Ensaio Sobre A Moral de Descartes - Lívio Teixeira

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E dificil para ojovem de hoje ima- ginaramudanga, nacultura paulis- ta, provocada pela fundacao da Fa~ culdade de Filosofia, Ciénciase Le- tras. Convém lembrar que a Sema- na de 1922 se dew no Teatro Muni- cipal; na mesma linha, as aulas proferidas pelos mestres estrangei ros, no iltimo andar da Escola Cae tanode Campos, montavam um es- petdculo para oselegantes no fim dos anos 30. Seus alunos, porém, come- avam a preparar outros caminhos. Seavida académicaera, antesde tu- do, show e refinamento, nao era pre- ciso amarrare sustentar oespetaculo por umn trabalho de formiga? Nem bem a Faculdade se criou, Joo Cruz Costa, abandonando seu curso de medicina, matriculou-se em primeirolugar. Logo depois veio © pastor presbiteriano e advogado, Livio Teixeira. Cabe notar que ano- va escola recolhia ndufragos de ou- {ros cursos ¢ outras atividades inte- lectuais, iniciando, com esta maté- ria variegada, uma nova forma de profissdo: o professor universitario de filosofia. Ele aprofunda assim ‘uma ruptura ja iniciada ao nfvel pes- soal. Nocaso de Livio Teixeira, a fir- meza vinha sempre acompanhada de paciéncia e cautela. Seu sacerd6- cio foi tumultuado por suas idéias li berais, mas somente no fim da vida deixou de dialogar com os protestan- tes, quando por fim se afasta da Fa- culdade de Filosofia do Mackenzie, da qual foi um dos pilares. Para quem, comonés, entravana Faculdade no iniciodos anos50, Li- vio Teixeira era o anti-climax. Nao tinhaa verve de Cruz Costa, nema abrangéncia de Gilles G. Granger. ENSAIO SOBRE A MORAL DE DESCARTES LIVIO TEIXEIRA | a ENSAIO SOBRE can Pic an egoritictnnanes ommetne A MORAL DE DESCARTES Sea emit * 2! edigaio ae Le name ae ‘Sérgio Paulo Rouanet ene somes —— ——— oa 17044) TEL fens /2 wat editora brasiliense Copyright © by espélio de Livio Teixeira Nenhuma parte desta publicacdo pode ser gravada, ‘armazenada em sistemas eletronicos, fotocopiada, sproduzida por meios mecinicos ou outros quaisquer sem autorizario prévia do editor. ISBN: 85-11-12056-4 Primeira edicdo, USP/FFCL — Boletim 204, Historia da A Filosofia n® 2 —, 1955 22 edigdo, 1990 Coordenagio editorial: Rubens Rodrigues Torres F° Preparacao de originais: Rosemary C. Machado Revisio: Shizuka Kukichie J. Mauricio Bichara Capa: Ettore Bottini reducio no preco deste liso foi tomada possfvel pela covedicao patrocinada pela Secretaria de Estado da Cultura de Sao Paulo, ptt Saal op 36290-L VALOR ae 01416 Séo Paulo SP Fone (011) 280-1222 - Telex: 11 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL Teixeira, Livio nie. Ensaio tes” “Pre a moral de pescar 17198) /tEI7ens 72. ed. DEVOLVER WOR Lire. (22 16796) Apresentagio Introducao e proposicao do assunto . ul I. Aimportancia relativa da vontade e da inteligéncia na concep¢ao cartesiana do esptrito O papel da vontade no método ..... 2B O papel da vontade na divide... 202... 2 Da natureza do espirito e do conhecimento .. 2 Averdade ea liberdade zi St Aliberdade divina . 8 II, Os fundamentos metafisicos da moral de Descartes Substincia pensante e substincia extensa. A unitlo substancial da almaedocorpo........ sea a HI. A moral de Descartes As concepedes fundamentais da moral cartesiana ........... 101 ‘A Moral Proviséria .. ei pea 127 ‘O Tratado das Paixdes da Alma — I parte 151 (0 Tratado das Paixdes da Alma — Il parte 180 (0 Tratado das Paixdes da Alma — III parte . 210 Conclusbes ... Seer ean 0 248 Bibliografia ... Siglas AT designa a grande edigdo das obras de Descartes, por Ch. Adam e Paul Tannery, publicadas de 1897 a 1910. As citagdes foram feitas seguindo o seguinte exemplo: AT VI, p. 95, 1. 12-15, isto &, edigdo Adam e Tannery, tomo VI, pagina 95, linhas 12. 