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Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org de diferente procedência étnica, integrados na ordem tribal como
cativos. Cada uma dessas metades e dessas camadas se constituía a
rigor, no que Lévi-Strauss chamou de "classe matrimonial", expri-
mindo com isso a possibilidade aberta ao matrimônio (Lévi-Strauss,
1949: 92). Ora, essa idéia de " classe matrimonial", pelo menos em
relação às metades, parece ser contraditória com a noção corrente
de metade ou de clã, que, segundo o próprio Lévi-Strauss, tem um
caráter exogâmico e comporta uma definição puramente negativa, ao
O DUALISMO TERÊNA contrário da de "classe", que "permite uma determinação positiva das
modalidades de troca" (ibidem). Como ajustar o caso terêna à teoria
que considera a metade como a institucionalização da troca, mediante
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA ( *) o conhecido mecanismo da reciprocidade de que nos fala Mauss em
se~ Essai sur le don? À primeira vista, a noção de metade endogâ-
m1ca se choca com as possibilidades de troca, intrínsecas ao sistema
dual. Contudo, um estudo mais detido mostrará que a reciprocidade
não se esgota na organização matrimonial, i.e., ela não se reduz ao
intercâmbio de mulheres. O exame das relações entre as metades
. A_ ocorrência de . es~ruturas dualistas nas culturas ditas pnmt- Xumonó e Sukirikionó indica que a reciprocidade ou a interdepen-
tivas nao pode ser atnbwda ao acaso, se entendermos por isso uma dência pode ter lugar no plano cerimonial: se as metades não trocam
completa ausência de determinismo estrutural. A afirmação de Hertz, mulheres, trocam serviços rituais.
s~gundo a qual o "dualismo, que é a essência do pensamento primi-
tivo, domina a organização social primitiva" (Robert Hertz, 1960: 95), Uma consideração preliminar da mitologia revelará a contra-
parece encontrar fundamento empírico graças ao grande número de parte ideológica do dualis~o terêna, especificamente naquilo em
grupos indígenas nos quais se distinguem estruturas duais. Lévi-Strauss que ele se relaciona com o sistema de metades. Adotarei como técni-
ca analítica, um quadro comparativo construído para pe;mitir a iden-
j~ ha~ia not~o isso quando escreveu que " a distribuição das orga-
tificação das unidades mais irredutíveis (e as mais essenciais) do
ruzaçoes. duahstas apresenta, com efeito, .c aracterísticas que as fazem
mito, ou os "mitemas" na conceituação de Lévi-Strauss ( 1958, cap.
sobressair dentre todas as outras: elas não são aparentes em todos
XI ). Quat.ro versões de um mesmo mito estarão justapostas no quadro
os povos, mas. são encontradiças em todas as partes do mundo, ge-
comparativo e numeradas de 1 a 4, enquanto os mitemas, .contidos
ralmente associadas aos níveis mais primitivos de cultura. Esta dis-
nas colunas, estarão indicados pelas letras A, B, e , o. Devemos as
tinção - assinala ainda o autor - sugere antes uma característica
versões aos seguintes etnólogos : Baldus, a primeira ( 1 = Baldus,
fun~i?nal própria das culturas arcaicas do que uma origem única"
( Lév1-Strauss, 1949: 88). Essa "necessidade" funcional-estrutural rea- 1950:218); Oberg, a segunda (2= 0berg, 1949:42); Altenfelder a
terceira ( 3 =Altenfelder Silva, 1949: 349) e a quarta ( 4=ibidem):
liza-se ~m diferentes modalidades de organização dualista, algumas
das quais extremamente raras, como a que passarei a examinar.
Trata-se do sistema de metades inerente à estrutura social dos
Terêna, .grupo aruák. do Sul de Mato Grosso e procedente do Chaco
paraguaio, onde habitava até meados do século XVIII. Dividida nas
metades Xumonó e Sukirikionó, a sociedade terêna organizava-se, si-
multaneamente, em camadas ou estratos (strata) estruturados num
sentido hierárquico : os naati, ou o~ "capitães" e suas parentelas; os
waherê-txané, ou a gente comum, ltvre; e os kauti, ou os indivíduos

( •) . Roberto CAU>OSO DE OLIVEili, " O dualismo terêna'', R~ vlsta do Mus~u Paulista,


n. s., v. XVI, 1965-66, Slo Paulo, p . 255-262. Reproduzido com autorizaçio do autor.

