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Livre apreciacao da prova: perspectivas atuais C. A. Alvaro de Oliveira Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Doutor em Direiio pela Universidade de Sao Paulo 1. Certamente, nao constitui objeto deste ensaio a reconstituicio do fio histético do problema da livre apreciagao da prova, mas de qualquer modo impée-se ressaltado que, bem ou mal, apesar das : relacio do juiz com a prova, ¢ principalmente dos poderes deste na gua avaliagio, manifesta- se no sentido de liber-lo cada vez mais de cadeias de order meramente formal ', durais marchas ¢ contramarchas, a linha mestra de desenvolvimento da Alias, se bem atentarmos 3 ligao da histéria, constatar-se-4 que as grandes mudangas do processo sempre ocorteram no terreno da prova, Verifique-se, por exemplo, a passagem, do sistema da prova legal para o da persuasio racional, a permissao para que o juiz. participasse da produgio da prova, até entio entregue a funcionarios, judiciais ou nao, a quebra do total monopélo das partes no requerimento da producio dos meios de prova, mediante a concessio de poderes instrutérios ao drgio judicial *, Ja 0 mesmo nio se passa, sintomaticamente, com a apreciagio da ques Principio ira novit curia. do de direito, em que quase sempre vigorou 0 ‘Também pense assim Hernando Devis chandia, ‘Teoria Genesal de in Peueba Judicial, tomo 1, Buenos Aires, Zavalia, 1988, 0 21, p. 78. Assim dispée, qaanto ao pont, o art. 130 do Cédign de Processo Civil brasileiro vigente (Lei 5.969, de 111.73): “Caberd 20 jui instrugio do processo, indeferindo as diligéncias initeis ou meramente protelatdrias.” Daqui em diante, indicar-se-a 6 texto o Cédige de Proceso Civil brasileiro por CPC. 1. ds offcio, ou a requerimento dz parte, determinar 2s provas necessitias & CoA. Alvaro de Ottveiea Onteo aspecto importante da tendéncia hodierna dominante é a racionalizacio do sistema mediante prevaléncia da verdade empirica extealda dos fatos da causa por meio da Logica e dle critétios cientificos*, portanto em nivel qualitativo diverso daquele ocortido na passage dos ordilios, para a chamada prova “legal”. Concepgio essa, como se sabe, fundada basicamente nas investigagdes de Jeremias Bentham eda escola utilitarista inglesa, identificados com a histéria da légica indutiva e dos desenvolvimentos cientificos (principio da “toral evidence”. Todavia, pode se colocar no tablado das discusses se esse modo de vero problema, fortemente influenciado pelo conceito de legalidade herdado do iluminismo, nfo teria emprestado maior prevaléncia 20 momento “técnico-jutidico” em detrimento do aspecto “Iégico”, conduzindo a uma postura técnica ¢ fotmalista e inclusive burocratica na investigagio do fato. Concepgio essa em aberto contraste com a postura critica, caracteristica do processo de fotmagio do julzo nas experiéncias procecsuais ligadas & prova testemunhal, na estrada da tradigdo tépico-retdrica, que vigorou na aplicacio do dircito desde 0 século XI até 0 século XVIII‘ No decorrer do presente ensaio, dentro dos limites do tema, procurarei determinar, em que medida 0 juiz brasileira mostra-se realmente livre para apreciar o material Fatico colhido no processo ¢ que influéncia vem exercendo nesse mister o impacto do vertiginoso avango da tecnologia na producio da prova, de par com o crescente aumento da carga de trabalho do magistrado, problema de carater mundial ¢ no s6 brasileiro, 2. No artigo 131 do CPC, faculta-se ao juiz apreciar livremente a prova, desde que indique na sentenca os motivos que lhe formesam 0 convencimento §, Fica-the proibido, contudo, exercer esse poder sobre fatos ¢ circunstncias niio constantes dos autos. Quase na mesma linha se orienta o microssistema dos Juizados Especiais, pois 0 art, 5° da Lei 9.099, de 26.9.1995, faculta ao juiz ditigir 0 processo com liberdade paca determinar as provas a serem produzidas, para aprecié-las e para dar especial valor s regras de experiéncia comum ou técnica, Na sentenca, 0 juiz nao s6 fara referencia, no essencial, aos informes trazidas nos depoimentos (art. 36, 2. parte), como