Gótico Nordestino - Intervenção

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Anda-luz Era madrugada quando a porta abriu: — Acorda, acorda, Chiquinho... £ tu que vai levar 0 recado pra Zé Barbatao! O menino esfregou os olhos cheios de remela. Para satisfa- ¢a0 da mie, nao hesitou. Pulou da cama como um soldado em miniatura. Chiquinho ouviu o cantar do galo, latidos distantes €0 radio, som baixo, ligado no quarto dos pais, “... prevista para esta manha a extraordindria passagem do...”. Reconheceu os cheiros. Ovo mexido, café prontinho. O lampiao trazido pela mae, postado no chao, iluminava todos os pés do quarto. Comeu apressado. A mée tentava sorrir. Parecia alerta, com medo de alguma coisa? —O que tem no bilhete, mainha? — Ecu vou saber, menino? E coisa de Doutor Quincas, Entao era recado do Coronel Quincas, em cuja proprie- dade a familia de Chiquinho vivia e trabalhava. Mas quem garantia que nao tinha ali também coisa dela? Afinal, o en- velope soltava um perfume. Chiquinho imaginou uma flor amarrotada, escondida... Uma flor, como daquela outra vez. Afastou a desconfianga. Primeiro, é pra respeitar mae, sim. Segundo, se esbaldava com o privilégio de comer ovo, bolacha © goiabada de uma vez. sé, —Tu nio vai pela estrada! Vai pelo mato, vai por dentro, Pelo caminho até chegar em Riachio da Frente, onde Zé té om 0 bando. | mio torta € ¢ __ Mas mainhe- Um sinal de silence Rio... noite corre ¢ que fo? you ast P uma mao ~ Ba Febre? Ee erompe™ ; bega; de noi © abraco dela © infin de igus metade de um pio subido dos A mite separ una BF ie rapadura- Ajeitaram tudo num, As ame compe pedis “Chiqui ndurou no ombro. Ey comage ¢ F bobs de cour? surrads> a do filho. Depois, tezaram, afiadas esp soit moh prata £ protegendo, Chiquinho, também. I _Vai a va que nem essa cruz! Agora vai, F mas antes ie z 4 Um que em aa inguém que nao for Zé Barbatio, longo gol io de CONS ie bando. Entendeu? Entendeu? Viun Ninguém daquele banco- gada iam -lume esti : com as 1 Quando a porta da casa de reboco foi fechada) sobrou pou- podiaah eq luz no cerreiro do sitio. Uma cerragao cobria a vegetacio grande, rasteira. A paisagem ali era de suaves elevagGes no terreno, se apaga’ coberto de mato ralo e ocasionais arvores robustas. Chiquinho as nuve! andou em ritmo de marcha. Atravessou a escuridao. Tomavao bom, p: cuidado de nao fazer barulho ao passar proximo dos pequenos Osola sitios ou das casinhas. O problema nem era encontrar 0 cami- nho para Riachao da Frente, mas sim as histérias que 0 pov cont istéri: 4 : tava, umas histérias de assombragao de beira de estrada chung i ea, a a deixar de pensar. Tinha ee menino gostava de aa Dee dos vaga-lumes. 0 casink nao machucar, oe com eles, mas com cuidado p2" apare fa mao em concha, ate on alguns segundos, fecha-los nho | pulsando » imaginando que havia uma estrelinha algui Por dentro dos de Ae aaa nade No mei io da noit das, as sscombracteg, ©nas esquinas dos caminhos das est Sao luz € grito. De noite corre ons? mio torta e onga boi, € suas patas sio iguais 4s de um boi; de noite corre o Cabeleira, cangaceiro amaldigoado que segura puma mao uma faca ensanguentada e na outra a propria ca- bega; de noite corre também Fogo Vivo, um vapor luminoso subido dos timulos, cujo grito sem boca endoidece as pessoas. ‘As ameagas desceram da sua cabega, atravessaram © ¢s- romago ¢ pesaram na