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14 O genital e o pré-genital na perversdo: “Bate-se numa crianca” Em Bate-se numa crianga*, FREUD estuda um trago perverso singular, encontrado no transcorrer da andlise de pacientes neurdéticos. Trata-se de individuos para os quais uma cena excita particularmente: nela presenciam, real ou fantasiosamente, como uma crianga é castigada ou humilha- da de todas as formas’ possiveis. Em geral, 0 evento se con- clui, por parte do paciente, com um ato masturbatdrio. FREUD comega interrogando-se a quem essa crian- ga estaria referida e quem a castigaria. Ao perguntar a seus pacientes, costumava receber, invariavelmente, a res- posta “nao sei..., uma crianga é castigada” (formulagao esta. que corresponde a traduc&o literal do titulo do trabalho). A anélise conduziu a que fosse solucionada uma série de vicissitudes, agrupadas por FREUD em trés fases; vamos descrevé-las a seguir, segundo uma sequéncia invertida a Tespeito de como foram descobertas, para situd-las de acordo com sua cronologia temporal. 1. T. VIE de las Ob. Comp. B.N., Madrid, 1974. 149 E necessério ter previamente em conta que esta fanta- sia foi estudada mais claramen‘e em pacientes femininos ¢ assim, consideraremos principamente esta vertente, j4 que af encontramos a possibilidade Je melhor observar a génese do distérbio perverso. Depois consideraremos 0 que se in- fere do relato de pacientes masculinos observando, desta vez, como a situagdo se complica. Nestas pacientes, FREUD chega a descobrir uma primeira fase ocorrida na infancia quando, por exemplo, chega um irmozinho na familia, Do édio contra este novo polo de atracéo do carinho paterno surge um desejo do sujeito, que se poderia expressar como: “Um adulto (papai) bate numa crianga (irmao, etc.) odiada por mim”, ‘A segunda fase apresenta uma mudanca radical a res- peito de quem & que apanha, pois a prépria paciente percebe © castigo; ela diria: “Apanho de meu pai”. Esta fase, no consciente, nfo surge como lembranca na andlise, E uma construco realizada no transcorrer da mesma. A terceira fase corresponde A manifestagao pela. pa- ciente no relato inicial da fantasia: “Uma crianga apanha”, sendo acompanhada, por sua vez, de uma intensa excitacdo sexual, que leva ao orgasmo. Resumidos cronologicamente em suas respectivas for- mulas, o seguinte resultado € obtido: 1) Um adulto (pai) bate numa crianga (irmao, ete.) odiado por mim. 2) Sou castigada por meu pai. 3) Uma crianga é castigada. Destaca-se facilmente a analogia entre a primeira ¢ a terceira formulagdo, porém, nao deve passar despercebido que a iiltima se expresse de forma indeterminada. Algo teve que ocorrer para que a crianga que se devia castigar fosse 150 trocada por um outro, indefinido. Vamos nos deter um pouco mais, portanto, na consideragdo de seus pormenores. A primeira fase destaca a violéncia agressiva com que a paciente espera eliminar 0 oponente, porém, seria um engano indicar como sadica tal atitude, pois, como afirma FREUD, no caso que examinamos, se tornaria uma even- tualidade prévia. Nao ha verdadeiro prazer na dor, condi- Go do sadismo, e nfo é a paciente quem executa a ago. Apareceu outro capaz de Ihe tirar amor € s6 por isso é levado em conta, devendo-se climind-lo. A paciente res- guarda, com sua atitude, a intengdo de ser a tinica destina- téria do amor dos pais. A ferida narcisista que experimenta a crianga, nestas circunstdncias, foi resgatada na evocagio que o poeta SPITTELER fez de sua propria infancia*, quando escreveu: “Além do mais, j4 havia outro Adolfo. Um pequeno que garantiam ser meu irmo, mas que eu nio podia compreender para que servia e muito menos porque o consideravam igual a mim, Para que necessitava de um ir- mio? E no s6 era inttil, como prejudicial. Quando eu amolava minha av6, ele também queria amolé-la e quando me sentavam na carrocinha, colocavam-no na minha frente, tirando-me lugar e ndo podendo eu esticar as pernas sem que meus pés embaracassem nos dele”. Uma vez estruturada a situaco edipica, aparecem, junto ao incremento da aspiracdo libidinal pelos pais, as primeiras evidéncias do sentimento de culpa. Agora a paciente encontra-se em situacdo de sofrer pelos desejos passados; a agressio contra o rival a faz sofrer. Embora na inclinac&o ao castigo expiatorio se imiscua a libido, pois se sentia merecedora da reprimenda do pai por lade para com o irmao, também o deseja como ‘objeto de amor. A porca torce 0 rabo. Da idéia “mereco ser 2, Citado por FREUD em La interpretacién de los suefios, t. IL, pig. 