Corpos em Transito Diaspora e A Experien

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160 CORPOS EM TRANSITO: DIASPORA E A EXPERIENCIA DO CORPO FEMININO EM LA VIE BIDIM D’AMBROSIA NELSON, DE MARIE-GEORGE THEBIA' BODIES IN MOTION: DIASPORA AND THE EXPERIENCE OF FEMALE BODY IN LA VIE BIDIM D’AMBROSIA NELSON, BY MARIE-GEORGE THEBIA Natali Fabiana da Costa e Silva? Doutora em Estudos Literarios Universidade Federal do Amapa (natali_costa@hotmail.com) RESUMO: A partir da andlise do romance La vie bidim de Ambrosia Nelson, da escritora franco-guianense Marie-George Thebia, este artigo visa a tecer uma reflexdo sobre 0 corpo da mulher negra e a diéspora como instancias relevantes para problematizar a construgao de um olhar estereotipado, racializado e centrado do corpo feminino. Tendo por base as consideragées de Francoise Verges sobre a economia dos corpos esgotados, busca-se chamar a atengao para aquilo que a autora descreve como’ um dos objetivos da missdo civilizatéria colonial: a promogao de politicas sobre os corpos de mulheres as quais favorecam 0 interesse da metrépole. Palavras-chave: Diaspora. Corpo feminino, Economia dos corpos esgotados. Feminismo decolonial. ABSTRACT: This article aims to reflect on black woman bodies and diaspora as relevant instances to discuss the construction of a stereotyped, racialized, and engendered view of female bodies. To do so, it is based on the analysis of La vie bidim by Ambrosia Nelson novel, by French-Guyanese writer Marie-George Thebia. Focused on Frangoise Verges’ considerations on exhausted bodies economy, this text draws attention to what the author describes as one of the colonial civilizing mission objectives: the promotion of policies on women's bodies that favor the metropolis’ interest. Keywords: Diaspora. Feminine body. Economy of exhausted bodies. Decolonial feminism. Notas sobre a diaspora No processo de dispersdo geografica do qual a diéspora é um dos movimentos, a experiéncia vivenciada pelos corpos de mulheres ndo sé é muito distinta daquela experimentada pelos homens como, por sua vez, pode se configurar como trauma. Além das distingdes de género, o espago também esta segregado pela diferenga de raga e classe e, nesse sentido, pensar em neutralidade espacial torna- se impraticavel. Assim, porque o transito de pessoas entre cidades, regides e paises esta imerso nessa légica, um olhar mais atento aos romances de autoria feminina que *Este artigo recebeu o financiamento do CNPq por meio da Chamada MCTICICNPgq N° 28/2018 (Edital Universal 2018) para a sua realizagao. 2ORCID: https:/orcid ora/0000-0002-0999-5898, RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan fjul, 2022 ISSN: 2176-9125 161 tematizam a diéspora pode revelar duras realidades de discriminagao que, no entanto, so frequentemente tensionadas por sujeitos® que se opdem a dominagao. Se, como propée Foucault (1987), 0 corpo é uma construgao discursiva, entdo, 0 corpo gendrado* e racializado® se inscreve na contramao daquilo que tradicionalmente é concebido como corpo politico - essencialmente masculino, branco heteronormativo — para se tornar uma entidade politicamente inscrita em um espago de transgressao e atravessamentos. O termo “mulher’, portanto, abandona uma designagao estritamente biolégica para ocupar um lugar identitario, social e politico, abrigando miltiplas possibilidades de existéncia. Desse modo, 0 risco de desenvolver uma reflexdo acerca do corpo feminino diaspérico e racializado deve-se ao fato de que, até mesmo em pleno século XXI, quando ainda é preciso avangar no reconhecimento de justiga de género e lutar contra’a violéncia estrutural que busca seu aniquilamento, nem sempre a experiéncia dos corpos assoma como fundamental na determinagao da diferenga. A diaspora, enquanto prética espacial, tornou-se uma das formulagdes mais abertas ao entrecruzamento de experiéncias, a comecar pela mudanga de significado do préprio conceito. Originalmente, segundo Kachig Téldlyan (2011), diaspora referia- se a dispersdo dos povos judeu, arménio ¢ grego. Para outras mobilidades, o termo mais amplo a ser empregado seria dispersdo, que compreenderia os movimentos de deslocamento, migragao-e mobilidade geralmente associados a busca de empregos, terra, cidadania, melhores condigdes de vida, entre outras. Para ele, uma série de eventos estaria ligada a mudanga do conceito, como o movimento negro nos Estados 20 substantivo "sujeito”, em portugués, ndo sofre variagéo de género, desse modo, o emprego de “sujeita’ ou “sujeite” desobedece a norma padrao da lingua, E preciso observar, contudo, que a lingua ‘raz om si uma dimenséo politica. sso significa que, quando identidades nao s4o representadas pela norma gramatical que a compée, ha ali uma violéncia epistemolégica contra sujeitos que historicamente se deparam com a tentativa de silenciamento. Endosso, portanto, a posicao de Grada Kilomba, que afirma: ‘a lingua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensao politica de criar, fixar e perpetuar relagdes de poder e de violéncia, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através das suas terminologias, a lingua informa-nos constantemente de quem 6 normal e de quem é que pode representar a verdadeira condigao humana” (KILOMBA, 2019, 14), Em vista da problemdtica das relagdes de poder na lingua portuguesa, assim como diante da preméncia de se encontrarem terminologias que respeitem formas plurais de existir, opto (assim como © faz Kilomba) por grafar este termo em itélico: sujeito. 