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JOAO GOUVEIA MONTEIRO Riefo)aaP) ILO DA IDADE MEDIA (SECS. X-XV) Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra rey ry JOAO GOUVEIA MONTEIRO Professor Auxiliar com o titulo de Agregado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, nasceu nesta cidade em 1958. Licenciado em Historia pela U.C., é autor de mais de meia centena de trabalhos cientificos nas areas da hist6ria da cultura medieval e da historia militar da Idade Média, de que se destacam dois livros galardoados com 0 Prémio Defesa Nacional: "A Guerra em Portugal nos finais da Idade Média" (1998) e "Os Castelos dos finais da Idade Média’ (1999). Em 2001-2002, foi Professor Convidado da Universidade Paul Valéry (Montpelier It). Como docente universitério, coube-the leccionar, a0 longo dos anos, as disciplinas de "Histéria Cultural e das Mentalidades (sécs.lI-XIV)", "Historia da Idade ia", "“Introdugao as Ciéncias da Educacao", “Historia Militar de Portugaf" e um Seminério de pés- -graduagao e mestrado em Historia da Idade Média. Em Franca, leccionou 0 Cours de Maftrise "Sources et Méthodes de Histoire Militaire" e as disciplinas «La Vie Intellectuelle en Europe Méridionale, siécles XI-XV» e «La France, l'Europe Méridionale et le monde musulman, siécles XI-XVo. Na sua Faculdade, Jodo Gouveia Monteiro participou em todos os 6rgos de gestdo: no Conselho Directivo (ainda como estudante), na Assembleia de Representantes (primeiro como estudante, depois como docente, a0 longo de muitos anos), no Conselho Pedagégico (como representante dos docentes doutorados de Histéria) e no Conselho Cientifico (como Vice-Presidente). Foi também Presidente da Comisséio Cientifica de Historia. Em Fevereiro de 2003, foi nomeado Pré-Reitor para a Cultura da Universidade de Coimbra, cargo que ainda exerce. E membro de vérias socledades cientificas, nacionais e estrangeiras, de que se destacam a "Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais" e a "De Re Militari - The Society for Medieval Military History’. Integra também o Centro de Histéria da Sociedade e da Cuittura. E membro fundador da Comisso Portuguesa de Hist6ria Militar, de cujo Plendrio e Conselho Cientifico faz parte, enquanto representante do Ministério da Ciéncia e do Ensino Superior. LICOES DE HISTORIA DA IDADE MEDIA (SECS. XI-XV) JOAO GOUVEIA MONTEIRO LICOES DE HISTORIA DA IDADE MEDIA (SECS. XI-XV) FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 2006 Biblioteca Nacional - Catalogagao na Publicagéo Monteiro, Joao Manuel Filipe de Gouveia, 1958- Ligdes de Historia da dade Média (sécs. XI-XV). (Colecgao Estudos ; 58) ISBN 972-9038-87-2 CDU 94(4)"10/14"(075.8) Titulo: Ligdes de Historia da Idade Média (sécs. XI-XV) Autor: Joo Gouveia Monteiro ISBN 972-9038-87-2 978-972-9038-87-7 Coordenagio Editorial: Gabinete de Publicagdes da F.L.U.C. Depésito legal: n° 242016/06 Impress: Secgao de Textos da F.L.U.C. Tiragem: 300 © Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006 A Néné, ao Vasco e ao Jaime, que comigo partilham o amor pelos livros e o gosto pela descoberta da Histéria. Prefacio INDICE 1. As mutagGes dos finais do séc. XI e dos sécs. XII e XII 1.1. A vida econémica e social L.L.L. A renovagdo das préticas agricolas e o crescimento populacional; 1.1.2. A renovagao do comérci 0s grandes arroteamentos e a modificagao do regime senhorial circulagdo monetéria e animagio comercial; 0 grande comércio: os produtos, a exportacao, as feiras; as novas técnicas comerciais e financeiras 1.1.3. A reorganizagio da produgfo artesanal: 0s oficios, as corporagdes € a regulamentagio econémica. A reactivagio da vida urbana €.0 movimento comuUAl nem . 7 1.1.4, ImplicagGes sociol6gicas do novo quadro de vida... 7 1.2/Igreja e vida religiosa 1.2.1, Do arranque da reforma gregoriana & plenitudo potestatis do papa: a “Questo das Investiduras”, a construgao do sistema hierocratico a exasperagio da doutrina pontifical nos meados do século XIII 1.2.2. Igrejae sociedade: a organizagao da Igreja (a reforma do clero secular ce arenovagio do clero regular: Cister), a intervengao directa da Igreja sobre a sociedade e as instituigdes (economia, direito, confrarias, assisténcia social e ensino) ~ so 1.2.3. As novas aspiragées religiosas ea valorizagéo do Novo Testamento. O regresso das heresias e as novas ordens religiosas (Franciscanos, Dominicanos e Eremitas de Santo Agostinho) 1.3. Realeza e vida politica .. 1.3.1. A Frang capetingi: as ciiculdades inicais ea evolugdo do ‘dominio 13. 8 régio’ ao ‘reino’, com Luis VI ¢ Lufs VII (1108-1180); 0 triunfo da monarquia sob Filipe Augusto (1180-1223); Lufs IX (1226-1270): o carisma de um monarca multifacetado; as dificuldades de Filipe III Bravo (1270-1285); Filipe O Belo e a luta contra o Papado ¢ a Ordem do Templo; os tiltimos Capetingios e a construgio do Estado (1285-1328) A Ilia: entre 0 estabelecimento dos Normandos na Itdlia (c. 1030) 0 apagamento do Império (segunda metade do século XIII) - em tomo de Frederico I Barba Roxa, de Roberto Guiscard, de Resto I de Frederico Il de Hohenstaufen 24 30 36 36 53 61 nn nR 127 1.4. Jodo Gouveia Monteiro 1.3.3. APenfnsulaIbérica: a progressio da Reconquista face aos Almoravidas € aos Alméhadas; de Las Navas de Tolosa (1212) as capturas do Algarve (Afonso III, 1249), do reino de Valéncia (Jaime I de Aragio, 1232-1245) e da Andaluzia (Fernando III O Santo, 1236-1248) Uma epopeia controversa: as cruzadas no Oriente 1.4.1, Motivagoes, caracteristicas e objectivos das cruzadas. 1.4.2. Histéria concisa das oito cruzadas no Oriente (1096-1270) 1.4.3. Consequéncias econémicas, religiosas, cunealsplia desea ~ 0s Estados Latinos da Siria-Palestina 2. A Europa nos finais da Idade Média (séculos XIV e XV)... 2.1. 2.2. 2.3. A Crise do Século XIV 2.1.1. A crise econémica - agricultura, comércio, artesanato, fiscalidade e moeda; as grandes fomes........ - 2.1.2. A Peste Negra e suas consequéncias 2.1.3. As guerras (um ‘estado endémico’) e o aprofundamento da crise 2.1.4. Crise social e movimentos ‘revolucionérios” 2.15. A crise do Papado: de Avinhio ao Grande Cisma do Ocidente ‘A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) 2.2.1. Das origens do conflito & Batalha de Poitiers (1356) 2.2.2. Da “Paz de Calais” (1360) ao assassinato do duque de Orledes (1407) 2.2.3. Henrique V e a vit6ria inglesa em Azincourt (1415). O Tratado de Troyes (1420) . 2.2.4, Do fenémeno Joana d’Are a Batalha de Castillon (1453): guerra € a VitOria francesa nee 2.2.5. Balango do conflito .... ~ a A (fe)construco politica europeia do século XV 2.3.1. A afirmagdo da Franga sob Carlos VII e Luis XI (1422-1483): aforga do absolutismo, a conquista do territério e a reconstrucio do reino . 2.3.2. A Itdlia dos finais da Idade Média: as Vésperas Sicilianas ea conquista aragonesa da Itélia meridional; Mildo, Veneza e os Estados italianos do séc. XV — um equilibrio precério 2.3.3. 0 Outono da [dade Média na PenfnsulaTbérica: a conquista do eino muculmano de Granada (1492) e o fim da Reconquista fim da 3. Orientacao Bibliografica 151 167 167 71 185 203 203 203 208 214 215 221 232 232 244 249 253 273 308 330 343 PREFACIO “LigGes de Histéria da Idade Média (sécs. XI-XV)” é um livro que resulta do trabalho que desenvolvemos entre os anos de 2003 e 2005, com vista A produgao do “Relat6rio da Disciplina — Programa, Contetidos e Métodos” que apresent4mos a Provas para obtencdo do titulo de Agregado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. De entre as varias possibilidades que se nos colocavam com vista & produgao desse trabalho (‘‘Histéria da Idade Média I”, “Hist6ria da Idade Média II”, “Hist6ria Militar de Portugal” ou “Cultura Medieval”), optamos pela apresentacao de um programa na 4rea da hist6ria medieval europeia por se tratar de uma disciplina estruturante e obrigat6ria para todos os alunos que frequentam a licenciatura em Historia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o que, salvaguardando a existéncia de outros entendimentos igualmente validos, nos pareceu contribuir para dignificar a Prova a que pretendiamos submeter-nos. Sem prejuizo do seu campo de investigaco especifico e altamente especializado (na verdade, no actual enquadramento e em todos os dominios da Ciéncia, cada vez sabemos mais de menos coisas), o docente universitario tem obrigago de se manter disponivel e apto (quer cientifica, quer mentalmente) a contribuir de forma actualizada e harmoniosa para a formacdo de base dos alunos que buscam nos terrenos da Hist6ria a construgao do seu futuro profissional, ou tHo-s6 0 seu enriquecimento pessoal. Esta area (a hist6ria medieval europeia) coincide, além disso, com 0 que tem sido o essencial da nossa actividade pedagégica nesta Faculdade, pelo que 0 que aqui se propée beneficia largamente de uma experiéncia de muitos anos lectivos, ao longo dos quais foi possivel testar muitas ideias e solugdes, tanto do ponto de vista da organizacao dos contetidos temiticos do programa, como ao nivel das melhores estratégias pedag6- gicas para o leccionar. Em resultado da introdugao do regime semestral no 2.