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QUADRO COMPARATIVO queriam que nós vivêssemos. Mas quanto mais cortavam, mais a
nuvem crescia. Então os dois largaram de cortar, porque se cansaram.
E cada um tomou seu caminho.
A B e D
6 Havia também o Pitanoé. Este era como os Moolé, mas andava
1 Antigamente, Ore- só e quando moço foi à roça, tirou O pedaço da cin- sempre sozinho, e havia um único Pitanoé. Ele estava cortando
kajuvakai era um a sua mãe ficou foice e cortou tura para cima fi.
brava, pois Ore- com ela Orekaju- cou gente, e a ou- nuvens com um machado, porque queria derrubá-las. Os Moolé che-
kajuvakai não vakai em dois pe- tra metade tam- garam e trocaram com ele o lhámoyá pelo machado bom de
queria ir com ela daços. bém. Pitanoé, que, então, bateu com o Ihámoyá nas ·nuvens. Ihámoyá era
à roça, tão mole que se tornava menor a cada golpe, tornando, ao mesmo
tempo, maior a nuvem. Se us Moolé não tivessem trocado o Ihámoyá
2 No começo Yuri- Ele vivia com sua Livéchechevéna e das metades
koyuvakai era irmã Livécbecbe- ficou bem brava e cresceram gêmeos. pelo machado bom de Pitanoé, as nuvens teriam caído na terra por
apenas um. véna. Quando ela cortou Yurikoyu- causa de Pitanoé.
plantou roça, Yu- vakai em dois,
rikoyuvakai rou·
bou os frutos. As quatro primeiras versões falam do aparecimento dos gêmeos,
sendo que a primeira e a terceira indicam que as relações entre ambos
3 No princípio ha- que vivia com sua Livetchetcbevena Da parte de cima tendem a uma sensível assimetria, como que sugerindo uma ligeira
via um único Yu- irmã Livetchet- zangou-se e cor- cresceu um Yuri- supremacia de um sobre outro. Efetivamente, se tomarmos as ver-
rikoyuvakai, cheveoa. Yuri- tou-o pelo meio. koyuvakai; da sões ( 1) e ( 3), ao nível da coluna D, verificaremos que o corte do
koyuvakai cortava parte de baixo herói, feito na linha da cintura, representou a separação de duas
raio de todo mun- cresceu outro.
do. Sua irmã Mas o primeiro é partes do corpo, qualitativamente diversas em termos de valor. A
plantou uma ár- que mandava. versão 03 confirma tal valorização quando diz que "o primeiro
vore e, quando es- (gêmeo) era que mandava", e que este primeiro era Yurikoyuvakai.
ta frutificou, Yu- As duas últimas versões, (5) e ( 6), vêm caracterizar a personalidade
rikoyuvakai rou-
bou o fruto. do "segundo" gêmeo como um ser malicioso e astuto, ora ameaçando
a integridade física dos Terêna com o corte e derrubada das nuvens
queria ir com a e a mãe zangou-
4 Yurikoyuvakai an- Ficaram então ou com a Cfiação dos mosquitos-pólvora, ora contribuindo para a
1

dava por cima mãe na roça. Esta se, cortando-o ao dois Yurikoyuva- so.breviv~ncia da tribo com a doação de ~ sementes de alfarroba, legu-
dos Terêna. Yu- não queria que o me10. kai; eles já eram minosa importante para a dieta indígena. Quanto à correspondência
rikoyuvakai era filho fosse. Yuri- irmãos.
uma lacraia que koyuvakai insistiu entre Taipuyukê e Pitanoé, gostaria de acrescentar que nas duas
em acompanhá- vers~es a ação de cortar nuvens é praticada pelo irmão de Yurikoyu-
la, vaka1 ou por ambos, sendo que em nenhum lugar da mitologia terêna
consta que o herói· civilizador tivesse mais de um irmão e que este
O mito <;Onta que Yurikoyuvakai - o herói civilizador - era não fosse seu gêmeo. A este argumento lógico soma-se um argu-
um só (mitema A), mas, por infringir certas regras (mitema B), é mento etnográfico obtido pelo próprio Baldus, em 1947, numa via-
punido com o seu seccionamento (mitema C), o que resulta no sur- gem à aldeia Araribá, de índios Terêna e Guaraní, no Estado de São
gimento de gêmeos ou de duplos (mitema D), como que fixando a Paulo. Na versão acima transcrita ( 6) , colhida em 1934 - prova-
duplicidade do herói. Essa duplicidade fica bem evidente se acres- velmente na aldeia Moreira, próxima à pequena cidade de Miranda no
centarmos à análise mais dois mitos, ou duas outras versões de um Estado de Mato Grosso - , Pitanoé é apresentado como " único" e
mesmo mito: uma colhida por mim (5=0liveira, 1959:36), outra .como algu~m que "andava sempre sozinho"; mas uma explicação
por Baldus (6=Baldus, 1937:272). dada pelo informante de Araribá esclarece que Pitanoé "seria outro
nome de Orekajuvakai, significando a palavra pitanoé "escorpião"
S Yurikoyuvakai tinha um irmão, Taipuyukê, um pouco inferior a ele; (_!3aldus, 1950: 223). Finalmente, as características dos personagens
um dia começaram a cortar nuvem para matar todos, porque não sao as mesmas, o que nos permite fundi-los numa única entidade mí-

