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Andrello - Hierarquia e Nomes Tariano Do Rio Negro
Andrello - Hierarquia e Nomes Tariano Do Rio Negro
Geraldo Andrello
Universidade Federal de São Carlos/UFSCar
Introdução
A população atual dos Tariano, grupo arawak habitante do rio Uaupés,
é estimada em cerca de 1.300 indivíduos2. Suas comunidades estão
distribuídas ao longo do médio e alto curso desse rio em três distintos
núcleos de concentração. O primeiro e mais importante deles é formado
pelas comunidades situadas no povoado de Iauaretê e em suas imediações,
incluindo três comunidades situadas no rio Papuri, afluente da margem
direita do rio Uaupés. Este povoado se originou a partir da concentração
demográfica promovida ali através de uma missão salesiana, fundada em
1927. Na década de 70, famílias pertencentes a vários grupos indígenas
dos rios Uaupés e Papuri passaram a fixar residência permanente em
torno da missão, motivadas pelo fechamento dos internatos mantidos
pelos salesianos por várias gerações. Além de serviços de educação, é
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extensa que pude obter4. Não obstante, nota-se uma coerência geral
nas diversas versões, que se refere, sobretudo, aos três blocos distintos
nos quais a totalidade dos clãs está distribuída – e que não apresentam
correspondência com a distribuição espacial das comunidades acima
indicada. A diferenciação sequencial em blocos corresponde, de fato, a
uma ordem hierárquica, marcada pela posição de destaque ocupada por
determinados clãs em seu interior, sobretudo aquelas que se referem à
‘cabeça’ e ao ‘rabo’, como se costuma apontar, isto é, às posições mais
proeminentes e aquelas menos valorizadas. Esta ordem é baseada na
sequência mítica do surgimento dos clãs, tal como ocorre nos outros
grupos do Uaupés já há tempo descritos (Goldman 1979 [1963]; C.
Hugh-Jones 1979; Århem 1981; Jackson 1983). Veremos, no entanto,
que o caso tariano, além de apresentar outras características comuns aos
demais grupos do Uaupés, como descendência patrilinear e exogamia
linguística, apresenta características próprias, especialmente no que diz
respeito a uma maior elaboração genealógica. Tal particularidade, como
pretendo mostrar, associa-se a sua trajetória histórica peculiar, qual
seja, a de se tratar de um grupo arawak estabelecido em um território
majoritariamente tukano, e que mais cedo do que estes teria estabelecido
relações com os colonizadores que adentraram o Uaupés a partir do final
do século XVIII.
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5. Esse esquema geral dos três grupos foi fornecido por informantes pertencentes
aos clãs mais altos dos dois primeiros blocos. Informantes pertencentes a clãs do
terceiro bloco confirmam os atributos gerais de tal estrutura.
6. Para este grupo, todas as versões disponíveis da narrativa mítica tariano são
unânimes em apontar sua origem e incorporação já no Uaupés: “Vocês são
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3. História e nomes
A partir da discussão acima, penso ter ficado claro que os nomes
constituem elemento central na narrativa genealógica Koivathe. O
conhecimento genealógico demonstrado hoje pelos Koivathe é
especialmente significativo, indicando que a combinação dos nomes dos
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Esse mito trata ainda da subida espiritual dos três irmãos à casa celeste de
Trovão, onde sua essência vital irá passar a um cigarro cuja fumaça, ao ser
soprada sobre um lago, vai dar origem aos Tariano. Desse lago celeste, essa
mesma essência vital será transportada às águas do rio Içana, no patamar
terrestre, através de uma zarabatana de quartzo. Dessas águas, os primeiros
Tariano sairão à terra por meio de um grande orifício existente em uma
laje de pedra na cachoeira de Uapuí. Dali, como seres humanos quase
completos, iniciaram a jornada do Içana em direção ao Uaupés. Nanaio, a
primeira mulher criada por Trovão, é quem se encarrega da operação de
transformar e transportar sucessivamente a força de vida dos três irmãos
ancestrais. Ela o faz ao juntar uma porção de seu próprio leite no preparo
do cigarro. O leite da primeira mulher, uma vez associado ao tabaco, é o
que propicia que a essência vital dos três ancestrais venha a dar origem aos
Tariano. É essa substância imaterial que, dizem os Koivathe, continua a ser
transmitida através das gerações junto com os nomes Kuenaka, Kali e Kui.
