O Bode Expiatório

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René Girard “Cedo ou tarde o fermento evangélico deve brovocar 0 desmoronamento da sociedade em que ele penetia e de todas as sociedades ana- logas, mesmo aquelas que de inicio parecem se remeter apenas a ele, as sociedades chamadas SC CAR Te eRe lene OMe east a(R CMe modo ambiguo e sobre a fe de um mat-entendi- do parcial, de um mal-entendido forgosamente Tell fecllalrel (Oar Roun Peale BLOT dos evangelhos e de todos os mapas teligiosos Di) (efel eee ear coer hse team CTL OCeLA COMI TL oy Ey ICR OO) ics COM Pale oOsc MLR SoCo) moronamento nao é uma expulsao mais forte que Vitia de Deus ou de Jesus; ao conirario, € 0 fim de toda expulsao. E por isso que a vinda do Reino de Deus é de fato destruicao para aqueles (eT en ETE I Men CMe Come sce (es (0 ater ee ua liacao para aqueles que procuram se reconciliar. A logica do teino, que nao se mantém caso se divida perpetuamente contra si mesmo, sempre Looe MUO tee OOM CRW CLT M(Ol verdadeira na historia real, gracas ao mecanismo dissimulado da vitima expiatorla que sempre impediu seu término pelo fato de restituir seu vigor a diferenca sacrifical, a expulsao violenta da violéncia. Eis que ela advem agora na rea- lidade historica, de inicio para os judeus que Eee Tiree Rel ie (ect mca reat OS pagaos, para os gerasenos do mundo mo- Cen ocular eu eIcUm een st Matec teaCeee CMe lst temae steer ta Sr LeliurrSUMLAILOMe iar Len Coa ULe- VoL iK' alo} Eles se alegram ao ver que nada de irremediavel SC Leo Mey UE MC CC OUUATTTN CC] coe pensam eles — convenceram os evangelhos de Catastrofismo imaginario...” RENE GIRARD O BODE EXPIATORIO PAULUS Dados Intrsacionais de Catlkypapio na Publicngte (CHP) (CAmara Beaaiiciea da Liveo, SP, Brasél) Girard, René © bode expianinin f Rend madjucin Ive Staminlot, — She Pauli: Paclus, 2004, — (Estusioa aritzopoligicas) Titulo original: Le boue émissaite liogeaia. ISBN 974-95-349.25 30-5 1. Bode expaaticic 2, Jesus Cristo + Paasio 3. Pesseg 4. Sacrilizin 5, Violincia - Penguins 6, Veoltrcta » Aspecten religion L Tirade. H. Série, CDn.30s |. Emudor antiopoiégicas : anseopologia cultural: Sociologia 306 ‘Titulo original Le bee éenissaire © Baitions Grmer & Fasquelle, Paris, 1982 ISBN 2-246-26781-1 Diregko editor Paulo Bara Tradugda Ivo Swrniolo Copa Andenoa Daniel de Oliveim Editoragio, impresao e seahamente PAULUS, 1° edicie, 2004 1* reimpressfia, 2014 Sati ESC rac cioeors 2004 Rua Franctaco Cruz, 225 © 04117-0971 Sho Pi Fax (11) 5579-3627 © Tel. (10) S087 www. paulus.com.or * editorialifpaulus.com br ISBN 978-85-349-2130-5 I GUILLAUME DE MACHAUT E OS JUDEUS © poeta francés Guillaume de Machaur escrevia nas meados do ‘adc, XIV. Seu Judgamento do Rei de Navarra mereceria ser conhecido Melhor A parte principal da obra, sem ddvida, ndo é mais que um longo poema de estilo cortés, convencional pelo estilo ¢ pelo assun- tp. © inicio, todavia, apresenta alga de surpreendente. Trata-se de uma seqdéncia confusa de aconrecimentos catastréficos aos quais Guillaume pretende ter assistido antes de, finalmente, adoentar-se ile terror em sua casa para ento esperar a morte ou o fim da indizfvel provi, Alguns acontecimentos sic inteiramente inverossi Outros o seriam apenas pela metade. Todavia, uma impressiio se des- “tnew no relato: deve ter acontecido algo de real. Ha sinais no céu. As pedras choram e matam os vivos. Cidades inteinis sio destruidas pelos raios. Na cidade onde vivia Guillaume — gle nvio diz qual — os homens mortem em grande niimero. Algumas dus martes sio devidas & perversidade dos judeus ede seus ctimplices tre os cristios, Como estas pessoas faziam para causar vastas perdas 0 populagio local? Envenenavam os rios, as fontes de provisio de figun pordvel. A justica celeste interveio em meio a esses maleficios, fevelando seus autores & populagio, que massacrou todos eles. Toda- * pessoas ndo pararam de morres, cada vez em maior nimeto, até certo dia de