15. Pléiade, que juntamos algumas vezes para indicar uma édiglo de ‘mais facil manuseio, designa OEuvres et Lettres de Descartes, Bi- bliothéque de la Pléiade, Gallimard, Paris, 1949. E. Gilson, Discours designa a conhecida edigio comentada do Dis- curso do Método, por Etienne Gilson, J. Vrin, Paris, 1947. TP designa Les Passions de l'Ame, geralmente ci das Paixées. Apresenta¢ao A unido entre a alma e o corpo em Descartes, segundo Livio Teixeira “Docet etiam natura, per istos sensus doloris, amis, stis et coetera, me non tantum adesse meo corpori ut nauta adest navigeo, sed illi argtissime esse conjunctum et quasi per- mixtum, adeo it unum quid cum ilo componam” (R. Descartes) (Ensina-me também a natureza, por seus sentimentos de dor, de fome, dg sede e assim por diante, que ndo apenas estou junto ao meu corpo, como o nauta a sua nave, mas ue lhe sou como que muito articuladamente conjunto ¢ com ele tio confundido ou misturado, a ponto de com ele ‘compor como que uma mesma etinica coisa ) A despeito do pouco interesse da filosofia, hoje dominante nas Escolas, pela filologia ou pela historia da metafisica, nao faltam referéncias, atuais ou recentes, predominantemente criticas, as Me- ditaciies Metofisicas de Descartes. Para nao ir muito longe ou ficar demasiadamente perto, basta lembrar o jit cléssico The Concept of Mind de Ryle — ¢ sua prolifica posteridade — que tentou efetuar luma sistemética “revistio conceitual” da linguagem psicolégica (numa ética moderada ou brandamente comportamentalista), a par- tir da deniincia da falécia originéria da metafisica moderna: o fa- moso mito cartesiano do “‘fantasma na méquina” ou o equivoco categorial que engendra o insustentavel dualismo que ope a alma 0 corpo, como substéncias diferentes. A insensatez de Descartes — e, por contagio, de toda a meta- fisica posterior — consistiria essencialmente no equivoco primério de representar a alma como uma espécie de.piloto, dominando “tec- 8 BENTO PRADO JR. nicamente” o corpo, essa nau que é preciso guiar no grande oceano da extensio ou da matéria, £ impossivel nao notar, nesses topoi de uma forte tendéncia da filosofia contempordinea, os sintomas de uma leitura apressada de Descartes. Digamos: uma leitura limitada as duas primeiras das Meditationes de Prima Philosophia e do Discours de la Méthode (neste caso, desligada dos textos que prefaciava e sem os quais torna- se incompreensivel, conforme a ligdo de Alexandre Koyré). Uma lei- tura indolente, que se poupa de atravessar as paginas complicadas das cartas a Elisabeth e do Tratado das Paixdes, entre outras, tio cruciais, todavia, para o problema em tela, como demonstra a tese magistral de Livio Teixeira, que finalmente chega ao grande piiblico depois de permanecer, durante dectnios, dispontvel apenas a um unhado de privilegiados. ra, nem tudo, na filosofia recente, participa desse descuido pela hist6ria da metafisica. Merleau-Ponty, por exemplo, nao teria rovavelmente escrito a Fenomenologia da Percepedo, ou proposto ‘uma teoria no dualista da tensio que liga a alma ao cofpo, se no tivesse ruminado longamente o texto enigmatico da sexta meditacto, onde Descartes afirma que & imposstvel pensar a alma como um “ghost in the machine”, ou como um piloto em seu navio (conferir, a propésito, as notas de Gérard Lebrun a nossa tradugto das Medi- tacdes de Descartes, hoje acessivel na Coleco “Os Pensadores” da Ed. Abril). De fato, depois da empresa sistematica da Fenomenologia da Percepco, Merleau-Ponty consagrou um curso (ano letivo de 1947- 1948) na Escola Normal Superior, em Paris, a esse problema espe- cialmente dificil, seguindo 0 fio hist6rico que leva de Descartes a Bergson, pasando por Malebranche e Maine de Biran. A bem di- zer, no seu esforgo “‘arqueologico”, Merleau-Ponty parte da distin- co