501, ibid. 1972, 151 castigada por papai’’, se pass. inadvertidamente para “me- rego receber seu castigo, poréa, isso me dé prazer” ou, em todo caso, “porque me d4 pazer”. Se misturamos estes ingedientes, culpa e libido, o resultado ser4, sem duivida, cmasoquismo. Para que isso aconteca, esta eventualidade ceve ser acompanhada da re- gressdo 20 perfodo anal, jé qte o “papai me ama” da fase edipica cede lugar ao “papai me bate (e me dé prazer)”, que se refere ao pré-genital. Iiso ¢ auxiliado, por sua vez, pelo recalque recaido sobre 0 «dipico, que fayorece a troca, ‘no. manifesto, do amor deckrado pelo castigo que se fantasia, Esta possibilidade de aparecimento do masoquismo a partir do perfodo agressivo, ainda que nfo sédico, nos permite discorrer sobre o momento de’ génese do componente especificamente sexual. Seguimos a linha proposta por LA- PLANCHE', que estende 0 conceito freudiano de apoio da sexualidadle, em sua emergéncia, na autoconservagio. Do mesmo modo, é concebfvel a génese do par sadismo-maso- quismo a partir da agressfo propria do impulso de envol- vimento da crianea. Assim, entendemos um trabalho como Os impulsos e seus destinos, onde FREUD apresenta esta cronologia*: 1) A agressio ao objeto no acompanhada no sujeito pela vivéncia do prejutzo ou dor que the inflige. Corresponde a0 examinado como primeiro movimento na génese da se- xualidade, quando 6 a autoconservagao que orienta a busca do seio. 2) Posteriormente, 0 meniino infere, a partir de suas proprias experiéncias de sofrime;nto, o que haveria de ocor- 3. Agresividad y sadomasoquismo, en Vide y muerte en psicoandlisis. Amotror- tu, Bs. As, 1973. 4. T. Vi, pg. 2045, ibid, 1972. rer ao objeto, articulando agressio e dor. Porém, esta eventualidade destaca a reversio do processo, visto que a agressio a outro foi trocada na agressdo recebida, FREUD opina que, transposto certo limiar, todo esti- mulo doloroso é capaz de somar elementos A excitacio sexual, Surge a sexualidade, entdo, no momento reflexivo (correspondente 4 fase auto-erética). 3) Por fim, o impulso se deflexiona, porém, agora o objeto é investido no s6 pela agressdo isolada mas pelo derivado do singular prazer conhecido na etapa anterior. Estamos aqui, diante do sadismo. Fica evidente, por isso, a diferenga substancial entre 0 1.° e o 3.° momento; transcor- re a entrada em cena da libido; 0 sujeito sabe do prazer na dor. A partir daqui, poder buscar 0 configurando-se a tendéncia masoqi bém pode internalizar-se a agressio, ¢ neurose obsessiva, onde 0 prdprio sujeito se encarrega de infligir-se 0 tormento. Neste caso, o Superego € sidico, en- jeto que 0 maltrate, Tecalque € assim, nfo observamos no obsessivo nenhum prazer em sua auto-censura, destacando-se, pelo contrério, as exigéncias superezsicas. 108 agora, apés estas observagdes, ao segundo ‘Bate-se numa crianca”. Se levarmos em conta que 0 primeiro e 0 terceiro tempo costumam ser conscientes, enquanto que o “eu apanho de meu pai” é tio somente uma fantasia construfda na andlise, podemos chegar as seguintes conclusdes: aqui aparece a fantasia (“meu pai me bate”), que inclui a sexualidadé (masoquismo), enfatiza 0 conflito € conduz ao recalque, com a conseqiiente regressdo anal, constituindo-se 0 inconsciente. 153 Chegamos, deste modo, 10 conceito de fantasia, a qual FREUD compara com indiviluos mesticos que aparentam ser brancos, ainda que sem yoder ocultar suas raizes ne- gras’. A fantasia compartilha,em sua estrutura, de elemen- tos conscientes-pré-conscientes “brancos”, com os elementos peculiares do sistema inconsci:nte, os “negros” na compara- gao de FREUD. Estas fantasiis poderio tornar-se conscien- tes, como no caso dos devineios diurnos, assim como Permanecer inconscientes, cono nas neuroses ou no exem- plo aqui estudado. Nesta circunstancia, o rezalque conduz, como solugiio transacional, a terceira fase, ccm a fantasia consciente “uma crianga apanha”, que carrega em si a alternativa de gozo derivada diretamente da disposic&io masoquista da fase an- terior, gracas a excitagdo sexual que promove. E obvio, neste sentido, que o ser mais ou menos anénimo que castiga é um substituto paterno. © que foi dito permite comprovar que o sintoma per- verso se distingue do neur6tico no afeto que desenyolve, pois enquanto que no primeiro caso h& acesso ao gozo, no segundo 0 sujeito se angustia pois seu Eu reage frente a0 perigo despertado pelo desejo. Por sua. vez, 0 impulso pré- genital esta plenamente de acordo com. sua hist6ria pré- edfpica; a regressdo fez as vezes de ponte. Desta