também mencionard os elementos de conviceao, com breve resumo dos faros relevantes ocortidos em audiéncia, dispensado 0 relatério (art. 38) 2 Ver, a sespsito, com amplo desenvolvimento desins teins, Carlos Alberto Alraco de Oliveira, Do Formalismo ao proceso civil, Sio Paulo, Saraiva, 1997, < ftica aguda e pereuciemte de Alessandro Ghaliani, Ui concetto di prova {contributo alla Logica giaridica), Milano, Giuffré, 1945, p. 245 © ss. > Ar. 131: "O juiz apreciaré livremente a prova, atendendo aos fatos ¢ circunstincias constantes dos autos, ainda que no alegados pelas partes; mas deveri indicat, na sentenca, os motivos que lhe Livre apreciagéo da provas perspectivus atuais 227 Nao se pode deixar de reconhecer, nesse contexto, que o indice de democratizacio do processo revela-se bem maior em confronto com o antigo sistema da prova legal, pois o pronunciamento sobre o fato passa a ser mais compreenstvel para o cidadiio comom, interagindo dialeticamente com a aprecizeio que deve ter a cidadania do proceder de seus juizes, Pense-se que, no sistema anterior, a afericao da prova deveria ser realizada mediante sutis distingdes, com emprego de princ{pios preestabelecidos, em detrimento da observacio concreta dos faros. Jéno sistema atual o importante ¢a motivagdo fornecida pelo juiz para explicar a escolha tealizada, motivagio essa que deve constar da prépria sentenga, © problema é que no espitito dos operadores do direito, nomeadamente em decorréncia de fatores de ordem cultural, permanecem resquicios da prova tarifada, como se a confissao, a pericia ou a prova documental prevalecessem sempre sobre os demais tipos de prova. ‘Todavia, bem entendido o sistema da persuasio racional, nfo se pode conceber regra de natureza probatoria a priori nem de carater geral. Tudo ha de depender do exame in concreto do caso e do contexto especifico dos elementos constantes dos autos, material sobre o qual havera o érgio judicial de exercer com 0 maior cuidado o seu exame critico ¢ extrair a verdade provivel e possivel Em tal perspectiva, compreende-se facilmente que a confiss%o judicial, embora faga prova contra o confirente, consoantc o disposto no art. 350, *, parte, do CPC’, nfo afastao juiz do dever de sopesar o aleance desse elemento no contexto probatério e atribuir-Ihe o valor que Ihe for mais adequado, de modo nenhum implicando presuagio absoluta da veracidade dos fatos’, O mesmo sucede em relagio i. confissdo extrajudicial, regulada no art. 353 do CPC. A idéia de que se trataria de uma prova legal, a vincular o juiz a seu resultado, impedindo-o de decidir de outro modo”, ignora por inteito nao s6 0 verdadeiro alcance do art, 131 do CPC, mas principalmente o sistema do Cédigo ¢ inclusive o proprio sistema da © Para mim, a busca da verdace material ao processo consti um verdadeiso mito, porque a Finalidade principal do process nio é estabelecé-la mas fazer justiga, embora certamente seja conveaiente ¢ desejavel um pronunciamento judicial mais aproximado da sealidade. 7 Ace 350, I: "A confissio judicial faz prova contra 0 confitente, no prejudicando, todavia, os litisconsortes.” Assim julgon, com inteieo acerta, a 4 a. Turma do Superior Tribunal de Justia (REsp 54.809-MG, cel Ministto Sdlvio de Figueiredo, j. 85.05, un, DJU de 106.1996, p. 20.335). Peeleciona dese modo Jodo Carlos Pestana de Aguiar, Comentitios 20 Cédigo de Proceso Civil, Sio Paclo, RT, 1974, vol. IV, p. 125-126, ieko adotada em acérilio da 22, Turma do Supremo Tribunal Federal (RE 82.001, cel, Ministre Cordeiro Guerra, j- 20.6.1975, vu, Revista Fotense, 254 (abril/maio/janho de 1976):238-239, 228 CA. Alvaro de Oliveira persuasao racional. Alits, em regra de extraordindria abertura, o art. 332 do CPC estabelece que todos os meios legais, bem como os moralmente legitimos, ainda que nao cspecificados no estatuto processual, sio hébeis para provara verdade dos fatos, em que se Funda a acho ou adetesa Até a presungio iris et de itere no afasta conclusio dessa ordem, pois dispensa prova a respeito do que se presume. O mesmo se passa com a ficcio, pois essa no existe como ptova nem é prova, Deve-se