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tica, e interpretar as variações de nome e das circunstâncias que cer- ..\ pós algun1 tempo surge a oportunidade de reação, devidamente
caram o episódio da tentativa de derrubada das nuvens (pois o episó- regul amentada pelo 1nootó, denominação tribal dada a um verdadeiro
dio é um só) como diferentes formas de contar um único n1ito. Na p~gtlato : en1 filas. os Sukirikionó, de um lado, e os Xumonó, de
versão por mim obtida ( 5) os dois irmãos lançam-se, juntos, à ta- o utro. pas~a n1 a lutar uns contra outros, trocando socos uma metade
refa ·catastrófica. Na colhida por Baldus ( 6) apenas um deles, Pi- con1 a outra: nesse jogo entram inclusive mulheres e crianças, cir-
tanoé (ou Taipuyukê) , a ela se propõe. A an1bigüidade fica mais cun crevendo- e as Jutas aos respectivos grupos de idade e de sexo.
evidente quando verificamos que duas das versões, a ( 4) e a ( 5). Afora essas diferenças no con1portan1ento cerimonial das me-
têm um mesmo seguimento que se relaciona com a descoberta do tades - que sumarian1ente descrevi - , não se verificam outras que
fogo, a invenção da linguagem e a criação de bichos e de plantas, perm itan1 estabelecer unia hierarquia do tipo observado na conduta
eventos esses atribuídos direta ou indiretamente a Yurikoyuvakai. do naati, wallerê-txané e kauti. A superioridade que se possa
que ora é um dos gên1eos, ora representa ambos. Este papel de atribuir aos Sukirikionó. ao se examinar o mito dos gêmeos ou o
herói civilizador - descrito em partes do mito não transcritas nesta ritualisn10 do oheo kori por exen1plo, não tem sua correspondência na
comunicação - é cumprido apesar da duplicidade de Yurikoyuvakai; ordem social. onde suas relações são absolutamente simétricas. Ainda
tal duplicidade, entretanto, não deve ser entendida senão co1110 a que se reconheça que um '"sistema de metades pode expressar não
expressão mítica de um herói que, sobre ser conspícuo e criador, é apenas mecanisn1os de reciprocidade. mas também relações de su-
também malicioso e astucioso, qualidades, aliás, bastante admiradas bordinação'' (Lévi-Strauss, 1944:267). tal não se observa entre os
na cultura terêna. Essas últimas qualidades "hun1anizam ., o herói Terêna. A idéia geral que os próprios Terêna fazem dessa superio-
(traço comum no pensamento n1ítico) , dando à sua figura a neces- ridade (quando alegam que os Sukirikionó são melhores - fato
sária consistência, sem a qual o mito não exerce sua função paradig- que os próprios Xumonó evitam discutir) não fica expressa na or-
mática. ganização social, onde as metades só funcionam como "classes ma-
As características dos gêmeos míticos são incorporadas pelas trimon iais". Essa endogamia é consistente com o destino separado
metades Sukukirikionó e Xumonó e atualizadas no comportamento ce- dos gêmeos. explici tado no mito, que diz que "cada um tomou o seu
rimonial de seus membros. Esse cerimonial, chamado oheokori, é caminho'' (versão 5) . A sentida mas irrealizada supremacia de uma
constituído por um conjunto de práticas religiosas e profanas, e é metade sobre a outra deve ser entendida como um reflexo da vida
realizado na época em que a constelação das 7 estrelas. as Plêiades, cerimonial, como o é também o estereótipo tribal sobre a natureza
alcança sua altura máxima no céu. É dedicado ao culto aos mortos briguenta dos Xumonó. Briga, astúcia e malícia, . de um lado, paz,
(aos seus espíritos ou hoipihapati) e a práticas propiciatórias de boas seriedade e paciência, de outro lado, são alguns dos atributos confe-
colheitas; a origem telúrica dos Terêna - conforme está relatada ridos às metades e por meio dos quais assume a sociedade terêna o
em vários mitos (Baldus, 1937:194-195; 1950:219) - , a par de sua seu caráter dual. Como se vê, o dualismo corta a sociedade em dife-
existência de povo agricultor, torna extrema11.lente íntima a relação rentes níveis - no mitológico, no cerimonial e no social -:- confe-
entre os hoipihapati e o cultivo da terra, dando perfeita unidade aos rindo-lhe, não obstante, a mesma e indiscutível unidade inerente ao
rituais do oheokotL Estes são iniciados por práticas xamanistas efe- herói civilizador, ainda que cortado em dois.
tivadas pelo koixomuneti ou o médico-feiticeiro, que evoca os espí-
ritos e realiza curas. A esses rituais mágico-religiosos segue-se uma
coleta cerimonial de alimentos dirigida pelo yanakalu, um Terêna REFER~NCIAS BIBLIO.GR.ÃFICAS
Xumonó, todo paramentado e mascarado; acompanhado por um cor-
tejo, vai de maloca a maloca, apontando com um bastão o que deseja ALTEN FELDER SILVA, Fernando, "Mudança cultural dos Terena", Revista do
para o banquete. Ninguém lhe pode negar nada. Organiza-se o Museu Paulista, n.s., v. m, São Paulo, 1949, p. 271-379.
repasto coletivo, ao fim do qual passam os membros da metade BALous, Herbert, Ensaios de Etnologia Brasileira, Biblioteca Pedagógica Brasi-
Xumonó a provocar os da metade oposta. A essas provocações, leira, 5.ª série, Brasiliana, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1937.
entre as quais se contam as mais agressivas brincadeiras, os Sukiri- HERTZ, Robert, D eath & the Right Hand, The Free Press, Glencoe, Illinois,
kionó devem resistir passivamente, numa demonstração de superio- 1960.
ridade e tolerância, só igualada com a proverbial compreensão de L ÉVI-STRAUSS, Claude ... Reciprocity and Hierarchy", American Anhropologist,
Yurikoyuvakai diante do comportamento matreiro de Taipuyukê. n. s., v. 46, Menasha, Wisc., 1944, p. 266-268.