40 termo “gendrado" (ou "genderizado’) diz respeito aquilo que integra o dominio da experiéncia sexuada e, por meio disso, sofre as consequéncias de atravessamentos de valores, normas e regras sociais/culturais. Neste artigo, esse vocdbulo fara referéncia ao universo feminino. 50 termo “racializado” inclui outras designagdes identitarias além da negra, como a latino-americana, a parda, a arabe, a asiatica etc. RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan fjul, 2022 ISSN: 2176-9125 162 Unidos na década de 60, que trouxe a tona os termos African-Americans e African Diaspora; a aprovagao do Hart-Celler Immigration and Nationality Act of 1965 no congresso estadunidense, que retira as leis de imigragao restritivas estabelecidas em 1923 e 1924, aumenta o numero de imigrantes permitidos no pais, além da ampliago para imigragao nao europeia; a implementagao de medidas para a integragao dos imigrantes sem necessariamente insistir em sua assimilagao cultural; a viagem do navio SS Empire Windrush do Caribe para a Inglaterra, em 1948; e a independéncia dos paises pertencentes ao antigo império britanico e francés. Retirado de seu contexto original, 0 que ocorreu com o bindémio didspora/dispersdo foi uma sinédoque, em que a parte acaba assumindo 0 todo. Hoje, didspora também compreende movimentos transnacionais que engendrem um tipo de dispersao calcada em identidades étnicas e/ou raciais por meio'de ‘comunidades que cultivam um sentimento de pertencimento @ terra natal mantendo seus lagos até, pelo menos, trés geragées. Télélyan observa que a diaspora se atrela a histérias de colonialism e imperialismo e estabelece 0 agenciamento das culturas que atravessam sujeitos diaspéricos: Na minha opinido, um grupo de migrantes transnacionais se torna um grupo diaspdrico quando seus membros desenvolvem alguma distancia familiar, cultural e social de sua nagao, mas continuam a se preocupar profundamente com ela nao apenas por motivos de Parentesco ¢ filiagao, mas pelo compromisso com certas afiliages escolhidas. Os estudos transnacionais contemporaneos sabem que a patria € facilmente alcangada por telefone, video e avido, e que o espago social transnacional é o espago no qual os sujeitos diaspéricos ida se sentem mais em casa (TOLOLYAN, 2011, p. 11)°. A ideia de pertencimento ao pais de origem encetada por Télélyan dialoga com aquilo que Stuart Hall (2018) denomina de “comunidades transnacionais” ou “familia ampliada", termos que mobilizam tanto uma rede distendida de relagées culturais quanto o local da meméria como marca de entrelugar. Contudo, embora haja uma forte associago com as culturas de origem (até mesmo na segunda ou terceira "Tradugae livre do original: “In my view, a collection of transnational migrants becomes a diaspora when its members develop some familial, cultural and social distance from their nation yet continue to care deeply about it not just on grounds of kinship and filiation, but by commitment to certain chosen affiliations. Contemporary transnational studies knows that the homeland is reached easily by telephone and video and airplane, and that the transnational social space is the space in which the new immigrants stil fee! most at home.” RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan ful, 2022 ISSN: 2176-9125 163 geragao), a identificagao dos sujeitos diaspéricos, segundo Hall, nao acontece exclusivamente com os locais originarios, 0 que os abre para identidades miltiplas. Nao @ toa, ele registra a dificuldade sentida pelos que retornam em se conectar a suas comunidades, como uma espécie de "sensagao familiar e profundamente modema de deslocamento” (HALL, 2018, p. 29) que, por sua vez, revela a capacidade da formagao de zonas de contato culturais, de transculturagao e crioulizagao dos sujeitos Doreen Massey (2013), para quem o espago é relacional, considera que todo deslocamento é atravessado por relagdes de poder e praticas culturais. Nao a toa, na literatura diaspérica de autoria feminina, 0 agenciamento de identidades culturais miltiplas encontra-se frequentemente ligado & narragao sobre violéncia de género e raga que atravessa a experiéncia de mulheres. Diante disso, nao ¢ dificil desconfiar dos motivos pelos quais até hoje corpo feminino ‘continuayayser/um ponto negligenciado no pensamento filoséfico ocidental dominante. Ora, corpos de mulheres s4o um entrelagamento de sistemas de opressao social, racial e de trocas econémicas: sua inscrigao legal (ou, muitas Vezes, ilegal) ¢ pega fundamental na engrenagem do capitalismo porque neles pesam a mao de obra barata do mercado sob a justificativa fajuta da fragilidade, da maternidade ou de qualquer outra invencionice falsa e opressora do patriarcado. © desejo de langar luz sobre corpos de mulheres em sua experiéncia diaspérica surge como maneira de entender seu papel.no movimento transnacional da cultura e do capital, o modo como essas alteridades articulam as diferencas raciais e de género, de que maneira a sociedade patriarcal é atravessada por esse transito ¢ 0s motivos que se escondem por tras da necessidade renitente de silenciamento. Esses questionamentos levam em consideragéo um conjunto inumeravel de identidades e, portanto, consideram fundamental o reconhecimento de epistemologias plurais e 0 descentramento de saberes. Assim, para ilustrar essas breves reflexes sobre a experiéncia de deslocamento dos corpos femininos, proponho a andlise da obra La vie bidim d’Ambrosia Nelson (2016), da escritora Marie-George Thebia, pois ela traz em sua urdidura a identidade crioula da Guiana Francesa’ ndo apenas desde 74 Guiana 6 um Departamento Ultramarino francés localizado na regido amazénica da América do Sul. Trata-se de uma regido que faz fronteira com o Estado do Amapé, no extremo norte do Brasil, Além da lingua e cultura francesa, o crioulo enquanto identidade linguistica e cultural prevalece em 100% do territério. RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan. ful, 2022 ISSN: 2176-9125 184 © titulo, em que mescla a lingua francesa e crioula, como em bidim, que significa resisténcia, mas também pela perspectiva, no presente da enunciagao, de uma fanm djok. Uma fanm djék e a experiéncia diaspérica na literatura da Guiana Francesa Na lingua crioula da Guiana Francesa, o termo fanm djék é empregado para designar mulheres cujos cotidianos sao atravessados por batalhas que marcam suas experiéncias e modos de existir. Uma tradugao corrente dessa expressao pode ser lida como mulher resistente ou mulher de luta. Acontece, porém, que as mulheres em geral sdo marcadas por enfrentarem desafios seja no campo pessoal, social, cultural, politico, profissional ou econémico devido as opressdes de género que balizam as sociedades cis-heteropatriarcais, No mais dia, menos dia; as'engrenagens'da cultura machista esmagam vivéncias femininas ao redor de todo o globo terrestre, situagao que pode ser comprovada pelo alto indice de feminic{dio, de desigualdade salarial e educacional e pela auséncia de mulheres em Setores estratégicos e cargos de comando, entre outros. O termo fanm djdk, contudo, nao se refere a mulheres em geral. Ele traz em seu bojo a ideia de pertencimento identitario comunidade crioula, que se liga a Franga “metropolitana’® devido ao processo de colonizagéo e Departamentalizagao, como ¢ 0.caso da Guiana, na América do Sul, de Guadalupe e Martinica, no Caribe, e Maiote e Ilha da Reuniao, em Africa. A ideia de crioulidade apoia-se na perspectiva de Patrick Chamaoiseau, Jean Bemabé e Raphaél Confiant (1993) desenvolvida no oélebre Eloge de la créolité, pois na viséo dos autores martinicanos, a constituigao da identidade crioula é marcada pelo processo de trocas culturais e linguisticas entre os povos que circularam pelo territério francés desde o periodo das antigas colénias. Assim, o sujeito crioulo vivencia “o agregado interacional ou transacional dos elementos culturais caraibas, europeus, africanos, asidticos e levantinos, que 0 jugo da histéria reuniu sobre o mesmo solo’: 50 termo “Franca metropolitana’ é comumente empregado para distinguir o territério da Franga situada na Europa em relagdo aos Departamentos Ultramarinos, Aqui, 0 uso desse termo e suas derivagoes serd grafado entre aspas por se tratar de vocabulos, a meu ver, pejados de viés colonialista STradugao de Magdala Franga Vianna disponivel em: https:wwwufrgs. br/edrom/chamoiseau/index. htm RevLet— Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan jul, 2022 ISSN: 2176-9125 185 Para esses intelectuais, ndo ha uma definigao fixa da crioulidade uma vez que ela clama para si multiplos pertencimentos: “Nem Europeus, nem Africanos, nem Asidticos, nés nos proclamamos Crioulos”®. A crioulidade nao finca raizes em uma origem Unica porque entende a Histéria como “uma tranga de Histérias. Sua proposta, entao, é atravessamento, movimento, contato; ela opde-se ao monolinguismo, a ideia de pureza e de universalidade. Essa abertura implica habitar 0 paradoxo e, entao, conviver com ambiguidades entabula, a um sé tempo, aceitagdo e recusa histérica, cultural e politica dos processos de dominagao. Uma fanm djék organiza-se em toro desse “mundo difratado, mas recomposto” (GLISSANT, 1969, p.47) que marca a crioulidade. Como negra e como mulher, sua rotina compreende o agenciamento de mazelas oriundas da discriminagaiode género e raga’e, desse modo, para’além da/interseccionalidade, o universo crioulo é uma dimensao sempre presente nas descrig6es de sua conduta: Fanm djék, Mulher