ter bem presente que os conceitos de presuncio legal e de ficeio jusidica no passam de expedientes de técnica legishativa”, dizendo respeito ao tema da provae nfo a sua esti Mostra-se indispensével, por outro lado, para que tudo nifo redunde em puro atbitrio, conteaha-se 2 atividade do Grgio judicial no horizonte de uma racionalidade légica e de conformidade com as leis natwrais € 2 experiéncia comum”®, A tanto, alids, colima a importante disposi¢io contida no art. 335 do Cédigo de Proceso Civil ®. Nio me patece accitivel a objecio de que on essas regras légicas foram recothicas, pela norma juridica ¢ impostas ao juiz, caso em que se teria um sistema de prova tatifada, ou no tém carter imperativo ¢ entio, como € natural, o drgio judicial ficaria com aliberdade de segui-las ou nia" O raciocfaio desconhece cuidar se de exigéncia intrinseca a qualqzer valoragao humana, impossivel de ser afastada pela s6 cireunstincia de nfo constar de regra de lei, mormente porque, enquanto fendmeno do pensamento, a logica nio € regulada por leis formais ou juridicas. Dai o acerto do entendimento dow viliza a observincia indsio que vi Pontes de Miranda, Comentitios ao Cédigo de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1974, t IN, ps 236. " Pontes de Miranda, Comentirios ao Cédigo de Processo Civil, cit, & 15, p. 384, © Assim, por exemple, ato poderé © magistrado desconhecer exame de sangue excludente de alegada paternidade (cientificamente apontando a sesultado com 100% de certeza), para, com base 0 prine! da livee apreciacio da prova, emprestar maior valor ao conjunto probatério ¢ acolher o pedido de reconhecimento forgado da relagio paternal. O poder do juiz aio chega a ponto de revogar as lets da ciéncia on da natureza’ ® An. 335: “Bim falia de normas jaridicas part ‘ulares, 0 juiz aplicard as regras de experigncia comum subministradas pela observacto do gue onlinatiamente acontece e ainda as ragras de experigncia (éeaica, sestalvado, quanto a esta, o exame pericial . A zespeito do ponto, contima mantendo atualidade # eléssica monografia de Friedetich Stein, Das private Wissen des Richters: Untersuchungen zum Beweisrecht beider Prozesse, 2. Neudruck der Auspabe Leipzig 1993, Aalen, Scientia Verlag, 1987, passim. Ver, ainda, na literatura jusidica brasileira, José Carlos Barbosa Moreira, Regras juridicamente indeteeminados, Revista Fi de Cresci Sobrinho, © juiz © as més devembro de 1986):830-436. \ Extera esse ceticismo Jaime Guasp, Juez y hechos en el proceso civil. Una critica del derecho de disposicién de las pastes sobre el material de hecho del praceso, Barcelona, Bosch, 1943, p. 95. xperiéncia © conceitos wense, 261 (jancizo/fevereiao/margo de 1978):13-19, © Elicto ws da expesigacia, Revista Forcnse, 296 (outubro /aovembro/ Livre apreciasio da prove: perspectivas avsais 229 das leis do raciocinio, da ciéncia ou da natareza nao como um limite’ apreciacao da prova, mas como algo que Ihe é imanente ®. Aspecto interessante ¢ atual da apreciacio da prova diz respeito a crescente interferéncia da ciéncia na investigaciio dos fatos"*, 2 colocar com Freqiténcia o juiz diante de complexas informacées técnicas ¢ cientificas, capazes de serem apreendidas em toda sua extensao com facilidade apenas por pessoas dotadas de altos conhecimentos especializados on de raras habilidades”. Nao ha divida, nessa perspectiva, de quea confianca, até certo ponto indispensavel, na informagio cientifica impenettivel ou de dificil acesso, aumenta a tensio entre a liberdade para apreciar a prova co proceso cognitive nonnal, pondo em xeque o pr6prio principio da livre apteciac&o da prova. Semelhante dificuldade coloca no tablado das discussdes 0 temor de que o judicial esteja, em alguma legitimagao politica”, Exemplo paradigmitico desse tipo de estorvo é a funcao exercida pelo petito, em que esse perigo passa a se potencializar de mancira singular. gio medida, transferindo o seu poder de julgar a estranhos sem Interessante observar, contudo, que nos sistemas ligados ao common law essa conseqiiéncia tende a ser minimizada, em virtude de neles ser a prova produzida