barriga. Uma pontada — umas garras afiadas espetando de dentro das entranhas. Foi faltando o ar também. Encostou em uma Arvore grande, de tronco grosso» mas antes tentou ver se tinha escorpido ou cobra. Tomou um longo gole de agua. Viu no chao, entre a sugestao que os fios de luz da madru- gada iam concedendo, uma estrelinha. Se acocorou —— 0 vaga- -Jume estrebuchando. Chiquinho ia falar algo, mas calou a boca com as mos. Tentou lembrar se alguma licao do padre Antéo podia ajudar, mas parece quc 0 povo s6 sabe de cura de bicho grande, que se doma ou se come. E agora? Uma Juz, mintiscula, se apagava... Ia ficar até o fim, néo custava nada. No horizonte, as nuvens comecavam a azular, arroxear. Um ventinho morno, bom, passou correndo; a neblina diminufa, 0 chuvisco secava. O sol acabava de nascer — n© chao, tudo era dia. Chiquinho podia dar a volta por aquele povoado, mas diziam que por ali dava muita cobra. Melhor seguir na vereda de terra por onde caminhava hd uma hora, melhor atravessar as casinhas, ¢ logo chegaria em Riachao da Frente. A Febre tinha aparecido até nos jornais de Campina Grande, que Chiqui- nho lia pra mae quando uma das filhas do coronel deixava algum exemplar com ele. Varias cidades pequenas estavam com a Febre, até Riachao da Frente. Zé Barbatéo nao temia nada disso. Nenhuma doenga podia com seu bando! Além do u OO bom lugar para se esconder da polic;, mais, a Febre si ea lentia do cangaceiro, a0 mesmo temp, jquinho ama’ ao cara dee spse, Segurou 0 crucifixo € lembr, Repetiu 2 ae do invisivel, flutuando por cima da ca. do anjo de prat, wi flamejantes ‘ou entio caminhandy i bega a6 i de ferro que nem os cavaleiros do, seu uray — ca ‘um amontoado de casas, a maioria com, ° duas drvores grand, sanela de madeira. Tinha no centro iptandey porta janela (uma delas desfolhada, algo pendurado nos galhos), © pogo, mais pra frente, a igrejinha pintada Baers. oF Passando por ela que Chiquinho yislumbrou uma trilha. O menino nio viu ninguém, a néo ser uma velha varren- do a entrada de casa. Era muito idosa. Cabelo branco, longo seco. Encurvada, protecao no rosto, um pano colorido de algodio. Se havia mais alguém no povoado, ou estava morto, ou doente, ou foi embora dali. Seguiu os ensinamentos do padre Antao. Para evitar contaminag4o por qualquer peste, za preciso andar em zigue-zague pelo terreiro do lugar con- taminado. E de onde vinha a doenga? Padre Antao, latinista, a astrblogo, eleito Rei dos Sonetistas da Serra da ema, falava de “miasmas terrificos” ¢ de “conjuncées astrol6gicas nefastas ¢ odientas”. ee rentava ter escolhido outra fegéesestrangeiras pendia Porém a comunidade apa- causa. O corpo de um homem de Tibocrqit ae enforcado da Arvore desfolhada. Omenino sentiv o ‘sse Seu primeito morto, ao percebé-lo Para cangaceiros perdem a ‘oupas enfeitad: parece graca. Os morad ‘ as pequenos, desconsolad lores da cidade lh mundo, todos los. Os contrat - ie a » a ponto de se ras, tos das beiras do Zepelim, em segui ga. Ao mudar 0 ei seguida, fez uma correc 0 cixo, Corres d 0 cortej , a luz do sol, se i 40 de moviment ejo servil das , se im, 0. da aeronaye, nuvens, seus sient 01 ct passou cs indo agora por entre egando boa Patad ser refletida no dorso © toda a gente e da cidade. Zé Barbata tentavam proteger _ atao, a vista com OZeseh no rosto, elim atravessou a cidade com a for ga da navalha De