djék, & uma mulher solteira ou comprometida que se assume plenamente, e isso, apesar das circunstancias. Ela se assume — profissionalmente, familiarmente, __sentimentalmente. Orgulhosa, auténoma, independente, ela avanga. Os golpes e as provagées a fazem tropecar, mas, paradoxalmente, tornam-na mais forte, mais corajosa e mais audaciosa, Ela 6 uma guerreira, é uma Amazonas. A Mulher djék sempre soube se erguer, ela se ergue e se erguera. Varios provérbios crioulos colocam em evidéncia a forga de seu carter (BLERALD apud THEBIA, 2016, p. 294)"" trecho acima é da autoria de Monique Blerald, professora de literatura na Université de Guyane. Sua breve definigéo sobre a mulher djék encontra-se no apéndice ao romance de Marie-Goerge Thebia (2016). Além de Blerald, a escritora traz mais 18 definig6es de fanm djék realizadas por mulheres importantes no cenério intelectual franco-guianense. Entre elas, a dramaturga, poeta e pesquisadora Lima Fabien, que introduz 0 conceito de djokitude: Tradugao de Magdala Franca Vianna disponivel em: https: /iwww ufrgs.br/cdrom/chamoiseaulindex.him * Tradugao livre do original: “Fanm djdk, Femme djdk. Une Femme Djdk, c'est une femme seule ou accompagnée, qui s‘assume pleinement; ot ce, on dépit des circonstances. |...] Elle. s‘assume professionnellement, familialement, sentimentalement. Fiére, autonome, indépendante, elle avance. Les coups, les épreuves fa font trébucher mais paradoxalement, la rendent plus forte, plus courageuse et plus téméraire. C'est une guerriére, c'est une Amazone. La Femme Djdk a su se relever, se reléve ot saura s0 rlever. Plusiours dolos créoles mettont en évidence cette force de caractere.” RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan ful, 2022 ISSN: 2176-9125 186 Indubitavelmente, a djokitude langa luz sobre a capacidade da mulher de lidar com as dificuldades da vida, De forma excepcional, guerreira pacifica, engrandece a mulher pela forga que emprega para triunfar sobre todas as situagdes. A djokitude suscita a admiragao de todos. (FABIEN apud THEBIA, 2016, p. 293)". Chama atengao que as definigdes da fanm djok atribuam valores positives a sua luta sem, contudo, problematizar e, no limite, responsabilizar a estrutura que obriga essas mulheres a resistirem cotidianamente. Seja na acepgdo de Blerald, na de Fabien ou nas demais caracterizages encontradas no apéndice de Thebia, o que se repete em cada uma delas, parece-me, é a romantizagao de seus esforgos para no sucumbir diante das limitagdes impostas pelo tecido social, econdmico e politico. Essa “guerreira pacifica” cujos ‘golpes e privagdes a fazem tropegar, mas, paradoxalmente, a tornam mais forte” é, na realidade, uma mulher fustigada pela opressao de género e raga e que precisa encontrar formas de agenciamento para lidar com a violéncia sistémica. © romance La vie Bidim d'Ambosia Nelson (2016) narra a vida da protagonista, uma jovem fanm dj , como se vera adiante, nascida em Regina, interior da Guiana Francesa. Apés a morte de seu pai, a mae arranja-Ihe, com muito esforgo financeiro, uma viagem para Paris, pois entende que as perspectivas de trabalho e estudos na “metrépole” representam uma importante chance para a filha se estabelecer econémica e profissionalmente. Com pouca experiéncia de vida, na embarcagao que a conduz a Paris, Ambrosia tem contato pela primeira vez com a distingdo de raga, pois observa que pessoas brancas se hospedam na ala mais nobre enquanto os passageiros racializados, como ela, ocupam os estratos inferiores do navio, Percebe que os tinicos brancos que se acercam dela sdo homens a procura de algum entretenimento e, por fim, dé-se conta de que o tom de sua pele, mais claro em relagdo a outras mulheres negras, 6 considerado um atrativo por esses mesmos homens que buscam garotas para seu divertimento. Assim, para a protagonista, a travessia significa a uma s6 vez, consciéncia do colorismo e da diferenga de classe, género e raga, *% Tradugao livre do original: “Indubitablement, la djokitude met en lumiére la capacité d'une femme & faire face aux diffcullés de la vie. D’une fagon exceptionnelle, guerriére pacifique, elle magnifie la femme, par la force qu'elle déploie pour triompher de toutes les situations. La djokitude suscite admiration de tous. RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan fjul, 2022 ISSN: 2176-9125 197 A chegada em territério “metropolitano” nao é menos traumatica que a viagem. Sozinha na capital francesa, ela precisa ir em busca de trabalho. Dirige-se a um centro de acolhimento de imigrantes, onde the dariam informagdes sobre uma vaga de emprego que a mae havia negociado antes de sua chegada. Porém, os recentes conflitos sociais e politicos na Argélia em favor da independéncia do pais provocaram uma grande onda de imigragao de argelinos em fuga dos conflitos armados, de modo que 0 trabalho arranjado para Ambrosia havia sido transferido para outro imigrante. ‘Sem grandes perspectivas, as vagas de emprego disponiveis ofereciam servicos de