do ambiente natural e seus modos de
as aldeias e quilombos, embora estas
comunidades estejam presentes nas
ensino Infantil ao Fundamental I, e vida contribuem para a preservação legislações que garantem direitos
As comunidades têm grande parte da natureza. ao povo caiçara, como o Decreto
(3) a Escola Estadual Indígena Jaexã
de seus territórios tradicionais 6.040/2007 que estabelece a Política
Porã, da Aldeia Boa Vista, que atende sobrepostos por Unidades de A Terra Indígena Boa Vista foi Nacional de Desenvolvimento
exclusivamente as aldeias Boa Vista, Conservação, que foram instaladas homologada pelo Decreto nº Sustentável dos Povos e Comunidades
Rio Bonito e Akarai Mirim com Ensino de forma autoritária e sem diálogo 94.220/1987 e identificada pelo Tradicionais do Brasil.
Fundamental I ao Ensino Médio. com as comunidades, como é o caso Despacho da Presidência Funai nº
do Parque Estadual da Serra do Mar 529/2013. É formada pelas Tekoa
32
Resumo das ações do Projeto POVOS
nos territórios do Norte de Ubatuba 2
CAI«
CAI «ARAS DO

2
Resultados
por território
tradicional
Marcos Antônio de Morais Pesca do camarão branco

36 37
PURUBA
PRAIA E SERTÃO
Assim como as demais comunidades caiçaras, a
comunidade do Puruba é descendente da mistura
dos povos indígenas, europeus colonizadores e povos
africanos. O caiçara do Puruba tem entre suas
práticas históricas a pesca, a caça, a agricultura de
subsistência, o artesanato, a culinária, técnicas que
são aprendidas e compartilhadas através de
gerações.

Praia e Rio Puruba

38 39
Puruba é uma comunidade caiçara no Benedito Carlos de Cristo (Carlinhos)
norte de Ubatuba, dentre tantas que
se espalham sobre o extenso litoral
da cidade, como conchas na areia da
praia. No Puruba, assim como em todo

TEMPOS E
o território, a rodovia BR-101 como um
grande rio de asfalto serpenteando entre
morros e costões dividiu a comunidade

ESPAÇOS no caminho da praia para o sertão, além


de interromper os caminhos naturais
dos animais e das águas de chuvas e
Da parte que eu ouvi contar, destruir roças e casas de comunidades.
não que eu vivi, aqui no No Puruba as águas moldam o tempo e
os lugares. Para chegar à praia é preciso
Puruba foi um dos primeiros
atravessar os rios Puruba e Quiririm que
lugares a ser colonizado, na época se
se encontram desaguando no mar, numa
entrava de barco, esse rio tinha três, paisagem que moldou também o modo
quatro vezes a quantidade de água que de vida da comunidade que há séculos
tem hoje e a sede era lá em cima. Foi vive no local.
aí que começaram a vir as famílias
pra trabalhar, na época. Aí depois que Da praia do Puruba se vai por trilhas
para a praia do Surutuba e para a praia
acabou a escravidão, meu avô, bisavô,
do Meio. Antigos caminhos que ligavam
que moravam tudo lá dentro, Boa
as comunidades caiçaras, dos quais
Esperança, Morro do Tatu, começaram muitas partes permanecem vivas no chão
a vir aqui pra fora. Inclusive meu avô, e inteiros na memória do povo. Através
isso o pai ainda conta e meu tio contava, desses caminhos as comunidades se
ele foi criado lá em cima na cachoeira comunicavam e viviam em meio a uma
do Rio das Pedras, Toca da Andorinha. exuberante natureza, que utilizavam para
Com o tempo eles foram vindo pra se alimentar, construir suas casas, fazer
roças, canoas e pescar. Assim era a vida
fora. O pessoal veio de lá de dentro
das comunidades antes da construção
pra cá. Aí começou. A mãe [falava que]
da rodovia BR-101, num tempo em que
tinha bastante família aqui na época. a cidade permaneceu pouco habitada
Depois começaram a sair e ir embora após o fim dos ciclos econômicos que
daqui, muitos foram embora. (...) Vem dependiam da escravidão no século XIX,
da época da escravidão. Nossa mistura como as plantações de café. Com o fim
aqui ainda tinha índio, que era nossa da escravidão e a construção de estradas
de ferro para levar a produção de café
descendência, que já estavam aqui.
do interior de São Paulo para o Porto de
Nossa descendência é de índio, escravo
Santos as cidades do litoral caíram em
negro e português. Acho que todo decadência e foram abandonadas pelos
brasileiro original na verdade tem essa fazendeiros ficando a população nativa
mistura, basicamente essa mistura aí. vivendo de roças de subsistência, da caça
(...) e da pesca artesanal. Era o tempo dos
antigos.
Benedito Carlos de Cristo (Carlinhos),
58 anos, caiçara do Puruba Sertão, 2021

40 41
Com a vinda dessa rodovia Mudou o próprio costume dos “Depois que passou a rodovia,
BR-101, principalmente dos caiçaras. Hoje em dia, família por um tempo foi bom. Não
anos 1980 pra cá, começou caiçara é muito pouca. Teve vamos dizer que foi ruim
essa mudança. O povo parou de a mistura do caiçara com outro povo porque foi bom. Você tinha acesso pra
trabalhar na roça, os filhos que foram que veio pra construção civil. Porque cidade... Porque antes da rodovia, a
crescendo já foram indo pra cidade, uns antes da BR [...] Todas essas praias não gente tinha um problema muito sério
pra morar mesmo, outros pra trabalhar, tinham muito acesso, não tinham valor que era em relação à saúde. Se ficava
mexer com obra, sobretudo, depois comercial até. [...] O morador brigava uma pessoa doente aqui, você tinha
da rodovia teve muita obra. A maioria às vezes, pra vender a terra pra quem que ir a pé pra cidade, isso dificultava
começou a sair daqui. Ninguém queria tava chegando. Não existia comprador muito, as pessoas às vezes morriam.
mexer com roça mais, foram trabalhar de terra. E a terra não valia nada. Assim Mas os caiçaras também tinham aquela
com obra, comércio, começou negócio de que veio a BR, a explosão do valor da inteligência de usar muitas ervas, tinha
praia também, trabalhar em praia, tudo terra mudou, mudou o costume, mudou os benzedores, quando era mordido por
isso”. a população, que antigamente tudo era cobra... Então isso era uma tradição,
da família, todo mundo conhecia todo uma cultura que eles aprenderam com
mundo. Então mudou tudo isso aí, os os antigos. Mas, aqui no Puruba, de
Benedito Carlos de Cristo (Carlinhos),
58 anos, caiçara do Puruba Sertão , 2021 costumes, a maneira, a cultura, o jeito uns vinte anos pra cá, aí começou a
de ser”. invasão [...] Isso foi ruim, foi péssimo.
A rodovia trouxe esses problemas que
José Roberto Santos, caiçara, o caiçara não tinha. Sabia cuidar. Você
69 anos, 2021.
pescava tainha no inverno. Robalo de
linha, no inverno. Sargo, garoupa, outros
peixes, era no verão. Então sabia. Caça
também... Plantar mandioca, o milho,
o feijão... Era tudo equilibrado, não
era, assim, plantar de qualquer jeito.
Os caiçaras tinham esse conhecimento.
Não só os da praia como os do sertão.
Os quilombolas também, os índios.
Então a gente tinha essa harmonia com
a natureza e na hora de fazer as coisas,
plantar, pescar”.

Dimas Oliveira, caiçara do Puruba Praia,


2021

Seu Benedito Fernandes, mestre das


José Roberto Santos, caiçara
tradições caiçaras do sertão do Puruba

42 43
PESCA Mas tinha respeito. Época de tainha,
AGRICULTURA E você não podia falar do jeito que eu tô
EXTRATIVISMO falando[...] ia espantar o cardume. Já

PESCA
perguntou o que era o cerco? Aquele
cerco de tainha? A hora que eles vinham
tirar o covo com as tainhas, pro seco, os
O mar é um espaço de uso coletivo e mais velhos iam tudo bem na frente. A
compartilhado com outras comunidades. gente chegava lá com um pé na frente
Várias técnicas de pesca como rede de do outro, se rastejando, ficava olhando
fundo, pesca de linha, cerco flutuante, lá, um em cima da árvore, outro lá na
rede boiada e rede de superfície são ponta, vendo o peixe caindo dentro do
comuns em diversas outras comunidades
covo. A gente só aparecia depois que o
do litoral paulista e fluminense. A pesca
covo tava na beira do rio com os peixes.
é feita tanto para o consumo quanto para
o comércio e é um conhecimento que Era respeito.”
se aprende cedo, quando as crianças
acompanham os parentes mais velhos Dimas Oliveira, caiçara do Puruba Praia, 2021
no fazer. Uma tradição que se encontra
ameaçada por causa de restrições da
O peixe tinha muito, todo tipo
legislação ambiental, vazamentos de
de peixe. Principalmente na
óleo por grandes embarcações, poluição,
perda de território, desvalorização da época da tainha, entrava muita
pesca artesanal, introdução de costumes tainha no rio, mas não tinha rede pra se
urbanos e turismo predatório. A canoa pescar, né? Aí o pessoal pescava com
caiçara, uma herança das canoas um tipo de... Como se fosse um covo,
indígenas, está presente em todas as eles chamavam covo. Fazia uma esteira
comunidades caiçaras é um grande de bambu, pro lugar mais baixo do rio,
símbolo da resistência e da cultura que esse rio era bem fundo. Faziam uma
da pesca artesanal. Resistência que a
cerca e no meio colocava o covo. Quando
Associação dos Amigos e Remadores
o peixe entrava no rio e passava com a
da Canoa Caiçara, a AARCCA, ajuda a
manter viva através da realização de maré cheia, eles abaixavam. E depois
corridas de canoas, eventos nos quais o iam recolhendo o peixe, [...] Só que
povo caiçara se encontra, rema, conta e não tinha geladeira. Então eles tinham
canta sua cultura. que tirar na época, no dia que tava de
“Meu pai era pescador,
acordo, servia pra comunidade inteira.
fazia rede, todo tipo de
Dividia, não era comércio, era pro
A gente ia botar rede aí [cerco rede, até o cerco depois, mais
pessoal. E aí quem tinha um pouquinho
de Tainha]... A gente criança, tarde que veio o tipo de cerco,
de sal, essas coisas, escalava o peixe e
assim, com 10, 12 anos... O meu
secava e armazenava pra comer... “ ele chegou a fazer alguns [...]
pai e os outros mais velhos iam, com
Rede de tainha, rede de arrasto,
aquele lanço de rede enorme, aquele
monte de peixe, vinha pequeno e grande. Dimas Oliveira, caiçara do Puruba Praia, ele entralhava, o pessoal levava.”
2021
Se ia um daquele garoto pegar um peixe Dimas Oliveira, caiçara do
grande do meio lá da rede já levava um Puruba Praia, 2021
esporro. Era respeito, não podia. Eles
que separavam tudo, botava no balaio,
aí o que ficava lá, os miúdos, aí a gente
ia lá e pegava e fazia a festa que queria.

44 45
PESCA e pescado das comunidades pesqueiras, ...Mas como a gente
AGRICULTURA E fortalecendo a economia solidária. Outra ação plantava, a gente tinha.
EXTRATIVISMO do FCT que apoia a roça tradicional se dá A cana mesma coisa.
com a participação no Grupo de Trabalho da Trabalhava, trabalhava, aí depois,

ROÇA Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente


do Estado de São Paulo sobre a RESOLUÇÃO
chegava lá pelas 4h, a gente vinha,
trazia a cana pra moer, pra fazer o
As roças fazem parte da vida do caiçara
SMA Nº 189, DE 20 DE DEZEMBRO DE 2018, café, era tudo da roça que a gente
tanto quanto a pesca. Herança cultural que
que “Estabelece critérios e procedimentos tinha, só da roça. Tenho até uma
garantiu o alimento limpo na mesa do povo por
para exploração sustentável de espécies bandeja de lembrança. Eu fazia
gerações. Porém, com a instalação em 1977
nativas do Brasil no Estado de São Paulo” farinha, forneava, quando não tinha
do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM),
e também dialogando nesse espaço sobre o sol quente já colocava no forno o
uma Unidade de Conservação de Proteção
RESOLUÇÃO SIMA Nº 28 , DE 17 DE ABRIL café, depois vinha, almoçava, ia pra
Integral que abrange a área do Puruba, muitas
DE 2020 que “Dispõe sobre os critérios para lá pra torrar café. E já levava meus
dessas áreas de agricultura de subsistência
a concessão de autorizações em caráter filhos também pra me ajudar. Era
foram se perdendo, pois passaram a ser
emergencial para a atividade de implantação assim a vida da gente. Feijão tinha
criminalizadas. Na pandemia de covid-19,
de roças tradicionais praticadas por povos e porque a gente plantava. (...) Nós
sem poder plantar como antigamente, as
comunidades tradicionais no Estado de São colhíamos de oito alqueires de feijão,
comunidades enfrentaram uma dificuldade
Paulo, em resposta à Pandemia de COVID-19 você acredita? Era muito trabalhador,
maior, com a dependência de comprar comida
(Novo Coronavirus).” era muito feijão, e vendia. Vendia
Dona Mocinha
da cidade agravando a situação, pois com a na vendinha do Compadre Antônio.
alta dos preços e as atividades de trabalho
Com essa atuação o FCT conseguiu a regularização (...) A gente fazia farinha, tinha o
paradas a situação ficou muito complicada.
de roças de famílias caiçaras do sertão do Puruba, porto ali, do pessoal lá do barco, o
O Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT)
até então criminalizadas e com grande pressão nas Porto da Toca [risos]. Aí eles levavam
apoiou as comunidades tradicionais através da
famílias. Tempos em que plantar mandioca e feijão farinha. As meninas mais velhas A roça sempre foi importante.
"Campanha Cuidar é Resistir" com a entrega
é proibido, mas se constrói mansões na mata. ajudavam ele a levar lá no porto. Aí Era uma outra vida. A gente
de cestas básicas agregadas com alimentos ele levava com uma canoinha. Era vivia tão focado nesse mundo
orgânicos das comunidades agricultoras assim que a gente fazia, pra comprar tão pequeno que a gente viveu... Não tinha
as coisas, o que a gente não tinha, o essa visão do mundo no geral, que você
sabão e o querosene. Tudo na base não se preocupava... O que tinha, você
da canoazinha que a gente descia e ia comia. Se você tinha um pedaço de carne
Casa de farinha da Dona Mocinha embora. Deus ajudava que não virava seca e não tinha feijão, não tinha nada,
comia com água e farinha, que é a famosa
aquela canoa [risos]”.
sopa d’água, aquilo era uma maravilha,
Rosa Maria Jesus Fernandes, caiçara no era uma delícia... Pirão de peixe com
Puruba Sertão, 81 anos, 2021 farinha. Café da manhã era batata doce
com café, abacate com café, banana com
café, bijú... Um mundo tão pequeno, mas
era tão gostoso... A gente tinha aquilo tão
centrado na vida da comunidade, a gente
nem pensava em nada”.

Dimas Oliveira, caiçara do Puruba Praia, 2021

46 47
A timbupeva era pra PESCA
“O imbé é tirado na lua certa “Antigamente, o caiçara não
fazer o tipiti, o balaio, AGRICULTURA E e a quantidade que você vai tinha colchão, era feita a
porque era mais durável. Faz-se
EXTRATIVISMO precisar praquilo. Servia pra esteira de taboa. Você cortava
de taquara, taquaruçu, mas são
mais fracas. A timbupeva, que é USO você amarrar a madeira pra fazer a casa
de pau a pique, servia pra fazer o cabo da
a taboa nessa época do ano, a taboa mais
nova, você ia colher a taboa na lua certa,

TRADICIONAL
a raiz do cipó, ela é forte. Um
rede, servia pra um montão de coisa que pra ela não dar o cupim, pra não dar
tipiti feito de timbupeva demora
você ia fazer com o imbé, ele servia pra broca, colhia na época certa, na lua certa
DA MATA
muito tempo pra se acabar. Então
corda de amarrar [...] Tudo que tivesse e deixava, fazia o manejo, você colhe,
dava trabalho você catar essas
uma corda pra amarrar era o imbé que limpa, deixa três dias, dois dias de sol, no
coisas mas nesse varzeão aqui
Coletar paus secos para lenha do fogão, amarrava. terceiro dia você vai lá, traz e pode fazer
tem muito. E é a raiz, você não
ervas para curar o corpo e a alma, cipós sua esteira e a esteira demorava muito
vai estragar a timbupeva, você
“É que normalmente você tempo pra se acabar. Era o colchão. Não
leva uma foice com cabo para tecer balaios, pau para cabos de
fazia o roçado, derrubava o era costume, era necessidade. A casa era
comprido, corta em cima, tira, enxada, madeira para fazer uma viola
roçado e depois se plantava de sapê ou então de guaricanga, o pessoal
ele depois brota, dois, três ou rabeca ou uma canoa e um remo.
dois anos naquela região. Depois, você que morava mais encostado no morro
brotos e vem até aqui embaixo. É O artesanato que é também utensílio,
abandonava e nascia o capim melado, que fazia de guaricanga, que é uma vegetação
que nem gamela, banco, casa, colher de pau. Ou
é o capim gordura, e nascia o sapê. Então que parece um coqueirinho que tem
a caixeta, se você corta uma canoinha de enfeite e passarinho. todos aqueles morros eram sapezal. O no mato também. É cortada só a folha,
caixeta, pra fazer uma peça que
O uso dos recursos da floresta tem seu sapê gosta de lugar descampado, lugar não é cortada a vegetação. O sapê, você
você precisa, depois ela brota,
aberto com sol. Tinha muito sapê [...] E já arrancava e no lugar que você arrancava,
dois três brotos, e fica mais tempo ditado pela natureza, quem retira
ajudava o caiçara porque era importante, no ano seguinte, o sapê tava formado
bonita ainda. É até necessário o material sabe quando e como é o jeito
servia pro rancho de canoa, servia pra outra vez”.
fazer o manejo”. certo de fazê-lo. Esses conhecimentos são
casa de moradia, pra casa de farinha, tudo
passados de geração para geração.
fazia de sapê. Aí tinha o vento noroeste, José Roberto Santos, caiçara do Puruba
José Roberto Santos, caiçara do Puruba O que normalmente se chama de manejo, Praia, 69 anos, 2021.
que quando batia... [risos] Arrepiava tudo.
Praia, 69 anos, 2021. as comunidades chamam de tradição, Mas aí fazia-se mutirão [...] e depois na
que também é feita pela necessidade. parte da cozinha eles nem mexiam porque
Algumas dessas coisas ainda se faz, muitas fazia o fogão de lenha, ali embaixo,
já não. Assim como na roça e na pesca a pra assar o peixe... Então subia aquela
lei ambiental não respeita a tradição, o fumaça com gordura, formava aquela
conhecimento que tem dentro dela e a sua fuligem que chama o picumã, e aquilo ali
função, para o homem e para a natureza. A conservava de tal maneira que o sapê por
tradição não destrói a floresta, ele permite cima criava fungo, limo em cima e não
sua renovação pelo uso. gotejava. E não era qualquer um que sabia
cobrir a casa com sapê, tinha os caiçaras
Era o balaio, samburá pra especializados pra fazer essa cobertura
pesca, covo pra pesca, tipiti de casa. Pra arrancar, qualquer um podia
pra prensar massa, peneira... arrancar o sapê. Mas pra cobrir a casa,
Isso era tudo feito aqui. O meu pai fazia eram poucos que sabiam fazer o trabalho
balaio, samburá... Peneira não fazia. direito. Tinha a mão de obra especializada
Sempre tinha alguém que fazia uma do sapê [risos]”.
coisa, aí o outro não sabia fazer uma
coisa mas fazia outra. Aqui quem fazia
Cesto de timbupeva feito pelo caiçara tipiti na época era o Anastácio, meu tio.
E peneira o tio (Angelino) cada um tinha
uma função. Tio Dico, Benedito Alexandre

48 Benedito Carlos de Cristo (Carlinhos), 49


58 anos, caiçara do Puruba Sertão , 2021
PRÁTICAS DE Dona Izaira Alexandre de Oliveira
FESTAS,
80 anos de congada aqui, desse grupo
que permaneceu. Aqui no litoral é

CUIDADO /
praticamente aqui no Puruba, que veio
CELEBRAÇÕES de Cunha e ensinou. [...] Pessoal fazia
promessa: “fiz uma promessa em tal

SAÚDE E LENDAS lugar, dá pra vocês irem lá dançar?”.


Pessoal ia, pra dançar, pra pagar a
promessa que a pessoa fazia. Hoje
Se dava uma tosse, minha Os bastões rebatem no chão de terra ou de passou a ser mais uma cultura. Mas
avó mandava fazer remédio
madeira ecoando os tempos dos antigos tinha um fundamento religioso. Hoje o
caseiro, fazer banha de galinha,
dançadores comandados pelo saudoso Dito objetivo é valorizar a cultura, o folclore,
mandava cozinhar folha da laranja cravo,
Fernandes, mestre da Congada de Bastões independente de religião”.
aquela bem novinha, depois fazia o
de São Benedito do Sertão do Puruba.
chazinho, depois deixava amornar o chá,
As camisas azuis reluzem no brilho das Benedito Carlos de Cristo (Carlinhos), 58 anos,
pingava três, quatro pinguinho de banha caiçara do Puruba Sertão, 2021
de galinha. A criança tomava aquele chá, luzes elétricas ou das fogueiras. A família
pronto, saía tudo aquele catarrão do continua a tradição. Lá dos idos da década
peito. de 1940 quando uma serraria de caxeta Tinha festa de Santa Cruz. Não é
[...] foi montada no sertão e os trabalhadores, que a gente diz que era melhor
Agora eu trato muito o pessoal com vindos de serra acima, de Cunha, que os outros lugares, não é,
ferida, com tumor assim, com banha trouxeram a dança para o litoral purubano. é porque a gente fazia azul marinho e
de lagarto. [...] Meu filho, saiu um Criação do povo negro africano, misturada era assim, de cem quilos de peixe que
tumor nas costas, era uma espinha, a gente fazia [...] E vinha muita gente.
com a religiosidade cristã e espalhada por
né? Ele passou a espinha na parede Tinha corrida de canoa, tinha corrida
muitos lugares do país.
e ralou, sabe? E aí criou um tumor de pedestre, o policiamento vinha pra
desse tamanho, parecia um ovo. Aí o tomar conta...”
A congada não é do meu
pessoal: “levar pra cidade”, e ele triste,
tempo, mas meu pai contou Benedito Carlos de Cristo (Carlinhos), 58 anos,
triste, não queria ir pra cidade... Aí
[...] E nessa época veio esse caiçara do Puruba Sertão, 2021
eu fui e fiz um anguzinho de farinha,
pessoal que lá em Cunha já tinha esse
botei num paninho fino, botei banha
negócio de congada, grupo de congada.
de lagarto, bastante banha de lagarto,
Eles começaram a ensinar o povo aqui,
pus nas costas dele, passei uma faixa.
uns tios meus até, meu tio avô, que
Ele dormiu, quando chegou de manhã,
começaram a dançar primeiro. Irmãos
a cama tava alagada. Aí furou, nossa,
da minha avó, que aprenderam a dançar
saiu aquele sangue, sabe? Quando eu
na época [...] Aí o pai cismou, falou:
tirei o emplastro assim, nossa... Aquilo
“vamos montar um grupo de congada”.
vazava que nem uma cachoeira, que
Ele ensinou a gente a dançar [...] Até
nem uma torneira. Tratei com banha de
hoje se mantém esse grupo, que é uma
lagarto. Ninguém tem ferida nas pernas
tradição que ficou, estamos aqui quase
aqui, não, minha filha, as pernas tudo
limpinha, saiu alguma coisinha, já banha
de lagarto, é... “

Izaíra Alexandre de Oliveira, 86 anos, e Maria


Aparecida de Oliveira (dona Bahia), 81 anos,
caiçaras do Puruba Praia, 2021.

50 Geni Fernandes de Cristo 51


CELEBRAÇÕES
FORMAS DE
EXPRESSÃO
MODOS DE
FAZER
LUGARES EDIFICAÇÕES ASSOCIAÇÕES
Roça/Farinha,
Artesanato COMUNITÁRIAS
Festa de (Balaio,Peneira, Cachoeiras, 3 Casas de
Congada Há duas associações comunitárias, a
Santo Antônio Pilão, Esteira Praia, Capela, Farinhas
Chinelo Chapéu Associação de Moradores do Puruba
de Taboa) (AMP) - Puruba Praia e a Sociedade
São Gonçalo, Mãe Amigos do Puruba (SAPU), com sede no
Pesca Capela de Santo Puruba Sertão.
Festa da Associação do Ouro, Nove Praia
tradicional António
Rosas

Sede da
Festa das Crianças Viva São Benedito Mutirão Capela
Associação
BANDEIRAS
“São Benedito
saiu passear, Ben-
Posto de Saúde,
DE LUTA DO
dito louvado seja,

Natal
Hoje eu vi correr
uma Estrela, O
Casa de Pau a
Pique, Torrar
Escola
Morro do espia Igreja FCT NAS
COMUNIDADES
Café Assembleia
quando o Mundo
fosse acabar, Viva
São Benedito” O Fórum de Comunidades Tradicionais
Casa de atua com a Comunidade do Puruba
Corrida de Canoa Feitio de canoa Capela Santa Cruz
Farinha através do Projeto Povos e do Projeto
Pesca Redes, além de apoiar a comunidade
Festa da Santa Cruz Ruinas
Tradicional durante a pandemia de covid-19 com
14 de Setembro entrega de cestas básicas. Apoiou

Encontro Evangélico também famílias do sertão do Puruba


na regularização de suas roças. O
movimento também dialoga com a escola
Congada de bastões de São Benedito
municipal local, em que estudam os
jovens das comunidades do norte de
Ubatuba, através do seu Coletivo de
Apoio à Educação Diferenciada, que
busca construir pautas voltadas para
um ensino baseado no conhecimento
tradicional, contribuindo para a
construção de políticas públicas na
educação que valorizem a cultura das
comunidades.

