Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 16
| ‘Dorrit Harazim Bn OMPANHIA DAS LETRAS Copyright © 2016 by Dorrit Harazim Os textos “Abutres ou erdis?”,“O fotdgrafo da uz” “Oia revisitada” foram originalmence publicados na revista Zum eno ste revistazum.com.br. Grafiaatualizada segundo 0 Acordo Ortogrifico da Lingua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Cama g pnojero crénico Maria Cecilia Marra Foros pe cam Abaixo esquerda, em sentido horirio: © Assis Horta/ Cortesia de Isnard Horta; Lawrence H, Beiter Library of Congress; Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii Collection! Library ‘of Congress; Cortesia da Gordon Parks Foundation; Kevin Carter! Corbis Corporation! Fowarena; © Ruth Orkin; Jerzy Lewczyhski, Nieznany,z cyklus Glowy wawelskie, 1959 x, ‘Muzeum w Gliwicach. Prrearacio ‘Marcia Copola Revisio Valquitia Della Pozza (Clara Diamene Dados neracionss de Catalogo na Publica (ct) (Camara Basia do Liv, Bras). Haran, Dore (O rsa certo / Date Hass. — 1. — Sto Pa Compan das Letras, 206. san 976-85359e27194 1 Fotoraia- Hira 2 Foograa documenta oogeaias 4 Histeias de ia Tila, s6-02339 .0-779.90704 Indice para catiog sistem 1 Fetojonalismo* Fotografias Coles8e8 7790704 2016} Todos os diritos desta edigto reservados a Rua Bandeira Paulista, 702, cj 32 (045}2-002 ~ So Paulo ~ se ‘Telefone: (1) 37073500 Faxc (1) 3707-3501 worw.companhiadasletras.com br ‘www.blogdacompas ccom.br facebook.com/companhiadasletras instagram.com/companhiadasletcas ‘winerscom/ciadasletras As miltiplas vidas de Lee Miller Miller ‘© Lee Miller in Hitler’s bathtub, Hitler’s apartment, 1945 © a Archives, England 2015, All rights reserved, www.leemiller.c0- ris, 2016 - © Nudes, 1930. © Man Ray Trust/ aurv1s, Brasil/ Adagp, Paris, 2 Photo: Telimage/ Adagp Image Bank AS MULTIFLAS VIDAS DE LEE MILLER Nunca houve uma mulher como Lee Miller. © bordao, ctiado pela Columbia Pictures para imortalizar a Gilda vivida no cinema por Rita Hayworth, soa pélido quando usado para descrever uma das mulheres de maior impacto na fotografia do século xx. Nenhum roteiro ficcional seria capaz de criar um personagem to profundo e complexo, sedutor, indomavel ¢ improvavel como foi Lee Miller em seus setenta anos de vida (1907-77). Ao contrario do que acontece com Margaret Bourke- -White, Dorothea Lange ou Berenice Abort, grandes damas da fotografia da mesma geracio, é impossivel dissociar vida e obra no caso desta mulher. A comegar pela dificuldade de definir qual das duas — obra ou vida — tem mais relevancia. Por si s6, cada uma jé seria digna de nota. Juntas ¢ inextricavelmente ligadas, formam um conjunto impar na hist6ria do seu século. Até 0s sete anos de idade a menina Elizabeth reve uma infancia leve, livre, e repleta de estimulos em Poughkeepsie, ci- dade do vale do rio Hudson, nao longe de Nova York. No entor- 1no ficavam os palacetes de fim de semana dos Astor, Rogers e Vanderbilt, ¢ de outros poderosos industriais do século x1x. Mas para Elizabeth e seus dois irmaios as invencionices tecnol6gicas do pai eram muito mais interessantes. Fotégrafo amador, o austero engenheiro mecanico Theo- dore Miller manuseava uma Kodak Brownie, uma cémera este- reoscépica ¢ um laboratério cujos segredos ia revelando aos pou- cos aos trés filhos. Sobretudo a Lee, tinica menina da casa. Essa infancia se rompeu quando Elizabeth, com oito anos incompletos, passou férias em Nova York como héspede de ( INSTANTE CERTO amigos da familia ¢ fot estuprada ae conhecido da cas, 4, trauma colossal somou-se um segundo, decorrente do Primeic, contraira gonorreia. Naqueles tempos anteriores 4 descaben da penicilina, a doenga foi tratada com procedimentos invasinos particularmente traumatizantes para uma crianga. 