longes ainda er ‘Aproveitando a jadistance, olhou t ‘nde o Zepelim ¢ estrela diurna, cor Da bolsa de © —Quieto, C Com a faqui pegou 0 caminh« Delonge, ainda era posstvel ver. : ; _ Aproveitando a confusio, Chiquinho correu como nunca. "8 JAdistante, olhou para trés. Nao mirava a cidade, e sim 0 céu, onde o Zepelim continuava a flutuar, metamorfoseado em estrela diurna, com poucos poderes. a Da bolsa de couro, ouviu um miado. —Quieto, Chicote! Coma faquinha brilhante firme nas m4os, o menino z ninho de volta para casa. As ongas novas coisas essenciais: 0 facto man. inha, as js Na mesa da cozii Juvas, metros de corda resistente, chado, gaze, analgésicos, = oo ne tina hora de comprar o remédio do papai. Nao houve resposta. A mie de Diana estava na cozinha, iluminada apenas por um abajur. Desde que as portas da cidade tiveram de ser fechadas, a mae passou a se irritar com a luminosidade. Nis- so, contrariava as recomendacoes dos especialistas. Quem se aventurasse pelas ruas, naquele creptsculo, encontraria tanto casas quanto lojas com janelas e portas cerradas, mas com to- das as lampadas acesas. Algumas familias chegaram a0 Ponto, talvez exagerado, de ter trocado as lampadas usuais por outras mais potentes. A mae imaginava as Pessoas insones, olhos ar- tegalados, esperancosas de a invasio das oncas, — Diana? Diana. ...? Perto de aia das portas da cozinha, burlar 6 io. saly Pau é » abla que cada saf que as luzes intensas espantassem teforgada com novas tmelha do dispositivo pertas e conseguiam ida era um risco, mas convenceu sabiam do deixadas s disso, Dia es] yerta. a calgade perceber r da lua nos arma, co! aos pulos contamin =D Ja Ama cava pou pescogo. por pou meio-sol voltado | —h} Elat -lo. Na coisas. / dias. A Seu cor mer, de signific; Gel queijo, Diana. suficier feijao, Nan- Ate, > do Ss — ) -_ 4a si mesma de que nao existia outra op¢ao. Todos los boatos recentes de oncas dilacerando criangas ‘ieisadas sozinhas em casa... Ongas abrindo portas. Além disso, Diana, desde criancinha, se revelou uma garota muito esperta. No momento em que mae ¢ filha colocavam os pés na calgada, Diana passava a vigiar os telhados. Ela conseguia yer nuances de som € movimento, ou o piscar do brilho da lua nos olhares felinos. O que é uma filha, afinal? Anjinho, ? Diana apreciava — coracao convene! sabiam di arma, continuidade, salvaca aos pulos — 0 faz de conta de ser uma cacadora nas esquinas contaminadas. — Diana! —Ja vou, mame! Té aqui com o papait ‘A mie tocou com cuidado na sua cicatriz recente. Come- ava pouco abaixo do olho esquerdo e continuava por todo o pescogo. Correu o risco de morrer de tanto sangrar, o golpe por pouco nao lhe cegou um dos olhos. Lembrou, com um meio-sorriso, de Diana perguntando se o papai doente tinha voltado de vez pra casa. —Nio, filha, a gente s6 pegou 0 papai emprestado. Ela nao enxergava qualquer nobreza na decisao de abrigs- -lo. Na verdade, depois de tudo, a mae se permitia poucas coisas. A casa, a filha, o ex-marido doente. Isso dilatava os dias. A noite, a tarde e a manha, nada mais lhe contavam. Seu coragdo era um féssil. Respirar, respirar, caminhar, co- mer, defecar — proteger a cria a qualquer custo! E proteger significava, em primeiro lugar, nao morrer nem ser devorada. Geladeira: caixa de leite, garrafas de 4gua, um pouco de queijo, presunto, algumas verduras, iogurtes