exclusivamente pelas partes, verificando-se além disso exacerbado contraditério entre as testemunhas técnicas postas em confronto, valendo ressaltar a inexisténcia de perio de confianca do rio judicial. O mesmo nao se passa nos sistemas afeicoados ao civil law, em que se constata a olhos vistos a erescente supervalorizagio do trabalho do petito oficial nomeado pelo diretor do processo, reduzindo de modo correlato, com intensidade cada vee maior, a importincia dos laudos apresentados pelos as: conseqiiéncia, ademais, torna-se ainda mais grave pelo notivel incremento verificado no niimero de demandas, 2 tornar mais rarefeito 0 exame das conclustes da pericia peto juz. tentes técnicos das partes. Ess % Como bem pondera Gerhard Walter, La libre apreciacion de la pruebs (investigacién acerca del significado, las condiciones y limites del libre convineimiento judicial), tad. Tomas Banzhaf, Bogor, Temis. 1985, § 14, 2p. 355, % Bxemplo frisente constitu, come sabido, o exame de DNA, empregado especialmente na acio de reconhecimento forgado da paternidade, acima mencionado. © A questi @ suscitada, especialmence da dtiea do common law, por Mirjan R. Damaska, Evidence Law Adi ; New Haven: & London, Yate University Press, 1997, p. 150-154, passim, que subtinha, en passant, ntais na investigagio dos fatos com a dificuldades de harmonizagio dos métodos europeu-cont cientificizacio da prova. ™ Observagio de Damacka, ob, cit, p, 151 230 C. A. Alvaro de Oliveiza De outro lado, a reforma introduaida no institato da pericia, pela Lei n? 8.455, de 24.8.1992, s6 veio a estimular esses inconvenientes, na medida em que redu consideraveimente o papel até entio desempenhado pelos assistentes tecnicos, que, de verdadciros auxiliares do juizo, passaram 4 condi > de simples informantes e pareceristas pagos pelas partes. Basta atentar na nova redacao do § 2”, 2'. patte, do art. 422, —a dispensar os assistentes técnicos de prestarem compromisso de cumprir conscienciosamente 0 encargo que thes for cometido—, do art. 423, — a determinar que os assistentes técnicos nao podem inais ser recusados por impedimento ou suspeigio—, do art. 424, caput, a no mais preves a possibilidade de substituigao do assistente técnico pelo julz —, ¢ ainda na revogacio dos arts, 430 431, que impunham prévia conferéncia entre o perito € os assistentes técnicos ¢ a elaboracio de laudo em separado somente em caso de divergéncia. O argumento de que, nos rermos do art. 436 do CPC ®, o juiz nfo est4 adstrito 20 laudo pericial, podendo formar sua convicgio com outros elementos ou fatos provados nos autos, no se mostra relevante nese contexto porque é sabido que 2 aplicacio dessa diretiva reyela-se praticamente desconhecida na pritica do foro ¢ 56 encontra realmente respaldo em casos em que seria a rigor desnecessdsia a prova pericial, bastando a prova do fato paraa formagio da conviccio judicial”, Demais disso, a regta invocada tende a ceder notavelmente diantc dos casos de alta complexidade cientifica ou técnica, nos quais obviamente mais dependente se tora o érgio jndicial de assessoria especializada, A noya tealidade aqui retratada est4 a detetminar reflexio mais acurada sobre o modus operandi da pericia no sistema juridico brasileiro. As tazdes invocadas ¢ a pritica do foro demonstram que, no presente estagio de desenvolvimento da sociedade brasileira, seria de todo conveniente desfrutasse 0 perito da confianga nao s6 do Srgao judicial mas também. dos litigantes. Dentro dessas coordenaclas, tudo aconsetha— nomeadamente nos parametros deuma desejavel ¢ inafastivel visto cooperativa do processo —a prévia audigao das partes a respeito da escolha do expert, possibilitando-thes até sugerir quem deva realizar a diligéncia”. Com essa providéncia— que pode ser adotada inclusive sem lei expressa a respeito — em muito ganharia a busca da verdade dentro do processo, mormente nas espécies de alta Art. 436: “O juiz ndo esté adstrito ao tudo pericial, podendo formar a sua conviegio com outros elementos ou fatos provados nos autos.” ® Sintomiético, @ respeito, 0 seérdio uninime da 1a, Turma do Supremo