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VOZES SILENCIADAS NO MEIO DO MUNDO: UMA LITERATURA DE COSTAS PARA A AMERICA DO SUL Natali Fabiana da Costa e Silva! A regido das Guianas localiza-se no extremo norte da Amética do Sul e compreende a Guiana Francesa, 0 Suriname, a Repiblica da Guiana, o Amapé e parte de Roraima, no Brasil, além de uma porcio da Venezuela. Esse territério, ainda bastante desconhecido dentro do continence, abriga uma produgio artistica proficua tanto em termos numéricos quanto em relagso A diversidade de sua expres- sio literdria. Em que pese sua infima circulagio em outros espasos, rio raras as vezes, as narrativas prodtzidas nessa regizo questionam, os paradigmas literdrios vigentes ¢ resgatam a problematica de vores cuja legitimidade é continuamente posta em questio. Situado no coragio da Amazénia, um olhar atento para as similaridades desse trritério revela uma tea com pouca interconec- ‘ividade com a América do Sul; por outro lado, suas relagées intensas com o Caribe deram origem & alcunha de “Amazénia Caribenha’®. A auséncia de conexio com seu entorno geogréfico ~ é preciso pensat, 7 Universidade Federal da Amapé (UNIFAP), Macapé — AP — Brasil. Professora cde Teoria Literiria,natall_cont@hotmail.com. * A sede da Comunidade do Caribe (CARICOM) esti situada em Georgetown, ‘capital da Repiblca da Guiana, 25 Natali Fabiana da Costa ¢ Silva grosso modo, que o brasileiro desconhece 0 préprio pafs e pouco sabe sobre 0 Amapé ou Roraima — relega as Guianas & condicio de periferia econémica ¢ geografica por parte dos grandes centros ¢ isso tem implicagées diretas na percepgio que essa regio tem desses grandes centros e no modo como ela olha para si propria Isso posto, a construgio identitéria nesse espaco passa neces- satiamente por um anseio de reparagio histérica attelado ao periodo da colonizacio curopeia, sobretudo, durante a época da escravizacio de mao de obra trazida dos pafses afticanos, pois 0 comércio do café, da cana-de-agticar e da madeira enriqueceram as metrépoles a tal ponto que a independéncia da Repiblica das Guianas, por exemplo, ocorreu somente na década de 1960. Ao lado do Suriname, cuja independéncia foi outorgada em 1975, a Republica das Guianas é 0 pais mais jovem da América do Sul ¢ também um dos mais pobres, consequéncia da exploragéo desenfreada e agressiva de outros paises? Se outrora 0 comércio de commodities de origem agricola movimentou a economia das Guianas ¢ fomentou fluxo migra- trio de africanos para a América por conta do trifico de escraviza- dos — uma migracio obviamente forcada e desumana, ¢ importante salientar ~, houve, posteriormente, com a aboligio da escravidao, uum grande incentivo para a vinda de indianos e javaneses & regio com o fito de trabalharem no comércio ¢ nas lavouras. Atualmente, a despeito da chegada de chineses ¢ haitianos no territério, 0 fluxo migrat6rio é majoritariamente interno 3 regiio das Guianas. Entre suas causas, empregos de pedreiro na construgio civil ou de empre- gada doméstica ¢ o garimpo ilegal despontam como atividades que promovem o deslocamento de pessoas, sobretudo, para a Guiana Francesa e 0 Suriname. No caso do garimpo, além da extracéo do ouro, a atividade necessita de outros servigos como alimentasio, transporte, comércio e prostituiggo (CORREA, 2014) 7A Guiana Panera, por exemplo, segue a hoje como Colevidade Teta (Collective Ten ) em slag 3 Franga.€ prec ter cutela em relasSo 3 situagSo da Guiana Frances, onde eit pauta &controvetia. Enquano wma parte da popula scinvindia independénca do pal, hi uma grande parecla que demands to soment mais asronomia politica efnanesrs cm ‘eagio Fangs, mat nioalmejs sr independent de Guyane ~ 26 Vozesilenciadas no meio do mundo: uma literatura de Costas para a América do Sul A diversidade de povos trouxe também uma pluralidade de linguas e influéncias culturaise rligiosas. Assim, é possivel encontrar as linguas francesa, portuguesa, holandesa, inglesa, javanesa, chi- niesa, 0s idiomas crioulos e indigenas, além de diversas expressoes artisticas. A literatura produzida ali carrega a marca dessa profusio. étnico-cultural ¢ linguistica e, por