0 Psiquiat, que durante anos acompanhou 0 tratamento, recomendoy a, pais que transmitissem ume orientagao a Elizabeth quando ey Pepuose &adolescéncia saber separa relagbesafetivas dese, Quer por ter assimilado o conselho, quer por indole pg. pria, Lee Miller manteve blindado seu mundo interior sem fugi de uma intensa entrega 4 vida e a carreira. Apenas nao mistura. va as coisas. “Emocionalmente, preciso estar absorta por intei voem algum trabalho, Ou entao em alguma paixlo”, escreveri anos mais tarde. Muito antes de se tornar fotografa, Lee foi forografade 4 exaustio por artistas do gabarito de Edward Steichen e Man Ray, cujas assinacuras, per se, j4 constitu‘am um passaporte para a fama, Sua verdadeira iniciagao diante das lentes, porém, ocor- rera antes mesmo de ela desabrochar como uma das mulheres mais formosas de seu tempo, ¢ foi, no minimo, perturbadora. Lee ainda era a menina Elizabeth de Poughkeepsie quan™ do comegou a ser fotografada de forma sistematica € cobsessiva pelo pai. Nao raro posou nua. Essas sessGes se repetiram ao ot go de quase duas décadas, ¢ a jovem deve t@-las estocado ems intimidade blindada, junto com outros sentimentos. __ Quis o destino que a garota marcada por um incomumt eee peut transformasse numa beldade ne Sain arate ane a8 lescente dotada de frescor ede al - "A eee a i por tecnologia ¢ ciéncis a inhisietriinecy Tee aos dezoito anos indecisa ee Metnaalcidiaetatalteecreinae cate bar Vea pa ieee tata expevinenton cenografia teatral em 77 SiasteMbechs Rn ned ais renomada escola de Beles ‘ RAL eee aes well. Anos depois, artistas como Roy Lichtens" al 100 ‘AS MOLTIPLAS VIDAS DE LEE MILLER Robert Rauschenberg, Alexander Calder e Romare Bearden passaram pelos mesmos bancos. oO encontro de Elizabeth com sua sina nada deve aos roteiros mais inverossimeis de Hollywood. Consumou-se nurm dia de inverno na Manhattan de 1927, quando alguém a puxou da rua para a calgada ¢ evitou seu atropelamento. Confusa, ela balbuciou agradecimentos em francés a0 cavalheiro que a am- parava. Impressionado com o garbo daquela jovem de arrojado chapéu cloche, o desconhecido apresentou-se: era Condé Mon- trose Nast, ento com 55 anos, fundador do império editorial que inclufa The New Yorker, Vanity Faire Vogue. Convidou-a a ir vé-lo em seu escrit6rio e a contratou na hora. Um més antes de completar vinte anos, Elizabeth esta- va na capa das edicdes americana e inglesa da Vogue. Trocou © prenome pelo apelido de infancia — curto, andrégino e de maior impacto que o comportado Elizabeth — e tomou de as- salto o mundo da moda. Nasceu assim a inesquecivel Lee Mil- ler. Conforme a norma editorial da época, seu primeiro retra- to estampado na capa da revista ndo foi uma fotografia, e sim uma ilustracao assinada por Georges Lepape, que a desenhou de chapéu cloche e olhar destemido. Ao fundo, a silhueta de uma Nova York pulsante. Para a revista de Condé Nast, Lee apareceu no momento certo. Naquele inicio da primavera de 1927 a publicacao queria retratar um estilo de mulher mais independente e assertiva, sem. a languidez até ali de regra. Uma gargonne capaz de revelar 0 charme do cabelo curto, o new look parisiense. Uma mulher que espelhasse a estética art déco e 0 cubismo, que encarnasse tanto Paris quanto Nova York. E que fosse fotogenica, é claro. Lee Miller foi tudo isso e muito mais, tornando-se a coqueluche que todos queriam imitar, seduzir ou retratar. Seu trabalho para a Vogue acabou se estendendo por trés décadas — primeiro como modelo, em seguida como fotdgrafa e por fim como correspondente de guerra. Dificil dizer em qual das encar- nagées ela foi mais exuberante. 