coloridos para Diana. A casa, antiga, de passado préspero, era grande o suficiente para ter uma ampla despensa — pacotes de arroz, feijao, macarrao, doces e salgadinhos. Caminhou em um 19 | dio as fortes luz, Ss . Seu repidio ze af ax, d passo silencioso e a ce castigais com velas, Inspeciong, de eae ee distrbuir pela casa 27) deira © PrEBOS BFOS805 de ferry * at ‘i m: : ‘ > eNals ve" as janclas im oe Havia, diziam, cuidados domésti,” ie pe inspecionou ae comadbe'que podiam afugentar 88 onc, via Dian especificos a tanto Diana brincava sozinha NO quarto 4, sua filha Todo dia, Da uma procissio doméstica, reforcand, Pern que via Tv, a mic iniciava indo nas port. paver do os alarmes, asperg! Portas, nas entos ¢ travas, cibuas, testan i rodutos de |i Buoe janelas, no quintal, sprays arornlticoeie P moe monstros- a odor e propriedades quimicas, assim esperava, causavam precisava a alim aversio as oncas. até a se Subiu as escadas. O corredor dos quartos, no segundo an. Dane-s¢ dar, estava escuro, exceto pela lanterna de Diana. Sentada no ue fique! chio, a menina, com seu vestido branco ¢ sandélias nos pés, — Dia segurava um livro e o lia em voz alta. Volta e meia, interrompia “Psiu!” a keitura c encarava a porta fechada do quarto diante do qual se Termit postava. A garota nao deu sinais de ter notado a aproximacio ee a mie. A luz da lanterna criava uma concha de luminosidade yiu que elc ao redor da menina. As trevas rodopiavam e se curvayam em casaram € volta de um mintisculo castelo prateado. A mie se via, numa Diana manhé, brincando no quintal. A lembranga era tio antiga, mas um beijo tao antiga, que podia ser inventada, Talvez tivesse sonhado ¢ aT feito, sem querer, a costura do sonho com a vida vivida. A po} - = casa pertencia 4 sua familia hd geragdes; ali nascera, submissa consoli ou : nae “ss heranga €semente. Criancinha, a mae observava Com ee, ae snorme! De repente, se percebeu sozinha. puxou d Primeiros passinhos, Olhou para tré ea, Nem pai, nem ae Para trds — ninguém. , » Nem 46. Amava corre m a babé e as empregadas, nem a fans mma doahamedomcigic si : Oar, ov muito muito pra fre ; © quintal terminava 2 a ‘nte, terminaya ¢, asm entre |; 'M pouco, €ncolhey o Passo. Oh, Pea Andou mais : : 0. ; “tava mais sozinha. Y, fi ee tds outra vez. Nao a : Sura feminina, de face impossfvel ua de enxergan dizia, num tom de vor grave, voz raspada com esfregoes intensos de uma esponja metal “Vai, vai, corre menina.” Torceu para que as tébuas do corredor nao rangessem Via Diana como feita de um vidro delicado. Sua filha andava com extremos de irritagao, ou de choro, Tiveram que voltar a dormir juntas na mesma cama, Houve momentos de febre, também. Diana delirava sobre ongas, monstros. E morte. Mesmo naquela condigao, a volta do pai, precisava admitir, teve um efeito bom na crianga. Ela Passou até ase alimentar melhor. Dane-se qualquer orgulho — se for melhor que ele fique, que fique! — Diana... — sussurrou. — Filha...? “Psiu!” Terminava a sua histéria: — ... ea princesa, depois de jogar o sapo na parede, ecal, yiu que cle, papai, se transformou num /indo principe! E ai se casaram e viveram felizes pra sempre! Diana fechou, satisfeita, 0 livro, se ergueu do chao e deu um beijo na porta. —Tehau, papai! A gente vai comprar seu remedinho. A porta estaya trancada por fora. De maneira discreta e submissa, 0 pai se fez ouvir. Com alguma forga, a mae pegou no brago da filha e a puxou dali. Oar, ou a luminosidade, ou nao sabemos se certa danga-jogo entre luz e sombras, enfim, algo na paisagem da rua emanava aquela desconfortavel, porém sutil, eletricidade — a certeza do quanto, sobre nossas cabe¢as, paira uma ameaga. 