° ano do curso de Histéria na Faculdade de Letras de Coimbra em 2004-2005, e porque pretendfamos fazer, nao uma simulagao para uma cadeira virtual ou até ja extinta, mas sim um programa real para enfrentar uma situa¢ao real que se prolongaré talvez por alguns anos, tivemos de optar entre as duas disciplinas existentes no actual plano de estudos que se ocupam do ensino 10 Joao Gouveia Monteiro da hist6ria medieval europeia: “Historia da Idade Média I” ou “Histéria da Idade Média IT”? Também aqui, escolhemos sem dificuldade de maior, optando pela segunda hipétese, por ser esta que nos mantém numa cronolo- gia mais préxima do que tem sido a nossa actividade como investigadores. Sem prejuizo do que se disse mais atras a respeito da versatilidade que deve enformar a pratica pedagégica do docente universitario, é evidente que se ele puder movimentar-se dentro de um quadro de referéncia que conheca particularmente bem, em resultado das exigéncias da sua propria actividade cientffica, tanto melhor. Para nés, que temos publicado a maioria dos nossos trabalhos de investigagio dentro de uma cronologia que podemos situar nos séculos XIV e XV, é na ambiéncia da Baixa Idade Média e no clima de transi¢ao da época medieval para o periodo moderno que nos sentimos mais confortaveis e até mais motivados. Mesmo que 0s nossos temas concretos e preferenciais de investigagao nao aparegam explicitamente no programa proposto. Gostarfamos agora de definir com alguma precisio a cronologia e a geografia da disciplina eleita, duas coordenadas indispensdveis a uma construgdo adequada e cientificamente valida de qualquer programa de Hist6ria. Quanto ao primeiro aspecto, pensamos que o essencial consistiu em garantir que o corte se fizesse com critério, preservando 0 mais possivel aunidade histérica do periodo seleccionado, bem como do que foi deixado para tras, Neste ponto, cremos que apenas havia duas alternativas: limitar 0 Ambito cronolégico da cadeira aos séculos XIV e XV ou efectuar 0 corte no século XI, por volta dos infcios do seu Ultimo quartel. Afastimo-nos da primeira solucao por, ainda que bastante coerente, ser demasiado restritiva e dificilmente aplic4vel na pratica, pelo volume de matéria que remeteria para a disciplina imediatamente anterior (que assim se veria obrigada a trabalhar, ao longo de um simples semestre, numa cronologia que podemos situar, aproximadamente, entre os séculos V e XIII). Em todo 0 caso, ao abandonarmos esta hipétese a dor nao foi muita, porque a segunda alterna- tiva (séculos XI a XV) é bastante harmoniosa. Significa abrir 0 curso ja com as instituigGes feudo-vassdlicas dissecadas no semestre anterior, num momento (que podemos situar por volta de 1075) em que o cresci- mento da populagio e da economia do Ocidente europeu se confirmam decisivamente, consolidando importantes inovagées ao nivel das técnicas agricolas e das praticas comerciais, trazendo também novidades muito interessantes ao nivel da organizago dos oficios artesanais e provocando, com tudo isso, um verdadeiro renascimento das cidades, até essa altura, € no saboroso dizer de Georges Duby, meros “esqueletos embranque- Ligdes de Historia da Idade Média (Sécs. XI-XV) nt cidos” das velhas cidades romanas'. Por outro lado, 1075 é precisamente © ano da produgao do Dictatus Papae, verdadeiro manifesto politico de Gregério VII e instrumento decisivo de uma reforma (dita gregoriana) que, por entre disputas gravissimas com o poder temporal, haveria de conduzir a teocracia pontifical do século XIII. Mais ainda: o ultimo quartel do século XI é também, et pour cause, o momento do arranque da grande aventura das cruzadas na Siria-Palestina, pregada pela primeira vez por Urbano II no fecho do concilio de Clermont, em Novembro de 1095. Do ponto de vista da historia politica da Franga, os finais do século XI marcam igualmente uma clara viragem na atitude dos primeiros monarcas capetingios relativamente ao enquadramento feudal-senhorial que ameagava sufocar a realeza: com Filipe I (1060-1108) assistimos a um primeiro esforco da monarquia capetingia para concentrar e reforgar 0 seu poder dentro do exiguo espaco territorial que Ihe restava, mediante uma estratégia que passava por atrair ao servigo do paldcio real uma aristocracia extremamente turbulenta e pelo alicercar do poder régio numa autoridade j4 nao meramente simbélica mas também executiva, de que a emissao do primeiro mandement (em 1077) constitui um clarissimo sinal. Em Itdlia, pelo seu lado, as décadas finais do séc. XI coincidem com a conquista normanda da Apilliae da Sicilia, a afirmagao de Roberto Guiscard e de seu irmao Rogério I pondo termo ao esplendor bizantino no sul do continente e ao dominio mugulmano sobre a Sicilia. Mais a ocidente, no Império Bizantino, 1081 marca o inicio da carismatica dinastia dos Comnenos (que haveria de perdurar por mais do que um século e cujo primeiro monarca, Aleixo I, esteve ligado ao arranque das cruzadas), enquanto no outro extremo, a Peninsula Ibérica, 1086 é a data em que Al-Mu’tamid, rei de Sevilha, alarmado com a captura de Toledo por Afonso VI de Castela no ano anterior, decide solicitar 0 auxilio dos Almordvidas, com isso acabando por por fim a experiéncia dos primeiros reinos de taifas e por introduzir no rincdo hispanico, apés os Om{adas, uma nova e poderosa dinastia, destinada a durar até para além de meados do séc. XII. Finalmente, também do ponto de vista cultural e religioso, 0s finais do século XI constituem um periodo de renovagaio profunda, com o desabrochar da cultura trovadoresca (a partir de Guilherme de Poitiers, 1071-1127) e coma floragdo de novos movimentos monasticos, de que basta recordar o exemplo paradigmatico de Cister (1075 € precisa- mente 0 ano da fundagdo, por Roberto de Molesmes, do mosteiro de ' Cf. Georges Duby, O Tempo das Catedrais ~ a arte e a sociedade, 980-1420, Lisboa, Ed. Estampa, 1979, p. 13. 12 Jodo Gouveia Monteiro Molesmes, do qual viria a resultar o eremitério de Cister e, em 1098, a instituigao canénica da abadia com 0 mesmo nome). Quanto ao terminus ante quem da nossa proposta de programa, consider4mos essencial que ele nao fosse fixado antes de finais do século XV, de molde a permitir aos alunos conhecer as formas pelas quais se processou a recuperacéio econémica das grandes convulsées de Quatro- centos, assim como 0s reais efeitos do termo da Guerra dos Cem Anos (tanto em Franca como em Inglaterra). Levar o programa até aos finais do século XV permite igualmente perceber como se processou, em Franca, a transigdo da realeza medieval para o absolutismo mondrquico, com Luis XI e Carlos VIII (1461-1498), e como se constituiu fisicamente 0 moderno reino de Franca. No que a Peninsula Itdlica diz respeito, parar antes de meados de Quatrocentos significaria fechar os olhos a um dos mais interessantes sistemas de equilibrio da histéria politica tardo- -medieval, construido em torno dos grandes portentados de Milao, Veneza e Florenga, com o beneplacito do Estado Pontifical e do reino de Napoles, agora sob o dominio de um monarca peninsular, Afonso V de Aragio, O Magnanimo. A respeito de Peninsula Ibérica, nao podemos também esquecer-nos de que 1492 assinala, com a captura de Granada pelos Reis Catélicos, o termo de uma Reconquista de mais de 700 anos, enquanto = no extremo oposto do nosso planisfério - 1453 é a data magica da conquista otomana de Constantinopla, que é 0 mesmo que dizer a data da queda de Bizncio, o Império Romano do Oriente. Basta, portanto, a historia politica para perceber o interesse que tivemos em conduzir até muito tarde, na centtiria de Quatrocentos, a nossa observagao, ainda que isso parega fugir da moldura tradicional do ensino da historia medieval europeia na maioria das universidades portuguesas. Analisando agora o problema da geografia do curso, fizemos sobre- tudo uma opgao de fundo: 0 nosso programa esta muito virado para 0 Mediterraneo, ou pelo menos para uma geografia que, no sentido leste- -oeste, se pode situar entre a Siria-Palestina, por um lado, e a finisterra ibérica, por outro, e, no sentido norte-sul, entre a Flandres (com escassas incursées pelo Mar do Norte) e 0 Egipto. Por outras palavras, privilegiamos a historia de Franca (mas nao apenas a da Franca carolingia e inicios da época capetingia) e de Italia (mas nao sé a das cidades italianas da Baixa Idade Média), sem descurar pequenos apontamentos paralelos sobre a evolugao da situago na Peninsula Ibérica®e uma reflexao que nos parece ? Mais do que isso seria arriscar invadir o territério da disciplina de “Hist6ria Medieval de Portugal II”. Ligdes de Historia da Idade Média (Sécs. XI-XV) 13 