Maria Aparecida de Oliveira ( Dona Baia) na Capela Santa Cruz


SOBREPOSIÇÃO Fazenda, acho que aqui no sertão do
Puruba tem alguma coisa ainda... Logo
AMEAÇA CAUSADA
DE PARQUE que a rodovia passou, abriu a estrada POR GRANDES
aqui, a estradinha aqui, o meu pai EMPREENDIMENTOS,
ESTADUAL, plantou 1kg de feijão. Ali bem na entrada
POLUIÇÃO E
LEGISLAÇÕES da estrada do Puruba, colheu 60kg de
feijão, não teve uma pessoa que fosse lá ESPECULAÇÃO
AMBIENTAIS E e tirasse uma vagem verde”.
IMOBILIÁRIA
CRIMINALIZAÇÃO Dimas Oliveira, caiçara do Puruba Praia, 2021
A gente tinha que respeitar Como tem esse esquema do

DE PRÁTICAS porque a gente vivia através


disso, dependia. Dependia do mar, do
Parque aqui, o pessoal tem
medo de fazer uma derrubada porque

TRADICIONAIS Só que essa área nossa aqui do


Puruba não pode ser derrubada
conhecimento do vento, da lua... Hoje em essa área do caiçara são 120m de
frente aqui e vai fazer divisa quase com
dia o ser humano depende disso, porque
Primeiro veio a roça, herdada dos porque existe o meio ambiente,
isso traz energia. Acaba água, não tem Cunha”.
indígenas. A prática do roçado garantiu o Parque, essa coisa que tomou conta,
planta, não tem vida. Se poluir os rios, José Roberto Santos, caiçara do Puruba
a segurança alimentar das famílias que não é uma coisa ruim, é uma coisa
não tem peixe. Se destruir a mata, acaba Praia, 69 anos, 2021.
caiçaras por gerações e a roça alimentou boa, mas você não pode cortar uma
perdendo o ar, essas coisas. Tudo é vida,
gerações. Depois veio o Parque Estadual madeira pra fazer um remo, você não
pra nós, seres humanos e, hoje em dia,
da Serra do Mar e o parque não permitiu pode cortar uma caixeta pra fazer um
as pessoas não têm mais esse respeito,
mais a roça. Entre uma coisa e outra, instrumento, você não pode cortar um
acham que desmatar, poluir os rios e o
nenhum diálogo, nenhum entendimento guapurubu pra fazer uma canoa se você
do modo de vida tradicional caiçara. mar não vai ter consequência”.
não tiver licença, que os caras vêm,
Sendo que os dois, comunidade e parque, te multam, apreendem o seu material Dimas Oliveira, caiçara do Puruba Praia, 2021
poderiam preservar juntos a natureza. de trabalhar, levam tudo embora. Essa
E preservar a cultura de um território
é a dificuldade. O morador do lugar
ancestral.
não tem liberdade pra viver do jeito
dele. Se estiver tirando cipó no mato,
Oficina POVOS Puruba Praia
de timbupeva ou de imbé, pra fazer
o balaio, pra fazer a cesta deles, se
der azar de encontrar com a polícia
Foi por causa da lei, né? a lei
ambiental, ele vai preso, ele vai lá
que proibiu. Porque se tem um
responder, vai perder tempo e levar
mato aí, um capim melado, se
multa ainda”.
você vai lá e roça e planta uma mandioca,
como a gente chama uma mandioca José Roberto Santos, caiçara do Puruba
doce pra você poder comer frita, assada, Praia, 69 anos, 2021.

uma melancia, uma batata, um milho...


A gente faria. Mas hoje a gente não faz
proveniente da proibição. Criminalização.
Tem no Ubatumirim, no sertão do
Ubatumirim, acho que no Camburí, na
54 55
MAPAS FALADOS

O QUE FOI MAPEADO

(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)
Foram mapeados elementos como casa
de farinha, capelas, igrejas, sedes de
associações comunitárias, roças, áreas
de pesca, posto de saúde, escolas,
praias e ruínas.

56 57
58 59
60 61
PRUMIRIM
A comunidade é formada
por diversos núcleos
caiçaras espalhados entre
praia e sertões, originados
pela descendência indígena,
portuguesa e africana,
característica da formação
desse povo. Como em toda
comunidade caiçara a pesca
e a agricultura são
fundamentais na história
desta comunidade, práticas
que estão na raiz da história
do povo e de sua cultura.

Rio Prumirim e canto direito da Praia do Prumirim,


Foto aérea de Rafaela Espindola Fernandes

62 63
TEMPOS E
Mamãe fazia chazinho Entrevista com José Coutinho dos Santos sobre as
de losna pra dor de roças caiçaras e manejo do feitio da canoa caiçara.

ESPAÇOS
barriga, pronto [...] ‘O que
arde cura, o que aperta segura’,
ela falava. A minha mãe tinha o
O tempo e o lugar de um povo é feito pelo entendimento. Também parteira, né?
que ele conta. Pelo que ele vive. Sua história Ela era parteira, então ela tinha todo
passa pela relação com o território e pelas [conhecimento].”
relações familiares como entre as famílias
Barbosa Dutra, Belarmino, Domingues da Maria Aparecida dos Santos Eustáquio,
caiçara do Prumirim, 64 anos, 2021.
Costa, Vieira de Novaes, Altivo dos Santos,
Coutinho dos Santos, Domingues Leite,
Feliciano de Moura, Jerônimo dos Santos A minha avó falava que
e Moisés, que formam núcleos caiçaras do tinha uma descendência de
Prumirim ou Promirim (existem variações índia, né? Agora, da parte
no modo de falar da comunidade). Esses do meu avô, eu não sei. Da minha
núcleos se ligam pelo parentesco e pela mãe, ela sempre falava que tinha
história no território no qual vivem mantendo uma descendência de índio, que meu
práticas tradicionais como a pesca artesanal. avô falava.”
A rodovia BR-101 atravessa todo o território
Gilda Santos do Rosário, caiçara do
tradicional e atravessa a sua história. Prumirim, 73 anos, 2021
Divide o povo entre antes e depois, espalha
loteamentos nas beiras de praias onde havia
as casas de pau a pique, derrubando-as
[...] que eu te falei
e expulsando o povo, que passa a viver na
que comprou de uma
margem, da rodovia, dos rios, da história.
condessa portuguesa,
que quando os índios perderam as
E vocês aprenderam a fazer com quem? terras, os brancos foram doando,
[enquanto seu Ramiro remenda a rede] os portugueses, aí quem herdou
aqui o litoral aquela época foi
Eu aprendi sozinho[...] conde, condessa de Portugal...
Eu não sabia fazer uma Esse Joaquim Domingues dos
canoa. Meu pai sabia. Fui a Santos, bisavô dele, comprou dessa
primeira, a segunda vez, falei: “pai, condessa, que é do Ubatumirim aqui
eu vou fazer uma canoa sozinho”, até o Prumirim na época, 1800 e
terceira vez eu fui lá, derrubei a bolinha...”
madeira e fiz a canoa [risos]. Não
José Coutinho dos Santos, 100 anos,
sabia fazer um remo, peguei, “vou caiçara do Prumirim, 2021
fazer um remo”, fiz. É assim. [...] Não
tem nada que eu não faça. Não tenho
estudo, mas as práticas eu tenho”.

Ramiro Domingues dos Santos, caiçara do


Prumirim, 63 anos, 2021.

65
Porque antigamente os fazendas de café. Então, ali tinha Das nascentes que descem da serra do
portugueses colocavam os escravos [...] Ali do Prumirim, mar, desliza o rio Prumirim, que dá nome
muito nome de santos, né? diz que a lagoa, ali, tem toda uma à praia, à ilha, à cachoeira e à comunidade
Então ela era Cornélia Maria de Jesus. história, diz que tinha um traficante caiçara também, no Norte de Ubatuba. Por
Mas a filiação dela é dos Domingues. de escravos que era o capitão Antônio cima de sua cachoeira salta uma ponte de
Agostinho Domingues dos Santos, que [...] eram três irmãos, um traficava concreto e asfalto, em direção às distâncias,
era um português que veio da Ilha da pro sul, outro pro outro lado e esse que antigamente eram percorridas a pé nas
Madeira, era o tetravô dela. Ele tinha descia aqui, e ali na lagoa, tinha trilhas da mata ou de canoas no mar. “Mas
fazenda no sertão do Poruba. Então um pelourinho ali que era onde ele o mundo do rio não é o mundo da ponte”.
a minha descendência, por parte da prendia[...] Essas histórias eu ouvia E assim, mudou-se a paisagem, do lugar e
minha avô Cornélia ela era tetraneta já dos meus antepassados, na beira da gente do lugar que se espalhou entre os
de portugueses, com a mistura de do fogão de lenha do vovô, assando morros dos sertões. Morro Boa Esperança e
africanos e indígenas. Ela contava banana nanica, e nós sentados em Sertãozinho, nomes que o povo dá aos seus
que sua bisavó foi caçada a laço na cima do fogão ouvindo história, o vovô lugares de morar, depois de afastado da
mata, e meu avô, Casemiro Feliciano contava as histórias dos escravos... E beira mar pelo loteamento que tomou seu
de Moura, também, descendente aí esse caminho do valo foi feito pelos lugar. E tendo de se reorganizar num mundo
de portugueses colonizadores José escravos pra vir água pra cá, mas diferente do seu de costume a comunidade
Barbosa Dutra seu tetra avô dono da isso no tempo dos escravos, a gente incorpora, mesmo que a duras penas, coisas
Fazenda Água Branca no Sertão do só tinha a marca, conhecia onde era o novas para lidar, o turismo, a prestação de
Poruba, Feliciano de Moura da sua valo, que era um valo bem fundo, que serviços, quiosques e passeios de barco e, no
bisavó Maria Francisca Barbosa, dona era pra vir água da cachoeira pra cá." meio disso tudo, ainda pescar.
da Praia e sertão do Léo e Belarmino
Vieira de Novaes, que herdou terras no Ivete Feliciano de Moura, 58 anos, caiçara
da Praia do Léo, 2021
Promirim
[...] Depois que veio a BR aqui
Na nossa família, a gente ficou com parou a roça. Minha mãe
uma incógnita, porque a minha avó mesmo não trabalhava
tem a descendência pelo lado da mãe, mais. Porque a estrada dividiu onde
que é filha desse português, mas do era roça, a estrada passou no meio,
outro lado, do lado do pai dela, diz então não tinha mais como plantar
que a bisavó dela era uma dessas nada. O morro aqui do lado, ali em
escravas lá da Mariana Moreira da cima, perto da cachoeira, era da
Cruz, do sertão do Puruba, [...] aí minha tia também e ela vendeu
tem uma incógnita, mas diz que a depois da estrada e foi embora... Aí
Gertrudes, que do lado da minha avó, não tinha mais como trabalhar.
a avó do pai dela era filha da escrava, Ela parou com tudo”.
da Gertrudes, da Mariana Moreira da
Cruz. Gilda Santos do Rosário, 73 anos, caiçara
do Prumirim, 2021
[...]
O caminho do valo é assim, no tempo
que a gente morava não existia mais
escravo, mas no tempo em que existia
Ivete Feliciano de Moura
os escravos, o Puruba era cheio de

66
Começou toda a mudança
Praia do Léo
depois que a Rio-Santos
abriu, que teve a mudança
de tudo. De condução [...] E as
coisas, depois que a estrada abriu,
foram acontecendo, foram vindo
os loteamentos, as construções
grandes, nunca teve esse loteamento
no Prumirim, hoje tem”.

Lauriana Lúcio de Oliveira Santos, Claudete Manoel dos


Santos, José Moisés "Tio Zeca", João Moisés "Dango",
Luciano Antônio de Oliveira | Integrantes do Grupo
Sementes, grupo cultural caiçara do Prumirim, 2021

A BR foi terminada em 1973


pra 1974. Então é mais ou
menos isso mesmo, porque
eu lembro da máquina passando
abrindo as estradas, a rodovia aí [...]
Pegou um bocado de gente que era
caiçara pra trabalhar nas estradas”.
Maria Aparecida dos Santos Eustáquio, 64 anos,
caiçara do Prumirim, 2021

Porque depois que passou


essa estrada aí, acabou
com tudo. [...] Isso aqui era
fundo (Rio Prumirim), 4m, 3,5m de
profundidade... Acabou, acabou.”

Ramiro Domingues dos Santos, 63 anos,


caiçara do Prumirim, 2021.

68 69
PESCA
AGRICULTURA E
EXTRATIVISMO

PESCA
Nos ranchos abrigados das marés as comigo, eles ficavam ancorados e eu saía
canoas descansam das idas e vindas pra trabalhar. Só tinha medo mesmo do
do mar. Os pescadores do Prumirim vento Sudoeste. Leste, Sudeste, esses
conhecem os caminhos de água do peixe, ventos assim, eu não corria, não. E quem
mas hoje em dia esses caminhos estão trabalhava comigo, o cara tinha que ser
difíceis de serem encontrados mesmo bom porque eu não corria de tempo ruim,
pelo olhar experiente. Nesse correr do
não corria”.
peixe ele esbarra em grandes barcos
industriais que o impedem de chegar Ramiro Domingues dos Santos,
aonde o pescador artesanal está e lança 63 anos, caiçara do Prumirim, 2021.
sua rede. A rede muitas vezes também
traz mais plástico do que alimento. Ou Seu Ramiro, enquanto remenda a rede,
vem manchada e impregnada de óleos explica passo a passo como começa e
estranhos. E longe das águas e dos arruma uma rede de pesca, explicando
olhos dos caiçaras, em gabinetes de que o tamanho da rede se mede “pelos
escritórios fazem leis que não protegem olhos” e que só precisa “tabuleta, a
o peixe e muito menos quem vive dele, agulha e a linha” para o modo de fazer
mas ajudam a afastar do mar os filhos essa arte.
dos pescadores. Enquanto crescem como
cardumes as lanchas, iates, jetskis, Os que fazem remo, canoa, já
marinas e loteamentos nas praias. morreram tudo, estão morrendo
[...] Agora bateu essa covid aí [...] Quem
remenda rede já tá indo [...] E o que tá
Aprendi primeiramente a vindo, não aprende [...] E os que estão
trabalhar na pesca com o meu ficando, não sabem pegar uma agulha,
pai, depois que eu peguei a idade de não sabem nem o que é isso aqui. Tem
14 anos, saí pro mundo abaixo, [..] fui que ensinar, né? Isso aqui é o bom
pegando idade, depois fui pra Santos [...] querer da pessoa. Se você não quer
fui lá pro Rio de Janeiro [...] O que eu aprender as coisas [...] Tá acabando
tenho hoje em dia é praticamente tudo da esse pessoal que remenda rede”.
pesca, não tenho nada de outro setor de
trabalho, só de pesca. Então a minha vida
Ramiro Domingues dos Santos,
foi só no mar, só no mar... Tempestade 63 anos, caiçara do Prumirim, 2021.
grande... O povo corria, eu não corria,
não... Os caras de fora que estavam junto
Ramiro Domingues dos Santos remendando rede.

70 71
Eu comecei em 1984, tinha 16 {Por que os filhos não querem saber?}
anos quando eu fui pra
Santos. Tinha bastante "Por causa disso aí mesmo. Meio
muita sardinha,
[peixe]. Tinha
muita sardinha. Agora, ambiente fica atrapalhando, antigamente
de uns 20 anos pra cá, acabou tudo [...] a gente trabalhava, não precisava de
Muito barco grande, muito aparelhagem documento, eu mesmo com 7 anos já
[...] Antigamente, a gente vinha aqui e a pescava. Hoje, não, hoje as criançadas
tainha era muita [...] Meu Deus, tainha! não podem pescar, os homens chegam lá
[...] A gente tinha menos rede e matava e pegam, porque: "cadê o documento?",
mais peixe, hoje tem um monte de rede se não tem, acabou. "
e não mata o que matava antigamente”. Mario Jerônimo dos Santos, Elaine Gabriel
“O Nilton fala que se acabar Rico, Thaise da Silva Santos, Rubens Vieira de Oliveira Benedito
Rubens, Mario, não vai ter mais Coutinho dos Santos "Rico" |
Pescadores caiçaras do Prumirim, entrevista coletiva, 2021
pescador[...] Os filhos não querem
Madrugada na pesca | Marcos Antônio de Morais saber[...] A gente vai ter que comprar
e Nilton Jerônimo dos Santos peixe pra comer [risos]”

72 73
PESCA Antigamente era muito difícil o ...muitas
AGRICULTURA E custo de vida porque você não
dessas áreas
EXTRATIVISMO tinha alimentação, tinha gente
que podia um pouquinho e tinha gente de agricultura de
ROÇA que não, vivia mais da pesca e da roça.
Hoje em dia você não pode mais plantar,
subsistência foram
se perdendo.
Por gerações as roças, junto com a pesca Antigamente a gente roçava porque tem a área da ambiental que vem
e a caça, alimentaram o povo de Prumirim. 1 alqueire, 2 alqueires de e não deixa você limpar um pedaço de
Tudo no seu tempo, porque se assim terra e plantava tudo... E terra, porque não pode derrubar pra você
não fosse, não se teria para o dia a dia.
dava... Plantava aí em 1 alqueire de fazer uma roça de mandioca [...] Nessa
Entendendo cada espécie e seu momento.
terra de rama, pique de rama, quando parte muita gente tá sofrendo ainda hoje
Um conhecimento vindo dos indígenas e
que serviu até para o colonizador sobreviver
era no outro ano você ia colher. Aí você por isso. Tem que pedir autorização, pra
na nova terra. Da mandioca se fazia muita ia fazer a farinha, faz de tudo... Vendia uns pode, pra outros não pode [...] É mais
farinha. Com a cana se adoçava o café que o mandioca, vendia farinha. Eu mesmo fácil pra quem tem muito dinheiro e mais
povo mesmo plantava, colhia, torrava e moía. levava cinco, seis saca de farinha, pra ruim pra quem é de baixo, pequeno.”
Enroscado na rama da mandioca o feijão cidade, de canoa, vendia. Aquele tempo
crescia. O milho também tinha. E a batata era de graça, era trezentos réis um quilo, Maria Aparecida dos Santos Eustáquio, 64
doce, inhame, cará e banana de muitos tipos. anos, caiçara do Prumirim, 2021
quatrocentos réis, quinhentos réis.”
Mas a estrada tapou com asfalto muitos
mandiocais, rasgou e soterrou morros,
{E quais as etapas pra fazer uma roça,
derrubou casas de farinha e fechou caminhos
me explica?}
ancestrais de servidão. E o Parque Estadual Tinha roça lá, tinha roça aqui,
da Serra do Mar, que sem perguntar, sem mais pra cima... Aí tem o
conversar e sem conhecer o que o nativo
Ter coragem [risos]. Roçar, se
caminho do valo, que é um caminho feito
conhecia, proibiu o plantio. Assim, no tiver pra mata pra derrubar,
pelos " escravizados"na época ,para
Prumirim, como nas demais comunidades, derruba a mata, tem que secar,
trazer água para Praia do Léo , deve
um dia as roças foram marginalizadas e depois queimar, aí limpa tudo... Aí se é
estar no meio do mato, abaixo da estrada
muitos lugares de plantio abandonados, mas pra cavar, terra limpa você faz valeta,
a lembrança não se abandona num dia.
Rio-Santos, onde foi feita a variante
agora terra assim que nem aí você faz
da estrada, no caminho entre o Léo e
cova, assim. Pronto. Não tem nada de
o Promirim , ali ficava o caminho do
segredo pra plantar”.
Valo[...] Mesmo ali onde a gente deixa os
carros, ali era roça, minha mãe plantava
feijão, mandioca, a gente ia pra roça, aqui
José Coutinho dos Santos, 100 anos,
caiçara do Prumirim, 2021 tinha um bananal enorme, que meu pai,
meu avô, meus tios, plantavam banana,
então tinha roça pra todo lado.”

Ivete Feliciano de Moura, 58 anos, caiçara


da Praia do Léo, 2021

José Coutinho dos Santos - roçando o quintal

74 75
{Como que faz uma canoa?} PESCA A casa do meu pai, todas as
AGRICULTURA E casas que tinham, era de pau
Achava uma madeira no EXTRATIVISMO a pique e era coberta de folha

USO
mato aí, você media a de guaricanga, sabe? Quando não era
torada, assim, a madeira, de sapê. Pessoal ia lá pro mato, cortava

TRADICIONAL
ingá, timbuíba, cedro, essas madeiras folha de guaricanga pra poder cobrir
boas[...] Uma braça, são 2m [...] Depois a casa. Era tudo assim, pau a pique,
é só cavocar com o machado[...] Aí tira
do mato e bota na água. Umas dez, doze DA MATA barreada, de barro, e coberta com isso.
Nunca existia telha aqui, depois que com
pessoas...” Macerar uma erva, deixar secar uma o tempo que foi crescendo tudo, aí que
folha, esquentar um chá num fogão de foi cobrindo de telha, mas antigamente
{Como faz um remo?} era sapê e guaricanga que era feito o
lenha, preparar um unguento, conservar
telhado. Mas agora todo mundo tem suas
uma semente para o tempo certo do
casas, né? Coberta. E o chão também
“Você tem que tirar a madeira dessa plantio, jeitos de se fazer que são
não tinha piso, o chão era feito de barro
grossura, mais ou menos 17, na também chamados de manejos, mas
mesmo, não tinha nem cimento, nada”.
casca, fica com 15, aí você vai e que ao caiçara não importa o nome que
lasca ela, lasca a madeira, vai ficar se dê, mas o fundamento do fazer, que Gilda Santos do Rosário, 73 anos, caiçara
duas lascas, aí você vai pegar a vem com o tempo dos que vieram antes do Prumirim, 2021
madeira, deixar a forma do remo, da aprendendo e ensinando aos filhos.
pá do remo, lá no começo, tipo um
desenho, assim[...] Já fiz mais de 300 No Prumirim esses conhecimentos são
remos.” utilizados para cuidar da saúde, do
alimento, para fazer artesanato. O povo
{E qual madeira que usa?} traz na memória o tempo das casas
feitas de pau a pique com cobertura
“Guacá, porque a madeira no mato que de sapé ou de guaricanga. Tempo dos
brota. Quase toda madeira no mato mutirões de roça e de barreamento das
brota, todas. Só madeira que não brota casas, quando todo o povo se unia no
é o cedro, ipê, bicuíba [...] Que não brota trabalho e no festejo. Tempos em que
[...] Agora imbiruçu, que faz remo, brota,
havia mais fazedores de canoas, que é
guacá brota, que tem três qualidades:
uma prática ancestral muito simbólica
tem do branco, tem do amarelo e do
e importante para o povo caiçara e que
vermelho, o Guacá. A madeira melhor
hoje em dia restam poucos que ainda
pra fazer o remo. Tem o jacatirão, [...]
tem esse conhecimento. Contam que
essas madeiras, todas elas brotam. Se
você corta 1m fora do chão, passa 2 antes toda comunidade tinha mestres
anos, 3 anos [...] Você cortou uma, ela canoeiros.
produz três a quatro brotos”.

José Coutinho dos Santos, 100 anos,


caiçara do Prumirim, 2021

Benedicto Fernandes | artesão e mestre canoeiro Gilda Santos do Rosário

76 77
PRÁTICAS DE quando a minha mãe sentiu dor, meu pai
foi chamar a parteira, que meu pai saía

CUIDADO /
do Prumirim pra ir lá no Puruba, buscar
a parteira, andando. Quando as parteiras
chegaram, a minha mãe tinha ganhado

SAÚDE a Rosinha já, sozinha lá [...] “Espera


que a comadre já tá vindo”, a comadre
Iria e a comadre Maria Viúva que
Aí a minha tia Dolores aprendeu
morava na Praia do Leo, que também
através da avó dela, da tia
tava aprendendo com eles. Aí a minha
Mariazinha, lá do Félix, tia
irmã ficou quase meia hora ali, nascida
Mariquinha que chamava, ela aprendeu e
com o cordão, tudo, as duas parteiras
passou a fazer parto. Ela fez o parto da
chegaram, fizeram todo trabalho que eu
Ana, da minha, do Miro[...] Uma mulher
vi, cortar o cordão do umbigo da neném,
maravilhosa. E a Carmem eu tive com a
a Rosinha tava roxinha, a tia Iria deu
Maria Balbina, ela era do Ubatumirim,
uma soprada na moleira, ela chorou,
mas morava no centro, na Estufa acho
virou de bruços, fez assim nas costinhas,
que ela morava. Era tudo que sabia
depois do umbigo cortadinho
fazer as simpatias, que
tinha deles, pra dar pra Antigamente a que não pode mexer ainda, aí
a Rosinha gritou, chorou, aí
gente... Antigamente a gente ganhava pronto, arrumaram a mamãe,
gente ganhava neném, já
neném, já conseguiram tirar a placenta,
tinha duas, três galinha
pendurada [risos] pra tinha duas, fez assim na barriga da minha

gente comer o (escaldado) três galinha mãe, a placenta saiu, aquela


sangueira, daí ela arrumou
da galinha, a única coisa pendurada tudo, botou a nenê do lado dela
que a gente comia [risos],
[...]
fazia o escaldado pra
comer [...] Era tudo assim, era bem
No dia seguinte fazia queimada de erva
cuidado, sabe? Banho de algodão que
cidreira, uma calda de açúcar bem
dava, que fazia pra dar antigamente nas
amarelinha. Depois do chá pronto jogava
mulheres. Fazia banho de algodão com
em cima daquele açúcar, saía aquela
sal e banhava daqui pra baixo [...] Era
fumaça gostosa [...] Eu também tomei
muito bom."
muito. O banho de algodão é bom pra
fortalecer, tirar inflamação de dentro do
Gilda Santos do Rosário, 73 anos, caiçara útero da mulher. E a queimada de erva
do Prumirim, 2021 cidreira é pra tirar os coágulos, pra não
coagular o sangue dentro do útero da
mulher, aí toma aquele chá quentinho,
Quando eu assisti o parto
o sangue desce... Então eu aprendi isso.
da minha irmã, minha irmã
Ela fez muito pra mim”.
hoje vai fazer 46 anos, a idade da
Maria, então eu tava grávida da Maria,
Maria Aparecida dos Santos Eustáquio, 64
grandona, e a minha mãe tava grávida da
anos, caiçara do Prumirim, 2021
Rosinha. Mamãe teve a Rosinha com 50
Maria Aparecida dos Santos Eustáquio e a folha de algodão.
anos. E a Rosinha nasceu perfeita [...] Aí

78 79
FESTAS, Tinha festa de Santo Antônio,
que fazia lá na casa do tio

CELEBRAÇÕES Antônio. Uma vez, o Leo foi


festeiro, comprou cento e cinquenta

E HISTÓRIAS leitoas, convidou muita gente pra


comer... Quando chegou no final,
ninguém deu conta de comer os
A comunidade do Prumirim preserva leitõezinhos que ele comprou, todo
várias tradições musicais da cultura mundo pegava e levava embora pra casa.
caiçara através de seus mestres e Mas foi uma festa muito grande a festa
mestras que além de participarem que o Leo fez pra Santo Antônio, ele foi
de eventos e festividades na cidade, festeiro, ele queria ser sozinho, e fez
mantém grupos de tocadores aquela festa que todo mundo conhece”.
incentivando e ensinando as crianças
e jovens, mantendo acesa a vela da Maria Aparecida dos Santos Eustáquio,
continuidade da cultura do povo. 64 anos, caiçara do Prumirim, 2021

{E a festa de São Roque já existia?}


E a festa do Divino, quando
vinha cantar, na casa do papai, “Existia. Desde o sertão [...] E como era antes
ficavam quatro, três dias... Aí vinham, essa festa, lá em cima, quando era sertão,
dormiam na casa do Marcolino, depois como que era, vocês lembram, o que tinha?
Mestra e mestres, Lauriana, Tio Zeca e Dango.
cantavam tudo no morro aqui, desciam Vinha gente do Puruba [...] Fandango o dia
pra praia, cantavam no morro de lá, inteiro... Café de cana, vinho... Tinha cachaça
voltava pra ficar em casa de novo... Aí [...] Aquelas latas de biscoito de Jacareí desse
o pai dava comida, dormida, café da tamanho assim... Biscoitinho torradinho.”
manhã pra eles, era muito lindo”
"Fazia o mastro, tinha o capitão do mastro,
Gilda Santos do Rosário, 73 anos, caiçara que tirava, pintava, punha pra secar...
do Prumirim, 2021 Tinha um sorteio, né? A comunidade ali na
capela, tinha um sorteio, e aí cada um tirava
um nome, e ficava: fulano era... Tinha um que
era capitão do mastro, o alferes da bandeira...
Claudete Manoel dos Santos | foto tirada pela Luisa
E três que tomavam conta da festa, que eram
Cardoso durante a passagem da folia do Divino Espírito
Santo em junho de 2022 o festeiros. Tinha o festeiro e dois ajudantes
de festeiro, que aí esses três que organizavam
a festa, da comida, dessas partes assim dos
eventos... O da bandeira fazia a bandeira,
cortava o pano, fazia seus desenhos, e tinha
o do mastro que cortava o pau, tinha que
comprar a tinta com seu dinheiro, ele mesmo
fazia... E aí na hora da celebração que levava
aquele mastro, quem fez, era todo aplaudido,
né? Pela coisa que fez..."
Grupo sementes do Promirim