21 _—_ ~ gene ilo na pele. 4 Jocavam os pé q exists ‘ee Buen fe run & Jo qual depois se oe ag a ra ronitorar aS Pi rt EQ ndidas: Porque t° deiminha alertas 2 iniclals da gy plhos © ouvidos & essa Amenina primeiro se punh Fe procura de Ri: ha onic ‘inam P rua, de un road pois, relaxava. Por Aen jimpesinh® havia uma rua, clara real? Un, ras € agors? Nad! a. Nadas ninguer™ Sees mento triste — Nada. 56 0 moro ~~ e ers 0 ros filha. vam em uma cidade pequen € turistica, fy, pelos quareeits preservados do scu bairro secotico, aoe mee cagors nba medo des poe Melhor néo chat gnicos anosem que ficou afastada da cidade ¢ da ali. O, que, quando as onc os seus cempos de faculdade de medicina. Sua a foram ‘Ao longo 42 caminh sinks posses embora nfo mais como nas glérias lia ainda rés esquinas antes galpées e comércios de tecidos e roupas. A rua oo de do bairro, onde ain ouica. Era rznavelmente larga © pavimen tava mora farmacias, delegaci imegulares. Amie pe atacom ; sempre amou a pavimentacio da Pedras cujas solas as duas arc tempos, iso era um problema — na sua rua uma vez, elas nots : k chao. A casa de Diana e sua mac = seria fici que tanto chamo a. colonial do bairr, quase sedi Record ia parte do Olha, mac, olla ¢ es familias endinheiradas. ado por empre- das casas com 0! af tes das oncas, as calcadas de somada em segu tariam ocupadas co! 5 ambos 0s lados d: lho i ‘ Neidites behead: 3m mesinhas cadeiras s da rua A ae di , conversan 5 pessoas de as Jampad tadores ¢turistas dos vari do, fumando, flertando; ee a Be aromas delici ios bares e rest: os frequen- ee ete aurantes dali, de e das portas, lu: Artistas de rua fari cortam a madrugada. eo Al mo sicais; artess iam malabari + ee PO artesios, de origem i labarismos ¢ apres: 5 varias das cas: tapetes no chio igem indigena ipresentagdes mu plisti a pedi e vender ou local, colocari ticos em fi iam sua arte e iam seus fee seus penduri : ana penduricalhos; « mae Movimer intes també 'M por ali Passariam e estenderiam suas miss 2 Ta. sa de ds la le nega € pardas em busca de trocados dos visitantes ¢ mora- Fares, quase rods brancos. Pediriam com medo, pediriam &s ; as Se deitaya maiores gue, u® CePatar de ol | aquel; que a mie: ‘am com a on a pose py ae jd tinha y; a. Desay Plena do. a Visto. O animal 8 Bato: anim: © NO meio da rua. O . 28 ‘ som we murmurous alguns quiscram fugir, outros tentavam as _m para uma batalha. A mae pediu siléncio. co! ri " oa algo errado. Algo muito, muito errado com aqucle _— Tao ouvindo...? ‘A onga gemia de dor. Ela se contorcia, lambendo partes sficas do corpo constantemente. O grupo chegou a recuar, a melhor reagao para sobreviver. Mas a ona nao seu comportamento. Olhou o grupo com desinteresse ¢ continuou a se Jamentar. Apés répida deliberacao, continuaram calcada mais distante da onga. Compactos, justapostos, os integrantes do grupo se enfileiraram e deslizaram pela rua num movimento semelhante ao da tinta que sai de uma bis- com forga. ‘A mize, de relance, acreditou ter reconhecido, descansando entre as gigantescas patas da onca, um naco de