importante sobre a aventura das cruzadas no Médio Oriente: numa Comunidade Europeia que possivelmente acabaré por acolher a Turquia, nao nos parece poder ignorar-se completamente o que se passou a leste dos Balcis ao longo da Baixa Idade Média. Claro que poderd dizer-se que esta proposta deixa de lado os reinos nérdicos, a Inglaterra (Guerra dos Cem Anos a parte) ou a Alemanha (salvo no que tem que ver com as cidades hanseaticas ou com a hist6ria do Sacro Império Romano-Germanico) e que isso é um factor de empobre- cimento do programa. E verdade que sim. No entanto, nfio pudemos deixar de fazer opgGes. Repare-se que estamos a trabalhar numa cadeira semestral e com um calendério que nao excede, no enquadramento actual, as 12 semanas titeis de aulas. Portanto, preferimos eleger um niicleo geogrfico coerente e natural (para uma universidade de um pais com uma voca¢ao tao mediterranica quanto Portugal) a dispersarmo-nos por uma Europa sem fim, correndo o risco de, para pretender estar em todo o lado, acabarmos por nunca estar verdadeiramente em lado nenhum. Abracdmos, pois, esta ideia de retorno ao mare nostrum, esse grande lago romano onde as pessoas € os bens circulavam entre o Norte de Africa e 0 continente europeu, com isso garantindo uma coesao interessante a nossa proposta e, simultaneamente, estabelecendo uma linha de continuidade, nao sé com a disciplina precedente (que tende a abrir com a queda do Império Romano do Ocidente), mas também com a cadeira subsequente (“‘Histéria da Epoca Moderna I”), onde a Itdlia voltard a ser o centro das atengdes, por motivos tao Sbvios que aqui nos dispensamos de os enfatizar. Para além da cronologiae da geografia, uma terceira opgio de fundo inspirou a nossa proposta. Referimo-nos & natureza dos grandes temas do programa. Histéria Econémica? Histéria Social? Hist6ria Politica? Histéria Institucional? Histéria Cultural? Histéria das Mentalidades? Cremos que © mais importante foi partir para a construgdo do programa sem precon- ceitos relativamente a nenhuma daquelas valéncias, sem opgGes demasiado prematuras e que pudessem impedir que se alcancasse o essencial: escolher os temas mais decisivos da histéria medieval europeia dos séculos XI a XV, independentemente das nossas preferéncias pessoais ou cientificas. Desta forma, todas as valéncias esto presentes na nossa proposta, excepedi feita ’ hist6ria da cultura; nfo porque nos desaprouvesse ensind-la (pelo contrério, fizemo-lo muitas vezes, tanto em Portugal como em Franga, e€ para nds uma das matérias mais apetecfveis), mas porque existe desde hd anos na Faculdade de Letras de Coimbra uma disciplina — alias muito frequentada pelos alunos de Histéria—de “Cultura Medieval”, a disposigao, 14 Jodo Gouveia Monteiro como Opgao Livre, justamente no 4.° semestre do curso (i.e., no mesmo semestre em que é leccionada a “Hist6ria da Idade Média II”). Apenas por esse motivo nao consideramos como imprescindivel a inscrigdo de temas de cultura medieval no nosso programa, abrindo também com isso algum espaco para matérias que ndo so versadas em mais disciplina nenhuma. Assim, ao nivel dos contetidos, comecaremos por explicitar que dividimos 0 nosso curso em dois grandes ciclos, com identidades muito proprias. O primeiro inicia-se no derradeiro quartel do séc. XI e prolonga- ~se até finais do séc. XIII - inicios do séc. XIV. Corresponde aquilo a que habitualmente se designa por Baixa Idade Média e é um tempo de despertar econémico, de reconstrugdo urbana, de teocracia pontifical mas também de afirmagao de monarcas soberanos (e j4 nao, meramente, suseranos). O segundo ciclo engloba os séculos XIV e XV, desde a deflagragaio dos primeiros sinais verdadeiramente alarmantes da famigerada Crise do Século XIV até ao cair do pano sobre a Idade Média e ao consequente nascimento da Europa Moderna, com o absolutismo mondrquico em Franga, a Italia em vésperas de ser transformada num campo de batalha onde as grandes poténcias ocidentais medirao forgas durante varias décadas. Dentro de cada um destes segmentos, entendemos que seria aconselhavel arrancar com um quadro da situag’o econémica, passando depois & histéria politica, fio condutor imprescindivel de uma narrativa que, pela sua natureza sintética, de outro modo correria 0 risco de perder o norte. No caso do primeiro semestre, consideramos essencial acrescentar ainda, logo apés o desenho do panorama econémico, um médulo sobre a histéria da Igreja e da sua doutrina sobre o poder, sem o qual a propria histéria politica europeia dos séculos XII e XIII € ininteligivel. Da mesma forma, a fechar este primeiro ciclo introduzimos o tema das cruzadas, viagem maravilhosa e pluridisciplinar até ao Mediterraneo Oriental e espécie de sintese de todas as grandes novidades que o Ocidente europeu conhece a partir de meados-finais do séc. XI: pujanga econémica, mobilidade social, capacidade de apelo e de lideranga da Igreja, etc. Temos, assim, um primeiro ciclo (finais do séc. XI — finais do séc. XII) com os seguintes grandes temas: * as grandes mutagées ao nivel da vida econémica e social (1 aula); * areforma da Igrejae as novas cambiantes da vida religiosa (1 aula); + realezae vida politica na Franga capetingia (de Luis VI a ascensio da dinastia dos Valdes): 2 aulas; * turbuléncia politica numa Itdlia partilhada a varias maos; avangos da Reconquista na Peninsula Ibérica (1 aula); * as oito grandes cruzadas na Siria-Palestina (1096 a 1270) —2 aulas; Ligées de Historia da Idade Média (Sécs. XI-XV) 15 Depois, num segundo ciclo (sécs. XIV e XV), alinhdmos quatro grandes temas: * a Crise do Século XIV (1 aula); * a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) — 2 aulas; * a reconstruc politica e econémica da Franga, com Carlos VIL, Luts XIe Carlos VIII (1 aula); * oequilibrio precdrio entre os grandes Estados italianos e a conquista aragonesa da Itdlia meridional; 0 termo da Reconquista na paene insula [a quase itha) ibérica (1 aula). Ao todo, 12 aulas no conjunto dos dois ciclos [7+5]. Olhando para s temas acima identificados, percebe-se que — a partir do momento em que se elegeu como geografia preferencial a Franca, a Itdliae, subsidi riamente, a Peninsula Ibérica e a Siria-Palestina — nenhum deles precisa de justificagao suplementar. Como leccionar a histéria medieval europeia dos séculos XI a XV sem referir a renovagd0 econdémica dos inicios da Baixa Idade Média ou a Crise do Século XIV? Como fazer a histéria politica deste periodo sem falar da reforma gregoriana e da “teocracia pontifical”? Como omitir as cruzadas ou a Guerra dos Cem Anos? O resultado sugere também algum privilégio da histéria econémica e, sobretudo, da histéria politica (0 que, alids, j4 assumimos como intencional), mas convém desde ja advertir que, por detras de temas como a renovagio econémica dos sécs. XI-XIII ou a Crise do Século XIV, ha muita historia social e até muita histéria religiosa (nomeadamente do Cristianismo), da mesma maneira que médulos como as cruzadas ou a Guerra dos Cem Anos se fazem também de muita histéria militar, para apenas citar alguns exemplos. O que se segue constitui, deliberadamente, uma sintese didactica, um manual, que visa garantir uma primeira (mas s6lida) orientagao dos alunos sobre os temas seleccionados para o programa do curso. Conside- ramos desejavel que os estudantes disponham deste manual logo no inicio do semestre, de modo a facilitar o seu acompanhamento das aulas te6ricas. Nao receamos que eles 0 convertam numa ‘sebenta’, no sentido negativo do termo: num curso funcionando (como sera 0 caso) em avaliagao continua, no se corre esse risco; e, de resto, a pior das sebentas é aquela que o docente nao valida nem ninguém controla, i.e., so as coleccdes de ‘apontamentos das aulas’ que cada aluno compée e onde se podem ler, de forma recorrente, as mais grossas asneiras, depois candidamente repetidas nas provas de avaliagao. Se hd um documento de referéncia (0 16 Jodo Gouveia Monteiro que para nés tem mais vantagens do que desvantagens), entdo que ele seja da superviso ou mesmo da autoria do docente. Ou seja, um bom manual: claro, actualizado, de boa leitura e fecundo na sugestio de investigagées complementares. Também por isso, procuraémos que, em cada aula tedrica, © fio da narrativa seguisse um, dois ou trés autores de referéncia (sem prejuizo da citago, aqui e além, da opiniao de outros), cujas obras estejam disponiveis para consulta dos alunos nas bibliotecas da FLUC (e em particular no Instituto de Historia e Teoria das Ideias, a que nos orgulhamos de pertencer). Elaborar um bom manual de ensino nao € um exercicio, nem facil nem de importancia menor. Pelo contrario, constitui uma tarefa complexa, quer cientifica quer pedagogicamente, e decisiva para a formagao da grande maioria dos alunos. E, por isso mesmo, um dos mais nobres trabalhos que um docente que gosta realmente de ensinar pode