80 81
FORMAS DE MODOS DE E como era a celebração? Saía daqui, como O povo falava que tinha muito... Esqueci
CELEBRAÇÕES LUGARES EDIFICAÇÕES funcionava?
EXPRESSÃO FAZER o nome que fala... Que diz que quando
"A procissão... Saía daqui e ia até a guarita ali, a pessoa fica amarela, muda de cor...
Pesca (arrasto
camarão, linhada, a rodoviária vinha e segurava aqui e segurava Lobisomem! Antigamente diz que
Festa de São Roque cerco, caceio,
Forró Praia Escola lá... tinha. Eu ainda alcancei... Meu tio
(16 de agosto) picaré, guaiamum,
guaiá, marisco, Antonio foi vender roupa lá no sertão
pegoava...)
Era uma procissão bonita, hein? Saía lá da
portaria, com o mastro, quatro carregando o do Ubatumirim, chegou tarde da noite,
Artesanato mastro, uma na frente carregando a bandeira, chegou lá gritando que o lobisomem
Festa das Dança de (barcos de madeira, Paisagens Capela São quatro na frente carregando o andor, uma
remos, vassouras, tinha vindo atrás dele... Mas eu nunca
associações (maio) São Gonçalo canoas, cestos, naturais Roque mais na frente segurando a cruz, e ia...
vi, ele sempre falava que tinha, que
esteira, abajur) Parava a estrada. Vinha dois guarda pra
quando a pessoa era amarela... Diz que
ajudar a parar os carros pra gente passar
Conhecimento tinha três aqui no Prumirim, agora eu
Festa das crianças Cachoeira Aldeia Quadra de com a nossa procissão, era lindo...
Tontinha das plantas não sei mais os antigos... Que eram
(outubro) Indígena, poção futebol E a gente cantando atrás...
medicinais lobisomem... [risos].”
Cantando a folia...
Folia de Reis Feitio de 9 quiosques Quando chegava em frente à capela, colocava
Natal (dezembro) Rio Prumirim
(folia e celebração) farinha caiçaras o mastro e a bandeira primeiro, no buraco
Gilda Santos do Rosário, 73 anos, caiçara
do Prumirim, 2021
Trilha do Isidoro lá, e soltava aqueles fogos de artifício, fazia
(ponta de pesca), aquela festa... Aí entrava pra capela pra
Fandango: Xiba Trilha do canto fazer a novena, a celebração de São Roque,
(música e dança); Cana da praia das era muito lindo! Aí depois da novena tinha
Capela de
Festa de Santo verde (música e dan- conchas, Trilha aqueles fogos que parecia final de ano... Aí
Roçados Santo Antônio
Antônio ça); Ciranda (música que liga sertão todo mundo rezava, se cumprimentava e abria
(ruína) “A história que eu vou contar é verdade
e dança); Serra baile; Boa Vista e Boa a cantina, todo mundo comia, a gente tinha as
Dança do Sabão Esperança, [risos]. Eu tinha casado de novo e
barraquinhas...
Trilha Prumirim- fui tomar banho na praia, larguei de
Puruba Pessoal do Puruba vinha e fazia
trabalhar aqui na casa, aqui em cima,
barraquinha...
Lendas: Ilha da e fui lá embaixo... Peguei a roupa, toalha
3 ranchos E uma semana antes a gente entrava no mato
tartaruga, mãe do e fui lá pra praia. Tomei banho, já era 6h
Divino Espírito Criação caiçaras na pra cortar as palhas de pindova, pau, pra
ouro; lobisomem; Piscina natural [...] Daqui a pouco, olhei na metade da
Santo de galinha praia do Leo e
pessoa que joga montar as barraquinhas, era muito gostoso..."
3 no Prumirim praia, vi um cachorrão preto, fiquei com
areia (jundu)
{Mas tocava o quê? Quais tipos de música?} medo. Falei: “será que é o cachorro do
Mirante (Prumi-
Corpus Christi Livros das músicas rim, Puruba e “Cana verde, o que viesse [...] começava com Altivo? será que vai me morder,
(junho) autorais da Caça Praia das Con- Casa de farinha xiba, ciranda e terminava no fandango até estranhar...”. Fiquei na beira do
comunidade chas) amanhecer o dia [...] Era canoa, era samba, marzinho. Ele ia pra baixo e voltava pra
era valsa, era tudo [...] E tinha vitrolinha
cima. [...] Aí pulou em cima de mim. Eu
a pilha, que caso os tocadores cansavam,
Campings: larguei a toalha, assim, e botei pra
Benzedeira colocava a vitrolinha lá... Mas a hora que
Folia de Reis Ilha e ilhote Altivo e Marcão sambar com ele [...] era lobisomem
Parteira acabasse a pilha da vitrolinha, os tocadores...
e Marcolino
[risos] Ciranda era perto de amanhecer o mesmo. Sambei com ele uma meia
dia... Os que restavam do forró, que não iam hora”.
Mutirão Lagoa embora, faziam a ciranda no final [risos]”.
José Coutinho dos Santos, 100 anos,
Lauriana Lúcio de Oliveira Santos, Claudete Manoel caiçara do Prumirim, 2021
Mangue dos Santos, José Moisés, Luciano Antônio de Oliveira |
Integrantes do Grupo Sementes, grupo cultural caiçara
82
do Prumirim, 2021 83
ASSOCIAÇÕES quer derrubá-los. Mais uma luta que a
comunidade trava para permanecer em seu

COMUNITÁRIAS
território com seu trabalho. Assim acontece
com os ranchos de pesca caiçara também,
que são passados de geração a geração no
As crianças e jovens da comunidade
território ancestral e que os pescadores
esperam ansiosas os dias de ensaio e
Dito, Rico, Mário, Rubens e Nilton estão
oficina de aprendizagem de instrumentos buscando regularizar. As incompreensões
tradicionais caiçaras e das danças e são muitas, como as burocracias.
toques como xiba, ciranda, cana verde e
canoa que compõem o fandango caiçara,
trabalho feito pelo Grupo Sementes do
Promirim, no qual mestres e mestras
BANDEIRAS
da manifestação ensinam a tradição dos
antigos como o saudoso mestre Orlando.
DE LUTA DO
Destaca-se também a Associação de
Moradores da Comunidade Caiçara do
FCT NAS
Promirim (AMOPRO), organizada para
cuidar da comunidade e lutar pelos seus
COMUNIDADES
direitos, realizando também mutirões Lideranças caiçaras do Prumirim
para revitalizar a antiga escola da participam do Fórum de Comunidades
comunidade para transformá-la num Tradicionais (FCT) com trabalhos como o
Centro Comunitário Caiçara. Existe também Projeto Povos e do Projeto REDES, de apoio
a Associação de Barqueiros das Praias às comunidades pesqueiras. Também há
do Prumirim e Félix (ABPPF), criada com participação em ações do Coletivo de Apoio
o objetivo de organizar e fortalecer estas à Educação Diferenciada e na “Campanha
comunidades de pescadores, que também Cuidar é Resistir”, na qual as comunidades
desenvolvem atividades turísticas como o foram apoiadas pelo FCT e Petrobras,
passeio para a Ilha do Prumirim, outras nos momentos mais críticos da pandemia
ilhas e praias da região. covid-19, com cestas básicas e incentivos à
economia solidária, comprando produtos da
Antes a pesca e a roça eram a base do
agricultura e pescados das comunidades.
sustento familiar. Com a chegada do
turismo e das restrições às práticas O FCT também atuou na defesa do direito
tradicionais pelas leis ambientais e pelo à permanência no território perante a
Parque Estadual da Serra do Mar (PESM), pressão pela retirada dos moradores
o turismo se impôs como uma forma nativos e realocação em unidades
de economia para a comunidade. Os habitacionais, CDHU, por um programa
quiosques são antigos, todos de caiçaras, do Estado de São Paulo, iniciado em 2007,
geram renda para a comunidade e para em parceria com o Banco Interamericano
pessoas do entorno que neles trabalham. de Desenvolvimento (BID), com a proposta
A comunidade corre o risco de perdê- de realocar moradores de áreas do Parque
los também, pois ao invés de adaptá-los Estadual da Serra do Mar (PESM), sem
aos novos tempos respeitando o direito considerar o histórico de ocupação do
Maria Aparecida Domingues de Oliveira, Catarina Lúcia de Oliveira, Thais de oliveira santos,
da comunidade ao ambiente, o Estado território, habitado há séculos por famílias Kaylani Maria dos Santos e Alice Santos de Oliveira limpando camarão.
caiçaras, um território tradicional que
84 posteriormente se tornou parque. 85
SOBREPOSIÇÃO DE Não posso cortar madeira. Não
AMEAÇA CAUSADA Quando começou a construção
posso ir lá em cima, porque da estrada Rio Santos, com ela
PARQUE ESTADUAL, pra tirar madeira aqui por perto não
POR GRANDES veio a especulação imobiliária, meu
LEGISLAÇÕES pode. Tem que ir lá longe tirar madeira EMPREENDIMENTOS, avô Casemiro, era herdeiro da Praia
do Léo, Sertãozinho do Léo , Fazenda
AMBIENTAIS E e pra trazer, não dá. O que eu posso
POLUIÇÃO E Água Branca no Sertão do Poruba , e
tirar madeira é guacá. Porque os caras,
CRIMINALIZAÇÃO uns cinco anos atrás, me pegaram lá
ESPECULAÇÃO Promirim, ele herdou dos portugueses

DE PRÁTICAS em cima, com cinco ramos de cedro IMOBILIÁRIA colonizadores, seus antepassados.
Ele vivia feliz na praia do Léo, com
TRADICIONAIS no ombro, me pararam. Falei: “tirei
Antes a pesca e a roça eram a base do seus familiares e ajudava muito sua
a madeira pra fazer o remo que eu tô
O Parque Estadual da Serra do Mar se sustento familiar. Com a chegada do comunidade, foi inspetor do quarteirão
precisando, a madeira que eu tirei,
sobrepõe sobre todas as comunidades do turismo e das restrições às práticas oito, do Promirim ao Poruba, com
senhor, ela brota”, “como o senhor portaria da Secretaria de Segurança
Norte de Ubatuba, o que causa conflitos tradicionais pelas leis ambientais e
sabe?”, “ela brota porque eu nasci Pública, pequenos casos policiais,
e impedimentos de uso de determinadas pelo Parque Estadual da Serra do Mar
e criei no meio do mato, vocês são (PESM), o turismo se impôs como uma era resolvido por ele, também tratava
áreas. Por exemplo, o feitio de roças e de
pessoas estudadas, eu não sou, o meu forma de renda para a comunidade. Os pessoas com ervas medicinais e era
práticas extrativistas típicas da cultura
estudo, sabe o que foi? Pescar com o quiosques são antigos, todos de caiçaras, muito respeitado por todos.
caiçara, como o uso de madeiras, como a
caxeta, utilizada para fazer artesanatos e meu pai e capinar e derrubar madeira geram renda para a comunidade e para Viu seu mundo desmoronar quando
instrumentos musicais, pois a pra fazer roçado, plantar mandioca, pra pessoas do entorno que neles trabalham. apareceram pessoas interessadas em
comunidade do Prumirim desenvolve sobreviver, agora, vocês não. Vocês são A comunidade corre o risco de perdê- suas terras e para que ele vendesse
trabalhos de musicalidade tradicional estudados mas não é o estudo que vocês los também, pois ao invés de adaptá-los fizeram uma proposta, ele venderia
com as novas gerações para preservar tem que vai me derrotar, não adianta”. aos novos tempos respeitando o direito mas ficaria morando na terra. Meu avô,
sua cultura.O uso da caxeta é da comunidade ao ambiente, o Estado íntegro, honesto acreditou na palavra e
Ramiro Domingues dos Santos, 63 anos, não tinha nada por escrito.
fundamental para o desenvolvimento quer derrubá-los. Mais uma luta que a
caiçara do Prumirim, 2021.
das atividades ligadas à musicalidade comunidade trava para permanecer em Assim que vendeu, meses depois
tradicional. seu território com seu trabalho. recebeu ordem de despejo. Eu era
Esse trabalho garante a transmissão dos criança e me recordo muito bem. Nesta
conhecimentos locais para as novas Fica nessas, como se o pescador época não podia transitar carros pela
gerações e mantém a cultura viva. caiçara fosse o marginal que estrada, viemos andando, meu avô, avó,
tá encardindo o mar e não é isso. São minha mãe, meu pai e meus dois irmãos
Esses mapeamentos que a as grandes indústrias, as embarcações pequenos, até o Itamambuca onde
gente ajuda a construir [...] eles pegamos um táxi até a cidade (...) "
maiores que tem todo esse impacto. [...]
vêm até a gente [...] mas já aconteceu Aí fala-se muito de lixo, o lixo eles Ivete Feliciano de Moura, 58 anos,
no zoneamento costeiro, por exemplo, caiçara da Praia do Léo, 2021
atribuem ao turismo, isso é frequente,
que a gente participou anos atrás, dos principalmente, aqui no Prumirim [...]
pescadores mapearem onde tem a pesca, Só que o lixo que tá no mar, às vezes, tá
onde tem os peixes e aí virem os técnicos ali impregnado, lá na areia, aí dá aquela
e proibirem o pescador de pescar ali”. maresia, ele vem pra cima, e ,às vezes,
Mario Jerônimo dos Santos, Elaine Gabriel é lixo que nem é do Brasil”.
Thaise da Silva Santos, Rubens Vieira de Oliveira
Mario Jerônimo dos Santos, Elaine Gabriel
Benedito Coutinho dos Santos "Rico" –
Thaise da Silva Santos, Rubens Vieira de Oliveira
Pescadores caiçaras do Prumirim,
Nilton Jerônimo dos Santos Benedito Coutinho dos Santos "Rico" –
entrevista coletiva, 2021
Pescadores caiçaras do Prumirim, entrevista
coletiva, 2021
86 87
O QUE MAPAS FALADOS
FOI
MAPEADO
(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)
Foram mapeados os lugares
considerados importantes
historicamente e atuais, nos quais foram
ou ainda são desenvolvidas as práticas
tradicionais, como antigas áreas de
roça, de pesca, de extrativismo e demais
usos da comunidade.

Cachoeira do Prumirim - imagem de drone tirada pela Rafaela


Espindola Fernandes durante a oficina do projeto POVOS com a
juventude da comunidade.

88
90 91
TEKOA
JAEXAÁ
PORÃ
ALDEIA BOA VISTA
O povo originário indígena Guarani Mbya ocupa
um território com suas três Tekoas (aldeias)
dentro da Terra Indígena da Boa vista que
abrange áreas no sertão do Prumirim, no
sertão do Puruba e no sertão de Itamambuca.

92 93
TEMPOS E
Nós temos estruturas “E, a partir daí, os Guarani fizeram Chegando no sertão do Prumirim os
de famílias, uma vez uma outra retomada. Uns tiveram Guarani criaram a aldeia Boa Vista, nos

ESPAÇOS
instaladas as tekoa, muitos que fugir, outros pela questão idos de 1969-70. Lutaram desde então
dos nossos parentes próximos, e da religiosidade. Segundo eles, pela demarcação da terra indígena para
também tem a questão da mobilidade as famílias que vieram pra essa garantir que seu povo tivesse um lugar
Guarani, das pessoas individuais e faixa litorânea, vieram em busca de viver, de realizar seu modo de ser, o
Do alto da entrada da aldeia a vista das famílias que vão se instalando da travessia do grande mar, que Nhandereko, na língua nativa guarani. A
para o mar é tão bonita que deu nome em outras tekoas, a gente tem seria o oceano, que, atravessando, terra indígena foi homologada em 1987
à aldeia, Boa Vista, ou Jaexaá Porã, na famílias próximas, tios, tias, irmãs, encontraria um lugar de um outro pelo Decreto N.º 94.220/87.
língua guarani. Dali se vê ao longe o em outras tekoas”. território que se chamava Terra Sem
mar, a praia e a ilha do Prumirim numa Mal, uma coisa assim. Aí veio muito
Foi fundada aqui a aldeia,
paisagem que o tempo construiu e as “Antes da estrutura que foi instalada forte essa questão dos Guarani em
aproximadamente 1969,
comunidades habitaram aprendendo aqui no Brasil, que foram as missões busca do grande mar, que encontrou
1970, meu pai veio pra
a usar a natureza para viverem por dos jesuítas, também nós temos então essa faixa litorânea da Mata
cá, logo depois que as famílias se
gerações, num modo de vida que os histórico muito forte, de ligação, lá Atlântica, foram se estendendo as
instalaram aqui. Ele me trouxe
Guarani chamam de Nhandereko. Os atrás, conforme os historiadores tekoas nessa faixa litorânea, que
pequeno pra cá. Sou praticamente
Guarani habitam uma grande extensão falam, que nós somos famílias hoje se estende do Rio Grande do Sul
criado aqui nessa comunidade
do litoral desde o Estado do Espirito Carijós, do alto do planalto de São ao Espírito Santo. Foi uma retomada
desde pequeno. Tive a parte da
Santo até o Rio Grande do Sul. É cultural Paulo, que também tinha toda essa importante para a sobrevivência
minha infância aqui na aldeia Boa
do povo guarani a migração em busca questão do rio Tietê. As famílias dos Guarani, para a manutenção
Vista, parte da minha juventude
da Yvy marã e’ỹ, a “Terra Sem Males”, carijós se instalavam nessa região e da cultura, da língua, da própria
também. Quando eu me lembro,
na procura de um lugar sagrado, uma foram para cima também, antes de religiosidade dos Guarani que se
já na década de 1980, 1990, me
terra com condições para sustentar ser Paraguai e Brasil era tudo uma mantêm até hoje”.
lembro que meu pai, o cacique, ele
sua cultura e seus modos tradicionais coisa só e os Guarani se instalaram,
Marcos Tupã, cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia já lutava para o reconhecimento
de vida, perto do grande mar. Nessa tem uma caminhada”. Guarani do Sertão do Prumirim, 2021. desse território, dessa terra Boa
jornada o povo ia vivendo um pouco em
Vista. Ele me ensinava muitas coisas,
cada lugar, passando por outras aldeias “Os Guarani têm essa ancestralidade
A cultura é nômade, então fazer o artesanato, fazer as roças,
até que no final dos anos 1960, três de famílias Carijós e também têm
algumas famílias antigas buscar o material do artesanato.
famílias, vindas da aldeia Rio Silveira, essa estrutura pós jesuítas, das
têm esse costume ainda de Mas eu já via ele nessa caminhada
encontraram o local onde foi fundada missões, de que os Guarani se
ficar passando de aldeia pra aldeia. de luta, de busca de parceria, de
a aldeia Boa Vista. Logo na década instalaram lá por um acordo, de que
Vem aqui, fica aqui um ano, dois apoio, na época o Cimi (Conselho
seguinte veio a construção da rodovia teriam que estar lá pra já liberar
anos, depois vai pra outra aldeia. Indigenista Missionário) também que
BR-101, trecho Rio-Santos. as terras, praticamente para a
Só que as famílias que já estão aqui atuava, o CTI (Centro de Trabalho
colonização. Tivemos essa passagem
continuam. Por isso tem essa força Indigenista) e eu via muito ele fazer
com os jesuítas, os tratados, teve
pra gente sempre estar protegendo esse movimento, essa articulação
a guerra guaranítica, foram muitos
o território, não deixar o território com outros caciques, com outras
parentes Guarani que perderam a
sozinho que a gente vai transitando lideranças aqui no estado de São
vida em confronto já com espanhóis e
de aldeia pra aldeia”. Paulo, no litoral de São Paulo, e as
portugueses”.
três aldeias da capital de São Paulo,
Mauro Ailton dos Santos | Airton Wera, 34 anos, em o Jaraguá, Krukutu e também as
memória, Guarani Mbya da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
aldeias Rio Branco em Itanhaém e
Guarani do Sertão do Prumirim, 2021
Itariri na serra do Itatim, na época”.
Marcos Tupã, cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
Guarani do Sertão do Prumirim, 2021.
95
Os Guarani, logo após chegarem e se
Mulheres da aldeia fazendo artesanato com miçangas
estabelecerem no território vivenciaram
na década de 1970 a intensa mudança
ocorrida pela chegada da rodovia BR-
101, que trouxe a aproximação do
“juruá”, que é o homem branco, e seus
modos de vida baseados na propriedade
dos bens naturais e da terra, que gera
disputa mesmo entre os próprios juruás e
pressiona as terras do povo Guarani, que
veem o território onde vivem como parte
de si mesmos e onde todos tem direito
à vida e aos recursos que usam para
manterem viva sua cultura.

“Aí eu vim pra cá, encontrei


aqui. Pouca gente. O finado
pajé Marcelino falou pra
mim: “a gente parou aqui e daqui não
queremos andar mais, então você que
fala um pouquinho de português, talvez,
você procura a demarcação de terra pra
gente ficar”. Aí eu falei: “olha, vai ser
muito difícil”. Eu não conhecia ninguém
naquela época, falava muito pouquinho
também português, mas fomos tentar
procurar, pra gente ficar no lugar.
Porque ele, pela parte espiritual, disse
que aqui era o lugar, que há muito
tempo já tinha uma aldeia aqui. Um
tempo a gente então fazendo uma casa
de reza ali, nessa casa ali, cavucando a
terra, nós achamos um cachimbo da paz
antigo. Então isso que deu segurança
que aqui já era aldeia antiga [...] A gente
achou também um pote de cerâmica. Tá
lá guardado, eu guardei tudo, tá lá na
casa de artesanato”.

Altino dos Santos | Wera Mirim, 75 anos,


ex-cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
Guarani do Sertão do Prumirim, 2021

96 (Cachimbo e vasilhas) que foram 97


encontrados na área da aldeia quando eles chegaram
Uma terra sem fronteiras, uma só
“Veio de longe fazendo
terra onde viveriam todos os povos de
forma natural e em paz. Assim é a visão
a caminhada sagrada e
Guarani sobre o mundo, pois a terra em veio do Centro da Terra.”
que todos vivem é a mesma terra que
recebe a todos no final. Mas o juruá Marina Nhemboete Santos, 42 anos, Guarani
Mbya da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia Guarani
divide o mundo em cercas e fronteiras e
do Sertão do Prumirim, 2021
faz com que o povo originário indígena
tenha também de ter uma demarcação
“Yvy Mbyte. A princípio, pra nós [...] eu
de seu território para poder protegê-lo.
acho que no pensamento era só esse
Mas ao redor desse território demarcado
território, não pensava-se outro, que
a cultura do juruá cresce e pressiona as
existia outro continente [...] Os Guarani
terras ancestrais e o modo de vida das tinham essa mobilidade, de mudar,
aldeias. Há mais de quinhentos anos. de sair, ir pra outra região,
mas sempre ficavam mais
no centro da terra [...] se
“Vai sempre acompanhando
entendia que tinha o mar e
os pajés, como a gente estava
tem uma passagem de construção desse
falando, antigamente não
universo que uma vez os rios encheram
existia essas divisões de países, por isso
e formaram em forma de mar, uma
que Yvy Mbyte seria o centro da terra,
coisa assim. Então foi uma forma deles
Pra nós era e é até hoje, o centro da
lá atrás pensarem mais de proteção
terra seria um lugar no meio da América
também nessa questão de estarem no
do Sul, que não existia essas divisões de
centro da terra”.
países, por isso que era chamado assim.
Nessa caminhada que a gente fazia
“Pra nós é uma terra só sem fronteira,
com os pajés, vários outros Guarani,
por isso que nós chamamos a nossa
outros pajés, outras comunidades,
representação dos Guarani [Yvy Mbyte],
também viviam essa caminhada em
que é uma extensão de terra sem
busca de alguma coisa porque o de lá
fronteira, que seria um continente”.
também estava sempre atrás, sempre
escravizando, matando o indígena,
em busca de salvação, em busca de
uma terra sem morte, que os jesuítas
passaram a dizer que era à procura de
uma terra sem males.”

Mauro Ailton dos Santos | Airton Wera, 34


anos, em memória, Guarani Mbya da Tekoa
Jaexaá Porã, Aldeia Guarani do Sertão do
Prumirim, 2021

Vista aérea da Aldeia Jaexaá Porã

98 99
Seu Altino Werá Mirim e Dona Santa Rosa Ará Mirim

100 101
PESCA
AGRICULTURA E
EXTRATIVISMO

PESCA
A pesca é ensinada aos jovens. Nas águas “Só para comer [...] São meus
do Rio Prumirim que desce das serras avós que me ensinaram [...]
em seu caminho do mar, o peixe ainda Desde pequenos, em Rio Branco [aldeia
é pescado, sagrado alimento. Crianças
Guarani Mbya que abrange os municípios
e jovens aprendem a olhar as águas em
de Itanhaém, São Vicente e São Paulo],
silencio, à espera do momento certo.
tinha muitos peixes, por isso pescamos
Assim a tradição se mantém.
bem pequenos [...] Aqui tem bagre, cará,
lambari, [piky pará] tartaruga de água doce
“Aqui não pesco mais, mas, lá (pira xyī), (jara xiym) só que tem aqui.”
no Rio Branco [aldeia Guarani
Altino dos Santos | Wera Mirim, 75 anos,
Mbya que abrange os municípios de
ex-cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
Itanhaém, São Vicente e São Paulo] Guarani do Sertão do Prumirim, 2021
costumava pescar, porque lá o Rio tinha
bastante peixe, quando eu era criança.”

{Qual a importância tem a pesca?}


{Você pesca para vender ou para
consumo?}
É importante para não
esquecer, para termos as coisas
“Não, é só para comer [...] Aprendi com
[...] É importante [...] peixes é nosso
os mais velhos, levava a gente no Rio para
alimento [...] Aqui [Aldeia Boa Vista]
pescar, ensinava e assim a gente aprendia
tem pouco peixe por isso é difícil e
[...] O meu pensamento, para aprender
quando a esposa está grávida fica difícil
era de alimentar os meus filhos [...] [Aqui
pegar peixe [por conta dos cuidados e
se encontrava] cará, robalo, xãgo em
apoia com a esposa].”
Guarani, muito tipo de peixe aqui.”

Altino dos Santos | Wera Mirim, 75 anos,


ex-cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
Guarani do Sertão do Prumirim, 2021

Xondaro Valdeci Verá Mirim Benites

103
A exuberante Mata Atlântica preservada
PESCA {Em que fase da lua é melhor para [...] É muito importante, a
da Aldeia Boa Vista. AGRICULTURA E plantar?} nossa alimentação, para
EXTRATIVISMO ensinar as crianças, mostrar
“Para plantar as coisas no nosso para as crianças, melhor do que

ROÇA costume é sempre na lua minguante


[...] Esse mês [maio] é bom de fazer
alimento industrial [...] Até hoje gostaria
de fazer mais, já tô velho mas esse ano
quero fazer uma [...] Devemos contar
A rama de mandioca repousa na terra roça, de começar a fazer, nesse
[...] damos conselho para os jovens da
no tempo e na lua certa aprendida tempo de frio, junho, agosto, se a
importância da nossa alimentação, de
com o tempo das mãos dos antigos. O gente começa a fazer roça agora
plantar, para comer o nosso verdadeiro
alimento que supriu os antepassados, no mês de agosto a gente já pode
alimento."
que deu energia para as migrações plantar [...] Pra roça, eu utilizo foice,
em busca da "terra sem mal", resiste enxada e enxadão, esse tipos que [Qual importância tem a roça?}
no conhecimento, na memória e na eu uso, e também chocadeiras [...]
terra guarani. E no tempo em que os Às vezes alguém me ajuda, tem dia “Para mim serve para muitas coisas,
juruás impõem aos povos suas comidas que trabalho sozinho [...] O que a antigamente plantar aipim, milho
estranhas em plásticos, plantar é ser gente plantou em agosto no mês de alimento natural que é bom para a gente”.
justo com a terra e dela receber o dezembro já pode colher, já tem se
alimento verdadeiro. Sagrado. Assim for milho, já tem espiga de milho, {A roça é igual a antigamente ainda?}

como o milho, tão sagrado quanto mandioca e batata-doce”.