roupa usada por alguma das vitimas do carro abandonado. Um delirio de morte e sede de sangue agitou 0 estomago da mulher — 0 grupo, Diana em especial, contemplava aterrorizado a mae eaonga, uma cada vez mais perto da outra, se encararem fixamente. A onga nao reagiu para se defender — se virou de barriga pra cima, recolheu as patas e ofereceu, gemendo, 0 pescoco. A lamina subiu, mas nao desceu, porque Diana agarrava amie e gritava: — Mae! Mae?! Mic...2! Por favor, nao nfo nao ni Todo 0 corpo do felino se reduzia a espasmos de dor. A mie se sentiu resgatada de um pesadelo. Teve vergonha de olhar diretamente para a filha, cuja face estava palida. Desarmou da posigao de ataque © yoltou sua atengao para 2 onga, Ela, e era uma onca-ela, tinha uma pelagem, um dourado com manchas escuras irregulares, que The parecia tio macia e ao! sto, quase automatico, de Acar; bela... Conteve um 8 a se intercalavam a um ro, ong: i toy le dor da , loméstico; © rom, Os lamentos a qualquer gatinho d = 0 semelhante a ivesse ferida, tinha edie esti seratiade ere ae calor emanava da ong 5 ia. Além disso, ae cia. odor forte do sang! a: misturado a0 ia observar melhor as fe! RU aun, A mie conseg a embora daqui, vamos, vamos, at = — vinha do seu instinto, da Percepeag ge oua volta? Diana, chorosa, sentia ™uitg tidy, 0) Potén_ de Vida ter sido ul guém dizia; % inha risco, No entanto, ti fo de crianga havia €spago, tam. Naquele coragao pena da onca. fener Une yy = e nem Oe ea, Se houvesse um ataque, se 3 ae despertasse numa firia, ou num reflexo de defesa por nao entender dircito as duas fémeas humanas, haveria pouca esperanga para mae e filha; elas, claro, tentariam se defender, fugir, matar, sobreviver; porém nao, a onga pape incontor- navel por isso. Nao é que a mae e Diana se Posicionassem para um suicidio-sacrificio no topo de uma montanha. A dor, a ansiedade ¢ 0 medo escorriam de tal forma através do corpo das trés fémeas que um laco invisivel as comprometia num enredo novo, um enredo tecido numa lingua desconhecida, Porém profunda, Com raiva de si mesma, Diana, a mie cuidou da on dados, Ng » Sob a orgulhosa supervisao de a. O animal compreendia os cui- Hie, ‘m nenhum momento, permitindo ieee f S anestésicos, antibidticos ¢ Pontos nos rasgées. ado o tratamento, ao » 2 Onga che; - Sustando suas cu ce G0u a dar um salto, as Pela rua Tontonando e. Nada aconteceu: Apenas se arrastou 5 ant E “ma Vez para tris, cs desaparecer Na noite, olhou 30 cig. oh Pm Em casa, a mie beijou Diana virias vezes ¢ a abracou. “Tom, Bagungou os cabclos cacheados da menina — iguais aos da Pota,” serparerna — ¢ limpou 0 rosto dela, Na cozinha, as com- . avi ; 4 te Vida vas se esparramavam pela mesa. Uma cadeira a convidava. A rere sabia que, se sentasse ali, desmaiaria de cansago. Melhor Supg, arrumar tudo antes. ; ‘ ; Os, a ‘ApS guardarem as coisas, seguiram até o corredor: G0 do Feta com a chave, mamie? Posso abrir, posso? nuj — Vocé sabe que sé eu consigo abrir a porta, filha — ta tam. | mentiu. C5 | Pegou a chave — pesada, comprida, com um ornamento io, ; 4 : , = 7 | ‘em forma de corag4o na extremidade —, a enfiou no trinco os ¢, bem devagar, destrancou e abriu a porta. se aa : 3 A propria Diana jogou o remédio na entrada do quarto Por 4 — meio quilo, parcialmente desembrulhado, de carne crua aca esangrenta. Na escuridio domesticada do quarto, os