primavera em que Guillaume ouviu musica na rua e homens ¢ mulheres que tiam. Tudo havia terminado ¢ a poesia cor- fis podia recomegar. © BODE EXPIATORIO Desde suas origens nos sécs. XVI e XVII, a critica moderna con- siste em nio confiar cegamente nos textos, Muites bons espiritos, em nossa época, créem fazer progredir mais a perspicdcia critica, exi- gindo sempre maior descomfianga. Por forga de serem interpretados ¢ reinterpretados pelas geragdes sucessivas de historiadores, textos que pareciam outrora portadores de informagie real hoje em dia sito sus- peitos. Os epistemdlogos © os filésofos, por outro lado, atravessam uma crise radical que contribui pata o abalo daquilo que outrora se chamava ciéncia histérica. Todas as intelectuais, habituados a se ali- mentarem de textos, se refugiam em consideragdes desabusadas so- brea impossibilidade de qualquer interpretagao precisa. A primeira vista, o texto de Guillaume de Machaut pode passar como vulnerdvel no clima arual de ceticismo em matéria de certeza histérica, Depois de alguns instantes de reflexiio, todavia, mesmo hoje os leitores encontram acontecimentos reais em meio As inve- rossimilhaneas do relato, Eles nao eréem nem nossinais no céu nem nas acusagdes contra os judeus, mas ndo tratam todos og temas ine veis de mesmo modo; no colocam todos eles sobre o mesmo plano. Guillaume nada inventou. E um homem crédulo, sem divida, flete uma opiniio piblica histérica. As inumeriveis mortes que ele registra também nao sio menos reais, causadas evidentemente pela famosa peste negra que varreu o norte da Franga em 1349 ¢ 1350, 0 massacre de judeus é igualmente real, justificado aos olhos de nuulti- des assassinas pelos rumores de envenenamento que eirculam um pouco por toda parce. E.o terror universal da doenga que da peso sufi- cliente a esses rumores para desencadear tais massacres. Eis a passagem do Judgamento do Rei de Nevarra que trata dos judeus: Depois disso, veio uma merda falsa, traidora ¢ renegada: foia Judéia, a odiada, aperversa, a desleal, que edeia c ama tado mal, que tanto oure ¢ prara deu ea cristé gente prometeu, WME (of MACHAUT EOS JUDEUS ? ie depuis, rivs ¢ fontes, que eran claras e limpos, ni micas lnpares envent ites suas vidas tern pois vqneles que deles usavam. ‘tm iepentinamente faleciam. Hrs, cortamente, dez vezes cem mil limo moreram, no campo e na cidade, ‘Anes ie fosse percebida pest mortal desventura. enaraiin oi ara Mas quele que no alto senta¢ de longe ve, (que tudo overna etude prove, fos teagan mais celerada fio quis, ¢ logo a fez revelar © tio publicamente saber que cles perder corpo ¢ Ler. Pois tades os Judeus foram destruidos, iis cnforeados, outros queimados, Outts alogados, outros decapirados pola cabega com machado ou espada. E muitos cristdos ao mesmo tempo tunbém morreram vergonhosamente.’ As comunidades medievais temiam de tal modo a peste que até jam pronuncia-lo e home as apavorava; evitavam o mais. que pod mio tomar as medidas que se impunham, com o risce de eonseqiiéneias das epiderias. Sua impoténcia cra tal que reco- hiecer a verdade nao seria enftentar a situagao, mas antes entregar- fi seus efeitos desagregadores, renunciar a todo aspecto de vida he Guillaume de Machaut, publicrdas por Ernest Hoepplier, 1, Le ugement die Société see anciens textes frungais, L908, pp. 144-145. [Apres ce; vint une sso, tralure © remete: / Ce fi fudge la honnie, / La miumwaise, la deslopal, (Qui imme Roat mal, / Qui tant donna ctor ec cnpent f Er promist a crestienne gene, wieres ct fonteinnes | Qui csoient clen plosicurs News poksesnerent, { Done plusiecrs leurs vies finerent: / Car erestit cif qui cn usoiest } Asser nicne mereient. / Dont, certes, par dis dois cent mille / En morurene, qu'a champ, Ceste motte! deconwernt, /Qui rout gouverne et tout pout voit, | Ceste taon, hw color / Ne vole, ernis Io fist reveler/ Et si generalement savoir / Q'ils perdinent corset Cher cuit Juif farone it, H saares cuit, / L’satte