“Aqui já não é mais [como] antigamente,
ensinar aos jovens o conhecimento. E
Altino dos Santos | Wera Mirim, 75 anos, estão se alimentando com alimento dos
ensinar a não perdê-lo.
ex-cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia Guarani brancos”.
do Sertão do Prumirim, 2021

Altino dos Santos | Wera Mirim, 75 anos,


ex-cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
Guarani do Sertão do Prumirim, 2021
Aqui eu tenho roça próxima
da casa [...] Pupunha,
laranja, jabuticaba, cacau,
são essas coisas que hoje eu tenho
[...] [Milho] tem [...] esse dos
índios mesmo, molinho, dá pra fazer
bastante comida. A comida nossa
mesmo antiga é o milho, mandioca,
batata, abóbora, essas coisas todas,
a gente quase não comia comida de
fora. Como agora a gente chega mais
à civilização coisa e tal, a gente já
compra um pouco no mercado”.

Cacique Altino, Marcos Tupã e Ivanildes.

104 105
PRÁTICAS DE
PESCA E também hoje a gente Faz essas pinturas com cera
AGRICULTURA E vive muito do artesanato, de abelha, é uma forma de
pessoal vem procurar, pra
CUIDADO E
EXTRATIVISMO proteção da natureza porque quando

USO
comprar artesanato então a gente faz. a gente vai pra mata, pra floresta, a
Na verdade, o artesanato, antigamente, gente tem que se proteger dos seres,

TRADICIONAL
a cesta mesmo, não era pra comerciar,
era pra gente usar. Como às vezes pega SAÚDE de protetores da natureza. Aí a gente
usa também quando na família tem uma

DA MATA um turista, um visitante, ele vê a cesta


bonita e começa querer comprar. A
O que se chama de remédio se chama
também de planta, erva, folha, cipó, casca,
criança recém nascida, as meninas usam
pra se proteger também, que é quando
gente foi acostumando. Hoje a gente faz raiz e reza, mas não vem em embalagem passa de menina pra moça, uma coisa
Sobre a mesa rústica de um tronco de
pra comerciar”. como os remédios da cidade. Vem do assim, que é uma forma de se proteger
floresta na aldeia ou sobre panos nas
acolhimento e do colher nas matas, do plantar desses olhares dos seres da natureza, é
calçadas das cidades onde são expostas, Altino dos Santos | Wera Mirim, 75 anos,
ex-cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia Guarani perto das casas, das palavras do pajé, e dos mais nesse sentido”.
as pequenas figuras esculpidas de
animais da mata, onça, tucano, tatu,
do Sertão do Prumirim, 2021 silêncios cultivados observando os fazimentos
dos mais velhos. Fazeres que convivem com “Tem um processo de fazer com folha
passarinho, trazem a arte da pintura
as medicinas que o juruá coloca nos postos de de taquara, ela é queimada, a cera é
pelo fogo. Muito leves porque feitas
derretida, misturada com a folha de
de caxeta, madeira que cresce no saúde. Como as vacinas.
taquara, depois faz o processo e depois
alagado. Junto a elas, coloridos colares faz essas pinturas. No pulso, no braço,
{Tem peixe que conhecemos como
minuciosamente trabalhados com nas pernas [...] [é feita de] cera de
remédio?}
miçangas que substituem as sementes. abelha jataí e cera de [...] Mandassaí”.
Cestos e balaios trançados de cipós Banha de bagre, tartaruga e Marcos Tupã, cacique da Tekoa Jaexaá Porã,
timbupeva, Imbé, embira, taquara, muçum.” Aldeia Guarani do Sertão do Prumirim, 2021
pintados com padrões de grafismos que
representam um mundo, uma identidade {Que tipo de peixe não se come quando
e uma ancestralidade. A venda de está meio doente?}
artesanato e o turismo é a forma que os
guaranis se relacionam com o mundo do “Peixes de água salgada, os nossos avós
dinheiro dos juruás para poderem viver escolhiam, só do mar, cação e arraia
nesse mundo da cidade que os rodeia, esse tipo não deixavam a gente comer.”
tão diverso dos valores e costumes que
Altino dos Santos | Wera Mirim, 75 anos,
a terra ensina. Mas a pandemia diminuiu
ex-cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
esses contatos. Os arcos e flechas, de Guarani do Sertão do Prumirim, 2021
antigo uso na caça, são agora também
decorativos para alguma parede de casa
de juruá. O jenipapo e o urucum pintam O que a gente conhece como
não só a pele dos xondaros, mas também remédio, quando a gente tá
a dos turistas nos dias de festejos na gripado, é escama de peixe, usando
aldeia. Eles ensinam os significados para para cura gripe [...] eles chamam de
os juruás, para que eles conheçam a [caboso] e é feito uma simpatia, e, para
tradição e respeitem. bronquite, pra gente tem remédio, mas
os brancos não sabem.”

Venâncio de Oliveira | Karai Poty, 77 anos,


Guarani da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
Guarani do Sertão do Prumirim, 2021
CELEBRAÇÕES
FORMAS DE
EXPRESSÃO
MODOS DE
FAZER
LUGARES EDIFICAÇÕES CELEBRAÇÕES, Todos os nomes são espirituais,
em português é meio difícil

BATISMOS E
explicar essa crença em que a
gente acredita [risos]. Existem quatro
Festa de aniversário cantos que a gente acredita que existe
da aldeia
(março)
Coral – xondaro
mirim (Mborai)
Modo de curar
Nascente Rio
(Itaty)
Opy’i (casa de reza)
COSTUMES deus. Independente de onde a gente
veio, já tem um nome específico [...]
O povo batiza os filhos e os modos Complicado falar [o meu nome], é um
de existir, faz o batismo do milho relâmpago também, só que ao mesmo
Festival Praias (local (Nhemongarai), da erva mate e do mel. tempo se transforma aqui na Terra
Dança do xondaro
Cultural Parteira de venda de Posto de saúde em matéria que é conduzida pelo
(homem e mulher) artesanato) Junto ao milho faz-se o batismo das
(abril)
flechas para os meninos e do pãozinho relâmpago. Mais ou menos isso [...]
para as meninas. Celebrar é essência Eu falei que é complicado explicar
Batismos (da erva
mate, do milho, do em português [risos]. Nossos deuses
Dança tangará Roça (6 áreas) Cemitério Escola da cultura, é renovar os ciclos, é
mel, das crianças e seriam Tupã, Jakaira, Karaí, Nhamandu
agradecer a “Nhanderu ete”, o “Deus
dos adultos e Jekupé. Os mais fortes são esses
verdadeiro”. E cantam, juntos, em
quatro [...] Quem dá o nome é o pajé,
Artesanato coral (Mborai), que cantar é proteção,
Passagem do ciclo do então ele tem essa força de sabedoria”.
calendário: (cestaria, é inspiração de Nhanderu. E dançam,
Arapyau (Tempo taquaruçu, cipó
que dançar é fortalecer o corpo e o Mauro Ailton dos Santos | Airton Wera, 34 anos, em
Novo: primevera- Competição de arco Imbé,cipó embira,
Casas espírito. Os homens, guerreiros, dançam memória, Guarani Mbya da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
timbupeva,
verão) e flecha Guarani do Sertão do Prumirim, 2021
sementes de olho o “Xondaro”. As mulheres dançam o
Araymã (Tempo de cabra, olho
Velho:outono-inverno) de boi, capiá, “Tangará”, imitando o pássaro sagrado
guapuruvu) que representa a liberdade, esse dom Tem o batismo do milho, tem o
batismo da erva mate e o batismo
maior que vem da terra, mas que voa
Pilão de ma- das crianças, que a gente faz [...]
com o espírito. A “Opy’i”, a casa de reza,
Futebol deira, caixeta, Então, mês de janeiro, nós temos batismo
embaúba é o lugar sagrado, ali a criança ganha
das crianças, o pajé que dá o nome. Cada ano
seu nome dado pelo pajé no batizado,
a gente faz. É um encontro, uma cerimônia,
em janeiro. Ali é onde as sementes dos
da parte mais espiritual. E gente de cada
primeiros milhos aguardam um novo aldeia vem pra participar, às vezes traz de
plantio. Ali é o local mais apropriado outra aldeia que não tem pajé pra seguir o
para fumar o petygua (cachimbo). É um nome das crianças.
espaço de tomada de decisão política. É
o local onde as reuniões acontecem e os [O batismo do milho]

Xeramõi (“Meu avô”), ensinam aos jovens "A gente faz todo ano, faz um tipo de
tudo aquilo que os fazem ser guaranis e pãozinho batizado dentro da casa de
o mundo continuar existindo. reza, com as forças espirituais, a erva
mate também a mesma coisa. Janeiro e
fevereiro. Muita reza [...] O meu nome
quer dizer um relâmpago pequeno [Wera
Mirim], sempre o nome Guarani é pela
parte [espiritual]”.

Altino dos Santos | Wera Mirim, 75 anos,


ex-cacique da Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia
Guarani do Sertão do Prumirim, 2021
109
Dança dos Xondaros na casa de reza Opy’i

110 111
BANDEIRAS AMEAÇA CAUSADA puxa o outro e assim vai. Justamente
esse é o nosso receio. E não sabemos
mente. Sempre ouvi falar isso há muito
tempo atrás, que existem essas coisas
POR GRANDES
DE LUTA DO EMPREENDIMENTOS,
como a natureza vai se comportar. Nós
temos a questão global, não só do Pré-
no fundo da terra, quando a terra foi
inundada, quando a terra foi destruída,

FCT NAS POLUIÇÃO E


sal, mas o risco de que o mar pode
subir [...] Indo pra Caraguatatuba é um
matou todas as coisas da terra e
dizem que é isso que está no fundo da

COMUNIDADES ESPECULAÇÃO exemplo disso, né? Que meia pista da terra e no fundo mar, e por isso que é
rodovia tá sendo engolida. E a população óleo, óleo do mal “nhandy vaikue”. Se

A luta pelo território marca a história dos


IMOBILIÁRIA não está nem aí, só querem mexer nessas coisas pode
povos originários indígenas há mais de Há muita pressão em cima se enriquecer em cima dos só querem se trazer doenças, como está
quinhentos anos. E para o povo Guarani, disso [do Pré-sal e especulação recursos naturais mas não enriquecer acontecendo hoje e isso
que se organiza através da Comissão estão pensando na questão que os meus avôs sempre
imobiliária], justamente em cima dos em cima dos
Guarany YVyrupa (CGY), essa luta também global, da vida do planeta. falavam.”
é uma constante e tem contado com o
nossos territórios, não só indígenas,
Isso é preocupante, até
recursos
mas quilombolas e caiçaras também.
apoio do FCT em ações como viagens à porque nossos ancestrais naturais mas Altino dos Santos | Wera Mirim, 75
E agora, com o governo federal (Jair
Brasília e um manifesto feito na rodovia
Bolsonaro) fazendo todo desmonte na já falavam isso pra nós, não estão anos, ex-cacique da Tekoa Jaexaá
Porã, Aldeia Guarani do Sertão do
BR-101, contra o Marco Temporal,
estrutura que tem, a Funai hoje (2021), que mais pra frente nós pensando na Prumirim, 2021
uma tese que virou ação no Supremo
Tribunal Federal (STF) que defende que
não os funcionários, os que estão junto íamos sofrer pressão questão global
de nós, mas a estrutura da Funai hoje, dos juruá e pressão da
os povos originários indígenas só podem
dentro da presidência é um órgão que tá natureza [...] e de que isso
reivindicar terras onde já estavam quando
mais trabalhando contra os princípios vai trazer uma grande consequência
entrou em vigor a Constituição Brasileira,
de defesa de direitos indígenas do que para todos os seres humanos”.
em 1988. Essa tese também ignora povos
que foram expulsos de suas terras pela proteção”. Marcos Tupã, cacique da Tekoa Jaexaá
violência, expansão rural e urbana e o [...] Porã, Aldeia Guarani do Sertão do
desmatamento, antes da Constituição ser “Estamos aí nesse contexto, agora Prumirim, 2021
criada. O Turismo de Base Comunitária o Marco Temporal e o projeto de
e a Educação Diferenciada são também Lei 490 [determina que são terras “Há muito tempo atrás já ouvi os nossos
pautas em que o FCT atua junto com a indígenas aquelas que estavam avós, meus avós falarem sobre isso.
aldeia Boa Vista. ocupadas pelos povos tradicionais Antigamente Nhanderu (Deus) já tinha
segundo a Constituição de 1988], gerado a terra, só que destruiu rápido
vem tudo aí desestruturar toda uma a terra e depois gerou a nova terra,
Ato contra a PL 490
conquista que nós tivemos, esse é o que está hoje. [...] Quando a terra
grande risco que estamos passando, foi destruída, todos os seres vivos
estamos preocupados, estamos na luta, morreram e nós todos, quando a terra
queremos estar presentes lá em Brasília foi inundada, decomposição de todas as
pra somar no movimento nacional pra coisas e dos corpos e gorduras, dizem
lutar, defender nossos direitos, esse é o que é isso que foi para o fundo da terra”.
nosso desejo.” [...]
[...] “Falam que é isso que os Juruás estão
“Como eu disse, são sinergias de extraindo e isso que nossos avós Jovens da Aldeia Jaexaá
Porã na formação de drone do pojeto Povos
empreendimentos, um empreendimento falavam, até hoje eu tenho em minha
112 113
SOBREPOSIÇÃO
DE PARQUE
ESTADUAL,
LEGISLAÇÕES
AMBIENTAIS E
CRIMINALIZAÇÃO
DE PRÁTICAS
TRADICIONAIS
Uma terra ancestral onde um dia a Principalmente porque agora
migração Guarani chegou em sua a gente planta bem pouquinho,
longa caminhada sagrada na busca da pro nosso consumo, às vezes a gente
“terra sem mal”, mas onde também divide com os parentes... E também,
um dia chegaram os limites impostos eu já tinha arrumado um pedaço lá pra
pelo homem branco, na forma do gente plantar mandioca [...] daí chegou
Parque Estadual da Serra do Mar, que lá a ambiental e foi lá. Essa semana aqui
sobrepõe 97% do território indígena,
[...] Então, acho que a gente tem esse
com o objetivo necessário de proteção
receio também, medo [...] Os agentes
à natureza, mas sem proteger quem
da ambiental, não sei como eles fazem
protege a natureza e que faz parte dela
lá, mas eles veem pelo satélite, que
desde sempre.
eles mostraram pra mim, que essa
área foi desmatada. Daí eu expliquei
também tudo direitinho, pra que era, e
falei que era uma terra indígena, só que
eles não estão capacitados pra fazer
isso também. Então fica esse receio de
fazer uma plantação grande e vai que
complica pra aldeia, pra liderança, pro
cacique?”

Mauro Ailton dos Santos | Airton Wera,


34 anos, em memória, Guarani Mbya da
Tekoa Jaexaá Porã, Aldeia Guarani do
Sertão do Prumirim, 2021

Resistência do povo Guarani através


das suas práticas ancestrais

114 115
O QUE FOI MAPAS FALADOS
MAPEADO
(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)
Na tekoa Jaexaá Porã (Aldeia Boa Vista)
foram mapeados locais sagrados e de
vivência, em que se planta, se pesca, se
trabalha, se festeja, se reza e se faz a
história do povo.

Oficina do projeto Povos


na Aldeia Jaexaá Porã

116 117
118 119
FÉLIX
A tragetória da comunidade
tradicional do Félix percorre
historicamente também a
mistura dos povos
originários indígenas com os
europeus colonizadores e os
povos africanos escravizados
e nessa mistura os elementos
culturais de cada povo se
juntaram formando uma
cultura que se integrou ao
ambiente natural durante
séculos: caiçara.

Vista do Morro do Félix

120 121
As falas das pessoas trazem as relações No Norte de Ubatuba, do alto do morro
de parentesco que vão percorrendo as do Félix, entre Prumirim e Itamambuca,
comunidades, entre as famílias do Félix a paisagem se descortina com as
com as famílias Santos (do Prumirim), ilhas pontilhando o imenso mar azul
a Barbosa (do Ubatumirim) e Brandão esverdeado, reflexo da Mata Atlântica
(do sertão do Puruba). Isso mostra que percorre todo o litoral e mergulha
que, como os caiçaras sempre contam,
direto nos costões do mar. Dali os
em tempos anteriores a estrada de
caiçaras olham seu antigo território
asfalto, eram comuns as andanças,
ocupado na beira da praia, antes da
trocas e casamentos entre pessoas de
rodovia de asfalto, que os empurrou para
comunidades vizinhas, estabelecendo
laços de parentesco que também estão o alto do morro.
ligados às primeiras famílias caiçaras
da região dos tempos das antigas A construção da rodovia contaminou as
fazendas coloniais. águas que abasteciam as casas caiçaras
na praia e assoreou o rio. As roças
também ficaram debaixo de asfalto e as

TEMPOS E casas de farinha ruíram sob o peso das


máquinas e tratores.

ESPAÇOS Para concluir o fim daquele antigo mundo


caiçara de paz e trabalho, a especulação
{Quem é Maria Madalena de Jesus?} imobiliária veio com seus papéis falsos
e artimanhas da cidade grande e fez
Era a nossa bisavó. Ela que com que as famílias se mudassem para
o morro do Félix, que era onde antes se
comprou isso aqui da família
fazia as roças.
do (Damásio) [...] que a gente já vê pelo
documento, é registrado em cartório Com a exclusão da maioria das famílias
[...] são descendentes de português [...] da praia, a paisagem foi alterada a
A minha avó... A gente quando chegou partir da construção de um loteamento
aqui, as máquinas, puxando pedra, nessa área, chegando ao ponto de se
saindo, aqui onde era a casa do meu mudar o nome da prainha do Félix para
avô, tinha um terreiro, que minha mãe praia do português, em referência ao
novo proprietário da área, que fechou
falava que era de uma antiga fazenda de
a servidão entre a praia do Félix e a
café, a gente achava muita porcelana.
prainha. Nesse tempo também se tirou
Tinha muita dessas coisas [...] Aí a gente muito granito verde de uma pedreira no
lembra disso tudo já dessa época, era morro. Muita gente ganhou dinheiro com
uma casa grande que ele tinha, aquele isso tudo, menos o caiçara, que perdeu
chão tudo de assoalho de madeira, que uma grande parte de seu território, que é
eles gostavam de fazer xiba, bater o pé, a razão de seu ser e de seu existir.
fazer aquele barulho”.

José (Zeca) Júlio Barbosa, 58 anos, caiçara do Félix,


2021
Nilton Barbosa pescador do Félix

122 123
A gente teve duas fases, Mudou. Uma coisa mudou pra
praticamente, a minha melhor, outra mudou pra pior.
mãe nasceu e criou-se A gente já não tem aquela
aqui, casou com o meu pai e eles são segurança que tinha antes [...] E a gente
primos, dá pra notar pelo nome, pela tinha tudo, plantava, colhia, agora não
árvore da família, então, ela foi pra se pode nem plantar mais nada, tudo é
praia e quando passou a Rio-Santos comprado, tem que ter dinheiro, tem que
a gente ficou sem água lá embaixo, ter o salário pra poder sobreviver e antes,
todo mundo saiu porque não tinha não [...] A gente comprava só alguma
como ficar lá, soterrou todo o rio, coisa, o resto era tudo colhido da roça.
soterrou toda plantação de banana, Era milho, feijão... Só comprava o arroz
aquelas coisas que tinham lá [...] que aqui não dava arroz... Cará, batata,
Então, todo mundo começou a vender legumes, mandioca, farinha feita na roda,
lá embaixo e mudar. Nós, como no forno, era muito legal, muito gostoso."
tínhamos lá embaixo [praia] e aqui
Sebastiana de Abreu
em cima [sertão], meu pai procurou
fazer aqui, mas acabou que vendeu
ainda lá embaixo [...] a primeira [Em] 1994 foi proibida
família que retornou pra cá mesmo, a retirada. Foi quando o
foi a família do meu pai, que além de decreto saiu em Brasília
já ter morado aqui antes, e morava na suspendendo a exploração do granito
praia, tinha as roças aqui [...] Depois verde aqui, porque aí também já
que passou a Rio-Santos, viemos colocaram o Parque e tudo [...] Tenho
por causa da água, por causa da muita lembrança dele [Eustáquio, que
segurança, porque meu pai ficou com trabalhava com o granito verde], os
medo porque lá embaixo começou a blocos de pedra que ele cortava aqui
ter muita invasão de terra [...] Então na pedreira do Osmar, na pedreira
minha avó também veio pra cá pra lá do Prumirim, nossa, quantos anos
cima e viemos todos pra cá”. que ele cortou pedra ali naquele
morro ali que entra pro Querosene e
José (Zeca) Júlio Barbosa, 58 anos, pra aldeia, ali... O granito verde foi
caiçara do Félix, 2021 um marco muito forte na época”.

José (Zeca) Júlio Barbosa, 58 anos,


caiçara do Félix, 2021

Tudo descendente de
escravo [...] Eu acho que
tinha até parentesco
o Thiagãocom
[...] Era tudo compridão
mesmo, bração comprido”.

Seu Júlio Barbosa, 82 anos,


caiçara do Félix, 2021

124 125
PESCA “Já, já ensinei, a gente ensina a turma {Mas você vive da pesca hoje?}
AGRICULTURA E que vem com rede aí [...] Não tem como
EXTRATIVISMO você dizer que não sabe, que não vai “Vendo e consumo. Além de pescar

PESCA
passar pro outro. Você tem que ir aqui de canoa, de lancha, a gente sai
tocando pra frente, passar adiante, se pra pescar de barco quando tá ruim,
não acabar antes do que a gente tá geralmente leva pro barco, assim
No canto manso da praia do Félix o pulei na canoa com o velho e pronto [...] prevendo. Porque do jeito que tá indo aí vai girando”.
rancho de canoas de Seu Júlio resiste, Às vezes com o papai, nós saíamos para com a fiscalização, apreensão de
Júlio Barbosa, 58 anos,
contra toda pressão da especulação pescar, saía daqui, ia lá no Puruba caçar material, tá difícil [...] A gente pesca com caiçara do Félix, 2021
imobiliária que nunca cessa sobre camarão [...] O camarão era isca, aí nós rede de fundo, pesca de linha, às vezes
as áreas de praia. Lá perdura uma pescávamos, matávamos um balaio, dois puxa pra praia, a rede a gente puxa pra
das canoas mais antigas de Ubatuba. balaios de curvina, aí ele: “já tá bom, já
praia se tiver cerco de tainha, alguma
Repleta de histórias, de lembranças. E é muito peixe”, e ia embora.”
coisa, a gente dá uma puxada pra praia
de tristezas também. Vendo o mar sem
peixes, sem redes, sem canoas. Havia [...] Mais mesmo é cerco flutuante”.
{Por que o senhor acha que
mais pescadores naquele tempo, havia
diminuíram os peixes?}
também mais peixes. A pesca trouxe
por muito tempo o sustento, além das
“Eu acho que foi devido ao movimento
histórias e lendas. Através da pesca
que aumentou, muito pescador... E muito
e das roças as famílias se criaram e
mergulhador, né? Depois que entrou o
mantiveram por muito tempo sua cultura
mergulhador embaixo, no fundo d’água
de subsistência que utiliza os recursos
aí... O peixe ficou espantado. Já pensou,
naturais do território sem causar
ele tá lá na toca, o cara vai lá [...] ele vê
grandes ou irreversíveis impactos. O
aquele bichão nadando também.”
conhecimento do mar é fundamental,
pois a praia do Félix é uma praia em
que frequentemente o mar fica bravo. {E o senhor acha que a poluição
Os caiçaras do Félix contam a mesma também ajudou a diminuir os peixes?}
história de outras comunidades sobre a
diminuição dos peixes e as dificuldades “Eu acho que sim, tudo isso aí ajuda,
em se manter a atividade atualmente. E né? Tudo junto... Ainda eu digo uma
em meio às dificuldades e lembranças coisa a mais... Depois que começou esse
numa boa prosa com um café, são turismo todo nas praias [...] Não vou
saborosas as histórias contadas por Seu dizer que seja o estado todo, mas que
Júlio de sua varanda olhando o mar, que pegue lá da Bertioga pra cá... Até aqui
é também um tipo de casa caiçara. na Picinguaba. Esse trecho de mar aqui,
esse trecho que tem praia, quantas mil
A pesca diminuiu muito [...] pessoas passam na temporada por dia
Pelo tempo que eu trabalhei, na praia? E quantos litros desse protetor
que eu comecei a trabalhar [...] que usa pra pele, aquilo ali é uma
Pra você largar uma rede pra matar tristeza pro peixe.”
peixe, você não carecia ir lá [...] largava
a rede, de manhã tava empencada de Júlio Osório Barbosa,83 anos,
peixe [...] Eu comecei a pescar junto com caiçara do Félix, 2021
o pai [...] eu tava com uns 12 anos [...] Aí

126 127
PESCA um mês?”, “não, é porque eu não gosto {Usava sapê também?}
AGRICULTURA E de atrapalhar ninguém e tal e coisa...”,
EXTRATIVISMO “pois é, não gosta mas nós já estamos “Usava sapê também, sapê era o melhor de
aqui” [risos]. Num dia já estava pronto

ROÇA
todos, mas a guaricanga era mais rápida”.
aquele roçado, aquela roça. Roçava tudo
[...] No outro dia, vinha as mulheres, a Seu Júlio Osório Barbosa,
mulherada, vinha dez, quinze, pegava a 83 anos, caiçara do Félix, 2021
Muitas das roças do Felix ficaram
rama, ia plantando (...). Cada uma pegava
debaixo no asfalto e, com a chegada do

USO
uma tira de três metros, tava pronto o
Parque Estadual da Serra do Mar, foram
roçado no dia”.
proibidas. Como em toda comunidade
caiçara herdeira de práticas culturais
indígenas, a roça era uma delas, essa
Júlio Barbosa, 58 anos, TRADICIONAL
proibição e a passagem da rodovia BR-
101 mudaram o tempo e o lugar da
caiçara do Félix, 2021
DA MATA
{Os mutirões, tinha bastante, né?} Trançar um cipó Imbé para fazer cabos
comunidade. Na praia viviam, no sertão
de redes, tramar um balaio de cipó
plantavam. Deixaram a praia, foram
“Tinha, nossa mãe! Tirava uma palha timbupeva para levar o peixe da pescaria,
viver no sertão, na praia cresceram as
no mato porque a cobertura da casa era esculpir uma gamela para colocar frutas
casas ricas do loteamento. No sertão
sempre de palha. Entrava lá pra dentro na mesa. Cortar o sapê para cobrir o pau
o mato cobriu também os plantios. Os
do sertão [...] Aí a gente pegava, ia lá a pique. Curar uma erva, cortar um pau
mandiocais do povo foram escasseando,
tirar... Bastava dizer assim: “amanhã eu na lua que não dá broca, tingir a rede de
mas a memória não. Pois da tristeza de
vou tirar palha”. Tinha quinze homens cerco com casca de árvore, fazer esteira
não plantar mais a mandioca, o milho e
pra ir pro mato. E o resto que ficava de taboa para dormir. Coisas de se fazer
o feijão, fica a lembrança da enxada no
aqui e ia pescar, cada um daquele que com o que tinha na mata para poder usar
vazio da mão.
no dia a dia. Os feitios dos necessários.
ia ganhava um almoço de peixe que eles
Os tempos do aprendizado também são
traziam e repartiam pra todo mundo
Antes da estrada, a situação, manejos.
um bocadinho, ninguém vendia peixe,
pra nós que morávamos aqui,
era bem melhor porque o não, peixe na praia não era vendido, era
tudo, assim, dividido pra comunidade. Antigamente, não, você pegava,
respeito que existia era muito bonito,
Depois quando começaram a estrada, tinha a rede de arrasto, aquela
a união que o povo tinha dentro do
aí começaram a vender, iam pra cidade. rede grande que, pra por na água
bairro. Nós tínhamos, mais ou menos,
Porque você matar o peixe aqui e e puxar pra praia, tinha que ter, no
umas quarenta famílias, aqui dentro do
bairro do Félix. Então [...] tinha roça levar pra cidade era difícil, né? mínimo, oito pessoas, quatro de cada

aqui de mandioca, de banana, de cana... Então a gente vendia, mas lado. Os cabos não eram de naylon, era
Se alguém fosse fazer uma roça, tava vendia mais escalado, peixe tudo cabo feito de imbé, aqueles cabos
lá roçando, derrubando, juntava lá uns seco.” grossos, parecia aquele trançado igual
quinze, uns vinte... Ia lá, chegava lá: “ô, àqueles rolo de fumo, de corda, era
amigo, você tá rico?”, ele falava: “por {E que palha que usava nos igualzinho, então aquilo ali era tudo
quê?”, “porque você tá orgulhoso, tá puxado pra praia”.
telhados?}
fazendo a roça sozinho, com tanta gente
José (Zeca) Júlio Barbosa, 58 anos,
falando que podemos fazer em um dia,
“Guaricanga [...] Aquela caiçara do Félix, 2021
você vai fazer em um mês, trabalhar
cobertura durava pra caramba”.
128 129
Vista aérea da Comunidade do Morro do Félix

130 131
FESTAS E “Vai bater pé na casa de fulano”, “olha, a
festa de São João na capela, depois que

CELEBRAÇÕES
terminar os festivos da capela, vai ter na
casa do lado um xiba, fandango...” tinha
um outro lá que era o São Gonçalo, que
No Félix havia a Festa do Divino, a Folia
era uma das danças, né? “Vamos dançar
de Reis, o Fandango. O povo lembra,
um São Gonçalo na casa de fulano”...
fala, conta. A capela de São José
Era assim... A Folia de Reis também
ainda está lá na praia, em silêncio, as
paredes umedecendo, emboloradas, [...] E parecia que era tudo [...] assim,
esperando os festeiros dos santos, tudo certinho, né? Tal dia, tal pessoa,
os casamentos, as missas. Hoje, no tal coisa, aí os caras já programavam,
Félix, quando ao longe escutam vindo a quem ia buscar cachaça ia buscar, o
Folia do Divino que resistentemente ao outro ia buscar outra coisa, já vinha se
tempo e às mudanças da vida, percorre preparando antes”.
as comunidades do norte, é motivo de José (Zeca) e Nilton Júlio Barbosa, 58
alegria, a cultura está viva! anos, caiçara do Félix, 2021

José (Zeca) Júlio Barbosa, 58 anos,


caiçara do Félix, 2021
As pessoas que passavam
na rua, no caminho, porque
as casas eram de frente ao
caminho que levava à cidade, então todo
dia passava gente de todas as praias,
aquela pessoa ia levando recado: “ó, a
Folia do Divino tá chegando”, aí vinham
avisando: “a Folia já tá no Puruba”,
aí o cara: “nossa, então vai chegar
logo aqui”... Nossa, quando chegava
no Prumirim, e o dia que ela chegava,
aquela primeira casa, que ela descia
lá [...] a gente vê da praia o barulho do
tambor batendo, né? Nossa, todo mundo
corria pra receber a bandeira do Divino.
Então as festas eram avisadas, ia tudo
por mensageiros, de boca em boca”.