limpeza mal remunerados. Aqui, a narrativa se tora um tanto rocambolesca e Ambrosia passa a viver sob os cuidados de uma governanta que a impedira de procurar servigo na casa da familia Rougon-Macquet sob a alegacdo de que suas funcionériaseram frequentemente \vitimas de violéncia, Protegidaypor Ginette, a governanta, e um artista que, impressionado com a beleza da protagonista, Ihe pagava para que ela posasse para seus quadros, Ambrosia gozou de relativa tranquilidade por um curto periodo. Contudo, submetida a trabalhos exaustivos e pouco acesso a cuidados inette falece por exaust4o. Pouco tempo depois, o artista 6 assassinado em um crime de homofobia. Novamente sozinha, Ambrosia nao vé solugao a nao ser médicos, aceitar a vaga de empregada doméstica na casa dos Rougon-Macquet. Servigo de tempo integral, baixa remuneragao, condigées de moradia insalubre e assédio do patrao, que a estupra.e a espanca. A cozinheira da familia a auxilia em sua fuga e a ajuda a reconstruir a vida. Nessa nova fase, a protagonista consegue emprego no chao de fabrica e, ao lado de inumeras trabalhadoras e trabalhadores, organiza movimentos por melhores salarios e condigées de emprego. Além disso, toma conhecimento das reivindicagées independentistas dos argelinos e passa a dar apoio as suas manifestagées, atenta-se para as assimetrias entre a metrépole, as colénias e 08 Departamentos Ultramarinos e, por fim, ganha clareza de que os cidadaos franceses oriundos das colénias, da Guiana ou do Caribe, sao tratados como segunda classe por um governo que se pretende republicano A narrativa engloba tanto 0 plano pessoal — uma vez que Ambrosia se casa duas vezes e, em ambas as relagées, vé-se coagida pelo machismo de homens que tentam, sem éxito, impedila de prosseguir com os estudos e de algar voos RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan fjul, 2022 ISSN: 2176-9125 168 profissionais mais altos - quanto o plano politico, por meio de um enredo que valoriza os saberes e a cultura crioula, destacando sobretudo o papel de mulheres djok, cuja resisténcia se faz sentir diante das imposigées racistas e genderizadas. “Fanm Regina ka fan tchou lavi?" — traduzido como “mulheres de Regina riem-se da ma sorte, pois a despeito dela, seguem em frente" — torna-se um leitmotiv que acompanha a narragao da trajetéria de Ambrosia até sua velhice. Diaspora, lingua e pertencimento identitario Stuart Hall (2018) entende que a ideia de naga compreende tanto aquilo que designa uma entidade politica quanto uma comunidade imaginada. Para pensar a Franga enquanto nagao € preciso, portanto, entender as clivagens existentes entre as diversas comunidades que a\constitui. A existéncia dessas diferengas se faz presente também na linguagem cotidiana, no ramerrao dos usos da lingua que revelam, mesmo sem pretensao, a dimensdo politica que fixa e perpetua relagées de poder. Um exemplo disso € 0 termo que se populatizol a0 tentar definir as diferencas de condigées sociais entre os franceses da “metrépole” e dos Departamentos: o négropolitain que, em oposigéo a métropolitain deslinda a violéncia que (mal) se esconde sob 0 verniz da liberdade, igualdade e fraternidade Se a lingua informa e legitima a existéncia de pessoas e grupos sociais (KILOMBA, 2019, p.14), 6 importante compreender 0 que significa uma identidade existir na prépria lingua e se exprimir por meio dela: trata-se de uma contenda, de uma guerra contra a violéncia das terminologias linguisticas que fixam como erradas identidades minoritarias. No corpus em questo, 0 uso recorrente do crioulo na urdidura narrativa parece trazer um subtexto de resisténcia e subversdo da condigao de outridade. A certa altura do romance, depois de ja ter vivido todo tipo de assédio e ter sido exposta a duras realidades de /a vie parisienne d'un négropolitain™, 0 narrador heterodiegético assim descreve Ambrosia: Descendo as escadas para se certificar do encerramento do expediente, ela sufocou as lagrimas. Quando se viu no grande espelho que dava para o bar, teve uma visao, Tinha 0 mesmo sorriso de sua *E9sa expressao, que traduzo como “a vida de um negropolitano em Paris’, remete ao titulo do livro do congolense Gaspard-Hubert Lonsi Koko, publicado em 2017 pela Editora Afni RevLet— Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan jul, 2022 ISSN: 2176-9125 169 mée cada vez que ela resolvia os problemas sozinha, quando famn di Régina ka fend tchou a lavi!”" (THEBIA, 2016, p. 251)"*, Estamos diante do reconhecimento da protagonista em relagao a sua forca. Apesar das lagrimas, ela segue resoluta, enfrentando as dificuldades que se amealharam ao longo de sua trajetéria em Paris. E o momento em que ela, até entéo muito ligada & meméria do pai — inclusive amitide identificando-se como a filha de Erasme — da-se conta, pela primeira vez, da ancestralidade que lhe percorre as veias e se percebe, entdo, agindo do mesmo modo como a mae no enfrentamento dos percalgos. A apoteose desse reconhecimento ocorre pela frase em crioulo e, mais importante, sem tradugdo para o francés: quand famn di Régina ka fend tchou a lavi!"