101 ; ( INSTANTE CERTO Oscelebrados Arnold Genthe, Nickolas Muray e E4,, Steichen, este 0 for6grafo mais bem Pago do mundo na ¢ revezavam-se Nos ‘ensaios de moda estre lados por Lee, dois anos ela teve Nova York a seus pés, acumulou Um squire, ce adres e uma colegao de amantes. Depots, entediouse gp ane dew uma guinada radical. Essa foi apenas uma da vgs ape que Lee Mller iterrompeu para reinventar-se em our, Tec confiou a Steichen a intengao de eclipsar-e com, sionalmente 0 oficio de fotégraf, Decidita trocar o papel passivo de objeto da imagem pela aur rromia eriativa de quem comanda o disparador. Havia tempos ely nha observando e absorvendo os saberes técnicos de Steichen, Como pai, acumulara nog6es de enquadramento, perspectivae ampliagio, Os cursos sem seguimento do pasado — cenogrs. fia, desenho, ilaminagio teatral — também lhe foram de serven- modelo para exercer profis tia na nova profissao. ‘A essa altura a nova-iorquina Margaret Bourke-White, que ja se tornara sindnimo de mulher com uma camera na mao, tinha resposta pronta para quem lhe perguntava por que es- colhera ser fotdgrafa: “Porque quero ser famosa e rica”. Lee Miller, que ja era famosa e nao almejava fortunas, queria viver — quantas vidas fosse preciso. Data também desse perfodo o ensaio em que ela posou nua mais uma vez a pedido do pai, num fim de semana em Pot- ghkeepsie. A série foi feita com a camera estereoscépica, a pr- ferida de Theodore, que captava a mesma cena simultaneamente em dois negativos contiguos. Segundo Carolyn Burke, autora da mais completa bie grafia de Lee, Theodore pretendia retratar a filha como um re oaee do escandaloso (para a época) Matinée de of es © pintado por Paul Emile Chabas em 1911 a liga dette paler nos Estados Unidos ¢ foi ve tropolitan Museum of i Hoja ches ieteera o seerte io de Paitticadex pee Nova York.) Em seu ensaio ” grafou a filha de 21 anos de frente, se™™ 102 ———— A AS MOLTIPLAS VIDAS DE LEE MILLER uma cadeira, com a cabega voltada para o lado. A postura é rija e os bragos cruzados nas costas dio exposicio maior ao corso. O resultado € uma obra que poucos diriam ser de amador: o pai de Lee Miller a transforma numa cléssica estatua grega mutilada. Tao deslumbrante quanto desnorteante. Décadas mais tarde, ao rememorar aqueles primeiros anos de exposigao maxima catapultada pela Vogue, Lee definiu-se com uma frase emblemética para estudiosos de sua vida e obra: “Bu tinha a aparéncia de um anjo, mas por dentro era maligna”. Lee desembarcou em Paris com uma carta de recomen- dagao de Condé Nast para a Vogue francesa e a determinacao de tornar-se aprendiz de Man Ray, o grande nome da experimenta- io artistica do inicio do século passado. Steichen Ihe desperta- ra 0 interesse por esse americano vanguardista que conquistara fama ¢ fortuna diluindo as fronteiras entre as diversas formas de expressio — Ray era fotdgrafo, pintor, cineasta, desenhista, ilustrador e, mais que tudo, incansavel. Suas pesquisas no cam- po da abstracao deram impeto novo a criagao de fotogramas, termo que designa as imagens obtidas pela colocagio de objetos sobre superficies fotossensiveis expostas a luz direta, sem a in- termediagéo de uma camera. Embora inventados muito antes, os fotogramas ressurgiram na obra de Man Ray em roupagem renovada com o nome de “rayogramas” Quando faltavam duas semanas para Lee Miller comple- tar 22 anos, ela zarpou de navio em direcdo ao homem que mu- daria a vida dela e cuja vida ela mudaria. Conta a biégrafa Burke que um dos pretendentes mais enamorados de Lee seguiu de um. bimotor a partida de Nova York do transatlantico Comte de Grasse © em voo rasante despejou uma cascata de rosas sobre o convés. Lee materializou-se em frente a Man Ray sem aviso pré- vio, ceriménia nem circunléquios. Foi direta: estava ali para ser sua aprendiz. Também direto, o j4 consagrado expoente do sur realismo respondeu que no aceitava alunas. Ademais, partiria Para férias em Biarritz no dia seguinte. Lee nao arredou pé até conseguir que ele se deixasse acompanhar na viagem. ‘oINSTANTECERTO 104 ‘cio de uma relagdo proficua e tempestyos, Foi o ini io pr durou trés anos € enriqueceu a hist6ria da fotografia, De 3 : ei i Lee passou a colaboradora plena na exploracaoe de _ iz, s sepa nica. Em conju, ea ¢ Ray desenvolieram inane Tons NEBALIVOS € positing, de uma foto jf revelada pela répida exposicao a luz duran processamento. Imortalizaram | a ao a Por meio de Tetratos Prncigados que se comaram célebres © cleVaram a técnica fo grafica ao patamar da arte. Juntos produziram obras que levan ar yinarura de ambos diane da impossbilidade de disingi torias, “Eramos quase uma s6 pessoa quando trabalhévamos, escreveu Lee em suas memérias. ‘A simbiose no trabalho nao resistiu as tempestades de uma relagdo amorosa desigual. Lee, apesar de arrebatada pel fascinante homem dezessete anos mais velho ¢ uma cabecs mais baixo, jamais abdicou de seguir caminho préprio. Man Ray, a0 contrario, estava habituado a ter musas sob controle a cua amante anterior, a exuberante Kiki de Montpamass, née Alice Ernestine Prin, aceitara o papel de madame Ray em tais termos. Enquanto Lee aprendera cedo a distinguir relagio amorosa de sexo com outros homens, Ray se corrofa de citime. Essa queda de braco entre arte e vida, sexo e poder gerou muitas das obras mais memoraveis de Man Ray. Em When Lee Left Man (1932), ele exprime 0 desespero por ter sido abando- nado. A foto Observatory Time: The Lovers (1936) apresenta em preto e branco uma jovem despida deitada num sofé. A seus pés um tabuleiro de xadrez. Pairando acima de tudo, em tamanto desmesurado, o quadro de Man Ray com os labios de Lee pinta dos de escarlate. A pintura consumiu dois anos de labuta qu didria e acabou conhecida como The Lips (1934)- ___ Enquanto o artista se dedicava a retratar sua must pot inteiro ou dissecando-a em pedacos, em obsessivo trabalho & estiidio, Lee Miller consolidava o proprio rumo profissional-S as ruas retratando a vida ao redor com o sotaque surrealista #* Guirido em Paris e que jamais perderia. | AS MOLTIPLAS VIDAS DELEE MILLER Essa Paris dos anos 1920 era o epicentro da vanguarda cultural, Lee conviveu com o que a literatura, a masica, a pin- tura ¢ as artes curopeias tinham de melhor. Inserida por Man Ray tanto na alta sociedade francesa como no cfrculo artisti- colliterario mais invejado da época, estabeleceu lagos com ar- tistas como Paul Eluard, Henry Moore, Max Ernst, Joan Miré e Jean Cocteau. Estampou a todos em situages corriqueiras, com um olhar fotografico que tornaria inconfundivel seu estilo. ‘Com Pablo Picasso, criou uma relacio intensa e duradou- ra, mensurdvel pelo tamanho da produgo artistica que um de- sencadeou no outro: ao longo da vida ela fotografou 1070 vezes 0 autor de Guernica e foi por ele retratada em seis telas memordveis. Coube a um aristocrata egipcio, Aziz Eloui Bey, o papel de ponto fora dessa curva. Casado, ele passava metade do ano em Pa- ris e a outra metade no Cairo, e era vinte anos mais velho que Lee. Apaixonaram-se de ponta-cabeca, sinal para a fotégrafa de que chegara a hora de nova guinada, longe das obsessdes de Man Ray. Lee empacotou a vida parisiense e retornou a Nova York em 1932, mais bela e famosa do que quando partira. Estava com apenas 25 anos de idade ¢ havia