Capela São José na praia do Félix José (Zeca) Júlio Barbosa

132 133
ASSOCIAÇÕES BANDEIRAS
COMUNITÁRIAS DE LUTA DO
Há duas associações na comunidade do Félix, a Sociedade de Amigos do Félix, criada
em 1996, com o objetivo de realizar ações em defesa dos direitos sociais e para
FCT NAS
manutenção da cultura e a Associação de Amigos do Félix, que se encontra pouco
ativa. Na praia do Félix, como em Prumirim e em Itamambuca, existem associações
COMUNIDADES
formadas pelos moradores dos loteamentos que pouco dialogam como os nativos
Através de ações como o Projeto Povos, de Desenvolvimento (BID), com a
caiçaras e que muitas vezes geram conflitos com os tradicionais.
Projeto Redes e a “Campanha Cuidar é proposta de realocar moradores de
Resistir” o FCT tem dialogado bastante áreas do Parque Estadual da Serra do
com a comunidade do Félix. E também Mar (PESM). A proposta de realocação
através de ações de defesa do direito à não considera a ocupação secular da
permanência no território, como no caso comunidade do Felix na região, uma
da pressão pela retirada dos moradores comunidade que tece seu cotidiano por
nativos, também ocorrida no Prumirim, meio de relações práticas e simbólicas,
e realocação em unidades habitacionais, que estão em profunda conexão com a
CDHU, movida por um programa do permanência das famílias caiçaras em
Estado de São Paulo, iniciado em 2007, seu território tradicional.
em parceria com o Banco Interamericano

Oficina projeto POVOS na casa do Nilton, comunidade do Félix

135
AMEAÇA CAUSADA POR GRANDES
EMPREENDIMENTOS, POLUIÇÃO E
ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA
O marisco acabou, a gente ia É muito impacto na areia
naquela pedrinha do canto, da praia, você vê o guaruçá,
ali, né? Costeirinha, que a que antes tomava conta, o
gente falava [...] Nossa, a gente [...] guaiamum, sapinhoá, vôngoli, tudo isso
A Praia do Português, a gente pegava [...] Você chegou numa praia, você vê que
aquele caranguejo vermelho, sabe? ela não tá mais em condições de banho,
Tinha dois quilos, um daquele lá. Hoje você já sabe: não tem mais tatuí”.
fizeram aquela praia, o português fez
a casa ali, a primeira coisa que ele fez
foi dinamitar todas as pedras, toca, Antes de chegar a estrada, a gente
tudo pra botar areia, pra ficar só areia. via muito as lanchas chegando
Acabou com o berçário”. na praia, descia o cara com uma
mala de dinheiro e o cara do cartório junto,
eu cansei de ver [...] E nem era cartório,
Teve uma vez que estourou um
o negócio registrava na Igreja da Matriz,
cano em São Sebastião que isso
acho que até o cara que fica lá dentro ainda
aí ficou um pretidão só de óleo
existe [...] E aí foram vendendo tudo, mas é
[...] Ainda existe [...] Tem umas placas
uma época que a gente tem essa noção. E a
assim, quando dá uma maresia, que ela
maioria tudo vendeu e foi embora pro centro
joga pra dentro, pra praia [...] Aquilo
da cidade, toda família ali debaixo, da praia,
ali acabou mesmo [...] A rede, você
foi tudo... “
largava a rede logo de manhã, quando
você ia tirar, tava pregadinho assim, não {Se arrependem?}
tinha nem jeito mais de largar a rede na
água... O barco passava assim, quando “Você vê, hoje, todo mundo que foi pro

chegava no porto, ele tava pretinho na centro da cidade já vendeu e tá morando

cara do barco... Tinha que pegar óleo lá pro lado do Ipiranguinha [...] Eles

diesel e tirar aquele queimado que tava trocavam aquela liberdade que eles

na cara do barco.” tinham, aquela coisa [...] É uma pena”.

Falas de pai e filhos Júlio Osório Barbosa e seus filhos


Julio e Zeca, caiçaras do Félix, 2021

Quintal do núcleo familiar do seu Júlio Barbosa

136 137
SOBREPOSIÇÃO {E tem algum tipo de pesca que
vocês faziam antes e que hoje não
“O desafio é a fiscalização. A
fiscalização hoje tá severa mesmo. Toda

DE PARQUE praticam mais?} rede de fundo, você tem que colocar


uma plaquinha, com o RGP da licença,
ESTADUAL, Aquela rede de arrasto tem que ter o número da licença na

LEGISLAÇÕES pra praia, que a turma


tinha antigamente, que era
plaquinha da rede senão eles põem na
lancha e levam embora, nem espera

AMBIENTAIS E grandona, a gente não pode ter mais [...] você chegar, já leva embora de vez.
Isso tá ficando ruim porque a gente
Porque você tem que ter uma distância
CRIMINALIZAÇÃO de duzentos metros livres de qualquer que trabalha com canoa e lanchinha

DE PRÁTICAS rio, e aqui pra nós já não cabe porque


é muito encostado no rio, que tem um
não pode ir longe pra colocar, o nosso
negócio é até cinco milhas”.

TRADICIONAIS deságue ali... Então misturou, você não


{E essa fiscalização é igual pra todo
pode fazer, porque se você sai daqui, vai
Todas as comunidades tradicionais são atingir mais de duzentos metros e não mundo?}
anteriores ao Parque Estadual da Serra dá o espaço pra gente, você sai aqui e
do Mar, que por ser de uma categoria não chega lá porque o mar é ruim.” “Eu acho que é mais em cima dos
de proteção integral não contempla pequenos porque os industriais fazem o
os modos de vida e cultura das que querem e ninguém prende”.
comunidades. Diversas pesquisas
atestam que as práticas de manejo dos Nilton Júlio Barbosa,
recursos naturais realizadas por essas caiçara do Félix, 2021
comunidades são atividades de baixo
impacto ao meio ambiente. No Félix
ocorrem os mesmos tipos de conflitos
que sofrem as comunidades vizinhas,
como a pressão para que a comunidade
deixasse suas moradias quando houve a
criação do parque e recentemente devido
a um programa do estado de São Paulo,
de recuperação da Mata Atlântica, que
não era adequado à realidade local.

Nilton Júlio Barbosa,


caiçara do Félix, 2021

Dona Sebastiana Reunião de caiçaras da comunidade do Morro do Félix

138 139
MAPAS FALADOS

O QUE FOI MAPEADO

(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)
Na comunidade caiçara do Félix
foram mapeados locais históricos de
uso para agricultura, pesca, moradias
comunitárias e caminhos antigos.

140 141
142 143
QUILOMBO DO
SERTÃO DE
ITAMAMBUCA
O quilombo Sertão de Itamambuca formou-se a partir
de uma fazenda de café do século XIX que com o fim
da escravidão ficou ocupada pelos antigos
escravizados que trabalharam nela.

Imagem de drone do Quilombo do Sertão de Itamambuca


e rio Itamambuca

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TEMPOS E
Meu pai falava dos escravos,
o pai dela, minha avó...

ESPAÇOS
Falava que lá no sertão...
Eles trabalhavam, minha bisavó era
escrava. Quando ele morreu, deixou pros
{Lembra da história da comunidade do escravos essa comunidade aqui tudinho.
quilombo?} Só que aí, veio um morar, outro morar, e
pegaram e foram vendendo”.
A minha avó foi escrava, né?
[Também] O avô da Paula [...] [Zé Luis] José Luis Januário Leite, 71 anos,
comunidade do Quilombo do Sertão de
Que a minha bisavó, não sei bem [...]
Itamambuca, 2021
Mas ela foi laçada no mato. Os donos,
que moravam lá na casa 7, caçaram ela
no mato. Aqui, tem na Casanga, essa Das antigas famílias do tempo da escravidão,
daqui no sertão, e tem lá [...] também tempos ainda vivos na memória, os laços
tem negócio de escravo”. entre os descendentes delas e o território
{Você fala as ruínas?} permanecem. Na terra que um dia foi uma
“É. Tem até [...] Aqui em cima tem até o fazenda de café o povo vive e planta seus
negócio da roda de fazer farinha”. dias e seus filhos, colhendo o alimento e
contando as histórias, enfrentando as novas
Prisciliana dos Santos Ferreira, 88 anos, dificuldades dos tempos da estrada de asfalto
comunidade do Quilombo do Sertão de
Itamambuca, 2021 e dos conflitos pelo território, que de fazenda
escravocrata passou a rota de turismo
supervalorizada e área de preservação que
A nossa avó conta que ela não preserva o povo do lugar.
era bisneta de escravos,
aí quando eles vieram morar aqui,
permaneceram aqui e foi expandindo.”
{Elizete Barbosa o nome da sua avó?}
“Eram tudo escravo aí [...] Minha avó
foi criada no tempo dos escravos aqui
nesse território [...] antigamente era
uma fazenda. Não aqui, mas lá na parte
de cima. Só que é considerado parte do
nosso território”.

Nelson Januário Leite e família, 102 anos


(em memória), comunidade do Quilombo do
Sertão de Itamambuca, 2021 Acesso ao rio Itamambuca

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A comunidade aqui, se você Na mata, o rio Itamambuca desce
for olhar, ela é tanto caiçara serpenteando entre grotões e morros desde
como quilombola, eu sou os contrafortes da Serra do Mar, onde
neto de quilombola e também sou neto nasce, perto de São Luís do Paraitinga,
de caiçara. Então, a roça de coivara, formando poços como o do Angelim, onde
na verdade, ela é um estilo de roçado as lendas se misturam às névoas do tempo.
tanto indígena, caiçara e quilombola, é o Território quilombola. Onde na década de
mesmo”. 1970, com a chegada da BR-101, instalou-se

[Vaguinho] Vagner Teixeira, liderança do a empresa Correias-Mercúrio e a Casanga


Quilombo do Sertão de Itamambuca, 2021 Administrações e Participações, que
cercaram o cemitério quilombola e áreas
históricas da comunidade. Nessa época a
Do alto do Mirante do Caxambu se avista
especulação imobiliária se estendeu sobre
uma vasta amplidão do território, o mar, os
o quilombo impulsionada pelas promessas
morros, os costões e as praias do centro da
do turismo, que atualmente continuam
cidade onde a cada dia cresce um prédio. Por
avançando sobre o território.
uma trilha histórica se chega ao mirante, uso
antigo, dos ancestrais.

Dentro do território, Mudou bastante, só que,


oficialmente, pelo relatório quando mudou aqui, ficou pior
que está sendo atualizado pra nós. Pra mim, eu falo.
agora, eram trinta e uma no início do Porque quando a gente morava aqui e
reconhecimento, em 2010, mas hoje a tinha só essa estrada aqui e não tinha
gente tem muito mais, fora aqueles que essa Rio-Santos, nós vivíamos de boa.
não estão dentro do território. Dessas Depois que a Rio-Santos abriu, aí todo
famílias que estão cadastradas, deve mundo quer ser dono daqui. Chegam
ter aumento umas dez ou quinze, que a várias pessoas: “ah, eu sou dono disso
gente está fazendo esse levantamento aqui”, o cara que falou: “eu vou embora
agora. Porque daí tem os filhos que daqui, não quero nada aqui, aqui não
eram solteiros e casaram, que hoje é lugar de viver”, tá vindo tudo pra cá.
constituem uma família, então deve E outra, tem umas pessoas que estão
ter aí hoje, dessas trinta e uma, umas fazendo casa que já venderam isso aí,
cinquenta, fora as que estão pra fora, e já estão querendo terreno outra vez,
então eu tô calculando por cima uma já vendeu. A maioria aqui já vendeu o
média de setenta famílias ou mais”. terreno, só que vendeu e viu que o negócio
ardeu pra lá, e veio vindo pra cá”.

[Vaguinho] Vagner Teixeira, liderança do [Zé Luis] José Luis Januário Leite, 71 anos,
Quilombo do Sertão de Itamambuca, 2021 comunidade do Quilombo do Sertão de
Itamambuca, 2021

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PESCA O peixe seco... Matava o peixe {O pessoal daqui tinha o
AGRICULTURA E na costeira lá e como não costume de sair de canoa pra
EXTRATIVISMO tinha geladeira naquela época, pescar?}

PESCA
pegava aquela montueira de peixe,
escalava tudo, metia sal e botava pra Aqui, não.
secar, aproveitava um sol que nem esse,
Itamambuca,
Pescar é arte de pouco uso hoje no quilombo, jogava em cima do telhado, fazia aquele
sim. Aqui só ia pra
mas lembrada dos tempos dos antigos. No varalzinho, deixava ali, secava tudo [...]
Uma vez eu fui pescar com o papai, na
costeira mesmo
mar, junto dos caiçaras, se lançava redes,
desde a época da fazenda, coisa passada, costeira pegar marisco e pescar, ele
pescar de linha”.
dizem. Mas que compõe a história das coisas levava a gente com ele [...] Tinha que
que fizeram o lugar e o povo. Na costeira passar uma trilha pra chegar do outro Prisciliana dos Santos Ferreira, 88 anos,
comunidade do Quilombo do
da praia se jogava linha, quando a linha lado, era assim a subida, pra ir e pra Sertão de Itamambuca, 2021
era feita de fibra de tucum, trançada pelo voltar [...] aí a gente veio embora [...]
costume, antes dos fios de nylon. E pegava- Quando chegou no caminho, na estrada,
se marisco nas pedras. Peixe seco de varal,
aquela cobrona [...] Papai jogou o saco,
salgado para conservar. Hoje não mais, mas
saiu rolando lá pra baixo pro meio do
conserva-se a lembrança dos feitos.
mato, depois foi buscar [...] Eu lembro
muito disso aí.
{Então, originalmente, os quilombolas
Nelson Januário Leite e família, 102 anos
habitavam também a praia?} (em memória), comunidade do Quilombo do
Sertão de Itamambuca, 2021
Sim. Porque quando você pega
a malha fundiária do território
e você pega o mapa topográfico
da fazenda, da área da Casanga
Comércio LTDA., você vai ver que o mapa
ele expande e vai muito além da rodovia
[...] Então o território se estende além
da rodovia [...] a gente usou a costeira,
lá é parte da história”.

[Vaguinho] Vagner Teixeira, liderança do


Quilombo do Sertão de Itamambuca, 2021

Seu Nelson Januário Leite Trecho do Rio Itamambuca no Quilombo

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PESCA {Em relação à roça, você percebia Na verdade [...] a
AGRICULTURA E que antigamente tinha mais gente massa histórica da
EXTRATIVISMO trabalhando com roça do que hoje?} comunidade é onde
a gente tá hoje. Você fala da
ROÇA Antigamente era só roça,
meus pais trabalhavam na
roça do vô Nelson, era toda
nessa costa de morro aqui.
Havia o café. Quando o café comandou os roça, meu tio trabalhava na Você vai falar com o Dito,
rumos dos homens pela economia da época. roça, minha avó na roça, eu, meus com o Zé Luiz, onde era a
Enriqueceu e empobreceu barões, que irmãos... Desde o sertão até aqui era roça deles, é toda essa
só roça de mandioca”.
se foram. Deixaram as roças, que o mato parte de roça. Pescava no
cobriu, mas as mãos que os plantaram
rio da estrada pra cima.
ficaram. E semearam famílias, que semearam {E as criações de porco, galinha, peru}
Caçava nessa parte da
o milho, a mandioca, a memória. Depois o
mata”.
parque cobriu também os roçados, com a Sempre teve [...] Aqui nós fazíamos [Vaguinho] Vagner Teixeira, liderança do
burocracia e a incompreensão daquilo mesmo linguiça [...] Cortava as carnes, Quilombo do Sertão de Itamambuca, 2021

que deveria preservar. temperava bem caprichado, limpava


a tripa bem limpinha, depois
{Vocês faziam roça?} arrumava um canudo de bambu,
botava a carne dentro e ia socando
Vivia de mandioca, palmito, [...] Vou falar pra vocês: hoje a vida
batata, feijão, cará [...] Ia na tá boa, mas a vida nossa do passado
cidade uma vez no mês ou era melhor do que hoje. Hoje tudo o
duas vezes... Que a gente fazia farinha e que você come tem química”.
levava. Andava daqui lá na cidade a pé,
Benedito Domingos Leite, 68 anos, comunidade do
carregando farinha pra vender. Tinha
Quilombo do Sertão de Itamambuca, 2021
que sair daqui umas 4h pra chegar lá 7h,
a pé. Vendia a farinha e comprava o sal,
{O que vocês plantavam nessa roça?}
às vezes carne seca [...] Arroz só comia
em tempo de festa. No mais, era feijão,
farinha e comida da roça [...] Cará,
“Rama, feijão, milho, cará [...] Arroz,
mandioca, palmito[...] Às vezes não batata doce”.
tinha mistura e a mistura era palmito”.
[...] {E onde era a roça?}
“Derrubava madeira, limpava um quarto
assim de madeira, derrubava, fazia “Tudo nesse morro aí pra cima [...]
pitirão, secava, botava fogo, limpava, aí Quando moramos lá em cima [para
juntava as mulheres, os homens, ia lá, cima da casa do Zé Luis, do Indaiá],
limpava, plantava rama, quando ficava [a casa de farinha] era no quintal,
grande, cada um fica com a sua parte, depois que mudamos pra cá era na
cada um fazia farinha pra si”. casa do Marinho”.
Prisciliana dos Santos Ferreira, 88 anos, comunidade Nelson Januário Leite e família, 102 anos
do Quilombo do Sertão de Itamambuca, 2021 (em memória), comunidade do Quilombo do
Sertão de Itamambuca, 2021
Cultivando o futuro

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[...] A gente tem o PESCA
artesanato que a gente faz AGRICULTURA E
aqui, mas é pouquinha coisa que a EXTRATIVISMO
gente vende, não é tanto assim [...]
Hoje, o meio ambiente não deixa
[...] Se eles liberassem, todo
EXTRATIVISMO [...] Fazia balaio, samburá pra
colocar peixe [...] o samburá?
mundo teria sua rocinha, porque
viver só do dinheiro não compensa.
E MANEJO DA [...] [a cama era feita de]
Tarimba [risos]. Esteira”.
De agora pra frente, tem que ser o
turismo”
FLORESTA Atualmente, a comunidade do Quilombo
Taquara, timbupeva, Imbé, embira, bambu. do Sertão de Itamambuca praticamente
Benedito Domingos Leite, 68 anos, Trançado de balaios, cestos, tapetes, não tem extraído os materiais para
comunidade do Quilombo do Sertão de esteiras de dormir, do tempo em que não produção de artesanato, apostando suas
Itamambuca, 2021
tinham camas. Timbuíba para canoa, cedro esperanças em rotas e trilhas para o
e guapuruvu. Goacá para remos. Capiá para Turismo de Base Comunitária, ainda em
fazer terços, olho de boi contra o mau olhado, implementação.
jatobá para curar o peito. Peneira para pegar
pitu no rio. Tipiti para fazer farinha. São
[...] A gente tem o artesanato
sementes do conhecimento, do saber dos
que a gente faz aqui, mas é
usos se faz um povo. Saber o tempo certo
pouquinha coisa que a gente
de colher e de se deixar, saber o tempo
vende, não é tanto assim [...] Hoje, o
necessário para se renovar o recurso. Mas meio ambiente não deixa [...] Se eles
como tudo, também esses usos diminuíram liberassem, todo mundo teria sua
depois da rodovia. rocinha, porque viver só do dinheiro não
compensa. De agora pra frente, tem que
{E vocês faziam artesanato?}
ser o turismo”

Antigamente eu fazia, agora Benedito Domingos Leite, 68 anos,


minha vista não dá muito, e comunidade do Quilombo do Sertão de
tá difícil pro pessoal buscar Itamambuca, 2021
material no mato [...] Fazia balaio, boneca”.
A gente acaba dependendo
do turismo, mas aquele
{E qual material usava, o que buscavam
turismo que você serve pra
no mato?}
trabalhar na casa de família. Não exerce
esse turismo territorial dentro da
“Timbopeba, bambu [taquara] [...] Com
comunidade”.
balaio e com a mão [pegavam pitú]”
[Vaguinho] Vagner Teixeira, liderança do
{Para fazer a boneca, fazia do quê?} Quilombo do Sertão de Itamambuca, 2021

“De pano. Catava uns panos velhos e


fazia boneca. Aí rasgava as roupas boas
pra fazer vestido das bonecas [risos]. E
as crianças gostavam, né?”
Mestre artesão Benedito Januário Leite
Nelson Januário Leite e família, 102 anos (em
154 memória), comunidade do Quilombo do Sertão de
Itamambuca, 2021
Práticas antigas como fazer as casas de “Naquele tempo nossas
pau a pique, sapê, e caçar para próprio casas não eram assim, eram
sustento eram costumes de de palha, quando dava vento,
antigamente e hoje quase não existem. se não fosse bem arrumada, o vento
carregava tudo. Era de ripa, de juçara
[...] Era o mesmo processo do pau a
{E o que vocês comiam
pique, as madeiras que você usava pra
mais antigamente aqui?}
fazer a estrutura pra barrear, você
tirava as ripas e fazia a trava do
“Caça do mato [...] Tatu, paca, gambá,
telhado, que era feito com sapê, por
lagarto, quati, tamanduá, essas coisas
cima e por baixo, ia travando [...] O chão
[...] Cotia, porco do mato. Eu gostava
da nossa, antigamente, lá em cima, não
mais era porco do mato”.
o
era
paipiso,
vivia aterrando mas vivia com
aquelas panelas de buraco dentro da
casa [risos], nós fomos criados assim”.

Nelson Januário Leite e família, 102 anos


(em memória), comunidade do Quilombo do
Sertão de Itamambuca, 2021

Artesanato Quilombola

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PRÁTICAS DE A gente usava chá de quintal,
xarope, pra dor de barriga

CUIDADO / era [broto de goiaba] [...] chá de


pitanga. Essas coisas eu lembro
SAÚDE porque até hoje a gente usa ainda”.
As mulheres agora já não fazem o parto dos Nelson Januário Leite e família, 102 anos (em
filhos na comunidade pelas mãos de parteiras, memória), comunidade do Quilombo do Sertão
de Itamambuca, 2021
que partiramno tempo com os benzimentos.
Mas parem todos os dias a preocupação com
o destino dos filhos, que não enterram mais
seus umbigos na terra dos antepassados, mas
se enterram nos trabalhos fora da comunidade
para pagar o sustento, que a terra dava com
trabalho para quem tinha enxada. Mas as
ervas seguem sendo o remédio do mato que
consola a carne, cura o estomago, a pele,
acalma os nervos. Só não curam a ferida aberta
da estrada que cortou um tempo.

{E antigamente [...] como vocês se


curavam?}

Era benzimento, erva do


mato [...] [quem benzia era]
Meu irmão, por parte de pai, Benedito
[Fidélio], o pai da Mariazinha. E um
senhor também que tinha lá em cima.
[...] Parteira tinha lá em Itamambuca [...]
Dona Josefa [que fazia]”.

{E com as ervas do mato, quais vocês


usavam pra curar?}

“Santa Maria, erva cidreira, esse


melãozinho do mato amarelinho, chapéu
de couro, sete sangrias, caninha do brejo,
casca de laranja, casca da goiaba pra
disenteria, banana verde pra disenteria”...