® Em seguida, a focalizagao interna na protagonista reforga o sentimento de empoderamento de Ambrosia: "Ndo era-mais a /pequena chabinette’® de Erasmus, mas timoun (a filha de) Philoméne, fanm djék, fanm baton, fanm poto mitan!"” (THEBIA, 2016, p. 251)" A identificagéo com a mae e 0 tributo a ancestralidade feminina agora se completam. Ambrosia é filha de Philoméne, 6 descendente da linhagem djok de mulheres empoderadas, pilares de sustentagao da familia. Como a mae, Ambrosia também cria um filho sozinha; como a mée, ela também sofre as dores da saudade e do distanciamento geografico; como a mae, ela também entende a importancia do papel das mulheres diaspéricas no movimento transnacional da cultura e do capital. © pequeno paragrafo que finaliza o romance resume a trajet6ria de mulheres plurais. Também elas habitam o locus da movéncia, circulam pelo territério liminar tecido na rede de saberes ancestrais e experiéncias compartilhadas: “Fanm ka fann tchou lavi. En quelques mots la quintessence du courage et de l'adversité..."(THEBIA, 2016, p. 290), trecho que traduzo por “mulheres corajosas face as dificuldades da vida. Em “Tradugao livre do original: “En descendant, pour aller voir ov en était la fermeture, elle réprima ses larmes. Quand elle se vit dans le grand miroir qui surplombait le bar, elle eut une vision. Elle avait le méme rictus chaque foi que sa mére prenait les choses en main, quand famn ai Régina ka fend tchou alavir ‘frase traduzida anteriormente: “mulheres de Regina riem-se da md sorte, pois a despeito dela, seguem em frente’ *6Chabin (substantivo masculino), chabine (substantivo feminino) e chabinette (substantivo feminino ‘no diminutivo) sao termos em crioulo para designar pessoas de pele clara, mas com tragos africanos. *"Fanm baton e fanm poto mitan sao express6es crioulas sindnimas a fanm djdk. Uma tradugao possivel seria mulher bastido e mulher pilar, respectivamente “*Tradugdo livre do original: “Ce n’était plus la petite chabinette d'Erasme, mais timoun (enfant de) Philoméne, fanm djék, fanm baton, fanm poto mitan’” RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan ful, 2022 ISSN: 2176-9125 160 poucas palavras, a quintesséncia de coragem e adversidade...” traz a lingua crioula e a francesa como em uma espécie de negociagéo que encerra um sentido transgressor, pois 0 crioulo “corrompe” a lingua oficial da nagao e arrola para si direito de existir. Um feminismo decolonial e a politica do esgotamento dos corpos A ancoragem teérica no feminismo decolonial permite analisar o romance de Thebia a partir de uma ideia denominada de “economia dos corpos esgotados”, Trata- se de um pensamento ligado as reflexdes de Frangoise Vergés (2019), cujos esforgos consistem em mostrar que a engrenagem do capitalismo tal como ele existe hoje é consequéncia do trabalho (mal) remunerado de mulheres, em sua maioria, racializadas, Ela também propée que 0 uso desses corpos, que’se esgotam|exauridos pelo trabalho de condigées precdrias, esté na base da acumulacdo primitiva de capital, seja pela exploragéo da mao de obra assalariada das mulheres, seja pela escravizagdo de corpos negros. Vale ressaltar que mulheres negras néo somente desempenhavam trabalhos forgados como também eram expostas ao abuso sexual e fisico de homens brancos, além de serem obrigadas a gerarem filhos, uma vez que eles significavam aumento da mao de obra do “senhor’. O feminismo decolonial leva em consideragao os saberes plurais daquelas que estéo_em_situagéo_de_vulnerabilidade social, econémica, politica fisica, colocando-se a escuta de suas condigées, Questiona a pauta de feministas que se preocupam estritamente com a igualdade no mercado de trabalho em relagao aos homens por entender que essa preocupagao fundamental ndo leva em consideragao as mulheres mais exploradas que, desde sempre, trabalharam para garantir a propria subsisténcia e/ou a de sua familia. Para estas, mais do que a preocupagao em fazer parte do mercado de trabalho, impée-se a necessidade de que Ihe sejam garantidas condigées humanizadoras para o exercicio de seu oficio, Para elas, a desigualdade no mercado de trabalho em relago aos homens soma-se a desigualdade no mercado de trabalho em relagdo as mulheres brancas. Todos os dias, em todo lugar, milhares de mulheres negras, racializadas, “abrem” a cidade. Elas limpam os espacos de que 0 patriarcado e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar. Elas desempenham um trabalho perigoso, mal pago e considerado nao RevLet— Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 —jan.fjul, 2022 ISSN: 2176-9125 161 qualificado, inalam e utiliza produtos quimicos téxicos e empurram ou transportam cargas pesadas, tudo muito prejudicial satide delas. [...] No momento em que a cidade “abre”, nas grandes metrépoles do mundo, mulheres e homens correm pelas ruas, entram nas academias, salas de yoga ou meditagéio. Aderindo ao mandato do