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os grupos Jê, tal como notou S. Hugh-Jones (2002). Entre estes últimos,
indivíduos que possuem o mesmo nome estão em posições estruturais
equivalentes, isto é, os nomes referem-se a posições sociais fixas através
das quais as pessoas circulam no tempo.
abstrato e a priori de descendência. Isto é, ainda que seja o nome que faça
de uma pessoa membro de um grupo agnático específico, ele diz respeito
antes de tudo à vitalidade que vai permitir o desenvolvimento de certas
capacidades ao longo da vida. Assim, há nomes apropriados a xamãs,
cantores ou chefes, o que define sua distribuição entre filhos primogênitos
e caçulas. Ainda que a aplicação desta regra não seja rigorosa, a associação
dos nomes a capacidades específicas é muito frequentemente sublinhada
pelas pessoas ainda hoje.
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12. O termo tukano, com o qual a maior das etnias do Uaupés veio a ser
conhecida, é uma apelido atribuído àqueles que de fato se auto-designam como
Yepâ-masa, ‘gente-terra’. Esse apelido foi aplicado a eles pelas mulheres desana,
suas esposas preferenciais. Segundo elas, os Yepâ-masa lembram o hábito da ave
tucano de andar o tempo todo em bandos.
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A meu ver, esse não é um detalhe fortuito, pois parece indicar que o
conhecimento genealógico consiste em recurso político estratégico em
um ambiente social marcado por relações sociais de caráter competitivo.
Isto é, se a descendência e as genealogias nesse contexto não se prestam à
definição de ordens de segmentação abrangentes e à formação de grupos
corporados, não deixam de fornecer um idioma que, por vezes, pode vir
a informar pleitos por status e prestígio.
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conclusão
O discurso genealógico produzido hoje pelos Koivathe parece responder
às suas necessidades políticas. Ao longo de um período significativo da
colonização, eles foram apontados por vários cronistas com os ‘chefes
dos Uaupés’ – termo pelo qual eram referidos todos os grupos indígenas
desse rio. Um ‘celeiro de chefes’, nas palavras de Coudreau, com os quais
patrões e missionários vinham negociar (gente, na forma de braços ou
almas). Sua proeminência sobre outros grupos passava, assim, também
por um certa vantagem quanto às relações com os brancos, de quem
almejaram as armas, as patentes e as mercadorias, mas, sobretudo, os nomes,
que, assim, como os seus próprios, foram tomados como catalisadores de
capacidades subjetivas específicas.
O efeito individualizador que resulta da combinação dos nomes novos
e antigos vem a constituir mais um item de incremento do patrimônio
imaterial de um clã: o conhecimento genealógico. Esse conhecimento
não constitui bem de valor (ou escasso) somente por efetuar de modo
mais explícito a ligação do presente com o passado mítico, mas, sobretudo,
porque pontua de maneira eficaz os feitos dos antigos chefes Koivathe e
seu papel de destaque no âmbito das relações com os brancos.
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reputam aos três irmãos ancestrais dos Tariano. Como dizem, “o canto do
dabucuri que alguns grupos ainda usam foram entoados primeiramente
por nossos avós”. Por esse motivo, avaliam plenamente legítimo obtê-
los novamente junto a seus cunhados. É notável, portanto, que se no
passado seus antepassados voltavam-se para a obtenção dos nomes dos
brancos como meio de validar sua posição de liderança, atualmente
os Koivathe queiram, para os mesmos fins, reaver a parte esquecida de
um conhecimento tradicional. Tal questão, formulada assim de modo
diacrônico, leva a pensar acerca da dialética local entre transmissão e
circulação no Uaupés, em outros termos já evocada acima na discussão
sobre a relação entre endonímia e exonímia. Ao tratar da transmissão
(interna) de nomes paralelamente à atribuição (externa) de apelidos,
bem como da analogia desse dispositivo à contribuição respectiva dos
sexos na concepção – o espírito interior associado ao sêmen e aos ossos
masculinos e a vitalidade associada ao sangue feminino – Stephen Hugh-
Jones já apontava para a dimensão sincrônica dessa dinâmica. Ao fazê-lo,
colocava em relevo aquilo que por definição deve circular entre os grupos
do Uaupés: mulheres. Vale apontar, que, aparentemente, por ser o que
por excelência circula, as mulheres detêm o poder de fazer igualmente
circular aquilo que por excelência é transmitido, isto é, nomes. Mas este
atributo não diz respeito somente aos apelidos que elas fazem aderir a
pessoas e coletivos de modo tão definitivo.
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Referências
Albert, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres: représentations
de la maladie, système rituel et espace politique chez les Yanomami du
sud-est (Amazonie brésilienne). Tese de doutorado, Nanterre: Université
de Paris X.
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Hugh-Jones, Christine. 1979. From the Milk River: Spatial and Temporal
Processes in North-west Amazonia. Cambridge: Cambridge University
Press.
Jackson, Jean. 1983. The Fish People. Linguistic exogamy and Tukanoan
identity in northwest Amazonia. Cambridge: Cambridge University
Press.
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Van der Hammen, Maria Clara. 1992. El Manejo del Mondo. Santafé de
Bogotá: Fundación Tropembos.
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