Prisciliana dos Santos Ferreira, 88 anos,


comunidade do Quilombo do Sertão de
Itamambuca, 2021

Paula Mari Vieira Leite falando sobre as suas plantas medicinais

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FESTAS E
CELEBRAÇÕES FORMAS DE MODOS DE
CELEBRAÇÕES LUGARES EDIFICAÇÕES
Vestido de chita, tamanco de madeira. Bate {E as festinhas, tinha festa aqui?} EXPRESSÃO FAZER
pé na viola de São Gonçalo, o santo popular Ruínas da
festeiro, que tinha sua dança, que era Lá pro sertão [...] São Gonçalo Festa da capela senzala de
Teatro Artesanato Igreja
oferecida para pagar promessas. A fé do povo [...] Festa de São Pedro [...] São Paulo Modesto
era do tamanho da sua alegria. E quando de mastro, bandeira, era tão Barbosa
passava a folia, dos reis ou do divino, se legal [...] Ciranda, tinha, cana verde.
Roda da casa Sede da associa-
ajuntava o povo das cercanias e acompanhava
[...] Minha mãe contava que quando Festa junina Artesanato Pesca
de farinha ção (necessidade)
tinha casamento, na época, o pessoal
com devoção a cantoria. Santo Antônio na
matava porco pra fazer a comida pro Religião Caxambu,
capela esperava seu dia. Bingo Culinária 2 cemitérios Campo de futebol
casamento, fazia aquelas panelonas de expressão africana
carne de porco [...] O meu tio que era
{E tinha Folia de Reis aqui?} Plantação
irmão do meu pai, quando era época de Folia de Reis Documentário Posto de Saúde
de café
pesca, fazia o forró na casa dele, ele
Tinha. Duas vezes no ano [...]
tinha fogão de lenha, pendurava aqueles Cachoeiras,
Saíam da Picinguaba, né? Folia do Divino Lendas da Pedreira Escola
pedaços de carne de porco pra fazer rios, praias
Ou Camburi [...] [aqui, no
farofa com farinha de milho, pra de
Quilombo, tinha] O pai da Mariazinha,
madrugada o pessoal comer. Amanhecia
tinha um em Itamambuca, tinha dois Festa das crianças Bananal Casa de Farinha
o dia dançando, né?”
em Itamambuca, tinha um da Praia
Vermelha [...] Tinha tocador, tinha
aquelas mulheres que cantavam, abriam Nelson Januário Leite e família, 102 anos (em Festa da consciência
memória), comunidade do Quilombo do Sertão
a boca, parecia uma cigarra [risos]”. Negra “Resistência
de Itamambuca, 2021
[...] e luta” realizada no
“Às vezes eu dançava mas não gostava mês de novembro
muito, não. Que às vezes os homens
pisavam muito no pé da gente [risos]. A Folia passava aqui, ficava Festa das crianças
Com aqueles tamancos, que antigamente quatro dias aqui no sertão, em Outubro
os homens dançavam com aqueles pessoal matava porco, peru, galinha,
Festa da Abolição em
tamancões [de caxeta] no pé [risos] [e todo dia, xiba, comer e beber... Acabou
maio
o vestido era] De chita. Aquela saia de tudo, esse pessoal mais novo não quer
duas partes, assim.” saber de nada, não”.

Prisciliana dos Santos Ferreira, 88 anos, Zé Luis] José Luis Januário Leite, 71 anos,
comunidade do Quilombo do Sertão de comunidade do Quilombo do Sertão de
Itamambuca, 2021 Itamambuca, 2021

160 161
ASSOCIAÇÕES
COMUNITÁRIAS
Antigamente os mutirões eram as
associações comunitárias, o povo se
unia para barrear paredes, fazer roçado,
casas de farinha. Mas o tempo soprou
o costume no vento da estrada e os
papéis com grilos nas gavetas mentiram
a propriedade. Depois que as correntes
foram abandonadas ainda é preciso vencer
a escravidão da ganancia dos homens
que vieram pela estrada querendo as
terras pelo povo herdadas e pelo turismo
supervalorizadas. A Associação dos
Remanescentes do Quilombo do Sertão do
Taini Motta e Paula Maria Vieira Leite
Itamambuca é a renovação da resistência
também herdada.

BANDEIRAS
DE LUTA DO
FCT NAS
COMUNIDADES
Faz-se o mapa no papel, mas os usos
do viver fazem o tamanho do território
e a identidade de um povo. O quilombo
é do tamanho da memória do povo e dos
sonhos das crianças. O Projeto Povos é
a mão das comunidades desenhando seu
mundo, escrevendo sua história. E isso é
uma bandeira de luta que se segura com
as duas mãos, que faz o Turismo de Base
Comunitária crescer, a agroecologia
florescer e a cultura não desaparecer.

Partilha de TBC da Rede Nhandereko


realizada no Quilombo Sertão de Itamambuca

162 163
SOBREPOSIÇÃO {O pessoal da comunidade não consegue
viver hoje só da pesca ou só da roça, né?}
AMEAÇA CAUSADA Essa firma que comprou o loteamento,
que fez essa estrada aqui pra passar o

DE PARQUE POR GRANDES maquinário [...] Essa estrada aqui era


Ah, não, hoje não existe mais
EMPREENDIMENTOS, boa, era conservada. Era chamada de
ESTADUAL, isso aí, tem que trabalhar
particular, fazer serviço, porque POLUIÇÃO E Casanga, sempre foi”.

LEGISLAÇÕES não aguenta, senão não vive, né? Ele


ESPECULAÇÃO [Zé Luis] José Luis Januário Leite, 71 anos,
comunidade do Quilombo do Sertão de
AMBIENTAIS E pode ter a rocinha dele pra manter a
família, pra comer alguma coisa da IMOBILIÁRIA Itamambuca, 2021

CRIMINALIZAÇÃO roça, mas ele tem que trabalhar fora pra


poder manter, senão ele não aguenta.
Depois que meu pai morreu,
{O que mais vocês pegavam no rio pra

DE PRÁTICAS
comer?}
eu trabalhei 2 anos e 8 meses,
Agora, se tivesse liberdade pra plantar
indo a pé daqui pra trabalhar na Pitú, camarão. Lagosta.
TRADICIONAIS bastante, aí sim. Você tirava, vendia, no
próprio dia você arrecadava pra comprar
prefeitura. [...] Aí trabalhei na Mercúrio Antigamente tinha bastante,
18 anos, trabalhei em São Paulo 2 anos agora não tem mais. Lambari. Aquele
outras coisas...”
Há trilhas antigas que foram pisadas [...] Aí trabalhei na SAI 11 anos e pouco bagre do rio... Agora você não pega
pelos ancestrais e que podem ser às {Mas não é porque vocês não querem e aposentei, com 35 anos de serviço. mais, difícil achar [...] Depois que
famílias quilombolas para o Turismo trabalhar com roça?} Ajudei a fazer aquele loteamento de [...] Essa Gutierrez acabou com o rio,
de Base Comunitária, mas enquanto o
Itamambuca do começo ao fim, quando acabaram os peixes [...] Antigamente
mato cresce indiferente às burocracias, “É porque não tem condições de ficar”.
compraram dos caiçaras lá, a firma tinha até robalo, a gente pegava no rio”.
disputa-se o direito de usar as trilhas Benedito Domingos Leite, 68 anos, comprou só da avenida pra cima, o [...]
que o Parque Estadual atravessa com comunidade do Quilombo do Sertão de
que grilou o resto ali [...] Da rua 11 pra Prisciliana dos Santos Ferreira, 88 anos,
seus limites não pactuados com a Itamambuca, 2021
comunidade do Quilombo do Sertão de
25 foi tudo grilado [...] Aquela parte Itamambuca, 2021
comunidade. As roças estão plantadas
mais na memória do que no solo que onde tem o Padang, ali, é tudo grilado.
O problema hoje é você fazer
alimentou a comunidade durante
a roça, você derruba, vem a
gerações. A legislação ambiental é
florestal e você pega uma multa.
inflexível, mas só para os pequenos.
Eu mesmo tô plantando ali um pouco de
Nesses morros aqui, olha, banana, plantei 2kg de feijão, fui lá em
nesse morro, aquele morro... São Luiz, compramos quinze mudas de
Nesse morro, debaixo de cá, era laranja, limão, plantamos, tá tudo bonito
tudo mandiocal [...] E pra lá na várzea ali, fazendo devagarzinho [...] Fizemos
também tinha”. a horta lá, uma couve [...] Antes a gente
derrubava esse morro tudo e plantava
{E hoje em dia não plantam mais ali?} mandioca, tinha casa de farinha, tinha
tudo. Hoje não pode fazer mais nada”.
“Não planta porque o meio ambiente não
deixa roçar. Se roçar [uma peça] de pau, [Zé Luis] José Luis Januário Leite, 71 anos,
comunidade do Quilombo do Sertão de Itamambuca,
daqui a pouco estão em cima”.
2021

Prisciliana dos Santos Ferreira, 88 anos, comunidade


do Quilombo do Sertão de Itamambuca, 2021
Vista aérea dos núcleos familiares do Quilombo Settão de Itamambuca

164
O QUE FOI MAPEADO

(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)
Foram mapeados locais em que a
história quilombola percorre o território
como trilhas, plantações, rios, ruínas,
cemitérios e lugares em que o povo
vive, resiste e conta.
MAPAS FALADOS

Oficina do projeto Povos no Quilombo do Sertão de Itamambuca

166 167
168 169
TEKOA
YAKÃ
PORÃ
ALDEIA RIO BONITO
As “caminhadas” dos Guarani Mbya são
representadas pela busca pela Yvy marã e’ỹ,
a “terra sem mal”, na procura de um lugar
sagrado com condições para sustentar sua
cultura e seus modos tradicionais de vida.

Xeramõi repassando o conhecimento sobre a construção da opy’ i (casa de reza) para as crianças da Aldeia Rio Bonito

170 171
TEMPOS E
Essa mobilidade dos Guarani Mbya possui Os Guarani Mbya da Tekoa Yakã Porã (Aldeia Relatos e estudos anteriores mostram
uma característica muito presente e forte Rio Bonito) estão localizados no Norte de também que a história dos Guarani é

ESPAÇOS
que é o "ore retarã ypykuery", ou seja, os Ubatuba, município do estado de São Paulo. marcada pela discussão e conflito com os
parentes originários, que guardam suas A Tekoa Yakã Porã foi formada recentemente, juruás (não indígenas), que estabeleceram
relações culturais e garantem a abertura dos em 2017, dentro dos limites da Terra sua cultura em detrimento da cultura dos

E seus avós [onde nasceram]? Guarani Mbya nas andanças entre as tekoa Indígena Boa Vista do Sertão do Prumirim, Guarani.
Guarani. homologada em 1987. Hoje, a Tekoa Yakã

Só sei que eles vieram do Porã é formada por 12 famílias. [...] muita influência da
Paraguai [...] seu avô, pai do A gente fala ore retarã parte do juruá que entra
ypykuery [...] independente A gente veio com um núcleo dentro da aldeia, às vezes
Táxi, que veio do Paraguai
de ser irmão ou não ser de sete famílias, hoje a também tem interferência que vem
mesmo, eu lembro muito bem, faleceu
irmão, mas sendo Guarani já é um ore gente tá com doze” de fora mais, né? Políticas também,
bem velhinho, era sogro do Lambe
Puku [apelido] [...] já tava com cabelo retarã ypykuery, uma forma de saber né?”
que a gente é parente, todos somos {Quando vocês sentem que tem que ir pra
grisalho, o nome dele era Chico Ju, em Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança Guarani Mbya na
parentes, então não importa se é outro lugar?} Tekoa Yakã Porã, 2021
Guarani Karai Ataxi”.
parente de sangue ou não, o que importa
Lourenço Pereira da Silva | Karai Jekupe “Porque quando a gente ia pra outra
é que a gente é Guarani e todos somos O acesso de entrada da Tekoa Yakã Porã
Nhembojaru’ey py na Tekoa Yakã Porã, 2021
parentes”. aldeia não era eu que guiava, eram
atravessa o Rio Itamambuca, chamado de Rio
os mais velhos que guiavam, mas
Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança Guarani Mbya na Bonito pelos Guarani, o Yakã Porã. Após a
O meu tio fala, o Lourenço. Ele nessa última de Paraty-Mirim pra
Tekoa Yakã Porã, 2021 travessia do rio, caminhando para a tekoa, já
sempre fala que os avós dele cá, eu estava mais à frente, mas é
se pode encontrar as roças comunitárias.
vieram do centro da Terra, por claro que a gente não vem assim
isso sempre à procura da "terra sem sem saber de nada. Primeiro a
mal". Ele sempre fala que não era pra gente tem que procurar os mais
ficar aqui, era pra passar o oceano e velhos também, procurei meu tio pra
encontrar a "terra sem mal", ele sempre saber se seria um lugar perfeito,
fala isso”. se [Nhanderu] Deus iria colocar
alguma visão pra ele, pra ele poder
Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança Guarani Mbya na
Tekoa Yakã Porã, 2021
ver se esse caminho que a gente tá
tomando é um caminho certo [...]
Então tem todo esse ritual de tentar
entender se pode ser, então isso
aconteceu. E às vezes também por
algum conflito interno, alguma coisa
que tá acontecendo ali e a gente acha
que não dá mais pra viver, alguma
coisa assim que acontece também.
E na maioria das vezes, os mais
velhos andavam mais, não era nem
por conflito, era mais para procurar
mesmo dessa "terra sem mal”.

Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança Guarani Mbya na Avaxi ete’i (milho guarani)
Tekoa Yakã Porã, 2021

173
Vista aérea da Aldeia TEKOA YAKÃ PORÃ Aldeia Rio Bonito

174 175
PESCA Relatos mostram que a “boa pesca” sempre peguei pirarucu um filhote de 6 palmos, Trecho do Rio Itamambuca na Aldeia |
AGRICULTURA E era compartilhada entre os parentes. adulto tem 12 palmos de comprimento. foto tirada por Ronaldo Rodrigues do Yakã Porã
EXTRATIVISMO Depois no Maranhão até Santa Inês

PESCA
{Você pesca só para si ou para o seus eu pescava, de lá eu trouxe os anzóis,
parentes também?} chegando em Rio Branco não consegui
pegar nada e dei tudo para os outros e
São poucos os que ainda pescam na tekoa A pesca, se for boa é para todos até agora não fui mais pescar.”
Yakã Porã, pois a nova geração vem perdendo meus parentes”
Lorenço Pereira da Silva | Karai Jekupe
esses costumes por conta do convívio com Nhembojaru’ey py, Guarani Mbya na Tekoa
os juruás. Todavia, é sabido e reconhecido Ana Rosa Jaxuka, 79 anos, Guarani Mbya na Yakã Porã, 2021
Tekoa Yakã Porã, 2021
que os aprendizados e modos de pescar são
passados de geração para geração. “Antigamente era utilizado um cipó
Pra família, né? Porque se for a
[timbó] [...] que anestesia os peixes.
gente pegando bastante a gente
{Mavae tu nemboe rakae repesca aguã? | [...] Levava para a cabeceira do rio e
divide com todo mundo. O costume dos
Quem te ensinou a pescar?} lá soltava algum liquido do cipó que
Guarani é sempre dividir as coisas se
deixava os peixe desorientando [...]
tiver bastante. Vai dividindo até o que
Foi o meu pai, vendo o meu pai e paralisava assim, por um tempo, e
der. Mas hoje é difícil a gente pegar
pescar, assim aprendi a pesca pegava os peixes.”
bastante assim. Aqui nesse rio mesmo
[...] Naquele tempo eu tinha 5 anos.” tem peixinho, mas bem miudinho,
“Outra é a pari, uma armadilha feita
pequenininho”.
{Aqui tem peixes?} de cipó ou de taquara, fazia uma gaiola
Ronaldo Karai, 44 anos, Guarani Mbya na comprida, redonda, que dava acesso
Tekoa Yakã Porã, 2021 só para entrada, e para saída coloca
“Tem, mas bem pouco, por isso não
tenho vontade de pescar [...] Diz que As técnicas de pesca usadas pelos Guarani uma coisa para dificultar a saída [...]

aqui tem bagre, tartaruga de água doce, Mbya são usualmente simples, com uso então era fácil de pegar peixe [...] eu

acará, cascudo e só que vi aqui trazerem das próprias mãos, usando o veneno de um presenciei uma que foi feita pelo meu

e também tainha e parati.” cipó [como o timbó, iraporá ou yvyraro] para avô, que já faleceu, quando eu tinha
desorientar os peixes, até uso de armadilhas, 7 anos [...] a gente tinha pegado um
Lourenço Pereira da Silva | Karai Jekupe as chamadas “pari”. Com a influência dos peixe junto [...] a gente colocava numa
Nhembojaru’ey py, Guarani Mbya na Tekoa
juruás, o uso da linha e anzol começaram cachoeira, num lugar que a gente sabia
Yakã Porã, 2021
também a fazer parte da pesca, porém sem que tinha muito peixe, e no dia seguinte
uso de vara e carretilhas. a gente ia ver, então sempre foi assim”.
Robalo é mês de abril, a tainha {Como você aprendeu?} “Outro a gente pegava no rio raso,
é mês de julho, parati é em onde tinha bastante peixe, antigamente
outubro”. No anjou [no anzol], pegava só pegava também com arco e flecha
lambari. Quando era mais velho, [...] e tinha outra forma que os juruá
Billy Tupã Fernando, Guarani Mbya na Tekoa
Yakã Porã, 2021 já pegava peixes maiores como traíra, inventaram que era com anzol [...] e
kara, tucunaré e materixã [Matrinxã], os mais jovens sempre aprendiam um
em Goiás já era mais velho, depois pouco de tudo.”
nosso líder faleceu, já era adolescente Ronaldo Karai, 44 anos, Guarani Mbya na
de lá viemos, depois já no Bandeirantes Tekoa Yakã Porã, 2021

176 177
PESCA
Karai mbaraete (ancião)
AGRICULTURA E “O lugar que tenha muitas folhas e material
EXTRATIVISMO orgânico, se for só terra não é bom”

ROÇA {Em qual fase da lua é melhor para


plantar?}

As roças têm importância fundamental


“Na lua minguante é melhor, na lua nova
para garantir os alimentos na tekoa e são
dá bichos [...] Há muito tempo atrás, com
ensinadas de geração para geração entre
os meus parentes, plantamos no final
os Guarani Mbya. Entretanto, as práticas
de junho, ficava bonita a plantação e, no
de fazer roça têm diminuído com o tempo
agosto, setembro as plantações já estão
por conta do convívio com os juruás (não secando, madurando[...] Com 6 meses já dá
indígenas). para tirar mandioca e milho.”

{Na sua aldeia a comunidade consegue Lourenço Pereira da Silva | Karai Jekupe
sobreviver só da pesca e da roça?} Nhembojaru’ey py, Guarani Mbya na Tekoa
Yakã Porã, 2021

Sim, para próprio consumo


nós temos aqui aipim e Nos seus modos de fazer, Lourenço conta
banana.” também que faz farinha para consumo
próprio, e que fazia bolos de arroz, mandioca
{Qual importância têm a pesca e a roça?} e milho:

“Pra mim é roça, se fizer roça tem Faço farinha, farinha puba
mais coisa para comer. Peixe tem dias [feita de mandioca-puba,
que consegue pegar e tem dias que a mandioca mole], farinha
não pega nada, por isso não é bom.” xim [pequeno] e aramirõ [fécula
de mandioca] também [...] Só para
Ana Rosa Jaxuka, 79 anos, Guarani Mbya na comer, antigamente com o meu
Tekoa Yakã Porã, 2021
pai fazíamos para vender, hoje não
consigo mais fazer com as mãos, se
{Como você aprendeu [a fazer roça]?} for com a máquina ainda farei, eu
fazia para fazer um (aramirõ) que
O meu pai sabia trabalhar, era bem comprido [...] Já fiz de [bolo
aprendi com ele, aprendi de] arroz, socava no pilão, ralava a
ajudando, desde então, já mandioca, em Paraty-mirim fazia
plantava sozinho [...] Eu trabalhei bolo de milho, farinha, fubá de trigo,
na adolescência[...] Aqui eu tenho 1 agora não faço mais.”
alqueire com a roça de mandioca [...]
Tenho mandioca, batata doce e cará.” Lourenço Pereira da Silva | Karai Jekupe
Nhembojaru’ey py, Guarani Mbya na Tekoa
{Como você escolhe o lugar para Yakã Porã, 2021
plantar?}

178 179
PRÁTICAS DE
PESCA O artesanato também é um
AGRICULTURA E produto que foi passado de

CUIDADO /
EXTRATIVISMO geração para geração. Eu me

USO lembro que quando eu estava com 12,


13 anos, eu já via as pessoas fazendo,

TRADICIONAL os mais velhos, fazendo trançado de


material. Mas com o tempo eu fui ver
SAÚDE
DA MATA que o desenho eles foram criando, eles
foram percebendo alguns desenhos de
Os Guarani Mbya fazem uso da cera de
abelha para as pinturas como forma de
Para a produção do artesanato, as práticas alguma coisa assim do mato e foram proteção dos “seres protetores da natureza”,
de buscar o material – taquara, taquaruçu, criando também. Mas só que, muitos bem como nas transições das crianças para a
cipó-imbé e sementes – são transmitidas tempos atrás mesmo, os mais velhos juventude e a idade adulta.
de anciãos para a juventude Guarani. Os falam que eles faziam sem desenho,
faziam tudo com cipó, tudo pra usar Pintura a gente usa mais pra se
grafismos dos Guarani-Mbya guardam
mesmo, não era nada pra vender, era preservar mesmo. No momento
estreita relação com a natureza, buscando
mais pra usar, pra carregar criança, pra da vida adulta, de um jovem,
representar elementos como paisagens,
guardar alguma coisa, guardar o que ele a gente faz a tintura. Mas isso é mais
plantas e animais. uma religião mesmo, pra preservar o
tinha dentro de casa. Com o tempo, eles
foram criando esses desenhos e agora espírito, pra preservar aquele jovem. No
Desde os primórdios, as práticas de momento em que aquela pessoa tá de
a gente cria muitos desenhos, com a
extrativismo para produção de material passagem pra vida adulta, o espírito tá
imaginação também”.
tinham um único propósito de servir sua bem frágil, muita coisa na cabeça dele.
Ivanildes Kerexu Aí é o momento que a gente faz a pintura
subsistência: para guardar alguma coisa,
{A ideia dos desenhos vem de onde?}
para levar crianças, para organizar coisas. e passa, mas a gente passa mais nessas
Com o passar do tempo e convívio cada partes do osso onde dobra. Na mão, no
“Vem da natureza. Foram vendo e
vez mais próximo com os juruás, o manejo rosto, no pé, no joelho”.
imaginando e fazendo [...] o desenho
da floresta para extrair os materiais para da cobra mesmo, jararaca, aqueles
produção de artesanato tem sido feito para a desenhos, sempre na cestinha tem {O que tem na tintura? Como vocês fazem?}
comercialização, nos limites da natureza. aqueles desenhos quadrados”.
“Cera de abelha jataí. Aquilo protege o jovem
de vários espíritos que estão aí querendo
{E a cesta é feita do quê?}
fazer algo de ruim para aquela pessoa”.

A nossa maior “Taquara [...] Tem várias taquaras,


Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança
vários tipos. Taquaruçu, que ela é
fonte de renda grande, e tem aquela taquara pequena
Guarani Mbya na Tekoa Yakã Porã, 2021

é o plantio, a roça, também, a verdinha...”


Em momentos em que alguém está doente
e artesanato, colar, e precisa se curar, a presença do pajé nos
pulseiras, cestas, arco {E para instrumento musical?}
rituais é de fundamental importância.
e flecha [...] A segunda "Faziam também, rabeca, os mais velhos É mais quando tem alguém
fonte é a horta”. faziam, flauta [...]" doente, quando alguém precisa
do pajé.”
Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança
Billy Tupã Fernando, Guarani Mbya na Tekoa
Guarani Mbya na Tekoa Yakã Porã, 2021 Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança
Yakã Porã, 2021
Guarani Mbya na Tekoa Yakã Porã, 2021

180 Mulheres da aldeia fazendo colar 181


CELEBRAÇÕES
FORMAS DE MODOS DE
LUGARES
EDIFICA- CELEBRAÇÕES, {E tem outros aparatos que vocês
EXPRESSÃO FAZER ÇÕES colocam pra música?}

Batismo do milho
BATISMOS, COSTUMES
Batismo de criança Danca do Modo de fazer roça: Os mais velhos usam aquele
Batismo do mel Xondaro 4 áreas (mandioca, milho, Aldeia -
Opy'i
E TRANSMISSÃO DE tipo um cocar typyxia, uma
batata doce, feijão, banana Tekoa faixa [...] Isso é uma coisa que
erva mate (vários modos de fazer)
CONHECIMENTOS identifica mesmo o Guarani que é próprio
Rio A celebrações e cerimônias dos Guarani Mbya do Guarani, nenhum outro povo usa esse
Batismo do
Itamambuca Cozinha passam por momentos de reza para celebrar
tipo. Se alguém vê com esse negócio na
bolinho de milho Reza Modo de fazer Opyí
Yakã comunitária cabeça vai dizer: “ah, esse é o Guarani.”
Mbojape batismos e a plantação de milho, erva mate
Nascentes
e mel. Os Guarani Mbya também expressam Ronaldo Karai, 44 anos, Guarani Mbya na
Pintura caminho Tekoa Yakã Porã, 2021
Modo de fazer casa Banheiro sua cultura com o Coral – Xondaro Mirim
corporal entre
(jenipapo/ de morar coletivo (não (Mborai), Dança do Xondaro, Dança do Tangará e
urucum) aldeias funciona)
competições de arco e flecha.

História da Mutirão (Nhopytyvo): Os batismos das crianças acontecem sempre


Aldeia Casa de reza no mês de janeiro de cada ano, quando o pajé

Ritual de escolhe o nome segundo sua “parte espiritual”,


passagem Modo de pescar: explicada como um encontro espiritual entre os
Sonho bagre/robalo/cará/lambari/
Infância-adulto(a) pitu (Arpão-tarrafa) Nhanderu, os chamados deuses Guarani.
(isolamento)

Modo de fazer
A religião Guarani, a nossa
artesanato: Cipó Imbé,
Aniversário da Embauba, Arco e flecha religião é passada de geração
Língua (brejauva) pra geração, há muito tempo a gente já
aldeia (23/05) cacheta: bichos (madeira)
colar sementes e miçangas, tinha essa religião, que é uma casa de
Cestaria reza, a gente tem o pajé, a gente acredita
na natureza, a gente passa esses
Cuidado: dieta alimentar conhecimentos que a gente tem hoje
mulheres gravidas/ pós
Canto parto, machucado, familia de
através do pajé e dos mais velhos
recém nascido
[...] Tem várias coisas, o batismo, o nome
da criança mesmo é uma coisa muito
Plantios na aldeia:
juçara, laranja, acerola, importante pra nós, a reza mesmo
mixirica, amora, jaca,
jaboticaba, mamao, goiaba, [...] O ritual é o pajé que tem que
araticum, cacau, cupuaçu,
chuchu, jenipapo, urucum,
preparar, o ritual do batismo, o ritual do
manga, boldo, limão, ameixa mel, da erva mate, do milho, o pajé que
tem que estar presente”.
Culinaria
xipá: mbeju (beiju - feito
com milho), mbojape (feito {E o que acontece nesses rituais?}
de trigo ou farinha de milho
assado na cinza ou brasa), “É mais dança, reza, agradecimento, se
rora (farofa de milho), reviro conectar com Nhanderu, se Deus passou
(feito de milho tipo uma
farofa), avaxi ku'i (tipo uma alguma coisa pro pajé, o pajé fala ali no meio
paçoca de milho), manduvi o que pode acontecer, é assim o ritual.”
ku'i (tipo uma paçoca de
milho), kaguijy (bebida feita Cocar typyxia
de milho), banana assada Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança
mandioca cozida ou assada Guarani Mbya na Tekoa Yakã Porã, 2021
182 ou com carne do mato e 183
batata doce
[A cozinha comunitária] é
importante porque é onde a
BANDEIRAS AMEAÇA CAUSADA “Já. O tempo mesmo. Principalmente
o tempo. Às vezes esquenta muito, às
gente se reúne todos os dias, onde a
DE LUTA DO POR GRANDES vezes esfria muito, esfria fora de época,
gente planeja alguma coisa, onde a
EMPREENDIMENTOS, chuva [...] Dependendo da chuva, [a
gente fala do sonho, todo dia de manhã
FCT NAS chuva] em si só não, mas com muito
cedo a gente tá todo mundo aqui junto POLUIÇÃO E
COMUNIDADES
volume afeta bastante, prejudica o lugar,
tomando chimarrão, um fazendo café,
outro fazendo várias coisas ali, as ESPECULAÇÃO igual uma enchente, se for na beira do
crianças ali ao redor, choro de criança
(risos). E aí quem tiver algo pra contar,
Lideranças Guarani Mbya da Tekoa Yakã
IMOBILIÁRIA rio, vai pegando muita coisa, tirando [...]
Até mesmo os peixes não param nesse
Porã têm participado junto ao Fórum de
aquele é o momento. Tudo acontece na Comunidades Tradicionais (FCT) do Projeto rio que enche com a correnteza forte
cozinha comunitária de manhã cedo.” Povos de Caracterização dos Territórios
{Vocês já ouviram falar sobre o Pré-sal?} e leva tudo. Em vez de ficar próximo à

Ivanildes Kerexu, 44 anos, liderança Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e comunidade, da aldeia ter peixe, vai tudo
Guarani Mbya na Tekoa Yakã Porã, 2021 Ubatuba. O FCT também tem apoiado a Aldeia Eu já ouvi falar [...] No pra baixo, aí não tem alimentação, não
Rio Bonito através de ações e projetos voltados meu entendimento eu fico tem nada”.
ao Turismo de Base Comunitária e educação preocupado [...] porque são
diferenciada no território, além nas negociações extraídos recursos naturais que Ronaldo Karai, 44 anos, Guarani Mbya na
e resoluções de conflitos fundiários. prejudicam a terra, o sistema da terra, Tekoa Yakã Porã, 2021
mas até que ponto pode ser prejudicial
eu não sei, mas me deixa preocupado,
A gente vive em um lugar que já
sim”.
tem poucos peixes e os brancos
[...]
fecham a circulação dos peixes nos rios
e já tiraram quase tudo, antigamente
“Eu imagino isso porque nessa terra
tinha muitos peixes no Rio, desse
que Deus [Nhanderu] criou tudo tem
tamanho.”
seu propósito, qualquer ser vivo ou
não, tem seu propósito de controle do Lorenço Pereira da Silva | Karai Jekupe
Nhembojaru’ey py, Guarani Mbya na Tekoa
ciclo da vida. Então se algumas pessoas Yakã Porã, 2021
tirarem muito daquilo, pode até não ter
mais controle das coisas. É como uma
peça de alguma coisa que é quebrada e {O peixe diminuiu?}
não funciona mais. Então é isso que eu “Muito [...] Muita poluição
imagino, que isso pode prejudicar, não no rio e no mar”
assim tão rápido, de um dia para outro,
mas de tempos em tempos vai... Como a
Billy Tupã Fernando, Guarani Mbya na
gente tá vendo o clima, o tempo mudando Tekoa Yakã Porã, 2021
de repente, sem a gente perceber, as
coisas estão muito fora do normal”.