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- Les structures élémentaires de la parenté, Presses Universitaires de France,
Paris, 1949.
- A nthropologie structurale, Plon, Paris, 1958.
OBERG, Kalervo, The Terena and the Caduveo o/ Southern Mato Grosso, Brasil,
Smithsonian lnstitution, Institute of Social Anthropology, Washington, 1949.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de, "Matrimônio e solidariedade tribal terêna",
Revista de Antropologia, v. vn, São Paulo, 1959, p. 31-48.

"ARRANJOS POLIANDRICOS"
NA SOCIEDADE SURUt

ROQUE DE BARROS LARAIA ( *)

O objetivo desta nossa comunicação é descrever os efeitos da


depopulação nas regras matrimoniais dos índios Suruí. Estes cons-
tituem um grupo tribal do bloco lingüístico tupí, conhecidos até
recentemente como Mujetíre, e que estão localizados nas cabeceiras
do Sororó, no sudeste do Estado do Pará ( 1 ).
O processo depopulatório não é um fenômeno novo na sociedade
suruí. A memória indígena guarda o registro de diversas lutas inter-
tribais, principalmente com grupos kayapó, cujos resultados lhe· foram
desastrosos. Lutas internas, como uma acirrada disputa de mulheres
entre dois dos cinco clãs que possuem, também contribuíram para
aumentar a depopulação, que atingiu o seu ápice quando, em 1960,
os indígenas, passando a manter um contacto permanente com a so-
ciedade nacional, foram praticamente dizimados por uma epidemia
de gripe.
A depopulação atingiu mais intensamente os elementos do sexo
feminino. As genealogias obtidas indicam-nos que era freqüente o
fato de uma mulher ter sido sucessivamente esposa de dois ou três
homens, sem ter se tornado viúva.
Atualmente existem 14 homens adultos para 7 mulheres, duas
das quais já na menopausa. Existem 1O meninos e 9 meninas, sendo

(*) Roque DE BAuos LARAIA, "'Arranjos poliândricos' na sociedade suruf", Re-


vista do Museu Paulista, o. s., v. XIV, 1963, p . 71-75. Rcoroduzido com autorização do
autor.
( 1) Estivemos entre esses fndios no segundo semestre de 1961, cm companhia de
Marcos MAGALHÃES RUBINGER, então estaaiãrio do Museu Nacional, a quem expressamos aqui
os nossos aaradecimcntos pela sua eficiente colaboração.

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