produzir, motivo pelo qual 0 encarémos como um desafio aliciante e que esperamos ter conseguido superar. Joao Gouveia Monteiro (Cernache, Natal de 2005) 1. AS MUTAGOES DOS FINAIS DO SEC. XI E DOS SECS. XII E XIII 1.1. A vida econémica e social 1.1.1. A renovagdo das praticas agricolas e o crescimento populacional: 0s grandes arroteamentos e a modificagao do regime senhorial A partir dos finais do séc. XI (ou até mesmo antes, como hé muito pretendem diversos autores de referéncia, como Georges Duby"), constata- -se no Ocidente europeu um progresso técnico e econémico importante. ‘A tenovacao das praticas agricolas foi um dos principais agentes deste progresso. Em concreto, podemos enunciar diversas inovagées introduzi- das nesta época, em geral a partir da regiao compreendida entre os rios Loire e Reno (mas penetrando depois, sobretudo, no sul da Inglaterra e na Franga e Alemanha setentrionais): utilizagao de novas forgas motrizes (energia hidrdulica ~ moinhos de 4gua; energia e6lica — os moinhos de vento surgem no séc. XII); melhor utilizacao da tracgao animal (gracas p.ex. A introdugo do sistema de atrelagem em fila, da coalheira de atrelagem, da ferradura de cravo, da testeira para cavalo e do peitoral rigido nas espaduas); utilizagao do ferro (em vez da madeira) no fabrico das alfaias agricolas (pds, enxadas, grades, foices e gadanhas, as charruas levando agora vantagem sobre os arados, pois enfrentavam com maior sucesso 0s terrenos pesados, gracas a introdugdo das rodas e da relha assimétrica, rasgando 0 solo e revirando-o); consequente multiplicagao das forjas nas aldeias; difusao das técnicas de irrigacao do solo; dominio de melhores solugdes de reconstituigao da fertilidade da terra, o processo das lavras miiltiplas compensando a tradicional falta de estrume e divulgando-se 0 sistema de afolhamento/rotagao trienal das culturas (cereal de Inverno = trigo, centeio; cereal de Primavera — cevada, aveia; terra em pousio); > J4 na sua colaboragao na célebre obra dirigida por Edouard Perroy, Le Moyen Age, Paris, PU.F., Quadriges, 1993 (1." ed., 1956), Duby chamava a atengio para os primeiros sinais de algum progresso técnico-econdmico desde finais do séc. X (apés 0 fim das diversas vagas de invasdes). No entanto, é efectivamente a partir da segunda metade do século seguinte que esse crescimento se consolida de forma decisiva, merecendo a atengo particular da maioria dos historiadores. 18 Joao Gouveia Monteiro substituigdo da aveia pela cevada (na alimentago dos animais); utilizagao de cavalos, paralelamente aos bois, na execugiio dos trabalhos agricolas; e alguma especializacao geogrdfica da produgao. Estas inovagGes, que foram acompanhadas por progressos no dominio da criagdo dos animais, provocaram uma melhoria do nivel de vida das populacdes e o aumento dos rendimentos agricolas, mas devem ser relacio- nadas com um crescimento demogrdfico considerdvel, pelo seu lado resultante de uma alteracao favordvel das condigées climatéricas (tempo mais suave/quente e seco): a populagao ocidental duplicou (ou mesmo triplicou) entre 1100 e 1300; por exemplo, na Inglaterra, os 1.100.000 habitantes de 1086 aumentaram para 3.700.000 em 1348 (i.e., no espago de 262 anos)*. Assim, este surto demografico — interrompendo o velho ciclo medieval que fazia corresponder, a uma populago reduzida, uma produgo escassa € um baixo consumo — estimulou os progressos agricolas que enunciémos antes (de outro modo a fome seria inevitavel, como alids chegou a acontecer em certos anos), provocando simultaneamente um aumento da superficie de terra cultivada, gracas a uma politica de arroteamento de terras até af incultas, de secagem de pantanos (os célebres “polder” do Norte) e de conquista de novos espagos (processo muito evidente, por exemplo, na Peninsula Ibérica ou para lé do rio Elba) e até de novas terras ao mar’. + Os némeros so de Georges Duby, precisamente na obra citada na nota anterior (II* Parte, Cap. 1, ponto II). Num cronograma mais aberto, fala-se também num aumento global da populagdo europeia, entre 950 ¢ 1300, de 22 para 55 milhdes de habitantes (ou seja, um crescimento de 150%). 5 Os arroteamentos conheceram o seu auge entre 1100 e 1250, representando um aumento da rea cultivada de cerca de 10% no Mediterraneo e de 30 a 40% na Escandindvia e na Europa Central germanica. Novos solos agricolas e novas aldeias surgiram no lugar da velha floresta, disso existindo exemplos espectaculares na Germania € no Bassin parisiense, ¢ ainda nas regides de habitat disperso do sudoeste europeu. Como escreve, de forma impressiva, Filipe Themudo Barata, “a ‘explosdo demogréfica’ deveria ser de tal modo que, em zonas onde foi possivel medi-la, como em Winchester, sabe-se que, pelos anos imediatos a 1300, a populagao ultrapassaria, em 20%, aexistente no século XVIII. (...) Outros némeros, menos seguros, do-nos também a medida dessa pressio: em 1245, nessa mesma regio, a esperanca de vida de um homem de 20 anos era de 24. Para esse ano, a taxa de mortalidade atingiria 70 por 1000 (a qual aumentaria apés 1290) ¢ é uma das maiores até hoje conhecida” (Relatério da disciplina de Histéria Econémica, Social e Politica Medieval I/II, Provas de Agregacao na Universidade de Evora, 2003, p. 104). Sobre o aumento de rendibilidade da produgdo agricola nesta época, 0 mesmo autor escreve que “todo o esforgo traduzia-se em rendimentos médios que aumentaram quase para o dobro e rendimentos, nas melhores terras, de 5/6 por semente, e 8/9 nas terras excepcionais” (ibidem, p. 114). Ligdes de Historia da Idade Média (Sécs. XI-XV) 19 E sabido que os monges cistercienses (com as suas villeneuves e as suas técnicas apuradas de exploragao directa, racional e especializada da terra: cf. infra, texto de apoio n.° 1) desempenharam um papel muito importante neste processo (facto a que nao é estranha a circunstancia de os trabalha- dores cistercienses serem homens nao sujeitos as servidGes tradicionais, nao estando submetidos nem a rendas nem a corveias). Em conformidade, deu-se também a introdugio (ou a ampliagio) de novos cultivos, como a vinha, a oliveira, as leguminosas, ou as plantas téxteis e tintoriais. Neste contexto, compreende-se bem a progressiva modificagao do regime senhorial cldssico, nomeadamente a tendéncia para o desapare- cimento dos mansos camponeses (com a proliferagao de movimentos de libertagao colectivos: affranchissements), assim como para a divisio da reserva em tenéncias (censitdrias ou “A champart”), para a progressiva diminuigao das corveias — encargo detestavel e que comega a ser substi- tuido por taxas (censos) pagas em géneros e em dinheiro (mistas) ou s6 em dinheiro—e para o crescimento da propriedade alodial. Examinemos, ento, 0 que se passou ao nivel do comércio, uma actividade econémica extremamente limitada nos senhorios dos séculos anteriores. 1.1.2. renovagdo do comércio: circulago monetaria e animagao comercial; 0 grande comércio: os produtos, a exportacdo, as feiras; as novas técnicas comerciais e financeiras Um dos primeiros factores que deve ser sublinhado é0 aumento da circulagao monetaria (incluindo boa moeda de prata e pegas de ouro) ea alta dos pregos (em Franga, os cereais do séc. XIII custam vinte vezes mais do que em 1100°). Convém também destacar a existéncia de uma maior mobilidade (neste particular merecendo destaque a voga das viagens e das peregrinacoes a Roma, a Santiago de Compostela ou a Jerusalém), © que estimulou o aparecimento de pequenas estalagens e de pequenos mercados, assim como o desenvolvimento da rede vidria. Saliente-se também 0 aparecimento de um novo grupo econdmico: Os mercadores (maiorita- tiamente saidos do universo dos /aboratores): trata-se de negociantes errantes [ambulantes] e que corriam ainda grandes riscos; por isso © Cf. Georges Duby, ob. cit. (II* Parte, Cap. 1, ponto II). Refira-se que a evolucao da moeda reflecte a supremacia italiana; o dendrio (“denier”) de prata € a principal moeda emitida no Ocidente; 0 ouro reaparece com 0 aumento do volume de trocas: “genovés” e “florim” em 1252, “ducado” veneziano em 1284. 20 Jodo Gouveia Monteiro tenderam a formagdo de “hansas” ou “guildas” —associagées de merca- dores, destinadas a sua protecgio (fisica e judicial) e que serviam também para melhorar a gestéo dos seus negécios, ao mesmo tempo que assegura- vam uma certa normalizacao dos produtos (designadamente ao nivel da qualidade, da dimensao e do peso das mercadorias), com isso facilitando a introdugiio de inovagées de tipo mecanico. Um outro factor que deve ser destacado é o desenvolvimento do comér- Gio de exportagao (até porque é a partir da afirmacao deste que poderemos verdadeiramente falar de uma classe de mercadores “profissionais”), sobretudo na Flandres e em Veneza (0s dois pélos comerciais mais activos nesta época). Um tal comércio incidiu inicialmente sobre produtos de luxo [especiarias (canela, (noz) moscada), sedas, produtos do Oriente (peles, tecidos)], para mais tarde se acrescentar madeira para construgao, metais, armas e, sobretudo, panos, mas também (0 que em Franga é muito evidente) vinhos, sal (da Alta Normandia, via Rouen, ou do Poitou- -Charentes, via La Rochelle, em direcgo a Inglaterra, a Alemanha e aos Paises Baixos), cereais e azeite. Ou seja, produtos de uma agricultura que j4 nao produzia apenas para auto-consumo, sendo capaz de criar excedentes que alimentavam a actividade de exportagao. Deve insistir-se na importéncia, neste processo, das cidades da Flandres (ex: Douai, Ypres, Lille, Gand, ao nivel do comércio de tecidos, e Bruges, como porto de referéncia: cf. infra, texto de apoio n.