{Você já tem sentido alguma coisa ou, por


enquanto, é só medo?}
Oficina do projeto Povos na aldeia Yakã Porã

184 185
Construção da opy’i (casa de reza)

186 187
Oficina do Projeto Povos na Aldeia Yakã Porã MAPAS FALADOS

O QUE FOI MAPEADO

(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)
Na Tekoa Yakã Porã (Aldeia Rio
Bonito) foram mapeados elementos
como nascentes, áreas de caça,
roças comunitárias [agroflorestal],
casa de reza, cozinha comunitária,
moradias, trilhas de acesso a aldeia
e áreas de extrativismo.

188 189
190 191
PRAIA
VERMELHA
DO NORTE
Numa curva da estrada, encolhida entre a subida do
morro e o mar, a comunidade caiçara. Praia
Vermelha do Norte. Ali, cerca de quinze casas ao
redor da capela de São Judas Tadeu.

Foto tirado po Bruno Amir

192 193
{O que você acha que mudou desde a A capela de São Judas Tadeu, depois de
tempos fechada por causa da pandemia, está

TEMPOS E
década de 1970 pra cá, na sua vida?}
sendo reaberta pela família de Dona Macuca.
Começaram a vender, né? Das roças espalhadas pelo território, o que

ESPAÇOS Aí começou a se formar [...]


Foi depois da estrada que
começou a ter movimento. Aí começou
não ficou debaixo do asfalto da rodovia o mato
tomou. A comunidade encolheu-se num canto
da estrada, entre o morro e a subida, de onde
a chegar gente, movimento, comprar do alto da pista turistas tiram fotos e se avista
lote... Deu no que deu, agora, assim, que abaixo a extensa areia avermelhada da praia e
tá tudo movimentado.” ao fundo o centro da cidade com sua paisagem
tomada de prédios. Mas da comunidade,
“Ah, mudou, tudo. Até a vida mudou [...] O embaixo da curva, não se avista nada. Mas
{Você sabe há quantas gerações vocês ritmo da gente, antigamente, era plantar, escuta-se o tempo todo o passar veloz dos
estão aqui?} colher, comer... Aí pra ir pra cidade era automóveis. A sensação é de que de um
Que eu lembro, que meu pai a pé [...] Naquele tempo não precisava momento para outro o tempo passou com essa
falava, era que o avô dele de dinheiro, precisava só das plantações rapidez dos motores. E não se pode alcançá-lo.
nasceu aqui. Então tinha o que a gente fazia, que era comida. Agora,
avô dele, o pai dele, ele, eu, as minhas não, precisa do dinheiro, se não tiver
filhas, meus netos e agora os meus dinheiro, a gente não vive. O lugar era
bisnetos, já tenho duas bisnetas. Tudo grande, dava pra nós todos. Agora é esse
aqui na Vermelha [Oito gerações]” montão de gente. Tudo mudou [...] não é
mais aquela libertação que a gente tinha
“Antigamente aqui era mato, tinha [...] antes a gente deixava a porta aberta,
laranjeira, abacateiro, tinha de tudo...
saía e ia embora [...] Agora, não se pode
Meu pai trabalhou toda vida na roça,
sair e deixar a porta aberta que quando
meu pai trabalhava na roça e era
vier já não tem mais nada em casa...”
pescador. Aqui onde nós moramos,
aqui tinha de tudo, tudo que você
Aurora Nunes Leite e Domingas Nunes Correia
imagina tinha [...] A gente vivia da roça. Conceição, caiçaras da comunidade da Praia Mudou muita coisa, mudou o
Comprava mesmo era o sal e querosene, Vermelha do Norte, 2021 jeito de vivência, o que a
que antigamente era só lamparina”. gente fazia, eu acho que
As famílias caiçaras percorriam o território, muita coisa...
mudouMuita coisa mudou pra
“Eu tenho sete filhos aqui, sete casas. migrando de praias e sertões. Se misturavam melhor, mas tem muita coisa que não
E tem mais o meu irmão, que tem casa formando novas famílias. Os Leite, nascidos [...] porque antigamente os filhos não
ali em cima, tem mais a minha irmã que em Itamambuca, os Barbosa, do Ubatumirim, eram igual agora, tudo mudou, na família
faleceu, mas o marido mora ali embaixo, os Correa, e os Conceição, estão nas raízes [...] Não existia esse negócio de bagunça
tem mais outra que comprou ali, tem mais das famílias da Praia Vermelha do Norte. que existe agora [...] Não tem mais
outra casa que o rapaz também comprou e
Antes, os caiçaras eram migrantes, agora são ninguém trabalhando na roça, se você
lá em cima tem umas três. Acho que tem
como refugiados em seu próprio território. fala alguma coisa, se você fala pra uma
umas quinze casas por aqui.”
Antônia Santana, a Macuca, contou a história criança do café ninguém sabe o que é...
de sua família, toda apelidada com nome ‘O que é café, mãe? Como faz?’, ninguém
Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em
memória), comunidade caiçara da Praia de ave, e se foi para reencontrar seus sabe... Mudou bastante coisa nisso aí.”
Vermelha do Norte, 2021 antepassados. Os antigos vão aos poucos se
reunindo num grande baile do tempo passado. Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em
memória), comunidade caiçara da Praia
Vermelha do Norte, 2021
194 195
PESCA [...] Agora a minha filha também
AGRICULTURA E aprendeu, a Inês faz tudo de rede
EXTRATIVISMO também, aprendeu comigo. Botava
rede pra arrumar, ela ficava junto, de

PESCA todas elas, só ela que aprendeu, ninguém


aprendeu porque tem que ter muita
Não há mais ranchos de pesca na Praia paciência e cabeça pra fazer. Mas aprendi
Vermelha do Norte. Nem canoas. Nem se assim, com meu pai. Pescava com ele,
jogam mais redes. Há tempos. O mar ali largava a rede, tirava a rede, tudo isso nós
costuma ficar bravo, mas não foi ele que fazíamos [...] Aprendi, graças a Deus...”
arrastou os petrechos. Foi o tempo. A pedra
onde o espia avistava os cardumes está lá. {E antes era comum ter as mulheres
Vazia. As vezes alguém pesca de linha da participando?}
costeira. As vezes alguém conta histórias das
“Tinha, antigamente tinha muita mulher
antigas pescarias, cerco de tainha, espinhel,
de pescador [...] Hoje em dia acho que tem
rede de espera. Há noites de verão em que
bastante ainda [...] Era comum, as pessoas
se avistam do canto esquerdo da praia, perto
chegavam com a rede e todo mundo
da cachoeirinha, ao longe não muito longe no
ajudava, a família ajudava [...]”
mar, luzes de muitos barcos vindos de fora em
busca de lulas, só a fiscalização não avista. “Diminuiu [a pesca], mudou bastante Manoel Oliveira (seu Neco)
Mestre artesão e canoeiro
porque antigamente não tinha ninguém
que impedisse nada, você pegava a canoa,
saía pra pescar, largar uma rede, botar um
Aprendi com meu pai, ele tinha tresmalho, espinhel, não tinha ninguém
rede de pesca, tinha um cerco que impedisse, agora você não pode pescar
lá na Praia do Alto [...] mas nem na costeira”.

depois venderam e acabou tudo [...] Aí “Nós íamos botar rede com o papai. Na
tinha rede de pesca de tainha aqui na Barra Seca. Aqui era difícil que o mar
Praia Vermelha mesmo. Aprendi com ele sempre vivia bravo, né? Nós íamos lá
mesmo porque de noite, às vezes, quando pra Barra Seca, papai punha a rede e
a rede tava muito ruim, não dava tempo nós puxávamos. Uma vez pegamos uma
pra remendar na praia, de dia, ele trazia tranqueira daquela pescada, cada pescada
pra casa, pra remendar com a lamparina, desse tamanho”.
eu ficava segurando a lamparina pra ele “Nossa, eu lembro até hoje daquela
remendar a rede, costurar a rede.” pescada. Não tinha pra quem vender,
levou, entregou tudo lá no mercado, de
“Aí aprendi, de ficar olhando, olhando,
graça pros outros [...] Escalava também,
aprendi [...] Depois, eu já fazia sozinha,
botava no sol, ficava amarelinho... É o
eu remendo, eu entralho, eu encabeço,
nosso alimento, nossas coisas [...] Era
eu faço tudo, faço a rede [...] Da rede
melhor do que agora.”
eu sei tudo. Tudo que você me pedir pra
fazer da rede eu faço”. Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em Vista do território
memória), comunidade caiçara da Praia da Vermelha do Norte
Vermelha do Norte, 2021
196 197
PESCA A gente ia pra roça trabalhar, éramos Antes tinha [casa da {Você acha que a roça é importante só pra
AGRICULTURA E em quatro, cinco comigo, trabalhávamos Farinha]. Na minha casa alimentação ou também pro conhecimento,
EXTRATIVISMO na roça, a roça era lá atrás do morro, tinha. Na minha casa tinha qual outra importância da roça?}
o nome lá era Saco Grande, o terreno. roda, tinha forno, tinha tudo, tinha

ROÇA A gente ia de manhã, voltava à tarde,


tomava banho, a mãe ia fazer janta e nós
íamos estudar, porque nós aprendemos
a casinha de farinha lá na casa do
meu velho, do meu pai, nós fazíamos Tem importância pro
Tinha casa de farinha. Tinha mandiocal farinha. Agora nem o forno não existe conhecimento também [...]
a ler com o meu pai, nunca fomos na
Tinha alegria. Crianças no terreiro brincando mais, se você for procurar um forno Até pra saúde da gente é
escola, ninguém de nós”.
enquanto se preparava a farinha. Tinha aí, for ver, não existe mais, acabaram bom porque você tá trabalhando
[...]
banana, canavial, feijão. Plantações que com tudo... [...] Derrubava madeira, [...] A gente tá naquela intenção de
“Daí quando chegava à noite, meu pai ia
no traçado da nova estrada não poderiam limpava um quarto assim de madeira, fazer, de plantar, então aquilo distrai
ensinar nós a ler, ficava eu, a Dodinha, a
permanecer. E no alto dos morros também Aparecida, a [Miminga e o Filhinha] [...] derrubava, fazia pitirão, secava, a cabeça da gente, é cansativo mas
não mais. A lei não permite. Plantar para a Nós cinco. Nós estudávamos até meia- botava fogo, limpava, aí juntava as distrai.”
subsistência é aprendizado de um povo, não noite, ia dormir, no outro dia, se o pai mulheres, os homens, ia lá, limpava,
crime. ia pescar, nós íamos pra roça de novo, plantava rama, quando ficava grande, Aurora Nunes Leite e Domingas Nunes Correia
senão ia fazer farinha, ia todo mundo pro cada um fica com a sua parte, cada Conceição, caiçaras da comunidade da Praia
sertão buscar mandioca, a gente fazia um fazia farinha pra si”. Vermelha do Norte, 2021
Pra mim era tudo [a roça],
farinha a semana inteira.”
se voltasse tudo arrumava Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em
esse Brasil, sabia? Se todo mundo Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em memória), comunidade caiçara da Praia
trabalhasse na roça, cada um tivesse memória), comunidade caiçara da Praia Vermelha do Norte, 2021
o que é seu [...] pra fazer, não tava Vermelha do Norte, 2021
essa bagunça que tá. Era muito bom,
eu adorava pescar, trabalhar na roça. Tinha. Isso aqui tudo roça,
Na roça a gente trazia tudo, até a folha subia o morro pro lado de
do caruru pra comer a gente trazia da lá, era só roça do nosso pai,
roça”. tinha bananal, cafezal, mandiocal
[...] [...] Era tudo roça. Bananeira, dava
pé de banana[...] Banana da terra
[...] Cana, canavial [...] Tudo lá pro
Domingas Nunes Correia Conceição, caiçara da comunidade morro, do lado de lá, eles plantavam
da Praia Vermelha do Norte, 2021 [...] Porque lá a terra era melhor do
que aqui [que] tinha muita pedra,
muito morro”.

Aurora Nunes Leite e Domingas Nunes


Correia Conceição, caiçaras da comunidade
da Praia Vermelha do Norte, 2021

Dona Aurora, Domingas e nora recebendo a Folia do Divino Espírito Santo

198 199
PESCA
AGRICULTURA E
EXTRATIVISMO

MANEJO DA
FLORESTA
Dormia-se em esteira de taboa, prensava-se {Vocês costumavam usar a lagoa aqui pra
mandioca no tipiti, lavava-se a roupa com pescar?}
anis, trançava-se Imbé, timbupeva, embira,
É, antigamente não tinha nem
para cordas e balaios. Da caxeta fazia-se
aquele charco [...] É, aquilo
instrumentos dos tocadores e brinquedos
era um charco, mas era um
para as crianças. Hoje elas já nem sabem o
charco que dava pra gente tirar taboa
que essas palavras significam.
pra fazer esteira. Aí depois da estrada
{As pessoas daqui trabalham com é que ficou, entupiu e ficou aquele lago
turismo?} grande ali, acabaram as taboas também
[...] Era um riozinho só que passava,
Aurora Nunes Leite
assim”.
Só na temporada. Acabou
a temporada, acabou tudo.
Antigamente ia direto. {Tinha aquela planta que vocês pegavam
Antigamente trabalhei muito com pra lavar roupa, né?}
balaio, tipiti, peneira, tapete de embira, “É, anis [...] Anis. Tinha uma planta
capacho, aqueles tapetes grandes muito cheirosa, acabou, tô cansada de
[...] Fazia isso tudo com meu marido, procurar essa planta, não acho [...] Anis,
trabalhamos acho que uns três anos que dava na beira do rio, acabou”.
direto com isso aí [...] Levava lá na Dona
Virgínia, no Itaguá. Aí ela vendia na Aurora Nunes Leite e Domingas Nunes Correia
temporada. E fora de temporada porque Conceição, caiçaras da comunidade da Praia
Vermelha do Norte, 2021
Ubatuba antigamente tinha isso tudo,
hoje em dia acabou”.
[...]
“As pessoas de agora não sabem nem ir
no mato tirar uma taquara, se você pedir
pra um filho meu, uns meninos sair,
netos, sobrinhos, ‘vai lá em cima tirar
umas taquaras pra mim, no morro’, eles
não sabem o que é, eles vão perguntar:
‘o que é, mãe, taquara?’, não sabem
o que é taquara. Não sabem o que é o
imbé, não sabem”.

Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em


Caxetal na praia vermelha do Norte
memória), comunidade caiçara da Praia
Vermelha do Norte, 2021

200 201
PRÁTICAS DE isso que eu vi, nunca mais vi mais nada.
Minha avó dizia que isso aí era a Mãe do
Macuco, Maria Macuco, tudo era Macuco,
a família inteira... E os netos também,
[...]
“Aí eles ficavam aí, cantavam, iam

CUIDADO / Ouro.” mesma coisa, eu mesma já me chamam


de Macuca, né? Tem mais duas primas
almoçar, o resto da tarde iam tocar, era
xiba [...] Hoje em dia o fandango é o baile

SAÚDE
Aurora Nunes Leite e Domingas Nunes Correia também que a turma já chama de Macuca [...] Aí eles dançavam ciranda, dançavam
Conceição, caiçaras da comunidade da Praia
também... Foi por causa disso que saiu o cana verde e o xiba [...] Em cada casa
Vermelha do Norte, 2021
Curava pela planta, mas também pela fé apelido deles [risos].” iam cantando, nós íamos até Barra Seca
acompanhando [...] E assim continuou [...]

FESTAS E
e força do benzimento. Os remédios eram
Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em memória), Outra festa que tinha antigamente, era
as ervas, mas também a tradição. Colher, comunidade caiçara da Praia Vermelha do Norte, 2021
comunidade, né?”

CELEBRAÇÕES
secar, guardar, preparar. Cada gesto era
[...]
conhecedor do tempo das coisas ensinado [...]
“Aqui na Praia Vermelha, era São Roque
pelos pais e avós. Ervas se usam ainda, elas A folia, desde que me entendi
[que] era o padroeiro daqui, ali no
estão em alguns quintais, pequenos canteiros Já não há festejos da família Macuco. Um por gente, já existia, a bandeira saía pro
João [Balbino] [...] era Nossa Senhora
medicinais. Cada vez que se colhe uma para quadro na parede traz no tempo os antigos Norte, não tinha esse negócio de sábado
Aparecida, e aí ia assim, cada bairro tinha
tocadores de folia numa praia. Assim as e domingo, era direto. De segunda a
um chá um gosto e cheiro do passado sobe no um padroeiro.”
festas que alegraram o povo da Praia segunda. Meu avô era folião, no meu
ar da tarde, junto com a saudade.
Vermelha do Norte são contadas pelos que tempo, minha mãe carregava bandeira Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em memória),

LENDAS
lembram. Não são muitos. Dona Antônia quando ela tava por aqui, andava grudada comunidade caiçara da Praia Vermelha do Norte, 2021
Macuca, que dançou muita ciranda, chiba, com eles, pra cima e pra baixo... E
cana verde, São Gonçalo, não estará em casa eu cresci nesse tempo. Vinha lá do
As histórias que os antigos contavam
mais quando a bandeira do divino passar Camburi, todo dia, quando chegava ali
compunham um mundo de mistérios e
vinda das caminhadas das comunidades no Itamambuca, já mandava avisar em
assombros que já não existe mais. As
do norte para a Igreja Matriz no centro, casa, porque a casa do meu pai era o
crianças assustavam com a história do
mas um pouco daquele tempo em que sua pouso, né? Onde eles vinham e dormiam.
“Corpo Seco”, os adultos imaginavam os
comunidade festejou seu mundo e suas Almoçavam, jantavam... Aí já vinha um na
lugares escondidos onde haveria tesouros
tradições ficará na passagem da Folia do frente que chamavam de mordomo, vinha
guardados pela “Mãe do Ouro”, uma bola
Divino e em seus novos tocadores. Era o que avisar que tal dia a folia tá na sua casa, o
de fogo que atravessava os ares. Mas
ela queria, que a cultura continuasse. Divino tá na sua casa.”
os momentos simples, daqueles tempos
sem eletricidade nem televisão, em que
as histórias eram contadas é o que mais {E como que o pessoal chamava o seu avô?}
lembram os mais velhos.
Antônio Macuco. Esse que
tocava viola e cantava folia, ele
Meu pai contava muita história, era folião. Por parte de pai, não.
meu tio... Meu tio Antonio, Só dançava. Era o Roque Nunes. Dançava
nossa... Contava tanta história, pra caramba, não tocava, não”.
que ele via as coisas... [...] uma vez eu
vi uma bola de fogo grande assim que {Por isso que o pessoal te chama de
vinha atravessando assim pra cima. Eu Antonia Macuca? [risos]}
fiquei assustada, eu era menina ainda
“É. A minha mãe é Maria Floripes dos
[...] Aí eu vi uma bolona de fogo desse
Santos, mas o apelido dela era Maria
tamanho assim, com aqueles rabiscos,
Macuca. É que eles moravam muito tempo
saiu lá de fora e veio, passando por
numa toca lá em Itamambuca e a toca se
aqui. Eu corri aqui, pra chamar as
chamava Toca do Macuco. Daí apelidaram
meninas pra verem e desapareceu. Só Sr. Jorge Barbosa
eles e os filhos tudo de Macuco [...] João
202 203
[...] CELEBRA- FORMAS DE MODOS DE
LUGARES EDIFICAÇÕES
Toda vida eu dancei, o meu ÇÕES EXPRESSÃO FAZER
filho André dançou muito xiba, depois Artesanato (balaio/tipiti/
que ele quebrou o pé que ele parou, não bolsa/costuras/ crochê/
dançou mais... Daqui, eu dançava, minhas Festa de São Fandango: xiba, corda de imbira estei- Casas de
2 cachoeiras
irmãs dançavam, a Filhinha, a mulher Judas Tadeu cana verde, ciranda ra de taboa/) chapéu Farinha antiga
do falecido Jorge, nossa, dançava xiba de trança de folha de
bananeira
que era uma beleza [...] Nisso aí nós
estamos até hoje [...] Depois apareceu Roças/plantios (bana-
Praia Vermelha do
esse negócio do Seu Orlando, de querer nal, milho, mandio-
Norte
tocar, depois passou o Seu Nei, né? Com o ca, feijão, cana, café Igreja São Judas
Festa Junina Dança da timbupeva Lagoa
Seu Nei dançamos muito xiba [...] Depois, Roças/plantios (bana- Tadeu
Praia da Mãe Maria
agora, passou com a turma aí, o [Mané] o nal, milho, mandioca,
(pesqueiro)
Mario Gato”. feijão, cana, café
[...] Aniversários História da sereia Catar guaiá Mirante da Praia do Alto Casas antigas
“É isso que eu conheço do xiba, eu adoro
Divino Espíri- História do Pesca (picaré/vara/ar- Escola (memória
xiba e já falei: só vou parar de dançar xiba Sertão
to Santo vagalume rasto/feitio de rede) vila de baixo)
no dia em que eu não puder mais dançar,
mas enquanto eu tiver vida e puder, eu Lenda do galo Culinária (bolo/canja/
tô no xiba, tô no fandango... Adoro. E não História da Luz sopas/caldinhos/ can- Pedra do facão
quero que acabe, quero que vá pra frente Aparições jica/ azul marinho/café (pesqueiro)
Causos da Mãe de cana/café no pilão, Pedra da Tapicirica
e continue.”
angu doce, peixe assado
[...] Folia de reis Maria Campinho (M) Rancho de Fogão a lenha
na folha de bananeira,
“Nós estávamos ensinando as crianças corpo seco polenta, mingau de pesca
na escola, tava tão bom, todo mundo mãe do ouro farinha de mandioca, (final do lado esquerdo da
aprendendo, mas daí... Acho que a saci-pererê bolo de goma, bolinho Praia Vermelha do Norte)
de lenço
prefeitura não quis mais, acabou tudo... lobisomem
Podia ter bastante gente já treinado pra Feitio de canoa
dançar, as criancinhas estavam gostando História do Macuco Feitio de farinha Toca do macuco Casa de
Missa
pra caramba... Mas parou. Mas se Deus (toca do Macuco) Criação de (Itamambuca) pau a pique
quiser isso vai pra frente, só acabar essa porco e galinha
epidemia, porque a epidemia acabou com
Caça (armadilha de
todo mundo... Ninguém pode fazer nada, São Gonçalo
caça) Salga de peixe Barrinha
ninguém pode sair, ninguém pode nada...” (promessa)
Mutirões
Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em memória), Levar os mortos na
Roças
comunidade caiçara da Praia Vermelha do Norte, 2021 canoa em uma rede
Casas antigas
Espia
onde passa a BR
A gente fazia a festa da Barreado - casa de
Toca da sereia
Piedade, acabava quase pau a pique
amanhecendo o dia, porque faziam Uso de plantas me- Praia do Alto
dança de São Gonçalo, né?” dicinais (Baleeira/ Morro da Mãe Maria/
xarope/ caninha do Morro do Alegre
Aurora Nunes Leite e Domingas Nunes Correia
brejo/ tançagem, Erva Caçoeiro
Conceição, caiçaras da comunidade da Praia Vermelha
do Norte, 2021 Cristo redentor na entrada da comunidade de Santa Maria, picão Cachoeira da praia
e vassourinha Rio
204 205
ASSOCIAÇÕES SOBREPOSIÇÃO [...]
“Hoje todo mundo trabalha fora [...]
Depois que a estrada [BR-101]
passou, tirou tudo que nós

COMUNITÁRIAS DE PARQUE Trabalha fora porque o povo não tem


direito de derrubar nada, de plantar,
tínhamos, porque cortou tudo”.