olhos ler, felinos surgiram. Brilhantes e famintos. or ra a 10 n 31 Lazaro 5 — Sim, pode vir pegar: 0 corpo da sua avé aco; pelo telefone, o funciondrio do ne Os protocolos sanitarios impediam os no préprio imi. Olga precisava ligar a cada duas hotas e to pela confirmagao. Sua mae e seus tios e tias decidiram nig it Todo mundo tinha algum diabetes, problema Fespiratérig uma operacio de retirada de cncer, hipertensao, mas ° me tivo principal, sem duvida, era a Prdpria avé, tao amada Pelas netas € tao distante dos seus préprios filhos, — Tu é a neta primogénita. Ta vai lhe falou, os olhos avermelhados. A ordem foi recebida com contrariedade. Carregar 1 familia assim nas costas... E ‘nsaiou uma briga, Pporém estava cansada. Também teve pena da mie. Olga até se sentiu pode- tosa: heroica, adulta, prestigiada. No mu, duas aglomerai tdou, Disy Patentes de cy Pegar cla — mainh; e0es a irritaram de imediato: a imprensa e os militares. Os dois 8tupos estavam plantados na frente do prédio. Havia vans, cartos, sirenes, Um helicéptero se Entre os jornalistas ¢ 0s soldados, como ae ‘ indo o mar Vermelho, trés homens, trés homens um acum; Roe “speravam. Usavam, jalecos do sus. $6 'primentou, 4 distancia, ae rita éa neta de Maria Lutz? Onc: . Médico — depois descobriu se tratar de um mi ‘édico —a 2 Dentro d duizia de cheia de profissd eraa un On midias mentit pigans proces macré A temp logic: aa com veneracio. Ele explicou alguns termos ¢ protoco- haa via coleta obrigatéria de sangue da familia; falou em = e ranga nacional, falou de “momentos extraordindrios”. Envam progresso: sua avé tinha sido promovida, em poucos minutos, de uma bagagem a ser retirada, de um estorvo para ¢s funcionarios do mt, de um Big Mac Zumbi, a Maria Luw, DNA, 2 i 1: fim, apés 0 médico terminar seu mondlogo, Phe, = Oo aecontadn, francamente hostis, dos “SPetar militares em sua dire¢ao. ‘torce, ee i Dentro do mx, Olga foi trancada com os trés médicos e meia ‘Sto, WP fares oon tras vec ucna sala abatuda,‘mofuda, pe cheia de cadeiras e mesas antigas. O médico perguntou sua Pelas profissio, Responden: jornalista, Todos os homens — Olga era a tinica mulher na sala — se entreolharam. tinha Onde trabalho? Fago assessoria de imprensa ¢ cuido de midias digitais, respondeu. Tenho uma pequena empresa, yar a mentiu. “Empresa” os deixou mais relaxados. O médico tava pigarreou ¢ falou de respostas imunes & covid-19. Falou de ade- Processos inflamatérios, inflamassomas, falou de células NK, macr6fagos, linfécitos T ¢ citocinas. A.sua avé faleceu provavelmente em decorréncia de uma tempestade de citocinas, ele continuou, uma reacdo imuno- ante RORSNO ou seja, ao virus da covid, no 2S cltocinas sao essas moléculas que sinalizam as Pata varias das nossas células uma resposta imunolégica para 0 56 hed entanto, as vezes a resposta ¢ exagerada € 0 corpo Tecrut MOS asin »» ay ae Re ae recruta” (o médico Pareceu apreciar defesa ra), um batalhao excessivo de células de liste ce descontroladas!, disse, buscando apoio nos Us Colegas, gerando ciclos de hiperinflamacao! 