capitalismo tardio, que exige manter os corpos saudaveis e limpos, essas mulheres e homens, na sequéncia de seus treinos, tomam um banho, comem uma torrada com abacate e bebem um suco detox antes de prosseguirem com suas atividades. Chega entao a hora em que as mulheres negras e racializadas tentam encontrar um lugar no transporte puiblico para seus corpos exauridos (VERGES, 2019, p. 18- 19). A economia dos corpos esgotados esta calcada na continuidade de formas coloniais de dominagéo produzidas pelas estruturas econémico-politicas, O capitalismo, tal como se configura hoje, é corolario do controle da economia, da natureza e-recursos naturais; do género-e sexualidade, \da»subjetividade e do conhecimento. Parasitario, o lastro de destruigdo oriundo dessa pratica exploratéria 6 também responsavel pela constituicao da modernidade europeia, conforme apontam 08 intelectuais do grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), do qual fazem parte Walter Mignolo, Anibal Quijano, Ramén Grosfoguel, Catherine Walsh, entre outros. Assim, no teriam sido os paises europeus que trouxeram a modernidade para o chamado “Novo Mundo", ao contrario, a construgéo do estado moderno europeu se deu as custas da espoliagao de nossos povos e riquezas, em um ato forgado que envolveu (e envolve) género, raga e trabalho. E por isso que, para os pensadores do Grupo MIC, as palavras modemidade/colonialidade sao inseparaveis, O giro decolonial, ou seja, “o processo de resisténcia teérico e pratico, politico € epistemolégico a légica da modemidade/colonialidade” (BALLESTRIN, 2013, p.105) 6 justamente o questionamento desse ponto de vista eurocéntrico implantado com tanto sucesso que chega a se naturalizar entre nés. Em La vie bidim a’Ambrosia Nelson (2016), 0 giro decolonial pode ser sentido pelo processo de transformagao do olhar da protagonista que, inicialmente, idealiza a "metrépole” como o local onde impera justiga e igualdade, mas que, paulatinamente, passa a captar com olhos dissolutos a perspectiva estereotipada do “metropolitan” em relagao a sua terra natal. Ambrosia destitui-se da fantasia de uma Franca republicana e receptiva a diversidade étnica e cultural 4 medida que é atirada aos dispositivos de apagamento identitario e de exploragao do trabalho. Na condigao de mulher racializada, o trabalho que desempenha deve permanecer invisibilizado e as chances de lograr uma RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan fjul, 2022 ISSN: 2176-9125 162 educagao superior sao dificultadas apesar de sua nacionalidade francesa, Género e raga se antepdem ao direito do exercicio pleno de cidadania. Para Vergas (2020, P.20), “a escravatura fabrica vidas supérfluas, nas quais nem a vida nem a morte importam, corpos-himus ao capitalismo” e, como consequéncia disso, um dos paradoxos produzidos pelo capitalismo é a proliferagdo de vidas “descartaveis" invisiveis que, no entanto, séo essenciais para o funcionamento de qualquer sociedade, “O" proprietario do corpo invisivel é uma mulher negra, cujo esgotamento é a consequéncia da ldgica histérica do extrativismo que construiu a acumulagao primitiva do capital - extragao de trabalho dos corpos racializados e das terras colonizadas. Essa economia do esgotamento dos corpos esta historicamente ancorada_na escravatura, periodo no qual o ventre das mulheres negras [... foi transformado em capital (VERGES, 2019, p. 18-19). ‘As marcas da diaspora se fazem sentir, sobretudo, nos corpos negros femininos, pois eles esto situados no entrecruzamento de signos culturais e politicos que se inscrevem, como afirma Sandra Regina Goulart Almeida (2015, p.121) em um espago domesticado e selvagem a um s6 tempo. “E domesticado porque foi ao longo dos anos um espago.culturalmente codificado por inscrigdes.¢ opressées, e 6 um espaco selvagem no sentido que é um signo de transgressdo, oposieao, resisténcia e desejo”. A resisténcia e a transgresséo da fanm djék narrada no romance se estabelece & medida que Ambrosia se rebela contra os mecanismos de exclusdo da “metrépole” e busca penetrar pelas fissuras do sistema e fazer valer seus direitos franceses. Essa vida bidim, anunciada desde o titulo, é gestada a partir do momento em que entra no navio em diregao a Franga. No imenso espago do oceano nascem as diferengas, mas nele também cabem todas as possibilidades. A diaspora, como locus da movéncia, ocupa um espago liminar em que o ambivalente, o diverso e 0 miltiplo imperam. Nao deixa de ser risivel 0 modo como se entabula a viso republicana francesa. No afa de se construir um discurso unissono em relacdo a identidade nacional, percebe-se também o entronizamento da branquitude, cuja identidade depende da exclusao do Outro. Essa identidade branca é relacional por natureza e, assim, define-se racialmente a partir daquilo que 0 Outro nao é, Trata-se, para Grada Kilomba, de uma defesa de mecanismo do ego, que significa dizer, em outras RevLet— Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 - jan fjul, 2022 ISSN: 