conquistado o reconhecimento piiblico como fordgrafa de carreira. Arriscou investi no embalo e montou estidio proprio em Manhattan, tendo o irmio Erik como assistente de laborat6rio. Nao foram poucas as perso- nalidades da cena nova-iorquina que posaram para suas lentes. Entre elas, Dylan Thomas e Margot Fonteyn renderam retratos especialmente notaveis. Lado a lado com o trabalho no estidio, Lee conseguiu reassumir sua posigdo de top model da Vogue, s6 que agora com identidade dupla: além de posar para a revista, passou a atuar como fotégrafa. E causou sensagao protagonizando um caso ex- tremo dessa osmose, seguramente (inico na hist6ria do império Condé Nast: numa edigao de 1933, Lee Miller foi ao mesmo tem- po a modelo e a fotdgrafa do sublime Self-Portrait in a Headband (Autorretrato com faixa de cabega), publicado em pagina dupla. De acordo com Erik, a irma havia configurado todos os parame- ANSTANTE CER 106 pro do equipamento, preparado aluze acertado pose of, montado a frente da cAmera, que foi eg "A Brik coube somente acionar 9 disparadg Guando até essa dualidade deixou de sr inovacig z se a inevitavel rotina de ter um esttidio, a diva inrequien sa mais um rompante- Aceitou casar-se com Elou Bey, a sa egipcia para viver em Nova York pen, se divorciara da esp : ian da sua paixdo. Foram morar no Cairo. Nao foi surpresa par, ringuém que a estada de Lee n0 Bgito, como mulher de uma ura destacada da sociedade local, fracassasse. Apesar de ela ter cerenvolvido uma instigante série de forografias de viagem, onde pirdmides, desertos, vilarejos ¢ ruinas adquirem formas ambi guas ¢ inesperadas, a vida ali no fora feita para sacié-la, ‘Um ano e meio depois de casar-se, a sra. Eloui Bey pas sou a revisitar Paris e seu circulo de amigos, sozinha, Numa das temporadas foi apresentada aquele que dez anos mais tarde se tomnaria seu segundo marido, Roland Penrose. Pintor surreal ta, historiador de arte e poeta de grande charme, o britanico Penrose enamorou-se de Lee tanto quanto ela dele. As vésperas da hecatombe da Segunda Guerra Mundial, percorreram jun- tos a Europa como se nfo houvesse amanha. Uma das obras de Lee mais ilustrativas dessa fase de descomprometimento ¢ le- vera é Picnic (1937), que retrata trés casais em versio bem-hu- morada de Déjeuner sur I’Herbe (1862-63), de Manet. Leva-se uma fragdo de segundo para perceber que os seios das damas da foto estao 4 mostra. _ Surpreendentemente, foi na Londres submetida aos bom bardeios da Luftwaffe alema que Lee Miller encontrou a 2230 e ser. Ela havia se mudado para a Inglaterra como renomads eee da Vogue quando Hitler tomou a Be 5 aio Primero, Lae convenceua diesto da revista amd na vida cotdiana da cideda, Ac ina tei on ao cidade. As imagens que produziu foram © estupendas que acabaram reunid: im Glory: Picture’ fins ERE Gee livro Grim Glory: Pict loria sombria: Fotos da Gra-Bretanha s tr0s tloese num espelh na hora do clique. omar A AS MOLTIPLAS VIDAS DE LEE MILLER ataque) (1941), com prefacio de ninguém menos que Edward R, Murrow. Autor da mais cultuada cobertura da Segunda Guer- ra do jornalismo ocidental, Murrow era a voz da confiabilidade, que encerrava suas transmiss6es radiof6nicas com o conhecido “boa noite € boa sorte”. Na segunda etapa de sua determinagao de testemunhar a hist6ria, Lee decidiu assumir-se como correspondente de guerra. Vestida com o uniforme que lhe escondia a silhueta, incorpo- rou-se 4 83* Divisio de Infantaria do exército americano tres dias apos o desembarque aliado na Normandia. Ao lado do re- porter fotogrdfico David E. Scherman, da revista Life, tornou-se a primeira fotégrafa mulher no front, Registrou a libertagao