noid, leutte or née. (Ec rnatnt ccestien emement / En morurenthenteusemene,| pee /Latosede hache oud 8 OBODEEXPIATORIO normal. A populagio inteira se associava voluntariamente a esse tipo de cegueira. Tal vontade desesperadora de negar a evidéncia favore- cia a caga aos “bodes expiatdrios”? Em Os animais doentes da peste, La Fontaine sugere admiravel- mente essa tepugndncia quase religiosa de pronunciar © termo apa- vorante e assim, de algum modo, desencadear seu poder maléfico na comunidade: A peste (pois é preciso chamd-la por seu nome)... © fabulista nos faz assistir ao processo da md-fé coletiva, que consiste em identificar na epidemia um castigo divino. © deus irado estd irritade por uma culpabilidade que nao € igualmente partifhada por todos. Para afastar a praga, ele faz descobrir o culpade e tratd-lo em conseqléncia, ou entao, coma escteve La Fontaine, “consagra- lo” a divindade. Os primeiros interrogados, na fabula, sfio animais predadores que descrevem hipocritamente seu comportamento de animal pre- dador, que logo a seguir é escusado. O asna vem em tiltimo lugare é ele, o menos sanguinario e, por isso mesmo, o mais fraco eo menos protegido, que se vé, afinal de contas, apontado. Em certas cidades, pensam os historiadores, os jucdeus foram massacrados antes da chegada da peste, apenas com o ruido de sua presenga na vizinhanga, O relato de Guillaume poderia corresponder aum fendmeno deste género, pois o massacre foi produzido muito antes do paroxismo da epidemia. Mas as numerosas mortes atribui- das pelo autor ao veneno judaico sugerem outra explicagio. Se tais mortes saa reais — endo ha razio de considerd-las imagindrias — elas poderiam bem ser as primeiras vitimas de uma s6 e mesma praga. Mas Guillaume nfo duvida disso, nem sequer retrospectivamente. A seus olhos as bodes expiatérios tradicionais conservam seu poder axplicativo para os primeiros estdigios da epidemia. Apenas para os est4- Bios posteriores o autor reconhece a presenca de um fendmeno pro- 41-N. Biraben, Les Homanes et la Pesce en France etdans les pays ewmopéens ev médierrandens, PariseLa Haye, 1975-1976, 2 vol; Jean Delumeau, La Peur en Occident, Paris, 1978, GUILLAUME DE MACHAUT E OS JUDEUS 9 prinmente parolégico. A extensdo do desastre termina por desen- corajar a tinica explicacao pelo complé dos envenenadores, mas Ciuillaume nao reinterpreta a seqiiéncia inteira dos acontecimentos em fungao de sua verdadeira razdo de sex. Podemos entao perguntar até que ponto o poera reconhece a pre- senga da peste, pois ele evita até o fim escrever claramente o termo fatal. No momento decisivo, ele introduz com solenidade o termo gre- go ¢ ainda raro, parece, epydimia. Esse termo, visivelmente, nao fimn- Cloma em seu texto como funciona em nosso texto; ndo ¢ um verda- deiioequivalence do termo temido, mas antes uma espécie de substituto, 4m nove procedimento para nao chamar a peste por seu nome, em um novo bode expiatério, mas desta vez puramente linguistics, s foi possivel, nos diz Guillaume, determinara matureza e a causa dda decnga pela qual rantas pessoas morreram em tio pouco tempo: Nem fisico havia, nem observador que bem soubesse a cansa dizer clo que isso vinha, nem o que fosse (nem remédio nenhum que servisse), a ndo ser que era doenga que se chamava epydimia.* Ainda sobre este ponto, Guillaume prefere remeter-se & opinidio Wblica em vez de pensar por si mesma, Do termo enudito epydimia se preende sempre, no séc. XIV, um perfume de “cientificidade” que pMtribui para afastar a angustia, mais ou menos como as fumigacSes wilcras que éram praticadas hd muito tempo no beco das nas para Nperar os efldvios pestilentos. Uma doenga bem nomeada parece ja curae, para se dar uma falsa impressao de controle, freqdentemente febatizam os fendmenos que nao sao controléveis. Tais exorcismos thais nao deixaram de nos seduzir em todos os dominios em que ncia permanece iluséria ou ineficaz. Recusando-nosa nomed- Spria peste, em suma, que