2176-9125 163 palavras, do processo de afirmagao de uma identidade supostamente superior em detrimento de outra. Para ela, isso corre quando ha uma recusa em reconhecer em si préprio as mazelas de sua condigao e, desse modo, a identidade — no caso, a negra —, “torna-se entdo tela de projegao daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo” (KILOMBA, 2019, p. 38). Nesse sentido, é 0 sujeito negro que se toma o agressor, enquanto 0 sujeito branco é vitimizado. Diante disso, “nao é com o sujeito negro que estamos lidando, mas com as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser” (KILOMBA, 2019, p. 38). Ouso dizer, portant, que no imaginario “metropolitano” francés, onde nos ancétres les Gaulois"® deram origem a identidade francesa nacional, ha um completo estranhamento em relagao a uma Franga sul-americana, situada no coragao da floresta amazénica, como 6 0 caso da Guiana, Esse estranhamento ‘estende-se, obviamente, aos demais Departamentos. Penso, ainda, que seja possivel falar em uma espécie de esquizofrenia que acomete a Franga “metropolitana”. Explico-me: uma vez que a etimologia da palavra esquizofrenia significa separagao, quebra, diviséo e que, em termos clinicos, caracteriza-se por pensamentos ou experiéncias que parecem nao estabelecer contato com a realidade, como equacionar a diferenga entre © que se concebe como um legitimo francés e as identidades plurais nos Departamentos? Come ilustrado.no romance de Thebia (2016), Ambrosia ¢ francesa, porém, nao necessariamente reconhecida como tal. A legislagao que rege a nacdo também deveria regular a vida dos migrantes franceses que partem dos Departamentos em diregdo a capital do pais, mas a eles sdo destinados o tratamento de exclusdo, de invisibilidade, de exploragao, de apagamento cultural. Suas ‘vidas supérfluas’, seus “corpos-hiimus ao capitalismo", como descreve Vergas, constituem a ameaga, 0 Perigo, o sujo, mas também, 0 excitante, o desejavel. Enquanto isso, na outra ponta, @ branquitude olha “para si como moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa’ (KILOMBA, 2019, p.37). Nessa diferenga reside aquilo que Grada Kilomba intitula de “outridade’. “STradugao livre do original: “nossos ancestrais, os gauleses". RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 - jan fjul, 2022 ISSN: 2176-9125 164 Consideragées finais Pensar a diaspora é langar luz sobre as complexidades contradicées existentes dentro do Estado Francés, Se ela pressupée, entre outras questées jd abordadas aqui, uma mobilidade transnacional, como conceber o percurso entre Guiana e Franga “metropolitana” como um movimento diaspérico? Essa via de pensamento sé é possivel tendo em vista aquela espécie de esquizofrenia que acomete a Franga “metropolitana”. Ambrosia nao cabe, em pé de igualdade politica e cultural, no mesmo pais do “metropolitano” ou da “metropolitana”. Ela é a outridade, a estrangeira, aquela que nao descende dos ancestrais gauleses porque tem origem em Africa, aquela cuja lingua materna nado 6 somente o francés. E é por isso que a extenuagao de seu corpo nao cabe nas discussées de politica ou satide piblica, que os cargos de destaque ou os bancos escolares de alta qualificagao nao s4o pensados para ela. Nesse espaco de (ndo)pertencimento nacional, seu lugar esta garantido na economia dos corpos esgotados. A Franga “metropolitana” é, contudo, uma criagdo da diéspora, A via para a modernidade do Estado francés é marcada pela conquista, expropriago, genocidio, escraviddo, pelo racismo, pela exploragdo, pelo longo periodo de dependéncia colonial. O Estado franeés nasce da violéncia e através dela, Ele repousa sobre aquilo que caracteriza a fronteira de exclusdo, a construgao do Outro, daquilo que é permitido e daquilo que nao é permitido existir enquanto “normal”. No arco temporal que compreende os movimentos diaspéricos, desde o trafico de humanos para trabalho escravizado a busca de melhores condigées de vida, de emprego, entre outros, os corpos de mulheres racializadas so os que mais tém sofrido as consequéncias dos atravessamentos politicos e de poder, dos sistemas coercitivos que regulam os espagos de circulagao. Vivendo nas dobras da opressdo, contudo, para elas nao hd outra saida a nao ser reagir a violéncia sistémica e, nesse sentido, em cada constelagao da diaspora — seja ela crioula, africana, asidtica, latino- americana -, onde houver o pensamento djék, medrara a resisténcia. Fanm ka fann tchou lavil RevLet— Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 — jan. ful, 2022 ISSN: 2176-9125 165 Referéncias ALMEIDA, S. R. G. Cartografias contemporaneas: espago, corpo, escrita. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciéncia Politica, Brasilia, n. 11, p. 98-117, maio-agosto 2013. 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Recebido em 30 de margo de 2022 ‘Aprovado em 03 de junho de 2022 RevLet — Revista Virtual de Letras, v. 14, n° 01 —jan.fjul, 2022 ISSN: 2176-9125

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