de Paris, a batalha de Saint-Malo, hospitais de campanha na Nor- mandia, 0 avango aliado na Alemanha. Ao atestar a libertagio dos campos de concentragao de Dachau e Buchenwald com imagens que constituem uma das pri- meiras provas fotograficas do Holocausto, enviou um telegrama angustiado a direc&o da Vogue: “IMPLORO QUE ACREDITEM QUE Isto £ VERDADE”. Na contramao da linha editorial que a cele- brizou, a revista de alta moda passou a publicar os textos de Lee sobre o horror que a artista vivenciava. Referindo-se a Dachau, ela escreveu: “Nao hé diivida de que os civis alemies sabiam o que ocorria aqui. A linha férrea que leva ao campo passa por vilarejos, 0s trens estavam repletos de deportados mortos ou semimortos”. Datam desse perfodo algumas das imagens mais espan- tosas da guerra. Um conjunto que leva o nome de Nazi Harvest (Colheita nazista), esparramado em paginas duplas, contém a foto de uma jovem de capote e bracadeira nazista desfalecida num sofa. © tom da legenda é surrealista: “Suicidio: a bela filha do prefeito de Leipzig, vitima da filosofia nazista, se mata”. Na verdade, trata-se de um recorte da cena completa que Lee regis- trara de varios Angulos. No vasto gabinete de janelées acortina- dos do prefeito alemao, a familia toda se suicidara — ele sobre a mesa de trabalho, a esposa estendida numa poltrona, ea filha no sofa. Para dar o enquadramento perfeito a “beleza convulsi- ANSTANTE CERTO 108 va” da garota sem vida, Lee dela se aproximou até Captarh ea cia de respiragao- F ae ee se guerra, inttulado Hitleriana, ta Outro ensai intivulad ‘de refiigio a Hitler na Baviera ap do chalé que servira meu d gens doa epi de sido incendiad pelos salad io ipém o olhar implacavel e maroto d dass em fuga. Traz também 0 © i naroto de Lee ng incurso ao apartamento do ditador em Munique, recémogy, pado pelos americanos. Ela forografou a decoragao de gostome, Hiocre, as curiosidades kitsch do antigo, dono, € convidou un sargento americano a espraiar-se no sofa da sala simulando ler Mein Kampfe empunhando © “telefone vermelho” do Fiihrer, ‘A imagem mais célebre dessa safra nao € de Lee, ein do seu parceito de todas as horas, David E. Scherman, Mas carrega no DNA 0 humor certeiro, a vivéncia de mulher eg composigao com filtro surrealista da fotégrafa. Ela se fez foto- grafar sentada na banheira de Hitler, nua, a ensaboar-se. Seu uniforme esta no banco ao lado. Um retrato do Fiihrer, com moldura, adorna a borda da banheira. Um pesado par de botas coberto de lama aparece em primeiro plano sobre o tapete de chao, manchado. O comentario da diva: “Lavei a sujeira de Dachau na banheira dele”. Para Blake Morrison, critico de fotografia do jornal in glés The Guardian, a composicao permite trés leituras distintas¢ acelebragao da derrubada de um tirano, a subversao do classico retrato da nudez feminina ou a demonstragao do triunfo de Let 1no fotojornalismo de guerra, até entZo dominado por homens. Uma preciosa selegio desse material est reunida no It ‘10 Lee Miller's War (2005), juntamente com seus escritos época, carta, telegramas ¢ reflexdes. Com preficio de Dav Scherman, 0 volume foi editado por Antony Penrose, filho ‘nico que Lee veio a conceber aos quarenta anos de idade. . ee na do conflito, Lee retorna a Londres. He dPadnensling ee Sparen de guerra, oe ein de adrenalin, Fraead com oantcimax de reromar sua 088 idades e pensar em moda —, ela teim™# i AS MULTIPLAS VIDAS DE LEE MILLER fazer uma Gltima incursao a paises arrasados da Europa Oriental. ‘Mas nao estava preparada para a devastacao, a ruina e as cenas dantescas de fome que encontrou na Roménia, na Bulgaria e na Austria. Tampouco se adequou as imensas