° 2) e também de algumas cidades italianas, como Veneza (Marco Polo chega a China em 1271, e os Venezianos atingem também a {ndia), Génova, Amalfi ¢ Pisa. Destaque-se também a formagao da Hansa Teuténica, com sede em Liibeck e reunindo inicialmente os mercadores do Baltico (Leténia, Lituania / Suécia) e mais tarde as cidades do circuito desse mar (Gdansk, Kaliningrad) e também do Mar do Norte (Bréme, Hamburgo), uma experiéncia associativista que envolveria produtos de diversa natureza (cereais, madeira, peles, metais, ls e, especialmente, peixe) e que atingiria seu apogeu no séc. XIV. Quanto as grandes artérias comerciais, devemos também destacar, para os sécs. XI a XIII, a rota que ligava a Flandres a Veneza, 0 vale do Sena as feiras da Champagne (entre a Hansa Teut6nica ea Itdlia)’. Uma palavra também para a modernizagao da rede vidria em 7 No seu relatério da disciplina de Idade Média Europeia, Ana Maria Rodrigues destaca “o circuito de feiras de Champagne/Alpes”, que unia as principais correntes de troca (vias do Mediterraneo, vias do Mar do Norte e do Mar Baitico) e onde corriam produtos como “especiarias, tecidos preciosos, alimen, panos de linho e 14, cereai peixes secos, madeira, peles, armas, etc.” (Concurso para Professor Associado da Univer- sidade do Minho, 1998, p. 23). Ligdes de Histéria da Idade Média (Sécs. XI-XV) 21 certas regides (ex: abertura do desfiladeiro de S. Gotardo, na Lombardia) e ainda para as inovagées registadas nos transportes maritimos, com o leme de cadaste, a bissola (cf. infra, texto de apoio n.° 5] ¢ os portulanos facilitando a navegagao das caracteristicas galés e naus mediterrdnicas, assim como das célebres “kogge” da Europa do Norte (especialmente faceis de manobrar). Ecom isto chegou o momento adequado para falarmos das feiras é dos mercados. As feiras eram reuniGes — importantes e organizadas com periodicidade regular, embora espacada — de mercadores provenientes de regides afastadas. O que diferencia a feira do mercado é, antes de mais, 0 facto de o mercador que vem 2 feira ser colocado sob um regime juridico particular. Mas é também a circunstancia de a feira provocar o encontro de ‘estrangeiros’ entre si, os quais actuam na base de um direito comum, apesar de terem regimes juridicos diferentes, enquanto no mercado se trata de um encontro entre concidadaos obedecendo ao mesmo direito corporativo. Por fim, as operagées da feira incidem sobre mercadorias de valor, ao passo que nos mercados se vendem produtos correntes. As feiras (onde a qualidade dos produtos e a quantidade dos merca- dores era, portanto, maior do que nos mercados, que também se realizam com intervalos muito mais curtos) aparecem nos comegos do séc. XI conhecerao o seu pleno florescimento em inicios do séc. XIII. A sua origem advém do cardcter itinerante dos primeiros mercadores. As hansas € as guildas vao tender a tornar-se permanentes e a especializar-se no comércio de um determinado produto ou de uma certa regio (ex: os panos, na Flandres). As associagdes de mercadores encarregar-se-do justamente da organizagio de encontros que proporcionem boas oportunidades de negécio. No entanto, deve acrescentar-se que tais encontros no conhecem © seu verdadeiro desenvolvimento a nao ser a partir do momento em que 0 rei ou o senhor local os reconhece e lhes fixa um estatuto. Dizia-se, por isso, em Franga: “‘c’est le Prince qui fait la foire”. Daf também as diferengas entre as diversas feiras, consoante as regides (cf. infra, texto de apoio n.° 3}. * No seu belo trabalho sobre a feira de Coimbra no contexto das feiras medievais portuguesas, Maria Helena da Cruz Coelho chama a atengdo para a importancia dos rendimentos que essas feiras podiam garantir 4 Coroa, gragas aos direitos que nelas podiam ser cobrados (do que a monarquia podia no entanto prescindir, para assegurar 0 desenvolvimento de tais certames) e também para o estimulo que constitufam a uma politica de colonizagio e ordenamento do territ6rio (Ocio e Negécio, Coimbra, INATEL, 1998, pp. 8-9). 22 Jodo Gouveia Monteiro A repartigao geogrdfica das feiras resulta ainda da sua posigdo relativa- mente aos grandes trajectos comerciais: feiras do Mediterraneo, de um lado, feiras da Champagne e Brie (regido central relativamente a Flandres, 4 Alemanha, a Franga e a Itélia), do outro. As feiras da Champagne foram inicialmente alimentadas pela industria de panos da Flandres (os téxteis constituindo o sector mais em destaque da renovagao ‘industrial’ coeva); surgem cerca de 1130 e sucedem-se de cidade em cidade, ao longo de todo o ano. Como escrevem Michel Balard, Jean-Philippe Genet e Michel Rouche, «entre 1150 e os finais do século XIII, toda a Europa mercantil se reencontra na Champagne: os Flamengos af vendem os seus panos, 0 Italianos as sedas, as especiarias € os produtos de luxo, as gentes do Midi [Sul] de Franga os couros, os Alemaes as peles e os couros». Os condes da Champagne favoreceram enormemente estas feiras, construindo inclu- sive alojamentos para os mercadores estrangeiros; neles se agrupavam, sob a direcgao de um cénsul, os mercadores com a mesma origem: Italianos, Languedocianos, Provengais, Cataldes, Flamengos e Franceses do Norte, que assim formavam comunidades protegidas pela autoridade condal. As seis feiras da Champagne achavam-se estabelecidas em quatro cidades (Provins, Troyes, Lagny e Bar-sur-Aube), compondo um ciclo que cobria quase todo o ano’. Do ponto de vista administrativo, a feira tinha uma personalidade moral: ela podia ter (enquanto pessoa juridica) direitos, propriedades e até fazer contratos. A feira tinha uma administracao particular, uma juris- digo independente da cidade. O'seu Tribunal era composto por jurados designados pelas grandes associagdes de mercadores. Tais jurados podiam estabelecer regulamentos administrativos e medidas de excepgao; dispunham de um selo e de agentes de policiamento (os custédios). Por outro lado, a feira era, como vimos, proprietiria de iméveis (para alojamento de um grande ntimero de comerciantes, para entreposto de mercadorias, etc.). Por ocasido da feira, aqueles que nela participavam gozavam de privilégios criminais, judiciais e financeiros: os que iam a caminho da feira, ou dela regressavam, assim como as respectivas mercadorias, eram colocados sob a salvaguarda do senhor [a nossa “paz da feira”]; durante as Viagens e a realizagao da feira, as demandas judiciarias, as faléncias e as detengdes por dividas ficavam suspensas; 0 juro era permitido e o crédito tornou-se objecto de uma organizacao particular. ° Cf. M. Balard, J-Ph. Genet e M. Rouche, Le Moyen Age en Occident, Paris, Hachette, 1999, p. 145. Trata-se da versdo revista e actualizada da edigAo original (1990), motivo pelo qual a preferimos & traduc3o portuguesa de 1994 (A Idade Média no Ocidente, Lisboa, D. Quixote). Ligdes de Histéria da Idade Média (Sécs. XI-XV) 23 As feiras perderao importancia a partir do momento em que os mercadores deixarem de se deslocar, fixando-se em certas grandes cidades (ex: Paris, Bruges, Avinhao). E também terdo sido prejudicadas pela politica fiscal de monarcas como Filipe-o-Belo [cf. 1.3.1.], pela industria- lizagio da Itdlia e pela propria desordem registada ao nivel dos metais preciosos. Mas o factor decisivo na decadéncia das feiras (especialmente na Champagne) foi a guerra, primeiro a guerra entre a Franga e a Flandres (finais do séc. XIII — inicios do séc. XIV), depois a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), a qual interrompeu o importantissimo comércio com a Inglaterra. Com isto, as feiras deslocaram-se para a margem direita do rio Reno ou para o norte da Itélia, trajectos comerciais que evitavam a Franga e que se podiam percorrer por via maritima/fluvial [cf. infra, texto de apoio n.