Tribunal Federal RE 84.473-GO, itese am rel, Ministro Cunha Peixoto, 24.9.1976, RJ, 85 (julho/agosto/setembro de 1978):190-197), bi que a rejeigio do Ioudo pericial nao dererminou por si s6 a realiz: sto de nova pericia, porquanto suficicnte para a formagio da convic jo do drgio jadick s docamentas que formavam a cadein dominial. % Cabe meacionar, com essa lowvivel orieniagio, o art, $68, 2, do CPC portugués: “As partes si opvidas sobre a aomeagan do perite, podendo sugerir quem deve realizar a diligéncia; havendo acordo das partes sabre a identidade do perito a designar, deve o joiz nomed-lo, salvo se fundadamente tiver razdes para p6r em causa a sua idoneidade ov comperén Livre apreciasiio da prova: perspectivas attais 231 complexidade técnica ou cientifica, possibilitando-se 0 exercicio da livre apreciacio da prova com legitimagio externa mais acurada do Poder em face da sociedade civil. 3. As consideragées até aqui desenvolvidas, trazem a liga 0 problema da responsabilizacio do juiz edo controle de sua desejavel iberdade, elementos esses cortelativos 20 exercicio da cidadania processual das partes, que de modo nenhum podem ser esquecidos quando se abordao tema dallivre apreciagio da prova. Do ponto de vista externo ao juizo valorativo, a primeira observacio a ser realizada é que, conquanto inadmissivel qualquer retrocesso no sentido de tarifar a apreciacao do fato pelo juiz™, impde-se preservar— como salvaguarda para melhor estabelecimento da verdade € conseqiiente antepaco contra 0 abuso da liberdade judicial a respeito — 0 controle da sociedade imbutda de valores democréticos, pot meio dos principios, garantias e técnicas formadores do priptio processo. Visam eles, por um lado, a facilitar o trabalho judicial, elasteceado a0 mesmo tempo a colaboragio das partes. A titulo de exemplo, podem ser mencionados a imediatidade no debate e na recepsio da prova oral, o contraditério ¢ a presenga dos interessados na produgio das provas™, Outros principios e garantias tém outra funcio por servirem como anteparo ao arbitrio judicial, restringindo o carater “pessoal” da decisio, dessa forma contribuindo para melhor objetividade por patte do julgador, Nesse dominio, podem ser apontados o dever de motivar a sentenga, o atendimento as formalidades estabeler idas emlei para a realizagio da ” Parece ter sido esta a intengie de Banio Amodio, Liberti © legaliti della prova ncilu disciplina della testimonianza, Rivista Ttaliana di Diritto © Procedura Penale, XVI(1973):310-339. Preocupado com a “degeneragio” da pritica judicial penal italiana, propée uma “riscoperta” das regras probatorias lepais como instrumentos destinados a limitar em sentido negativo os poderes do juiz também no plano valorativo (fev. cit, p. 336), A sugestio merecen imediato reptidio de Cappelleni, Risorno al sistema della prova legale2, rev cit. XVIN((974)139-141, combatendo ay gencralizagdes perigosas ¢ 0 formatisiaa dessa posigio, com resposts de Amodio, Prove legali, legalita probatoria c politica processuale, rev cit. XVII(1974):373-376, ® Chiovenda, Sct rapporta fra le forme de} procedimento e Ik fanaione della prova (Loraliti e fa prova), in Sagpi di Disino Proc ol. If, Roma, 1991, Foro Italiano, p. 197-225, esp. p. 225, destaca com agudeza que 2 berdade de corivencimento do juiz quero ar © a luz da auditncia, costompende. mortendo nos labirintos do processo escrito. Parn Cappellerti, La testimonianza se € ia parte nel sistema delVoralita {contributo alla teoria della utilizzazione probatoria del sapare delle parti nel processo civile), 2. ed, Milano, Gioffee, 1974, vol. I, p. 130 ¢ s6,, 139, 164, mostea-se indissociavel a intesdependéncia reciproca entte imediagio, eralidade ¢ Bee apreciagio da prava, residindo o sentide maior da imediagin cxatamente 1a livre valoracio da prova, porque 4 prova legal n3o interessa o modo como é realizada. Assim tambéin Walter, Libre apreciacién de la prucba, cit, § 15, p. 363 © 58 CA, Alvaro de Oliveira prova, a publicidade do procedimento, a possibilidade de recursos em geral € 0 prine!pio do duplo grau de jurisdicia Nio deve ser olvidado, no