entre duas linhagens: a cartesiana e a pascaliana. Diz ele, na abertura de sua primeira aula: ‘"Malebranche pertence a uma série bbem diferente daquela a que pertencem Biran e Bergson. Para Male- branche, as relagGes entre a alma'e 0 corpo nada nos podem ensinar de positivo; sio iluminadas de fora pela relacdo da alma com Deus: trata-se da série cartesiana. Para Biran ¢ Bergson, elas introduzem, pelo contrério, & relacdo da alma com Deus: é a série pascaliana’ (L'union de l'ame et du corps chez Malebranche, Biran et Bergson, Vrin, 1968, p. 9). ‘Ao empreender essa reconstrugio historia do problema, Mer- Jeau-Ponty apoiava-se num texto antigo de Martial Guéroult (autor a que sempre se reportaré, de maneira complexa, até nos manus- APRESENTAGAO 9 critos publicados postumamente sob o titulo de O Visivel e 0 Invi- sivel). O texto de Guéroult em que Merleau-Ponty se apéia — mas ‘que também critica — 60 grande livro consagrado as idéias de Eten due et Psychologie chez Malebranche, publicado em 1938. A rest (fo que Merleau-Ponty faz ao livro de Guéroult € que af haveria uma Tedugdo da “ligacdo interna” entre o pensamento e 0 ser (e, por decorréncia, entre a alma eo corpo) a uma “liaison idéelle entre {deux natures simples”. Como se Guéroult fosse insensivel aos textos da sexta meditacio e aos demais, que visam, a0 contrério, a unito substancial como uma espécie de fato bruto ¢ incontornével, quase segundo um estilo empirista. Como se se ignorasse o Descartes que sublinha a positividade desse conhecimento obscuro por esséncia (mais ou menos como as “esséncias morfolégicas” ou inexatas de que falava Husserl, esse herdeiro, como se sabe, do empirismo in- 16s), que se situa necessariamente aquém ou além do claro saber da distingdo entre as substfncias. Livio Teixeira ndo teve oportunidade de conhecer 0 contetido das ligdes de Merleau-Ponty, que s6 vieram a piblico em 1968, pelo ‘menos quinze anos depois da redaglo do Ensaio sobre a Moral de Descartes que ora republicamos. Mas a tese de Livio Teixeira jé res- pondia, quase na época das aulas de Merleau-Ponty, as inquietagdes do filésofo francés. Guiado pela questo da moral cartesiana — que nos desloca, desde o inicio, da esfera fundamental da Prima Philo- sophia, para um dominio onde jé nao vigoram do mesmo modo os ‘ritérios da clareza e da distingao — Livio Teixeira desenhava a ver- slo cartesiana da racionalidade restrita do mundo sublunar, lan- ‘sando luz sobre o enigma da unio substancial de substincias radi almente diferentes. Como se quisesse trazer Agua para o moinho de Merleau-Ponty, Livio Teixeira declara em suas conclusbes: “Essas idéias confusas mostram ainda que a alma e 0 corpo esto, nao sim- plesmente justapostos, ‘como um piloto em seu navio', mas esto fundides, substancialmente unidos, comstituindo um isto psico- fisiol6gico”. Basta acrescentar que esse misto é, de fato, inextrincé- vel, para que 0 racionalismo das idéias claras e distintas venha a reconciliar-se amorosamente como o racionalismo dos limites do ra- cionalismo ou com a “filosofia da ambigdidade”. Numa formulacdo breve: a contra-pélo do diagnéstico com que Merleau-Ponty abre seu curso sobre a histéria dos conceitos de corpo e alma na filosofia francesa, Livio Teixeira demonstra que, para Descartes, como para Pascal, hé uma ligdo positiva (embora essencialmente obscura) @ retirar das relagdes entre as duas substincias, que ndo haure sua vetdade da verdade superior garantida pela relagdo luminosa que une a alma a Deus: docet natura. 