33 Enquanto ele falava, Olga se assustava “OM a Visio ¢. in Corpo inimigo de si mesmo, de uma revolucio histéric, 4 Nossas células destruindo tudo que encontrassem peg me % do caminho. Cortar o mal na carne, literalmente, Uma dng : a ente 1 oe do caos, microcésmica, encerrada somente quando 6 him, sopro apagasse a luz. — Vov6 td sozinha? — Hein? — Vové. Ela td sozinha? Os homens viraram citocinas agitadas. Murmuraram, Un deles — fardado — pediu licenga ¢ saiu da sala. A aplicacao continuou ¢ Olga s6 reteve os termos “imuni- dade inata” e “sistema imunitdrio adaptativo”; foj “senhorita’ Benéticos, com ase certo que se trata de ™, Porém, Ima hips, 34 uma correlagao com a mem6ria celular do corpo por ter sido infectado, no passado, por outros HCoVs... O salto acontece uando o sistema imunolégico contribui para o rein{cio da atividade vital do corpo, fazendo que haja uma inesperada cadeia, parcial, parcial, de processos de regeneragéo celular. E falei “vir a 6bito”, mas mesmo nisso nao h4 consenso, nio sabemos se os pacientes faleceram de fato, nem como, supondo a hipétese do falecimento ser correta, 0 corpo se reativa... — Em quanto tempo o corpo “reativa”? — Como...? Ah, minutos, ou no maximo poucas horas depois. — Entao vové ja foi trazida do hospital para c4, pra esse lugar, “reativada”? Ele nao respondeu. Tentou segurar as maos de Olga. Ela o repeliu. — O que est4 acontecendo com pessoas como a sua av6, esse salto, é um milagre, entéo. — Doutor? — Pois nao. — Vové t4 viva? Ela ressuscitou? Foi isso? O que aconteceu com ela? Ele procurava as melhores palavras. Nao sé precisas, mas as delicadas, Olga quase pediu desculpas, porque apreciava 0 es- forgo do médico em se fazer entender, Ao mesmo tempo, cada minuto em sua presenca aumentava 0 asco. Nao sé dele, mas dos seus companheiros, da sala, do im, da... da imaginacao do que seria o corpo — mas ela nao era mais um corpo — da sua avé, Tudo que Olga queria era descoisificar a avé, largar 4s tais citocinas para tras, Comecou a chorat. — Estamos, por precaugdo, usando o termo “pés-vida”. Mas sim, sua avé é mais uma lézaro, sem duivida. 35 O barulho do interruptor pressionado repetidas vere, i comodou. O médico ¢ seus companheiros tinham conduzido 0, ‘ com solenidade, a uma sala vazia € habitada. A pouca ilum. nacfo vinha tanto de uma tinica limpada acesa no teto— ‘outras se recusavam a despertar — quanto iB luz externa dos postes, que atravessava 0 vidro opaco das aoe) Quase co. ladas ao teto. Olga notou varias camas-mesas metilicas, com chuveirinho e suporte para os cranios. Registrou, também, 9 que supés serem geladeiras. O cheiro do local era hospitalar, Mas com um desvio na assepsia — um miasma adocicado, levemente podre. Os mortos, deitados nas camas metalicas, esperavam pelos vivos. Capas os cobriam. Aavé também esperava. Envolvida por um plastico grosso, que cobria sua cabeca e descia até 0 cho como um véu, clase sentaya na mesa. A luz do teto, préxima, pincelava uma aura; manchas ameboides, luminosas, se refletiam sobre o pléstico retorcido. Olga quase foi cmpurrada pelos homens. Eles se acotovels yam na entrada da sala e nada os tiraria dali. A neta atravessou a sala escura sozinha, ouvindo seus atravessou com medo Préprios passos ecoarem; ealegria. Que se danem os leucécitos, ahaa 2 Vides quando existe vida, & sempre um final fel, vov6 pra nao me fazer mentir! — Vov6, vovs...2 Seguira a carreira do pai, Ao abrir a p' Pelos jar yiaturas, do monte de ge frente do ed praia. As on sacudia as j velério can “Saudades” cedo”. Che © prato fay; andoog #8 Outras ¢ Maria “ma bata ; *olhavam st um Méy,

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