nas “consagra” A divindade. Temos plexity ne wire / Qin bien scetst la cousa dine / Dont ce-venoit, ne que nuls remede n'y metcit), / Fens cant que c‘estoit maladic / Quion appeliote 10 ‘OBODE EXPIATORIO aqui uma espécie de sacriffeio de linguagem bastante inocente, sem dtivica, comparado aos sacrificios humanos que o acompanham ou © pr |, Mas sempre andlogo em sua estrutura essencial, Ainda que retrospectivamente, todos os bodes expiatérios ea- letivos reais e imagindrios, as judeus e os flageladores, as chuvas de pedra e a epydimia, continuam a desempenhar tao eficazmente seu papel no relato de Guillaume que este jamais vé a unidade da praga designada por nds como “peste negra”. O autor continua a perceber uma multiplicidade de desastres mais ou menos independentes ou ligados uns cam os outros apenas por gua significagao religiosa, um pouco coma as dez pragas do Egito, Tudo ou quase tudo © que acabo de dizer é evidence. Todas nds compreendemos o relato de Guillaume do mesmo modo, e meus lei- tores nfo tém necessidade de mim. Naa é, todavia, intitil insistir sobre esta leirura, cuja audécia ¢ poder nos escapam, precisamente parque ela é admitida por todos, porque ela nfo é alvo de controvér- sia. A unanimidade se fez em tomo dela ha literalmente séculos ¢ jamais foi desfeita. E ainda mais notével por se tratar de uma reinterpretagae radieal. Recusamos sem hesitaro sentido que o autor dia seu texto, Afirmamos que cle nao sabe o que diz. Depois de varios séculos de distincia, nés, modernos, sabemos melhor do que ele © somos capazes de retificar o que ele disse. Acredirames até encontrar uma v de que o autor n§o viu e, com audicia ainda maior, nao hesitamos em afirmar que tal verdade é ele mesmo quem a reporta a nés, apesar de sua cegueira. Deveriamos dizer que essa interpretagio ndo merece a adesiio maciga de que ela foi objeto. Mostramo-nos a seu respeito com ex- cessiva indulgéncta? Para desacreditar um testemunho judiciario, suficiente provar que, mesmo sobre um Gnico ponto, a testemunha carece de imparcialidade. Como regra geral, tratamos os documen- tos histéricos come testemuntios judiciarios. Ora, transgredimos essa regra em favor de um Guillaume de Machaur que nao merece talvez esse tratamento privilegiado, Afirmamos a realidade das persegui- gGes mencionadas no Juigamenta do Rei de Navarra. Em suma, pre- tendemos extrait o verdadeiro de um texto que se engana grossei- MACHAUT EOS JUDEUS inenre sobre pontos essenciais. Se acaso tivermos razdes de des- Mint dese texto, deveriamos tal vez considerd-lo como inteiramente peta e renunciar a fundamentar sobre ele a menor certeza, sem weet o fate brute da perseguicao. Ie onde vem, portanto, a seguranga espantosa de nossa afirma- jo: judets foram realmente massacrados? Uma primeira resposta se rita ao espirito. Nao lemos esse texto isoladamente. Existem ios textos da mesma época; eles tratam dos mesmos assuntos; al- ns deles valem mais que o de Guillaume. Seus autores neles se ost menos crédulos, Todos eles formam uma rede estreita de wnhecimentos histdricos na seio da qual recolocamos o texto de E gragas a esse contexta, sobretuda, que conseguimos iil lovurn wyatr a scparat o verdadciro do falso na passagem que citei. E verdade que as perseguicdes anti-semitas da peste negra cons- tem um conjunto de fatos relativamente bem conhecide. Ha so- Ite iso toda um saber j4 canstituido ¢ ele suscita em nds certa ex- pectitiva. © texto de Guillaume responde a esta expectativa. Essa _ perspectiva nao é falsa sobre o plano de nossa experiéneia individual pido contato imediate com o texto, mas do poneo de vista tedrico ela Iho ¢ satisfardria. A rede de conhecimentos hist¢ sem divida, mas os documentos que a compSem nunca so muito mais seguros que 0 texto de Guillaume, tanto por razSes andlogas como por razdes dife- fentes. E no podemos siruar Guillaume perfeitamente nesse con- fexty, pois nao sabemos, conforme eu ja disse, onde se desenvolvem bs