entanto, 0 tisco de mio serde todo afastada a onipoténcia judicial com o emprego dessas técnicas ¢ até mesmo kespeitando-se os principios e garantias antes mencionados, O problema revela-se muito mais complexo ¢ mostra-se hem possivel que, mesmo com uma auténtica proclamacio de prineipios, o érpio judicial ao justificar determinads visio dos fatos lance mao de critérios vapos c indefinidos, empregando fOrmulas puramente retéricas, despidas de contevilo, aludindo por exempio & “verdade material”, “prova moral”, “certeza moral”, “prudente apreciagio”, “intima convicgio”. Essas e outras expressées similares representam auténticos sindnimos de arbitrio, subjetivismo € manipulagio seméntica, por no assegurarem nenhuma racionalidade na valorizacio da prova, implicar falsa motivagio da decisto c ainda impedir 0 controle da atividade judicial por parte da sociedade, do jurisdicionado e da instncia superior *. Essa forma de motivar a decisiio fatica da causa, constitui na verdace uma tentativa de se reduzit 1 atividade cognoscitiva do juiz a um fendmeno de pura consciéncia, que se exauriria no plano {ntimo eimperscruravel da mera subjetividade **. Se o reconhecimento da inafastivel liberdade da decisio, — na medida em que eticamente empenbado ¢ assim expresso da responsnbilidade do individuo — foi o fruto mais precioso do novo sistema dda intime conviction, esse mesmo elemento oferece também aspectos negativos, cxatamente porque pode levar a se considerar o momento da valoraciio da prova como um fendmeno misterioso e indizivel, nao sujeito a andlise € controle, impenetrivel por conseqiiéncia a qualquet tipo de investigacao”. » Observa ogudamente Walter, Libre aprecincién de la prueba, cit, p. 94-95, tenet sempre existido esses paincipios e garantias quando a apreciagio da prova nc ¢stava tegtada, desaparscendo tio logo entrava a reinar 2 reofia das provas legis. Segundo Michele Tanuffo, La prove dei fani ginridici (novion! general), in "Trattado di ditto civie © commerciale, direito da Cita, Messineo ¢ Mengoni, Milano, Giaffxé, 1992, vol. 3, 2, sez 1, p. 376-371, 0 dever de motivagio, dentro dessa concep¢io racionat do convencimento do juiz, assume exato © preciso significado, de modo a que posse ser contzolado extemmamente 0 SreAo judicial ¢ compelido assim 1 jostifiear suas eseathas no jaiza de f4to com argumentos racionais, Sobxe o significado da publicidade para a livre apreciagan da prova, conforms. ainda Walter, Libre apreciackin dle la prucha, Gt, p. 380-385. % Assim também Taraffo, La prova dei fate piuridici, cit, p, 370-371, Interessance a observacao de Devis Jichandia, a0 defender a adogie do sistema de livre apreciagio da prova, ob. cit, tomo I, 27, p. 196-107: “No cexiseen, en nuestsa opinion, mas posibilidades de aebitrarsedad ni mayor incestidumbre con el sistema de ha libre apreciacion, correctamente entendido y aplicado, que con et de ta tarifa legal, Si el jutx es ignorante, tanypoco aplicaré costectamente Is waloracidn tadicada en J tarfa tepal, y si quiere obrar com parcialidad c mala fe, encontrar mente la msnera de hacerlo, dindoke una motivacién caprichosa y arbitearia a la seateacia, con ambos sistemas, sto lo prucba Ja experieacis de sighs. Podsian contarse por millares, cn cad pais, las personas que han safrido fa mala justicia y ef atropello judicial, o que se hax beneficiado de fa indulgencia icita de los jusces penales, durante Ja wigencia det sistema de Ia tarifa fe Bem clucica Devis Rehandta, 0b. cit, camo I. n° 27, p. 109: “la libre apreciacién no es libertad para la aubitraiedad, of para tener em cuenta conocimientos personales que no se desduacan del material probatocio aportacio al proceso, ai para eximirse de motivar las decisiones y sometertas a la revisiin de jucces superior # Massimo Nobili, {1 principio del libero convincimento del giudice, Milano, Giuffté, 1974, p. 7-8: Livre apreciagio da prova: perspectivas ainais 233 Razoes dessa natureza encontram eco também no ambiente brasileiro, euardando perfeita aclequago aos tempos atuais, de modo a justificar plenamente a necessidade de um controle também