° 4]. Esta decadéncia anuncia-se ainda nos finais do séc. XIII e sera decisiva no séc. XIV. Lembremos agora as novas técnicas comerciais e financeiras, surgidas com a implementagao do quadro econémico que temos estado a descrever. Na segunda metade do séc. XI, vemos jé mercadores a contrair empréstimos. No séc, XII, as operagdes de crédito multiplicam-se e tornam-se mais complexas. Primeiro, na Itdlia, com a constitui¢aéo de “sociedades em comenda” (um mercador em terra, outro no mar), onde 0 comanditdrio fornece o dinheiro ao comanditado, o qual, gragas a essa verba, pratica operagées comerciais cujos lucros so depois repartidos entre os dois s6cios. Assistimos também ao desenvolvimento do sistema de seguros maritimos (em especial em Génova)é generalizagao das letras dé cambio e de crédito (sobretudo na Itdlia, no sul de Franga e em Barcelona)'®. Tudo isto (e também as compras a prazo ou a prestacGes) existe j4 nos finais do séc. XII. E no séc. XIII ha Companhias que contam com agéncias em toda a Europa (ex: os Bardi, em Florenga)! °° Filipe Themudo Barata (ob. cit. p. 142) define a letra de cmbio como “um contrato pelo qual uma parte recebia de outra um adiantamento em moeda local, prometendo restitui-Io noutra moeda € noutro local, pelo que, na realidade, a segunda parte fazia a primeira um empréstimo. Claro que aquela que recebia a moeda local recebia também uma taxa, o juro, pela troca e transferéncia. Além disso, podia utilizar com vantagem 0 adiantamento recebido, dado que a retribuigdo era prorrogada até & data da letra ou até & parte chegar ao destino, permitindo, no intervalo, a obtengao de lucro através de empréstimo. Também era possfvel proceder & operagio contréria, obtendo moeda local através de moeda de fora, era o chamado cambio seco” (p. 142). Cf. também infra, texto de apoio n.°6. 24 Jodo Gouveia Monteiro No entanto, este crédito comercial nao ocupa sendo uma fatia dos capitais em circulagao. De facto, uma grande parte destes capitais est4 afecta ao crédito financeiro; é o chamado ‘comércio do dinheiro’ : surgem: os primeiros grandes banqueiros (especialmente lombardos), sejam eles cambistas ou grandes mercadores, praticam-se os empréstimos a juro (com taxas oscilando entre os 10 e os 16 por cento), fundam-se verdadeiros bancos em Itdlia (com depédsitos, abatimentos, transferéncia de moeda estrangeira, etc.). Neste processo, os Judeus véem comprometido o seu papel de intermedidrios comerciais entre 0 Ocidente e o Oriente, sendo reduzidos a pratica de um empréstimo a juro (sob penhora), de cardcter local e com uma taxa muito elevada (43%)''. Enquanto isso, o crédito imobilidrio assume a forma de rendas fundiarias: os mercadores compravam_ terrenos nos arrabaldes das cidades, que depois concediam contra o paga- mento de um censo perpétuo aqueles que ali queriam construir; mais tarde, as casas seriam, elas prdprias, submetidas a rendas. 1.1.3. A reorganizagdo da produgdo artesanal: os oficios, as corpora- ¢Ges e a regulamentagdo econdmica. A reactivagdo da vida urbana e o movimento comunal'? Aqui chegados, convém considerar também as novidades registadas ao nivel da produgdo artesanal (j4 que ndo podemos ainda falar de indiistria, na verdadeira acepgao do termo). Comecemos pela origem dos mesteres, onde hd antecedentes que devemos reter: primeiro no séc. XI, onde constatamos a existéncia, nas terras de certas abadias, de associagdes artesanais organizadas econémica e juridicamente; depois com as associagdes comerciais do tipo das guildas e das hansas (de que falamos atrds), que sao anteriores a criagdo dos mesteres e que puderam servir de exemplo, estimulando o espirito associativista. ‘A evolucao do atelié artesanal para 0 mester ou oficio organizado péde verificar-se da seguinte forma: i) numa primeira etapa, em finais do séc. XI, deu-se a formagao de associagGes artesanais livres reunindo " Os valores de taxas citados nesta pagina foram avangados por Jacques Ellul, na sua obra cléssica (e ainda muito itil aos alunos) Histoire des Institutions, vol. 3, Paris, PLU.F., 1982 (8." ed.), pp. 202-203. ™ Neste ponto, e sem prejuizo da citagdo de outros autores, seguimos sobretudo a sistematizago de Jacques Ellull, 0b. cit., pp. 200-230, devido a sua extrema clareza e didactismo. Ligdes de Historia da Idade Média (Sées. XI-XV) 25 mesteirais (antigos servos domésticos, ou imigrantes) que se fixavam numa cidade; ii) seguidamente, em meados do séc. XII, os artesdos foram muitas vezes agrupados pela autoridade senhorial ou municipal, de forma & sua actividade poder ser mais facilmente controlada; iii) no entanto, essas associagées regulamentadas sob a autoridade do senhor ou do municipio vao confundir-se, em finais do séc. XII, com as associagdes livres: chegar-se-4 entao a uma associagao artesanal com dupla finalidade: por um lado, defender os interesses dos artesiios (monopdlio do exercicio. do mester) e, por outro, defender os interesses dos consumidores (boa qualidade da mercadoria). Refiramos agora, a talho de foice, a classica questo da organizacao das “corporagdes”"*: este termo 86 aparece mais tarde (na época, falava-se ainda de “comunidade de mesteres”). Nao se trata exactamente de um organismo especializado por profissdo: uma “comunidade” pode englobar diversas profiss6es mais ou menos ligadas com clareza umas As outras; por vezes, 0 laco entre elas € puramente fortuito, ou hist6rico, e nao tanto econémico. Uma “comunidade” constitui-se por via de uma deliberagao tomada em assembleia-geral das gentes do mester. Quando a “‘comunidade” se constitui, deve fazer-se parte dela para se poder exercer a profissio em causa. Na “comunidade”, o trabalho é repartido entre os ateliés ou ‘maitrises (0 local de producio e de venda, dirigido pelo Mestre, proprietdrio da utensilagem e da matéria prima). Para ascender a Mestre, era geralmente necessério preencher trés requisitos: realizar uma “obra-prima”; proceder ao pagamento, junto do tesouro régio, do respectivo direito; e oferecer um banquete aos membros da corporagao [cf. infra, texto de apoio n.° 8]. Sob as ordens do Mestre (0 tinico que pertencia a ‘comunidade” propriamente ' Consideramos aqui, sobretudo, o artesanato classico (fabrico de artigos de uso pessoal ¢ quotidiano por alfaiates, correciros, ferreiros, sapateiros, etc.), mas temos presente que outros ~ com condigdes de vida profissionais frequentemente distintas ~ se ocupavam do abastecimento das povoagdes em pio, came, peixe, fruta e outros géneros alimentares, enquanto outros ainda se inseriam em verdadeiras cadeias de produgio, por exemplo ao nivel do sector téxtil, da construcdo naval, da exploragao mineira, etc. No caso dos téxteis (1d), temos exemplos em Ypres, Gand e Bruges da pratica da divisio do trabalho a uma escala quase industrial: fiago-tecelagem-acabamento (cru ou tinto). “A questio da origem destas corporagdes, como reconhece Ana Maria Rodrigues, ““€ controversa: autores ha que poem em relevo a associagao espontinea dos artesdos em confrarias com intuitos religiosos e assistenciais, que podem mais tarde ter evoluido para instituigdes reguladoras das condigdes de trabalho e da concorréncia, enquanto outros ainda atribuem essa origem exclusivamente a acgdo das autoridades urbanas para enquadrar e controlar os trabalhadores” (0b. cit., 1998, p. 27). 26 Jodo Gouveia Monteiro dita) trabalhavam alguns “aprendizes” ou “companheiros” (que auferiam um salério fraco, mas que eram muitas vezes alojados e alimentados em ‘casa do Mestre) e também alguns valets [mogos, criados], assalariados a0 ano, a estagdo ou ao dia, em ntimero que competia a Jurande estabe- lecer. A “comunidade” era dirigida pela Jurande, formada por certos Mestres (escolhidos pelos seus confrades por um ano) que dispunham de um poder disciplinar sobre todos os membros da corporacio: estatutos, aprendizagem, acesso a condi¢ao de Mestre, produgao e prego, etc. Paralelamente, 0 membros da\Gorporacdo eram agrupados numa estrutura chamada “confraria”, uma associagao religiosa mas que assumia muitas vezes um cardcter social ou mesmo, em certos casos, politico. Embora ligada a “comunidade”, a “confraria” permanecia separada dela. Os membros da corporagdio eram agrupados em confrarias com vista & execugao dos deveres religiosos e sociais impostos pela prépria solidarie- dade profissional (festas religiosas, missas, procissées, quotizacoes, etc.). Assim, a confraria exprimia, de certo modo, a necessidade de unido e de entreajuda num determinado meio socioprofissional; com isso, ela introduzia no seio do grupo aquele elemento de associagao humana que nao existia ao nivel da execugao do officio. Voltaremos a este assunto um pouco mais a frente [cf. 1.2.2.] Em matéria de regulamentagao econémica, convém explicitar que, em cada corporacao, havia estatutos que regulamentavam, com extrema preciso, o trabalho e a producdo. Esses estatutos tem uma origem costu- meira e foram passados a escrito nos meados do séc. XIII, com 0 acordo dos senhores. Eram obrigat6rios e 0 seu objectivo consistia em conseguir estabelecer uma boa relacdo entre a produgdo e as necessidades de consumo. Devemos distinguir entre: os “estatutos do trabalho”, que fixavam as horas de abertura das tendas, o numero de