ncontecimentos que ele nos relara. Talvez em Paris, talvez em Reims, ou talvez em uma terceira cidade. De todos os modos, o cane texte nao rem papel decisivo; mesmo que o leitor modemo nao fosse informado sabre isso, ele chegaria a leitura que dei. Concluiria pela possibilidade de vitimas injustamente massacradas. Pensaria entio que © texto é falso, pois essas vitimes so inocentes, mas, ao mesmo. tompo, pensaria que o texto é verdadeiro, pois as vitimas so reais. ‘Tenninaria entao por distinguir o verdadeiro do falso, exatamente come nés préprios distinguimos. O que nos di esse poder? Nao con- wn guiar-se sistematicamente sobre © principio do cesto de mags 2 ‘O BODE EXPIATORIO que se deve jogar fora por conter apenas uma estragada? Nao deve- mos suspeitar aqui de uma falha da suspeita, um resto de ingenuidade cuja hipercritica contemporanea teria j4 passado a limpo, caso Ihe tivéssemos deixado total liberdade? Nao € preciso confessar que todo conhecimento histérico ¢ incerto e que nfo se pode tirar nada de um texto como o nosso, nem sequer a realidade de uma perseguigao? A todas essas questées é preciso responder com um ndo categé- rico. O ceticismo sem nuangas nao leva em conta a natureza propria do texto. Entre as dados verossimeis deste texto e os dados inveras- simeis existe uma relacao muita particular. De inicio, sem divida, o leitor nao pode dizer: isto ¢ falso, isto & verdadeino. Ele apenas vé temas mais ou menos incriveis e criveis. Os mortos que se multipli- cam sao criveis: poderia tratar-se de uma epidemia. Mas os envene- namentos nem sempre, principalmente na escala maciga descrita por Guillaume. O séc. XIV no possui substancias capazes de produsir efeitos tao nocives. O ddio do autor pelos pretenses culpadas é ex- plicito, ¢ isso torna sua tese extremamente suspeita. Nao podemos reconhecer esses dois tipos de dadas sem consta- tar, a0 menos implicitamente, que eles reagem um sobre o outro. Se ha de faco uma epidemia, ela sem diivida poderia inflamar os precon- ceitos que dormitam. O apetite persecutério se polariza de preferén- cia sobre minorias religiosas, sobrerudo em tempos de crise. Recipro- camente, uma perseguicao real poderia bem se justificar pelo tipa de acusacao de que Guillaume se torna credulamente o eco. Um poeta como ele nao deveria ser particularmente sanguindrio. Se ele acres- centa fé nas histdrias que relata é sem dtivida porque acrescentam fé ao redor dele. © rexto sugere, portanto, uma opiniaa publica superex- citada, pronta para acolher os mais absurdos rumores. Ele sugere, em uma, um estado de coisas propfcio para os massacres que o autor nos afirma terem realmente se produzido, No contexto das representagSes inverossimeis, a verossimilhanga das outras se confirma e se tfansforma em probabilidade. A, reeiproca € verdadeira. No contexto das representages verossimeis, a inverossimi- thanga das outras nem sempre pode provir de uma “fungao fabuladora” que seria gratuitamente exercida, pelo prazer ficcional de inventar. Re- ILLAUME DE MACHAUT EOS JUDEUS r ecemos © imagindrio, sem divida, mas nZo importa qual imagi- rin, & 0 imagindrio especifico de homens com sede de violé: Entre todas as representagGes do texta, pot conseguinte, existe ma conveniéncia reciproca, uma correspondéncia que no pode- M4 porceber sen4o por uma s6 hipdtese. O texto que lemos deve se rem uma perseguigao real, relatada na perspectiva dos perse- widores, Esta perspectiva é forgosamente enganosa pelo fato de que perseguidores esto convencidos de que sua violéncia é bem fun- se pretendem justiceiros e é preciso, portanto, vitimas cul- nas esta perspactiva é parcialmente veridica, pois acerteza de Fr raziio encoraja esses mesmos perseguidores a nada dissimular so- © scus massacres. Diante de um texto do tipo de de Guillaume de Machaut, é mo suspender a regra geral segundo a qual o conjunto de um tex- fo nunca vale mais, em relagao ao relato da informagio real, do que o plor de seus dados. Se © texto descreve circunstincias favordveis 4 Persequigio, se ele nos apresenta vitimas que pertencem ao tipo que (4 perseguidores tém o costume de escolher e se, para mais certeza finda, cle apresenta tais vitimas como culpadas do tipo de crimes que os perseguidores atribuem como regra geral a suas vitimas, hé andes probabilidades de que a perseguigao seja real. Se a préprio texto afirma esta realidade, nao ha razdes de po-la em diivida. A partir do momento em que pressentimos a perspectiva dos seguidores, o absurdo das acusagées, longe de comprometer 0 va- lor de informagio de um texto, reforga sua credibilidade, mas unica- mente em relag4o.ao relato das violéncias de que ele proprio se torna éco. Se Guillaume tivesse acrescentado histérias de infanticfdio ri- tual A sua questao de envenenamento, seu resultado seria mais Inverossimil ainda, mas disso no resultaria nenhuma diminuigo de erteza quanto & realidade dos massacres que ele nos relata. Quanto Mhiis as acusagdes sao inverossimeis neste género de textos, mais elas reforgam a verossimilhanga dos massacres: elas nos confirmam a pre- senga de um contexto psicossocial no seio do qual os massacres devi- fm quase certamente se produzir. Inversamente, o tema dos massa- ‘eres, justaposte ao da epidemia, fomece o contexto histérico no seio 14 O BODE EXPIATORIO do qual até um intelectual 4 primeira vista refinado pod sério sua histéria de envenenamento As representages persecutérias nos mentem, indubitavelmente, mas de mode demasiado caracteristico dos perseguidores em geral, dos perseguidores medievais em particular, para que o texto nao diga a verdade sobre todos os pontos em que ele confirma as conjecturas sugeridas pela prdpria natureza de sua mentira. Quando é a realidade de suas perseguigées que os perseguidores provaveis afirmam, eles merecem que hes demos confianga Ea combinagao de dois tipos de dados que gera a certeza. Se nao encontréssemos esta combinag4o a nfo ser em raras exemplos, tal certeza no seria completa, Masa freqiiéncia é demasiado grande para que a diivida seja possfvel. Apenas.a perseguigdo real, vista pela Sptica dos perseguidores, pode explicar a conjungao regular destes da- das. Nossa interpretacio de todos os textos € estatisticamente certa, Este carter estat istico nfo significa que a certeza repousa sobre a pura e simples acurmulagaio de documentos, todos igualmente incer- tos. Esta certera é da mais alta qualidade. Todo documento do tipo da de Guillaume de Machaut tem um valor consideravel, porque nele encontramos o verossfinil ¢ o inverossfmil agenciados de tal modo que cada um explica e legitima a presenga do outro. Se nossa certeza tem cardter estatistico, é porque no importa qual documento, considera do isoladamente, poderia ser a obra de um falsdrio. As probabilidades s4o fracas mas nfo sfo nulas no nivel do documento individual. No nivel do grande ntimero, em contrapartida, elas sao nulas A solugio realista que o mundo ocidental ¢ moderno adotou para desmistificar os “textos de perseguigo" € a vinica possivel, ¢ é certa porque é perfeita; ela considera perfeitamente todos os dadas que figuram nesse tipo de textos. Nao é o humanitarismo ou a ideo- logia que a ditam para nés, mas razdes intelectuais decisivas. Esta interpretagdo ndo usurpou o consenso quase unanime de que ela é objeto. A histéria nao tem resultados mais sélidos 2 nos oferecer, Para o histgriador “das mentalidades", um testemunho em princtpio digno de fé, isto é, o testemunho de um homem que no partilha as ilusdes de um Guillaume de Machaut, jamais tera tanto valor quanto ia tomara WILL AUME DE MACHAUT E OS JUDEUS © textemunhe indigno dos perseguidores, ou de seus ctimplices, de nods mais forte porque inconscientemente revelador. O decumen- to lecisivo é 0 dos perseguidores bastante ingénuos para ndo apagar dis vestigios de seus crimes, diferentemente dos perseguidores moder- vasiadamente atentos para nao deixar atras de si documentos fos, cle