endégeno, incidente sobre 0 proprio raciocinio desenvolvido pelo orgiio judicial no apreciar tanto a prova quanto os elementos de fato relevantes para a decisto Nio se cnida aqui de encarar a questiio com preconceitos de carter iluministico, mas de adaptar 0 discurso aos valores fundamentais da sociedade bodierna, interessada de uma forma ou de outra em domesticar o poder. Dentto dessa orientagio, deve ser excluida em ptimeiro lugar na apreciagio fitica do Sérgio judicial qualquer valoragio de eqiiidade ou de conveniéncia em relagio 4 turela dos interesses opostos, Cettamente, para melhor formar sua convicsio, deve o juiz até de officio ordenar a realizacio de detenninadas provas (art. 130 do CPO), mas, se apesar de tudo a ddyida permanece, nao the seri licito considetar provados 0s fatos $6 porque lhe parega justo acother o peciido inicial. Em hipdtese assim extrema, em vista do veto ao non. liquet, o nico recurso que the cabe € recorrer a juizos de verossimilhanga, fundados na experiéncia geral™ regras essas concernentes ao dnus da prova, a dererminar erp cera medida um retorno 4 formaliza judicial, na apreciagio da ptova evitando, todavia, 0 petigo maior do puto arbitrio Por outro angulo visual, nlio sendo meramente subjetiva a livre apreciagio da prova, deve ainda 0 Srgio judicial — a exemplo do jalgamento exclusivamente de dircito — respeitar as expectativas do ambiente a que se dirige e no qual a decisfio ha de se mostear convinceate ou pelo menos aceitavel. De tal sorte, também no plano dos fatos, constituir’s aspiragao da atividade jadicial obter consenso 0 mais generalizado possivel da sociedade em que inscrida, no horizonte de uma decisio “razoavel”, na medida em que conforroada As expectativas sociais®. Por fim, mostra-se importante ressaltar a intimagao conexidade da maior liberdade do juiz na livre apreciacio da prova com a propria valotizagiio do magistrado de seus julgamentos pela sociedade civil. Essa constatacio conduz a uma insuprimivel dialética entte lei e juiz, incapaz no fando de ser resolvida em termos meramente abstratos € cuja solucio sé pode ser encaminhada levando-se em conta concretos parimetros histéricos, sociais e econdmicos. % Alessandro Reselli, Studi sul potete discrezionale del ghudice civile, Milano, Giaffré, 1975, p. 233-234 » CE, acentaa Salvatore Patt, Libero convincimento ¢ valurazione detle prove, Rivista di Ditto Processuule Chile, AU (1985):481.519, esp. p. 518 234 C. A, Alvaro de Oliveira De tal sorte, o Jegalismo pode constituir um freio contra o despotismo ou degenerar em autoritarismo do Estado; a ampla liberdade do juiz no exame da prova ou conduz a uma decisio o mais proximo possivel da verdade ou redunda mum arbitrio exaspetado ¢ incontrolivel, chanceladot de uma imagem equivocada e falsa™, ‘A problemitica, portanto, € influenciada ao fim e ao cabo pela justa ¢ exata ponderacio de que qualquer simplificago processual no dominio das formas, a maior ou menor liberdade do juiz, “no € possivel seniio na proporcao da confianga que, num determinado momento, o ordenamento judiciétio inspira nos cidadios” ®. Confianga que 86 sera adquitida, contudo, verificando-se compreenséo muitua entre a cidadania ¢ a magistratuta, cficiéncia e competéncia desta no exetcicio de suas alras fungdes, de modo que possa adquirir legitimacio externa perante a Sociedade civil. Dificuldades dessa ordem sio ainda mais delicadas numa época como a nossa, de difusio informatica, de grande progresso tecnolégic na divulgacio dos fatos ¢ de globalizagdo da economia, em que 2 midia desempenha relevantissimo papel na formagao da opiniio pilblica, ¢ o Poder Judiciatio além de ter pouco acesso 20s meios de comunicagiio nem sempre tem demonstrado saber como lidar com algo quc em certo sentido refoge a sua habitual reserva e discricio. * Ver a respeito as consideragdes de Massimo Nobili It principio def libero convineimento del giudice, cit, p. 452-458, passitn * Giuseppe Chiovenda, Principii di diritto processuale civile, 4. ed., Napoli, Jovens, 1928, § 43, HI, p. 664.

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