horas de trabalho (em geral 10h/dia, sendo proibido 0 trabalho nocturno), os salarios e os dias feriados (muito numerosos nesta época); e os “estatutos da produgio”, que definiam a qualidade das matérias-primas a utilizar e fixavam a natureza eo nimero dos utensilios que deviam existir em cada atelié, assim como as mercadorias que af eram produzidas (frise-se que um patrio nao podia inovar, que era interdito fazer publicidade — salvo a que fosse idéntica para todos ~ e que o trabalho devia ser executado a vista de todos). Que balango poderemos fazer das “corporagdes”? Como aspectos vantajosos, podemos referir a boa qualidade das mercadorias} a inexis- téncia de altas brutais de precos ou de baixas dramiticas de saldrios e as reduzidas tensdes sociais no interior do processo produtivo. Enquanto inconvenientes, devemos citar a estagnagao econémica a que 0 processo Ligdes de Histéria da Idade Média (Sécs. XI-XV) 27 (ea falta de concorréncia que ele pressupunha) conduzia, com o regime de monopélio fazendo com que os pregos se mantivessem a um nivel relativamente elevado e que a especializacao do trabalho fosse travada a todo o custo (de facto, era praticamente necessario criar um outro métier para fabricar um outro tipo de produto). De acordo com a velha ldgica medieval, o peso da economia na vida social devia ser reduzido ao minimo, ‘ exercicio de uma profissio nao tendo como objectivo o enriquecimento pessoal, mas o cumprimento de uma vocacio atribuida por Deus. Constituindo o trabalho uma responsabilidade crista, e nao um “ganha-pao’, © preco devia ser fixado num valor “justo” (i.e., suficiente para recompensar o investimento e assegurar a sobrevivéncia dos produtores, mas quase sem margem de lucro). Entretanto, como facilmente se deduz de tudo aquilo que jé foi dito, 0 final do séc. XT e, sobretudo, os sécs. XII e XIII sao também um tempo de renascimento das cidades. Os factores que mais contribuiram para 0 desenvolvimento municipal a entrada da Baixa Idade Média foram, por um lado, e de acordo com a velha (mas hoje jé incompleta) tese de Henri Pirenne, a reactivagao do grande comércio (uma vez que as cidades se constitufam como verdadeiros lugares de reftigio dos mercadores e como portos de abrigo no Inverno, mas também porque funcionavam com centros de vendas, daf resultando o nascimento dos “novos burgos”) e, por outro, 0 espirito associativista, ou seja, a solidariedade econdmica, social € juridica que inspirou a constituigao das hansas e guildas, das corpo- rages, das confrarias e das préprias comunas. No entanto, as cidades dos finais do séc. XI (arquitectonicamente muito interessantes, dado o seu tragado frequentemente geométrico e rectilineo, planificado: vejam-se as bastidas do sudoeste) tém origens muito diversas (antigas cidades romanas, criagdes do rei ou dos senhores - por ambico politica ou militar)" e, sobretudo, inscrevem-se ainda, na maior parte dos casos, em zonas rurais 'S Essa diversidade permite muitas vezes que acabe por se falar em cidades polinucleares: a cidade antiga, sede de bispado, cumprindo uma funcdo religiosa; o burgo castrense, sede do senhor ou do castelo, assegurando a fungdo politica; o burgo comercial (mais recente), repleto de mercadores, garantindo a funcdo econdmica; e o “quartier d'études” (embrido da universidade) satisfazendo uma funcdo intelectual. E igualmente interessante notar 0 claro contraste entre os grandes reinos estruturados, onde a economia assenta sobretudo na agricultura (como em Castela, mas também em Franga ou na Inglaterra) e as cidades onde se espalha o grande comércio (como na Itélia, na Alemanha ou na Flandres) € onde se desenvolve, por isso, um artesanato mais diversificado € organizado. O fenémeno da urbanizagio foi, de facto, mais forte em Itilia e na Flandres: 28 Jodo Gouveia Monteiro (com hortas préximas ou com cultivo de cereais e de vinhas) submetidas aos grandes senhores (nobreza e clero), © que provoca, alids, reclamagées por parte dos comerciantes, que reivindicam privilégios e isengées. Este fenémeno acabaria até por reforgar a solidariedade entre os comerciantes, na sua luta contra o regime “banal” dos senhores. E neste contexto que se torna obrigatério falar da formagao das “comunas”, um elemento importante do processo de autonomia das cidades europeias nos inicios da Baixa Idade Média. Na segunda metade do séc. XI, especialmente na Itdlia lombarda e no Norte de Franga, surgem associag6es por juramento, visando a seguranga dos mercadores, © estabelecimento da paz ou a oposicao organizada aos senhores (laicos oueclesidsticos). Trata-se, regra geral, de associacGes secretas e fechadas, pelo que suscitam a hostilidade da Igreja e dos senhores laicos'®. Os seus objectivos concretos eram: i) garantir o reconhecimento de antigos privilégios; ii) obter a aboligdo de muitas prerrogativas senhoriais (talhas, impostos de circulagdo, servigo militar, justica pessoal, etc.), assim como a unificago das moedas e das unidades de medida; iii) assegurar que os mercadores nao seriam maltratados, detidos ou visados arbitrariamente pelos oficiais dos senhores; iv) por vezes, passava-se mesmo & reivindicago da autono- mia politica, desejando-se uma organizagao completa da cidade como um corpo politico novo. Como afirma Marcel Pacaut, «os membros da comuna procuravam colocar-se ao abrigo da brutalidade feudal e da turbulén- cia do tempo», aspirando a resistir as politicas de assimilagao unificadora e afirmando a sua pretensio a uma existéncia especffica—a cidade podendo, assim, constituir-se como ... «um Estado em si mesma»'7. Em todo 0 caso, a histéria da formagao dos movimentos comunais variou bastante consoante. as regides.. Como observaram Michel Balard, Jean-Philippe Genet e Michel Rouche, “desejo de liberdade, de autonomia juridica e administrativa, de seguranga contra as pilhagens dos senhores, desejo sobretudo de escapar as miiltiplas diabruras feudais, tais sao [em Franga] ‘Veneza, Milo, Napoles e Florenga contavam com cerca de 100.000 habitantes, e Siena, Bolonha, Gand ¢ Bruges com perto de 50.000, em inicios do séc. XIV. Na mesma época, Paris teria entre 100 ¢ 200 mil habitantes; outras regides europeias bastante urbanizadas eram a Rendnia, o sul da Inglaterra e certas dreas da Peninsula Ibérica em tempos da Reconquista. '* «Comuna, nome novo e detestével», escrevia, em inicios do séc. XII, 0 célebre Guibert de Nogent — citado por M. Balard, J.-Ph. Genet e M. Rouche, ob. cit., p. 155. "Cf. Marcel Pacaut, Les structures politiques de l'Occident médiéval, Paris, Armand Colin, 1969, p. 272. Ligdes de Historia da Idade Média (Sécs. XI-XV) 29 as principais reivindicagdes dos mercadores que, no movimento comunal, ocupam o proscénio. Noutras regides, como em Itdlia, a vontade de resistir ao poder imperial (Frederico Barba Roxa: cf. infra, 1.3.2.) que procurava impor as cidades uma autoridade centralizada e unificadora, cimenta a unido das classes urbanas desejosas de preservar uma autonomia que o afastamento prolongado do imperador Ihes permitira de facto adquirir”"’, Entre as formas de afirmagao de uma comuna podemos referir sobretudo a negociagdo (com 0 rei ou com os senhores) ou a violéncia revolucio- ndria (Cf. o exemplo, particularmente sangrento, de Laon-1112, onde houve lugar ao assassinato do bispo). Em qualquer dos casos, com a obtencao da “carta de comuna” (outorgada pelo rei ou pelos senhores) os habitantes da cidade em causa tornavam-se nos “burgueses” (pelo menos aqueles que tinham prestado juramento e, com isso, entrado na dita associagao)””. Daqui resultava a existéncia das assembleias de habitantes das comunas, apelidadas arengo em Itélia, das quais emanava um corpo eleito de magistrados: os jurados (ou, em Itélia, segundo a boa tradigo romana, os cénsules). Os simbolos do reconhecimento juridico da existéncia da comuna eram sobretudo trés: 0 selo, a torre e 0 sino. Citemos alguns exemplos de comunas. Em Franga (onde seriam cerca de 40 nos inicios do séc. XIII): Amiens, Soissons, Laon, Sens, Lens, Le Mans, Poitiers ou Senlis [cf. infra, texto de apoio n.° 7]. Na Itéliae na Provenga (onde foram mais precoces): Génova (1099), Pavia (1105), Bolonha (1123), Florenga (1138), Siena, Milao ou Verona. Para a Provenca (a meio-caminho entre Paris e Roma) é inevitavel citar 0 caso de Arles (logo em finais do séc. XI, ou nos inicios do século seguinte). Permita-se um comentério final: naturalmente, existia uma contradi¢ao essencial entre o regime senhorial herdado da Alta Idade Média eo regime municipal em ascensio desde os finais do séc. XI, pois o desenvolvimento do sistema urbano e comercial punha claramente em questao o regime feudal. Terra € Dinheiro eram valores que, a partida, se opunham bastante. Na verdade, para uma concepgio de vida baseada no comércio, o sistema "Cf, M. Balard, J.-Ph. Genet e M. Rouche, ob. cit., p. 156. "° Como observam M. Balard, J.