isso, nao é possivel pensar em. uma expressio literdria homogénea. Nio obstante, certos elementos comuns estio presentes em romances das Guianas, como a temati- zasio das contradigbes sociais ¢ o discurso sobre a marginalizacao de tuma regio que ficou conhecida como “Inferno Verde" De infima reverberagio na América do Sul ¢ quase nenhum prestigio fora do seu territério, as narrativas que compéem esse espago inscrito na heterogeneidade estio povoadas de personagens silenciadas historicamente, como mulheres escravizadas, presididtios, trabalhadores das lavouras, quilombolas — os chamados marrons ou bushnengués~, entxe outeas, que falam enquanco representantes de culturas nao valorizadas e/ou pouco conhecidas, apesar de inter- mediadas por um escritor ou uma escritora, Por isso, sem negar 0 isolamento das Guianas em relagio aos chamados centros econ: micos c/ou produtores de conhecimento, é possivel observar uma literatura que se afirma como marginal busea falar a partir desse lugar. A diversidade de percepgdes do mundo por meio de vozes marginalizadas, ou vores ex-céntricas, visa ao reconhecimento da pluralidade e da diferenga assim, inscreve-se no signo da resisténcia trazendo & tona a problematica da legitimidade do discurso. Segundo Dalcastagné, © controle do discurso [..] €a negasso do direito de fala Sque Jes que nao preenchem determinados requisits sociais: uma censura socal velada, que silencia os grupos dominados. [.] fundamental é pereeber que néo se trata apenas da possibilidade de falar [..], mas da possibilidade de “falar com autoridade”, Vile Tembrar que at Gulanas soa regi para onde cram enviados os degredados das exrmetsdpoles frances, ingless cholandesa. Além disso, iniimerse prise fran ‘onsruidae com o fa de canfinar or condenador mai perigasos da Europa, com 6 0 caso de Papillon, na Guisna Frances, 27 Natali Fabiana da Costa ¢ Silva iso 6 0 reconhecimento socal de que © dscurso tem valor, portnto, merece sr oid, (DALCASTAGNE, 2012, p.19) Quando escritores de uma regio tida como “perifériea’ pelos ji mencionados grandes centros cedem a palavra a personagens cujas, ‘yozes nao podem ser ouvidas, eles nio somente desafiam os discursos hegeménicos, mas, “também, nossas proprias eren¢as como leicores © produtores de saber e conhecimento” (SPIVAK, 2010, p.9). 0 desdobramento que essa postura implica coaduna com as reflexdes de Spivak no tocante ao papel do intelectual pés-colonial relativamente a0s sujeitos subalternos’. Segundo a estudiosa, em nenhuma circuns tncia esse intelectual deve falar pelo outro sob pena de reproduzit as estruturas de poder e opressio, todavia, é seu papel eriar espacos de resisténcia e combate para que, no momento em que 0 sujeito subalternalizado falar, le tenha a possibilidade de ser ouvido, Subentende-se, a partir dessas consideragées, a importincia da criagio de espagos de representagio, ¢, néo menos importante, da construgio de uma conseiéncia que questione os limites representa- cionais, Isso se articula com o desejo pela reconstrucéo do passado histérico e pela cesséo de voz aos sujeitos silenciados, ou, nas palavras de Spivak, subalternos, que esté na base da literatura das Guianas, ‘uma ver.que se a perspectiva dos acontecimentos do passado podem ser alterados, a histéria pode ser reescrita, pois “tanto a ficeo como a histéria sio sistemas culeurais de signos, construgées ideoldgicas cuja ideologia inclui sua aparéncia de auténomas e auto-suficientes” (HUTCHEON, 1991, p.149). A eserita da histéria, conforme aponta Hutcheon (1991), contrapée-se & nogio Aristotélica de que o historiador poderia falar somente a respeito do que aconteccu, enquanto 0 pocta falaria do que poderia acontecer. Para ela, é preciso confrontar os paradoxos da representagio ficcional e histrica, pois seriam construgées dis cursivas determinadas ¢ limitadas historicamente que, por isso mes- mo, variam a0 longo do tempo. O “desejo de reescrever passado 5 Para Spivak, 0 wujeito subakterno é aquele excluido da mercado e da repreten- «agi politica ¢ logal, impossbiitado de participa plenamente do extrato social dominant 28

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