mancira, como afirma FREUD, o sintoma perverso vem a ser, como © neurético, a expressiio de um resto do complexo de Edipo. Consideremos agora o desenvolvimento da fantasia no caso de um homem. Aparemitemente, sua segunda fase € consciente, O sujeito costuma recordar 0 “ter sido casti- gado” pela mae. E 0 caso, que estudamos em outro capi- tulo®, do sujeito que relembra, como, aos quatro anos de 5. Lo inconsciente VI, pie. 2075, ibid!, 1972, vlcisinuds, idade, a mide o mergulhara na bankeira, enfurecida com ele devido 4 sua intengdo de layar-se sozinho para demonstrar 0 dominio do corpo. Claro que o caso tipico deveria destacar a excitagdo sexual concomitante; em contrapartida, aqui o afeto foi uma angiistia muito intensa. Esta é a diferenca entre © masoquismo erdgeno, em que é enfatizada a consecugio do prazer na dor, ¢ 0 masoquismo moral, em que principal- mente se destaca 0 sadismo superegdico; o caréter erdgeno do masoquismo foi teprimido’, Reencontramos aqui a dis- tingo entre peryerséo ¢ neurose, Voltando ao caso do homem, a fantasia de ser castigado conduz, pela excitacéo promovida, ao ato masturbatério; outras vezes 6 possivel chegar ao coito apés ter sido maltra- tado pela mulher, Detalhamos em outro lugar esta patologia", ratificando a asseveraciio de FREUD e de FERENCZI*, no sentido:de que a fantasia do coito contém, nestes sujeitos, a aspiragao de reingresso no seio materno, tendo-se produzido, para isso, a equacio simbélica pénis = corpo, Porém, a mae a que pretende voltar o impotente foi “marcada” de uma maneira especial, pois o sadismo entrou go precocemente em relagdo com ela. Assim, na te de retorno ao lugar do narcisismo primitivo, “se modifica o sinal algébrico do “duplo”: de um assegurador da sobrevivéncia converte-se em um sinistro mensageiro da morte”, segundo expressa FREUD em Lo siniestro"®. Em definitivo, 0 sujeito termina encerrado em um narcisismo arrogante,-do qual pode libertar-se, sendo 7. FREUD também descieve um masoquismo feminino préprio de certa ati- ‘ude passiva comum na mulher, o que talvez nfo fosse mais que um modo de atribuir uma nova qualidade a0 masoquismo erdgeno, 10. TT VIL, pig. 2494, ibid. 1974, 155 este um ponto de articulacdo etre a psicopatologia da im- poténcia sexual e 0 que acontee na neurose obsessiva. FREUD afirma que, embwa a fantasia masculina de ser castigado pela mae seja cmsciente, encobre outra in- consciente, a de ter sido casigado pelo pai. Esta sim corresponderia a 2.# fase estudaia na mulher, enquanto que a fantasia do homem sobre 0 maltrato pela mie seria a 3.4 fase, capaz de consciéncia, sinilar 4 de “Uma crianca apanha”, da mulher, Tanto no caso da mulher como do homem, 0 n6 é a fantasia mascquista de receber 0 castigo do pai. Entendo que se pode resgatar certa obscuridade do texto de FREUD, quando homologa as eventualidades de ambos 08 sexos, se pensarmos que no homem (e talvez também na mulher, mesmo que sob forma menos evidente) quem castiga, mais que o pai, 6 a mae pré-edipica. Situamo- nos, deste modo, em uma alternativa que desconhece a castragao por ser prévia ao estabelecimento da diferen- ciag&o sexual. A mie deve aparecer realgada em sua con- digho falica. © mito de Aquiles, j4 considerado no capitulo sobre neurose obsessiva, ¢ ilustrativo neste sentido. A deusa Tetis, sua mie, desejosa de conferirlhe a condigao imortal — 0 menino era mortal, como o pai, io rei Pelen —, apela para um rito singular; segundo uma wersio, mergulha-o 2 noite no rio Estige, enquanto que, segundo outra versio, expde 0 pequeno as chamas para que cubiram seu corpo. E evidente, na primeira forma, a “imersio” \do menino no desejo ma- termo, a0 passo que as chamas sfio algo semelhante ao alu- dido pelos pacientes nas fantasias de flagelo. Esta 6 uma mie pré-edipica, j4 que Peleu apzarece quando resta apenas um tltimo momento ritutl: invesstir de eternidade 0 calca- 156 nhar de Aquiles, Ele o arranca da mie pafa levé-lo consigo. Vemos aqui dramatizada a aparigao do pai como interventor. © que mencionamos destaca, por sua vez, 0 cardter de negagio da castraco que na perversio fica evidenciado Embora no trabalho que examinamos, FREUD se refira a ele tangencialmente ao falar da regressio como uma etapa prévia ao interesse do sujeito pela diferenca sexual, poste- riormente, em Fetichismo™, jenta esta intengdo na rene- gacdo propria da génese do fetiche, assim como no recurso homosexual de negar-se A pessoa castrada e, com isso, a0 coito heterossexual. = VIII, ibid. 1974, 157

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