-Ph. Genet e M. Rouche, ob. cit., “a redacgo de uma carta exprime o reconhecimento da comuna pela autoridade local. Estes textos sio antes de mais uma garantia contra o arbitrério; eles outorgam aos conjurados a liberdade pessoal, corolério da paz, limitam as taxas, requisiges e corveias, fixam os deveres militares dos cidadaos sujeitos a responder a toda a convocagio da milicia comunal Eles instituem Arbitros encarregados de assegurar a manutengdo da paz, de julgar, de aplicar sangdes (...)” (p. 157). 30 Jodo Gouveia Monteiro feudal sé podia ser considerado como um obstaculo. Da mesma maneira, no novo contexto, os servicos prestados pelo senhor tendiam a parecer socialmente menos relevantes; pouco a pouco os “burgueses” afirmavam- -se, € alguns senhores acabavam por ser obrigados a endividar-se e a vender as suas terras, possibilitando a apropriagao de feudos pelos grandes mercadores enriquecidos. Desta forma, em particular as cidades-comuna tornavam-se num auténtico ‘corpo estranho’ (embora numericamente reduzido) no seio da velha sociedade feudal. Tudo isto nos conduz a um Uiltimo ponto de reflexao. 1.1.4. Implicagées sociolégicas do novo quadro de vida Se, numa fase inicial, os grupos sociais dominantes (oratores e bellato- res) podem ter tirado algum proveito do aumento da circulagaio de moeda e de bens (a Igreja enfeitou os seus santudrios, enquanto a nobreza reforcou © luxo da mesa, do vestuario e da ornamentagio), j4 se percebeu que a afirmagiio dos novos burgos e de uma ‘classe’ comercial poderosa desequi- librou a organizagao tradicional da sociedade feudal tripartida e comegou a tornar o dinheiro (a par da posse da terra) na base da riqueza. O século XII foi, por isso, uma centtiria de certa convulsao e reordenagao social. Pode dizer-se que uma parte da populagao rural tendeu a ficar mais subjugada (por exemplo na Inglaterra), reduzida que se viu a novas formas de servidao, impostas por antigos ou novos proprietdrios fundidrios. Em Franca e na Alemanha, comegou a formar-se uma elite de raiz rural (com grande prestigio durante o reinado de Sao Luis, 1226-1270) composta por novos-ricos, alguns dos quais conseguiriam mais tarde alcancar a nobilitagao. Entretanto, no meio citadino, apesar de as transformagdes nao terem sido tao espectaculares, foi visivel na maioria dos reinos do Ocidente europeu a constituigo de uma “casta dominante” com forca suficiente para controlar a gestio municipal e as magistraturas mais sensiveis das cidades (que tendiam, por vezes, a organizar-se em verda- deiras redes urbanas). No caso das cidades italianas, foi especialmente visivel a ascensao deste patriciado urbano, parte dele igualmente nobili- tado a posteriori. Aqui, detectam-se tensdes muito vivas, no século XIII, entre familias rivais, ou entre mercadores e artesdos afastados das responsabilidades na gestdo municipal. No que diz respeito ao clero, apesar das fracturas internas, de carécter socio-econémico, que atravessavam 0 seu estamento, e nao obstante as rivalidades e fricgdes sempre existentes ao nivel das hierarquias superiores Ligdes de Historia da Idade Média (Sécs. XI-XV) 31 dos seus bracos secular e regular (p. ex. entre bispos e abades), persistiu uma certa homogeneidade, resultante da solidez do patriménio fundidrio da Igreja, da sua enorme influéncia moral e espiritual, da especificidade do seu ordenamento juridico (tinham foro e direito préprios) e até do dominio da escrita pelos seus dignitarios. No entanto, também os oratores serio sacudidos pelo renascimento da vida urbana e pelo cortejo de misérias e de marginalidade que esse processo provocou ao longo dos sécs. XI e XIII, e que teve alids consequéncias muito interessantes do ponto de vista cultural, como por exemplo a producdo literéria e musical de grupos de clerici vagantes, habitualmente conhecidos pela designagio de Goliardos e responsdveis pela criagdo de canticos to belos quanto irreverentes (como os contidos na célebre colecgao dos Carmina Burana). De resto, oclero do séc. XII teve de conviver com uma realidade inexordvel, que foi a perda do exclusivo do dominio do acto da escrita, a que acedem a partir de agora, nao sé alguns nobres, mas também um niimero nao despicien- do de comerciantes, ansiosos pelo conhecimento (ainda que rudimentar) daescrita, da leitura e do célculo, para melhor poderem organizar e gerir ‘0s seus negécios. Por fim, e como veremos melhor mais adiante, a Baixa Idade Média representou também, para o grupo clerical, uma floragio surpreendente de movimentos religiosos, que encontravam, quer na rejei¢ao liminar das perversdes do mundo urbano (Cister, Eremitas), quer na adopgdio de um modo de vida voltado justamente para o apostolado urbano (COnegos Regrantes, Ordens Mendicantes), solugées distintas para conduzir o exército de Deus pelos caminhos da salvagao. Para a nobreza, pelo seu lado - e excepto, talvez, no caso particular da Inglaterra —a transi¢do foi mais complexa. A inexordvel mercenarizagao do servico militar, a falta de liquidez numa época em que a importancia do “dinheiro” era cada vez mais visivel, e 0 risco de truncamento do patrim6nio familiar (em resultado do endividamento e do recurso a emprés- timos), acabariam por conduzir 4 imposi¢do do sistema linhagistico, escorado na transmissio hereditaria dos titulos e dos feudos. A generali- Zagiio dos morgadios - com a afirmacio do princfpio da primogeniturae aconsequente obrigacao, para os secundogénitos e para os filhos bastardos, de lutar por alternativas de sucesso material (p. ex. na guerra, para a qual 0s torneios os preparavam) — assim como um maior apego aos privilégios honorfficos (exclusivo de certas vestes e cores, porte de armas, valorizagao das homenagens vassdlicas e da nobreza de sangue, criago de novas hierarquias internas) mostram bem que a roda da Fortuna lhe nao sorria e que a afirmagao de um certo “espirito de casta” nao era senio uma maneira— bastante conservadora— de a nobreza enfrentar os novos tempos. 32 Jotio Gouveia Monteiro O desenvolvimento daqueles varios movimentos sociais de sentido inverso— em que a ascensao de uns foi contrabalangada pela decadéncia ou transformagao de outros — acabaria por criar um quadro sociolégico e politico propicio a uma certa reabilitagao do poder monérquico, conforme teremos oportunidade de observar mais & frente, ao analisar 0 crescimento da dinastia capetingia em Franga, sobretudo a partir de Luis VI e Luis VII (1108-1180). Esta reabilitagdo far-se-ia, entretanto, acompanhar de algum redimensionamento da participagio dos grupos sociais e das comuni- dades (aldeias, pardquias, guildas, corporagées, confrarias, comunas, cantdes) na vida politica, reforgando o cardcter bastante local da vida politica na Idade Média e avivando a sua forte marca de auto-defesa e de solidariedade miitua®, Por detrés deste quadro, é a familia conjugal que comega a afirmar-se, com o crescimento demografico e 0 recuo da floresta a proporcionarem, finalmente, a afirmagao de uma familia monocelular, conjugal, onde a mulher ocupa doravante um papel central, conforme 0 imagindrio religioso tardo-medievo e a iconografia desta época documentam, Mas também disto falaremos mais adiante, com mais vagar. Textos Dé Apoio [1.1.] Texto n2 1 ~A rotagdo trienal numa granja cisterciense do século XII" «(...) Toda a terra de Vaulerent (regido de Seine-et-Oise] estd dividida em trés folhas. A primeira folha de cereal contém 365 jeiras e meia UI jeira = c. 40 ares) e 6 varas [1 jeira = 100 varas). A segunda folha, que est de pousio, contém 323 jeiras e 9 varas. A terceira, que esta com um cereal de Primavera, contém 333 jeiras ¢ 10 varas». (Ch. Hogounet, L’assolement trienal dans la plaine de France au XIII. siécle, cit. por F. Espinosa, Antologia de Textos Historicos Medievais, Lisboa, $4 da Costa, 1976, pp. 310-311). *N. B.: uma das grandes inovagdes medievais no domfnio das técnicas agrérias foi a difusdo do sistema rotativo trienal, com a divisio da terra em trés folhas, uma para cereais de Inverno, outra para uma cultura de Primavera, devendo a terceira ficar de pousio. O sistema, conhecido pelos Romanos, foi divulgado nna Europa pelos Cistercienses (F. Espinosa). ® Como disse Georges Duby na sua bela entrevista reunida em livro pelas Editions Textuel em 1995, “tal como as sociedades africanas, as sociedades medievais eram sociedades solidarias. O homem inseria-se em grupos, o grupo familiar, o grupo da aldeia, © senhorio, que era um mecanismo de exacgio mas também de seguranga social. (...) Eram muito pobres, mas estavam juntos. Os mecanismos de solidariedade comuns a todas as sociedades tradicionais desempenhavam plenamente o seu papel, tal como hoje na Africa negra” (Georges Duby, Ano 1000, Ano 2000. No rasto dos nossos medos, trad. port., Teorema, 1997, p. 28).

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