A comunidade não tem mais associação ESTADUAL, né? O jeito é trabalhar pra fora. Mesmo
Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em
memória), comunidade caiçara da Praia

LEGISLAÇÕES
que represente seus moradores. assim ainda tenho umas bananas Vermelha do Norte, 2021
Espremida numa curva de asfalto, toca-se plantadas, umas laranjas, limão [...] Às
o dia a dia. A terra antiga ou foi cortada
pela estrada ou perdida para grilagens.
AMBIENTAIS E vezes planto mandioca também por aí.”
{E hoje vocês moram aqui mesmo, né?}
A praia já não é tão frequentada. Até
mesmo a capela quase não abre.
CRIMINALIZAÇÃO Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em memória),
comunidade caiçara da Praia Vermelha do Norte, 2021 É que veio a estrada, passou a

Até tinha, antigamente, lá


DE PRÁTICAS estrada, aí a gente passou pra
cima [saíram da praia].”
embaixo [no André], mas TRADICIONAIS AMEAÇA CAUSADA
POR GRANDES
Aurora Nunes Leite e Domingas Nunes Correia
acabou tudo, morreu tudo [...]
Conceição, caiçaras da comunidade da Praia
Antigamente tinha, quando a gente tinha Em todas as comunidades primeiro
o barracão, a gente fazia reunião pra passou a estrada, depois chegou o EMPREENDIMENTOS, Vermelha do Norte, 2021

festa, as coisas aconteciam mas acabou


tudo, não tem mais nada, desmanchou...
Parque Estadual. Uma tirou o espaço POLUIÇÃO E
natural do povo, outro tirou seus
Porque hoje em dia não tem como fazer fazeres. E o saberes só permanecem ESPECULAÇÃO
mais nada, não tem como se reunir, até
a festa da igreja acabou, não tem mais
nas gerações quando são feitos. A roça IMOBILIÁRIA
virou mato, a pesca virou história. Sem
festa, não tem mais nada”.
pescador e sem roceiro, o povo perde sua
Antônia (Macuca) Santana, 73 anos (em essência. E vai para a cidade ou a cidade
memória), comunidade caiçara da Praia vai até ele primeiro.
Vermelha do Norte, 2021

Se vai pescar na costeira já vai


BANDEIRAS DE com medo porque diz que não
sei quem tá lá, que não sei quem vai
LUTA DO FCT NAS fazer isso... Não pode largar tresmalho,

COMUNIDADES não pode fazer nada, antigamente ia lá


na praia, largava a rede, puxava, pegava

O Projeto Povos é um ponto de partida peixe, todo lado que você fosse, você
para novas possibilidades a serem pescava numa boa. Agora tem tanta
desenvolvidas, a partir de atividades que coisa... E outra coisa também, se vai
contem com a presença e participação da pescar na costeira agora, você só mata
comunidade dentro das frentes de luta [...] aqueles bichinhos, não é igual
do movimento. antigamente que você ia lá e trazia um
balaiado de peixe. Hoje em dia não tem
A exemplo de dona Macuca, são as mais isso. Depois então que apareceram
mulheres da comunidade que ainda As crianças: Da esquerda para direita.
aqueles tais de mergulhadores, que Andrei, Davi, Mathias, e Geovanna Antônia.
mantém a memória, as atividades e a Adultos: Kátia, Daiana, Jaqueline, fileira de cima.
mergulham, matam o peixe com a fisga, Juliana, Maria dos Anjos, Aurora, Ângela e Sônia.
tradição local.
acabaram com as costeiras tudo.” Cachorrinha neguinha.
206 207
Mariana, Daiane e Jaqueline em atividade de Projeto Povos MAPAS FALADOS

O QUE FOI MAPEADO


(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)
Na comunidade da Praia Vermelha do
Norte os mapas contam o passado, dos
lugares de roça, de pesca, de
moradias, de memórias. O corte
cultural na vida do povo foi maior do
que a extensão da estrada.

208 209
210 211
BARRA
SECA
Ali o povo plantava e pescava,
como em tantos outros lugares
em que o caiçara se criou.
Trazendo nos traços do rosto, na
fala,
no jeito de fazer as coisas que
sustentavam a vida, as heranças
do encontro dos povos.

212 213
TEMPOS E Euzébio Higino de Oliveira “Seu Higino” e seu neto Helbert
Ramon da Silva, preservando a cultura caiçara da Barra Seca

ESPAÇOS Então a gente vai mantendo um


Da praia sempre mansa e abrigada se avista pouquinho da nossa cultura e
o centro da cidade. Os antigos puderam ver o da nossa tradição. A Barra
por ser um Seca,
canto calmo, um canto abrigado,
tempo acender cada vez mais luzes artificiais
tem características boas para o cultivo de
na paisagem, que cresce para cima, com
mexilhão e pra fazer todo esse ensinamen-to
seus prédios tomando o lugar das árvores.
agora das aulas de canoa caiçara, que é algo
Um recanto abrigado na baía do Perequê-
novo, começou como uma brincadeira
açu, onde se guardavam canoas em ranchos
mesmo, os amigos querendo remar e tal, aí
e hoje as lanchas e barcos turísticos lançam
a gente montou aqui um time de pessoas
suas poitas quase em cima da marisqueira que já frequentavam a Barra Seca e as
de Seu Higino, pescador antigo, conhecedor corridas de canoa. Hoje em dia é mais um
das histórias do lugar. Mas, mesmo sendo ponto que a gente tá fortalecendo a cultura
um mar calmo na Barra Seca, ele avança de Ubatuba, através das aulas de canoa
incansavelmente sobre a praia, onde as caiçara. Em 2021, fizemos oito meses de
casas mais velhas já não existem ao longo aulas voluntárias com as crianças do bairro,
da praia, como a lembrar que todas as chegamos a atender 15 crianças, mais ou
mudanças que se faz natureza, voltam para o quantoAégente
menos. importante
sabe pra criança, mesmo
quem as faz. E nessa volta atinge primeiro os que não vá continuar na área da pesca, mas
ter esse contato com a canoa caiçara, esse
mais vulneráveis.
contato com o mar, que vão ser pessoas que
mais pra frente vão estar defendendo o nosso
A marina é a responsável pela descida e
território.
subida dessas lachas com o trator, usando
a faixa da praia, oferecendo mais perigo e (Helbert Ramon da Silva, 32
poluição à comunidade. anos, caiçara da Barra Seca).

215
As famílias são continuação do território Porque antes da rodovia se
caiçara, que se estende de ponta a ponta plantava muita coisa. Quando
de Ubatuba. Elas entrelaçam as vidas, os abriu a estrada, que veio o
sobrenomes e os rumos, pelos casamentos, progresso pra cá [que tudo mudou],
pelos filhos e netos espalhados pelas muita gente não morava aqui dentro da
comunidades. Os Batista, Os Silva e os vila, morava mais retirado, que era do
Oliveira, os Matheus ainda estão pela Barra outro lado da pista.”
Seca, com parentes Barbosa, Santos e Leite [...]
pelo território das praias e sertões. Mas na “A vida aqui antigamente era uma vida
Barra Seca, os caiçaras, assim como em simples [...] O recurso que a gente tinha
outras comunidades também, já são menos aqui era através de pesca. Luz elétrica a
que os moradores vindos de fora. gente não tinha, era lampião, lamparina.
Água da serra. Mas era uma vida super
Meu pai era casado com a
tranquila. [...] Naquela época a gente
Maria Barbosa dos Santos [...]
era rico, porque a gente podia dormir
é dos Gardino, Maria Gardino
com as portas abertas. Morei muito
Barbosa, que era filha do Gardino que
tempo aqui no canto da Barra Seca em
morava em Itamambuca”.
casa de pau a pique, casa com telha de
Euzébio Higino de Oliveira (seu Higino), 78 barro feita pelos escravos, mas a vida
anos, comunidade caiçara da Barra Seca, 2021 na comunidade era boa, muita fartura
de peixe, de marisco [...] antigamente
Tem a minha família [Silva], não se usava barco de pesca aqui, era
que são os irmãos dos meus só canoa a remo, meu avô mesmo usou
avós, Apolinário, Manuel muito tempo canoa a remo, espinhel [...]
Victor, Zé Pedro [...] Depois, tem a Depois vieram as redes.”
família Batista, que é a família do Seu [...]
Virgílio, o Seu Nelson [...] E depois tem a “Tinha muita roça, muita mandioca,
família da Dona Jesuína da Silva, que é o fazia farinha. A farinha que a gente fazia
pessoal da Dona Dora [...] E depois tem aqui era na casa do Seu Manuel Victor,
a família do Seu Higino, que é o pessoal o irmão do meu avô, ele tinha a roça de
do quiosque, a Cleusa, o Nelinho”. mandioca, a gente quando era moleque
Jurandir Rosa da Silva (Seu Didi), 53 anos, ia pra lá fornear farinha, colocar a
comunidade caiçara da Barra Seca, 2021 mandioca na prensa”.

O acesso hoje à Barra Seca se dá pela Jurandir Rosa da Silva (Seu Didi), 53 anos,
comunidade caiçara da Barra Seca, 2021
rodovia Rio-Santos (BR 101), com entrada
à direita para quem vai desde Ubatuba em
direção à Paraty. Ou pelo mar, atravessando
o rio Indaiá de canoa, vindo do Perequê-Açu.
Antes da chegada de rodovia Rio-Santos (BR-
101), a comunidade caiçara da Barra Seca
tinha uma vida simples, mas “rica” com a
Três gerações da família de seu Higino garantia de seus alimentos produzidos nas
roças e pescarias.
216
PESCA “Se essa praia aqui poluir, acabou o
AGRICULTURA E turismo, porque não vai vir ninguém
EXTRATIVISMO mais aqui. Essa é nossa preocupação

PESCA
[...] E as escolas também, que a gente dá
aula pras escolas, sobre maricultura, dá
aula ambiental. Então tudo isso agrega
A pesca é resistência de canoas que vão mais a gente, a gente tem mais força,
ao mar desviando de escunas e lanchas a união. Mas se poluir aqui e não tiver
ancoradas no remanso raso de mar. Colhem maricultura mais, acaba com tudo. E
o peixe que é para a mesa e para o comércio, realmente o meio ambiente já não pode
em quiosque familiar. Cultivam o mexilhão,
fazer mais nada pra Barra Seca”.
que reforça o prato e o bolso. Mas a pesca
anda fraca em todo lugar. Recentemente a Euzébio Higino de Oliveira (seu Higino),
78 anos, comunidade caiçara da Barra Seca,
pesca foi interrompida, pois as águas se
intoxicaram com os excessos da urbanidade
Ensina-se sobre canoa havaiana na
crescente que polui o mar e as gentes. O
secretaria de esporte de Ubatuba, mas não
famoso prato lambe-lambe deixou de ser
sobre a canoa caiçara. Que tem sua tradição
servido no quiosque da família de Seu Higino.
além da pesca, também nas corridas de
canoas organizadas pela Associação dos
Os que estão mais pescando são
Amigos e Remadores da Canoa Caiçara
o Toninho, eu, Nélio, Herbert,
(AARCCA), tocando em frente o legado do
Danilo, que tem documento [...] São
Professor Joaquim Lauro, que organizou
mais esses pescadores que vivem do
as primeiras corridas. A canoa é uma
mar, que se der alguma coisa vão correr
ferramenta também para o Turismo de
tudo pra pesca. Mesmo tendo pouco, mas
Base Comunitária da Barra Seca, com aulas
é o que vai dar um dinheirinho, matar de remada, da história e levando turistas
uns peixinhos pra trazer pra casa pra e alunos das escolas para conhecerem a
comer”. criação de mariscos.
[...]
É o turismo, diretamente do
turismo. Aí tem a pesca, porque
“Por isso que a gente tem que preservar.
todo pescado que a gente consegue pescar
[...] Eu sou maricultor e pescador, pesco
aqui na nossa região é vendido aqui na
e pego marisco, e, de vez em quando,
comunidade mesmo, mas isso através do
tomo uma surra de canoa aí [risos]. Fui
turismo, se não tivesse o turismo, a gente
profissional, na época eu que trouxe
tinha que pegar esses pescados e entregar
o troféu pra Barra Seca. A gente quer
em peixaria, levar pra outros lugares pra
defender também porque, além da pesca,
poder vender. [...] Hoje, a gente vende tudo
a gente tem essa área de turismo. Nós
aqui, que é o marisco, o siri, os pescados,
levamos ali na boia de marisco, fazemos
camarão quando a gente pega, tudo
esse trabalho de turismo comunitário.
vendido aqui na praia, através dos nossos
Dependemos do turismo também”. Caiçara Moacir Barbosa Neto, “Lilico” chegando da pesca
ranchos de canoa”.
[...]
Jurandir Rosa da Silva (Seu Didi), 53 anos,
218 comunidade caiçara da Barra Seca, 2021 219
Assim, a pesca, a roça e o TBC expressam
os valores da cultura caiçara que deve ser
preservada.

[A prática da cultura caiçara]


a gente sempre tem que ter
aqui. Não só por nós que moramos aqui
mas pela comunidade também, a nossa
força de caiçara é através da nossa
cultura. [...] Porque não pode se perder
o interesse disso aqui, a gente não pode
deixar as pessoas, os próprios caiçaras,
perderem o interesse por isso aqui.
Senão a nossa identidade vai acabar, vai
embora”.

Jurandir Rosa da Silva (Seu Didi), 53 anos,


comunidade caiçara da Barra Seca, 2021

Se não fosse a corrida de canoa,


provavelmente a gente também
não ia conseguir repassar todo esse
aprendizado que a gente obteve com
a minha família e obteve também com
remadores que fazem parte da corrida,
que a gente tem remador de norte a sul
de Ubatuba, cada um com tipos de remo
diferente, e ter o contato com essas
pessoas, com esses caiçaras, é o que vai
mantendo a nossa cultura cada vez mais
forte, a gente vai crescendo junto. Então
através da corrida a gente conseguiu trazer
mais pessoas pra vir remar na Barra Seca,
pra ter um pouco mais de conhecimento
aqui com a gente, e assim a gente vai
mantendo e reforçando cada vez mais essa
cultura nossa. A gente imagina que com
todas essas ações vamos preservar cada
vez mais a cultura caiçara.

Helbert Ramon da Silva, 32 anos caiçara da Barra Seca


Aula canoa caiçara | Fotógrafo Dule Oliveira

220 221
PESCA {Como vocês aprenderam a fazer os
AGRICULTURA E pratos do quiosque? Com a sua mãe?}
EXTRATIVISMO
"Tudo o que a gente sabe, a gente

ROÇA aprendeu com ela, vendo, né?

Nossa vida inteira a gente trabalhou


O povo ainda lembra das roças. Mas queria junto com ela, do lado dela. Tudo o que
mesmo era fazer a roça, como os antigos, ela fazia, tavam os filhos ajudando.
mas aqui na Barra Seca a roça foi atropelada Se ela tava fazendo um prato, a gente
pela rodovia BR-101 e não sobraram ramas tava lá de olho, aprendendo também,
de mandioca para contar a história. Então o porque na ausência dela a gente fazia,
povo conta, através do lembrar. Os terrenos
ajudando a servir, desde o início. Eu
tenho 51 anos. Eu tinha 9 anos quando
que a estrada não amassou, a especulação
eu comecei a trabalhar com ela, aqui na
imobiliária tomou.
praia, no quiosque. E todos os irmãos
E segue tomando.
trabalhavam juntos, pai, mãe e os seis
filhos... A gente nasceu conhecendo já o
Infelizmente, os caiçaras que
azul marinho, que é o peixe com banana,
viviam da roça, da mandioca,
o tradicional prato caiçara, de Ubatuba o
da cana e da pescaria ficaram
azul marinho.
muito recuados [...]. Porque não é
só da pescaria, o povo também, na Joelma Fátima de Oliveira Souza e Cleuza Romana de
Oliveira , filhas de Seu Higino, caiçaras da Barra Seca,
época, os indígenas, os caiçaras, os
2022
escravos, eles plantavam, cuidavam
da roça, sobreviviam da roça, hoje em
Fui cozinheiro muito tempo de
dia não tem mais, foi tudo tirado. E é
barco. Desde 1961 eu já era
preocupante, porque eu vejo que nós
cozinheiro no barco. Cozinhava
estamos vivendo o final dos tempos.”
pra 12, 13 tripulante na época. Então a
[...]
gente já tinha esse hábito de cozinhar, e
“Porque não pode plantar mais aqui, os
a minha esposa também já tinha. Depois
terrenos tudo tomados, nos que estão
fui passando algumas coisas pra ela,
aí não tem mais terra pra plantar. O que
ela foi engrenando e foi ensinando as
está segurando nós aqui é a pesca e a
meninas, e hoje elas são profissionais...
maricultura”.
Euzébio Higino de Oliveira (seu Higino), 78 anos,
Euzébio Higino de Oliveira (seu Higino), 78 anos, comunidade caiçara da Barra Seca, 2021
comunidade caiçara da Barra Seca, 2021

“A roça tinha. Você tinha mandioca,


milho, banana, abacate, pitanga, um
monte de alimento tirado direto da roça.
A gente tinha muita terra e plantava.
Hoje não tem espaço mais de terreno
pra se fazer nada.”

Joelma Fátima de Oliveira Sousa e Cleusa Romana de Oliveira, Jurandir Rosa da Silva (Seu Didi), 53 anos,
caiçaras da Barra Seca comunidade caiçara da Barra Seca, 2021

222
PESCA
AGRICULTURA E
EXTRATIVISMO

MANEJO DA
FLORESTA
Entre o mar e o morro, o manguezal.
Entre o rio e a lagoa, o caxetal, de onde se
tirava a madeira de caxeta para se fazer
instrumentos da música tradicional caiçara,
a viola, o machete, a rabeca e utensílios do
dia a dia, artesanato prático do caiçara, coisa
de valor de uso pela sabedoria herdada, não
de valor de dinheiro, que o turismo ao ver
quis comprar e estipular preços. Assim como
o valor de um território não se media em
preço de dinheiro pelo caiçara, mas pelo uso
que se fazia dele para viver.

Segundo a comunidade, o mangue também


tem papel importante para a cultura caiçara
e tradicional, tanto para o tingimento de
redes como por ser um berçário natural de
espécies marinhas.

Jurandir Rosa da Silva, caiçara da Barra Seca.

224 225
FESTAS E
CELEBRAÇÕES
A Folia do Divino ainda passa pela
Barra Seca, vinda do Norte de Ubatuba,
percorrendo as comunidades caiçaras
até a Igreja Matriz no Centro. Mas já
são poucas as casas que a recebem.
Pois também já não há muitos caiçaras
morando. Quando há corrida de canoa,
os fandangueiros tocam, alegram o
dia, os caiçaras de várias comunidades
se encontram, remam, relembram,
resistem, festejam. Celebram a tradição.

Rancho caiçara Barra Seca

226 227
CELEBRAÇÕES
FORMAS DE
EXPRESSÃO
MODOS DE
FAZER
LUGARES EDIFICAÇÕES ASSOCIAÇÕES Seu Higino de Oliveira

Festa da Nossa
Senhora de Fátima
Folia de reis
Feitio de canoa
Mangue e
Ranchos caiçaras
COMUNITÁRIAS
brejo
(memória) Organizar a resistência em tempos de
perda de território é caminho para a luta
Roça de milho,
Corrida de canoa Fandango Caiçara feijão, cana Praia Quiosques pela permanência nas áreas tradicionais
(memória) da Barra Seca. Os caiçaras estão
organizando uma associação que os
Igreja Nossa
Criação de galinha represente e que se unam pelos direitos
Festa junina Bailes Lagoa Senhora da
Fogo a lenha do povo local.
Piedade

Morro do
Fandango caiçara São Gonçalo Feitio de rede A nossa associação aqui tá em
Alegre
processo de formação, a gente
Festa do Divino Ciranda Maricultura Caxetal Taboal
montou uma chapa, a gente
Artesanato: Esteira, montou a diretoria, tudo, mas como
Festival Congada balaio, tipiti, embira veio a pandemia, a gente não pode fazer
Rio Indaiá reunião, então eu tô na linha de frente
do Mexilhão / Taquaruçu,
timbupeva como presidente do bairro”.

Pesca artesanal: Euzébio Higino de Oliveira (seu Higino), 78


rede de espera, pi- anos, comunidade caiçara da Barra Seca,
Festa de Corrida de Morro do 2021
Xiba caré, troia, espinhel,
Canoa Caiçara Soares
mergulho de manu-
tenção

Culinária: lambe-
BANDEIRAS
-lambe; bolinho de
arraia; azul ma- Ponta da
DE LUTA DO
rinho; marisco no
bafo, vinagrete de
Maricultura
FCT NAS
COMUNIDADES
marisco e tainha
assada.
Pedra do corvo
Saco da A comunidade participa do Projeto Povos
Mãe Maria fazendo o seu próprio mapa histórico
territorial e dialoga com o GT-Pesca/
maricultura do FCT, que teve importante
participação na defesa dos territórios e
dos direitos caiçaras na elaboração do
Plano de Manejo da Área de Proteção
Ambiental Marinha do Litoral Norte
(APAMLN).

229
Todos esses lugares pro contaminam, os peixes se afastam, a pesca Estão entrando muitas pessoas “O que vendia, vendia, o que sobrava, eles
norte [de Ubatuba] que escasseia. Marina em cima do manguezal, de muito dinheiro em Ubatuba, davam um pro outro, era tudo assim, o
ainda temos que cuidar, que aterro, casa em cima da beira do rio. Essa nossas praias estão sendo tomadas pelas povo vivia assim, um povo humilde. Não
os caras estão indo, estão invadindo, é uma história repetida, acontecida e marinas náuticas, pelas várias embarcações era o povo que nós vemos hoje, que estão
e se não tomarmos cuidado, não acontecendo.
que compram lote [...] Daqui a pouco ele vai destruindo o meio ambiente, a mata, os rios,
nos fortalecermos nesse movimento
lá, olha a praia, a praia é legal, “vamos botar o manguezal, os caras estão destruindo
que está sendo feito pelo Fórum [de
Hoje a gente perdeu 70% do que a umas lanchas, uns iates aí’, e o pescador,
Comunidades Tradicionais], nós vamos tudo [...] Por causa da ganância do homem,
gente tinha naquela época. Muitos que é o caiçara, que ganhou isso dos avós e
acabar perdendo tudo mesmo. Falo isso a pessoa que tem dinheiro demais e não se
pra vocês e o pescador, povo caiçara peixes que tinha aqui nessa região, hoje dos bisavós, daqui a pouco ele não tem mais contenta, em vez de ajudar o pobre, não, ele
que estiver me ouvindo falar, porque já não tem mais: uma pescada cambucu, uma aquele espaço pra ele sair com uma canoa, quer crescer e vai embora, vai invadindo a
aconteceu e agora tá pior, nós temos que pescada bicuda, esses peixes demoram pra ir matar um peixe ali, que eles são terra, vai tomando lugar daqueles que não
nos unir”. dois, três meses pra matar um exemplar nativos e já tinham esse direito de pescar, têm documento correto da terra, e assim tá
Euzébio Higino de Oliveira (seu Higino), 78 anos, de um peixe desse. Antes você largava uma matar seus peixes e trazer pra alimentar acontecendo, já acontecia no passado, agora
comunidade caiçara da Barra Seca, 2021 rede aí e pegava vinte, trinta, quarenta suas famílias”. muito mais ainda”.
exemplares de uma pescada bicuda ou uma [...]
AMEAÇA CAUSADA pescada cambucu. Hoje não tem mais”. Euzébio Higino de Oliveira (Seu Higino), 78 anos,
comunidade caiçara da Barra Seca, 2021

POR GRANDES {O que você acha que está afetando a pesca hoje?}
EMPREENDIMENTOS, “Diretamente é a exploração imobiliária
em beira de praia, por causa dos esgotos,
POLUIÇÃO E porque hoje se faz muita construção e
ESPECULAÇÃO os esgotos vão diretamente pro mar,

IMOBILIÁRIA coliformes fecais, muito lixo.”

Jurandir Rosa da Silva (Seu Didi), 53 anos, comunidade


A estrada que cortou o mato, a roça, o
caiçara da Barra Seca, 2021
manguezal e passou por dentro do terreno
caiçara sem pedir licença mudou também
o fluxo de águas das lagoas da restinga
que se interligavam ao mar. As terras
retiradas dos morros para a passagem
do asfalto serviram para elevar o leito da
estrada, mas interromperam as águas das
chuvas e das nascentes que descem das
vertentes da serra do mar. Pela estrada
vieram a especulação imobiliária e os
grileiros. Pelo mar chegam novos barcos,
iates e veleiros, que ocupam as águas
de passagem das canoas caiçaras, os
pesqueiros, os atracadouros e os abrigos
do tempo. Águas que sofrem com tudo
aquilo que se produz em excesso em terra
Impacto da Marina no território caiçara
e vai para o mar, poluindo. Os mexilhões se

230 231
Se nós não tivermos cuidado
com os nossos netos que estão
incentivando, remando canoa, ensinando
a remar, cultura caiçara, preservar, não
deixar sujar o mar, vai lá e cata um lixo
que tá na praia. Porque os grandões só
vêm de lá, caem de paraquedas, vêm
aqui, suja e vai embora. Então a nossa
preocupação é com a cultura caiçara,
nossa cidade de Ubatuba, Barra Seca
que ainda tem um pouquinho de cultura,
Adicionar foto do trator que a Marina tirou, Ubatumirim, Almada, Picinguaba. [...]
pra demonstrar o impacto. (Fazer mudança na Nosso povo é o que mais cuidou do
formatação da página. Colocar texto e foto do meio ambiente, que mais zelou. E hoje
impacto na pág 230 e na 231 a foto mostrando não está sendo respeitado, está sendo
a construção e reforma de barcos artesanais. chicoteado.”
Até mesmo para ter um contraste.
Euzébio Higino de Oliveira (seu Higino), 78 anos,
comunidade caiçara da Barra Seca, 2021

Construção
Construção e reforma
e reforma do barco
do barco de valorizando
de pesca, pesca, valorizando a mão de obra artesanal e a cultura caiçara
a mão de obra
artesanal e a cultura caiçara

232 233
SOBREPOSIÇÃO Principais ameaças é com a
parte ambiental [...] O desafio

DE PARQUE hoje é o meio ambiente mesmo


que não quer deixar o pescador trabalhar,
ESTADUAL, proibindo aquele local que você largava

LEGISLAÇÕES sua redinha, pegava seus peixes pra


trazer pros seus filhos, não pode mais [...]

AMBIENTAIS E Eles estão apertando, não querem deixar


o pescador lançar rede de boiada mais.”
CRIMINALIZAÇÃO Euzébio Higino de Oliveira (seu Higino), 78 anos,
DE PRÁTICAS comunidade caiçara da Barra Seca, 2021

TRADICIONAIS Falando um pouquinho do meio


ambiente da Barra Seca, a Barra
A canoa sai no silêncio do amanhecer, Seca perdeu muitas pessoas
quando as luzes do centro da cidade que foram vendendo pedaços de terra,
ainda estão acesas no horizonte, então cada vez mais a gente vê a Barra
afastando os peixes que antigamente Seca crescendo e isso acaba sendo um
se aproximavam da costa. Desviando de problema porque não tem tanta estrutura,
veleiros e barcos turísticos ancorados na é uma praia pequena, um bairro pequeno,
proteção da baía, a canoa vai ao largo,
próximo ao manguezal, próximo a área
sobre ela um pescador também em
de caixeta... a Barra Seca sofreu uma
silêncio, remando, lançando sua rede e
rasteira com o zoneamento ecológico,
esperando que ela se encha de peixes,
porque no zoneamento a Barra Seca
coisa rara de acontecer, as águas já não
tá como uma área Z4, então é muito
são as mesmas, cheiram diferente, tem
parecido com o Perequê-Açu, que é o
cor diferente, estão pastosas de óleo,
cheias de plásticos. As leis, que dizem bairro vizinho. A Barra Seca não tem
proteger o mar, não protege o povo que característica nenhuma pra ficar igual ao
vive do mar. Criminaliza o pequeno, Perequê, a gente vai perder muita beleza
mas não vê o grande, o industrial. Um natural. Então cada vez mais importante a
pescador já dizia:” a lei é como uma rede gente preservar a Barra Seca, preservar
que pega o peixe pequeno, mas o grande os mangues pra ser um canto de caiçara
pula ou rasga ela. O peixe pequeno é a ainda, então a gente briga por isso. Cada
gente caiçara”. Sem muito peixe, sem vez mais a especulação chegando próximo,
roça também. Que na terra também tem culturas que não são nossas chegando.
suas leis incompreensíveis, não se pode Então isso acaba fragilizando uma
plantar, há um Parque E stadual sobre comunidade que tem tão poucos caiçaras
as antigas roças, proibindo o alimento
morando aqui. A gente vê que a maioria
natural de um povo.
são moradores que vieram com o tempo,
chegando pra morar em Ubatuba." Helbert Ramon da Silva, caiçara da Barra Seca

Helbert Ramon da Silva, 32 anos,


234 235
caiçara da Barra Seca
MAPAS FALADOS

O QUE FOI MAPEADO

(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)
No mapa da Barra Seca estão os
lugares de vida e de uso histórico da
comunidade, como manguezal, rios,
caxetal, antigas roças, a marisqueira,
as casas e os ranchos de pesca.

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