0 BENTO PRADO JR. As restrigdes de Merleau-Ponty a leitura de Guéroult eram filosoficamente inspiradas e apontavam para questdes importantes na interpretacao de Descartes. Depois da tese de Livio Teixeira, Martial Guéroult publicou seu monumental Descartes selon lordre des raisons que corresponde, entre mil outras coisas, a uma resposta ‘a Merleau-Ponty. Sim, diz Guéroult, a relagdo entre pensamento ser ndo é integralmente redutivel a uma ligag3o ideal entre duas naturezas simples. Sim, é preciso ler as cartas a Elisabeth e 0 Tra- tado das Paixdes etc. ‘Ao responder, assim, indiretamente, a seu amigo Merleau- Ponty, Martial Guéroult recorria, também, & tese de outro amigo seu antigo assistente, Livio Teixeira (citando mais de uma vez esta tese no capitulo XX do Descartes selon ‘ordre des raisons, particu larmente nas péginas 253-257 do segundo volume), que se tornava assim, discretamente, um pequeno capitulo brasileiro da historia da interpretagdo francesa da filosofia de Descartes, ‘Numa palavra, este livro de nosso mestre Livio Teixeira nao é apenas um instrumento indispensavel para quem se propde a com- preender esse monumento da historia da filosofia que é a obra de Descartes. Serd também indispensével para quem quiser retomar as questées da filosofia, aqui e agora, na primeira pessoa do singular, tentando evitar caminhos demasiado retos e simples, por isso mesmo to usitados. Bento Prado Jiinior Vila Pureza, Sao Carlos, dezembro de 1989 | Introdug¢ao e proposigaéo do assunto A partir do fim do século passado, fizeram-se sobre Descartes, propésito do tricentendrio do seu nascimento (1896) e, mais tarde, 4 propésito do tricentendrio do Discurso do Método (1937), estudos ‘que modificaram a fisionomia do filésofo o bastante para que seja necessirio fazer-Ihe um novo retrato..Nao que se devam apagar os tracos familiares: Descartes destruidor do autoritarismo medieval; Descartes que superou a légica aristotélica e a erudi¢ao do Renas. cimento; Descartes matematico ¢ fundador da ciéncia modern Descartes, pai do racionalismo do século XVIII e do “‘espirito eien- tifico” do século XIX; Descartes, que "‘comecou tudo de novo" ete. Mas o aprofundamento das pesquisas biograficas, os estudos que se fizeram sobre a religido do filésofo e principalmente a compreensio da unidade essencial do seu sistema, que ndo permite mais a ne- hum historiador moderno considerar certas partes desse sistema como expedientes de prudéncia destinados a evitar complicagbes ‘com as autoridades do tempo, levam a procurar, além das tragos ue the marcam a fisionomia de inovador da ciéncia e promotor da ‘utonomia do pensamento, outros menos evidentes, mais profundos ‘€ de grande importancia para plena compreensio de sua obra. Entre esses estudos! é de justiga mencionar em primeiro lugar ‘8 de E. Gilson,? que tiveram 0 mérito de apontar as numerosas ligages do pensamento cartesiano com o pensamento medieval, sem 1 Cl.J. Boorseh, Bat Présent des Etudes sur Descartes, pp. 185-196, onde seen contra uma extensabibiografi, ads incomplta, sobre Descartes, 2 Principslmente Index Scolastio-carésen: La Liberté ches Descartes et la Théo logic, érudes sur e Role de la Pensée Médidvale dans la Formation du Systéme Carts, 2 LIVIOTEIXEIRA deixar de reconhecer-Ihe o carster original inovador. Descartes nos ligado que se supunha a tradigio, e do que le- vava.a pensar a rejeigdo que faz, no processo da diivida metédica, de toda a cigneia tradicional. Apesar dessa atitude anti-historica, que é ‘orreverso dos seus propésitos renovadores, & certo que ele nao podia Antes de passar adiante, & necessério explicar por que esta doutrina da vontade ficou um pouco esquecida pelos comentadores. E que de fato podemos fixar a nossa atenglo sobre as idéias, as intuiges claras distintas, bem como sobre 0s juizos e as deducdes, isto é, sobre o aspecto propriamente intelectivo do espirito, deixando na obscuridade 0 aspecto volitivo que, entretanto, & para Descartes condigao essencial do bom

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