dificuldades burocré- ticas que se ergueram no bloco soviético. Voltou a Inglaterra com os primeiros sinais acentuados de depressao e alcoolismo. Hoje seus sintomas teriam sido corretamente diagnosti- cados como estresse pés-traumdtico. Mas eram outros os tem- os. Lee e Penrose casaram-se em 1947, compraram uma pro- priedade rural em East Sussex, a menos de cem quilémetros da capital inglesa, ¢ la foram viver. Mas a perspectiva da ma- ternidade deixara a fotégrafa atordoada. Aos poucos, ela foi diminuindo o uso profissional da camera. Para Working Guests (Héspedes trabalhando), de 1953, scu iiltimo ensaio para a Vo- gue, Lee sequer precisou sair de casa. Os héspedes do titulo eram os amigos de longa data que passaram a frequentar a Far- ley Farm House, com Picasso entre os mais assiduos. Incapaz de organizar o funcionamento normal do sitio ou de instaurar um minimo de ordem doméstica, Lee delegava aos convidados a execugao dos servigos mais urgentes. Assim nasceu 0 ensaio, que mostra notveis as voltas com tarefas insélitas — como 6 ilustrador Saul Steinberg encrencado com uma mangueira, e Alfred H. Barr, primeiro diretor do MoMA de Nova York, alimentando porcos. Com o tempo, a vida familiar dos Penrose tornou-se ainda mais disfuncional e 0 comportamento da artista deslizou para o imprevisivel. Seria realista imaginar que o final melan- célico era iminente. Mas, sendo Lee a fénix que foi, ela sacu- diu uma parte da depressdo e do alcoolismo e ressurgiu na mais exética de suas encarnacées: a de refinada cozinheira gourmet. Depois de frequentar a legendaria escola parisiense Le Cordon Bleu (a mesma que deu asas a cintilante carreira da americana Julia Child), Lee passou a dedicar-se a promocao de iguarias experimentais, testadas em jantares para convidados. Suas re- ceitas, publicadas nas revistas Vogue e House and Garden, dei- 109 DO INSTANTE CERTO 0 Jexos os criticos de gastronomia. Muitas er, xavam PefP listas até para 08 Amigos. 2 oy demais surreaulst : coon saeroi o derradeiro arroubo libertétio de ung incomum — talvez por ironia, refugiou-se entre Panels ga ae mais manuseara. a es Durante muitos anos a dimensfo e a importancia da sha eceram eclipsadas pela lenda em de Lee Miller perman : mo de sea pesoa, constr pea galeria de homens famosos com qn conviveu e a quem tomou por amantes. Para Carolyn Burke ; fro de Lee ter sido uma das mulheres mais belas de uma épo, dificultou o reconhecimento de seu trabalho. A bidgrafa escrevey Sua beleza parecia se interpor. Havia retratos de Lee Mi. ler em demasia feitos por artistas conhecidos: Edward Steichen langow-a como modelo; Man Ray fotografou-a por inteiro een partes como sua musa perversamente sedutora; Jean Cocteau escalou-a para atuar em O sangue de um poeta (1930) no papelde estécua que adquire vida; Picasso pintou-a como cortesa proven- cal cujos seios desnudos inspiram devaneios de liberdade sexual; Roland Penrose documentou suas relagdes eréticas numa série de desenhos que vio do éxtase a melancolia. Foi somente depois da morte da mae que Antony, ja ce sado, descobriu a extensio da obra, a dimensio do talento @ profundidade das cicatrizes de Lee Miller. Estocados no sotio d= Farley Farm House estavam 60 mil negativos originais, 20 mi imagens em folhas de contato ou cépias em papel, além de m* nuscritos e documentos. Antony pés-se a compilar 0 tesou on tarefa que ainda vai exigir a dedicagao de varias geragoes familia. Ami Bouhassane, a neta primogénita da artista, jé ee pelo arquivo digital de 4 mil trabalhos até agora cata eee) Antony corre o mundo para promover a obr4 ia 0 risco de permanecer esquecida. “Abril de 205

You might also like