fque poderiam ser utilizades contra eles. (Chamo de ingénuos os perseguidores ainda bastante persuadidos seu direito-e nao muito desconfiades para maquiar ou censurar os da- tlos caracteristicos de sua perseguicao. Estes aparecem em seus textos ‘ora sob forma vertdica e direramente reveladora, ora sob forma enga- fadora mas indiretamente reveladora. Todos os dados sio forremente tstercotipades e 6a combinacao dos dais tipos de esteredtipos, os veri- tlicos e os engamadores, que nos informa sobre a natureza desses textos. _ * * Hoje nés tedos sabemos distinguir os esteredtipos da persegui- glo. Este & um saber que se banalizou, mas que nJo existia, ou existia imuito pouco, no séc. XIV. Os perseguidores ingénuos nio sabem 0 que fazem. Eles tém demasiadamente boa consciéncia para enganar seus leitores com canhecimento de causa € apresentam as coisas tais come eles realmente as véem. Nao duvidam de que, ao redigir seus relatos, do armas contra si préprios para a posteridade. E verdade, ho sc. XVI, para a tristemente famosa “caga as bruxas”. # ainda verade-em nossos dias para as regides “atrasacias” de nosso planeta. Nadamos, portanto, em plena banalidade, ¢ o leitor pode, tal- char tediosas as evidéncias primeiras que lhe dirijo. Que me ulpe, mas logo vera que isso nao é indtil; basta, freqiientemente, 1 mindsculo deslocamento para tornar insdlito, até inconcebivel, © que acontece no caso de Guillaume de Machaut. Falando como fago, o leitor j4 pode verificar que contradigo certos prine{pios que numerosos criticos consideram sacrossantos. Jamais, dizem-me sempre, se deve fazer violencia ao texto. Diante de Guillaume de Machaut, a escolha é clara: ou fazemos violéncia ao texte ou entio deixamos que se perpeme a violéncia do texto contra imas inocentes. Certos principios, que parecem universalmente vez 16 ‘© BODE EXPLATORIO validos em nossos dias porque fornecem, segundo parece, excelentes Parapeitos contra os excessos de certos intérpreres, podem acarretar consegiiéncias nefastas, que aqueles que eréem ter tudo previsto man- tendo tais principios como invioldveis nao imaginaram. Continua- mos repetindo em todo lugar que o primeiro dever do critico & tes- peitar a significagio dos textos. Pademos sustentar esse principio até © fim diante da “literatura” de um Guillaume de Machaut? Outra fantasia contemporfinea torna-se mesquinha A luz de Guillaume de Machaur, ou melhor, da leitura que todos nés dele da- mos, sem hesitar, e é a maneita desenvolta com que nossos erfticos literdrios doravante abandonam o que eles chamam de “referente”, No jargao lingiifstico de nossa epoca, o referente é a prépria coisa de que um texto pretende falar, ou seja, no caso presente, o massacre dos judeus, considerados responsaveis pelo envenenamento de cristaos. Hé cerca de vinte anos nos repetem que o referente é quase inacessi Pouco importa, por outro lado, que sejamos ou nao capazes de a ele ter acesso; 9 preocupagao ingénua com o referente 86 pode entravar, pare- ce, oestudo modernissimo da textualidade, Doravante contam apenas as relagGes sempre equivecas ¢ escorregadias da linguagem consigo mesma. Nao devemos rejeitar tudo nessa perspectiva; todavia, se a aplicarmos de modo escolar, cortemos o risco de ver em Ernest Hoeppfner, o editor de Guillaume na venerdvel Sociedade dos textos antigos, o tnico eritico verdadeiramente ideal deste eseriter, Sua in- trodugao fala de poesia cortés, com efeito, mas nao diz uma palavra sequer sobre o massacre dos judeus durante a peste negra. A passagem de Guillaume, citada antes, constitui bom exem- plo do que chamei em Coisas escondidas desde a fundagiio do mundo de “textos de perseguigso".’ Entendo com isso os relatas de violéncias reais, freqiientemente coletivas, redigidas na perspectiva dos perse- guidores, ¢ atingidas, por conseguinte, por «listargdes caracteristicas. E preciso perceber tais distargdes para retificd-las e para determinar 9 arbittdirio de todas as violéncias que texto de perseguicao apre- senta como bem fundadas. ‘Lee. Mi pp. 136-162, LAUME DE MACHAUT E OS JUDEUS 17 necessirio examinar longamente ¢ relato de um processo hruxiwia para verificar que af encontramos a mesma combinagao de low reais ¢ de dados imaginarics, mas de nenhurs modo gratuitos, encontramos no texto de Guillaume de Machaut. Tudo éapresen- lo como verdadeiro, mas nés nao cremos em nada disso e ndo cre- Nissa pelo fara de que tudo é falso. Nao temos nenhuma dificulda- qminto ao essencial, de fazer a separagéo entre verdadeiro e falso. nbém os encarregados da acusagio parecem ridfculos, wii que a braxa considere os fatos como reais, e mesmo que se a1 pensar que suas confisses nao tenham sido obtidas pela tortu- A icusada pode muito bem se considerar como bruxa verdadeira. Iver cla tenha realmente se esforgado para prejudicar seus vizinhos wm procedimentos magicos. Par outro lado, nao julgamos que por cla merega a morte. Para nds ndo existem procedimentos migi- eficazes. Admitimos sem dificuldade que a vitima possa partilhar fom seus cartascos a mesma fé ridfcula na eficacia da bruxaria, mas pica (é nao nos atinge; nosso ceticismo nao é abalado por isso. No-correr de tais processes, nenhuma vos se eleva para restabe- ou melhor, para estabelecer a verdade. Ninguém ainda é capaz ile fazer isso. E o mesmo que dizer que temos contra nés, contra a jitterpretacdo que damos de seus préprios textos, naa sé 08 juizes e as testemunhas, mas também os préprios acusados. Esta unanimidade hiv nos impressiona. Os autores destes documentos estavam 14, € nds ndo. Nao dispomos de outra informagao que nao venha deles. ‘Texdavia, com varies séculos de distancia, um historiador solitdrio, ou até o primeiro individuo que aparece, julga-se habilitado a cassar f sentenga pronunciada contra as bruxas.* Aqui temos ainda um relato, que parece paradoxal, mas na rea- licladle idade dos dados que entram na composicao dos rextos. Eem fungio deste relato, ge- ralmente nao formulado mas sempre presente em nosso espirito, que Mio néo o é, entre a improbabilidade e a probal 4), Hansen, Zauberwaln, Inquisition 1nd Hexemprogess tm Miceelatter nel die Exastcherg der on Hexenverfolpmg. Munique-Leiprig, 1200; Jean Oelumeau, op. dt., I, ¢. II. Sobeeo fim rencessos de braxaria, ver Robert Mando, Magistrate e Sarcies, Paris, 1968. Ver também, Natalie Zemon Dawis, Sariery and Cichune in Early Modern Pronce. Stanford, 1975, 18 ‘O BODE EXPIATORIO avaliamos a quantidade ¢ a qualidade de informacSo suscetivel de ser extrafda de nosso texto. Se o documento ¢ de natureza legal, og re- sultados so habitualmente tio positives ou até mais positivas ainda que no caso de Guillaume de Machaut. Infelizmente a maioria dos relatos foram queimados ao mesmo tempo que as préprias bruxas, As acusagSes so absurdas ea sentenga injusta, mas os textos sdo redigidos com a preocupagdo de exatidio e de clareza que caracteriza, como re- gra geral, os documentos legais. Nossa confianga ¢, portanta, bem co- locada. Ela nfio permite suspeitar que simpatizemos secretamente com es cagadores de bruxas. O historiador que olhasse todos os dados de um processo coma igualmente fantasistas sob o pretexto de que alguns deles so contaminadas por distorgdes persecutérias no conheceria nada de seu trabalho ¢ seus colegas nao o levariam a sério. A critica mais eficaz nao consiste em assimilar todos os dados do texto ao mais inverossimil, sob o pretexto de que se pecaria sempre par falta e jamais por excesso de desconfianga. Uma vez mais princ [pio da desconfian- ga sem limites deve se apagar diante da regra de oure dos textos de perseguigdo. A mentalidade persecutétia suscita certo tipo de ilusao e ‘0s tragos dessa ilusdo confirmam mais do que enfraquecem a presenga, por tras do texto, de que ela prdpria trata, de certo ripo de aconteci Mento, a prépria perseguigao, a condenagio & morte da bruxa. é, portanto, dificil, repito, separar o verdadeire do falso, pois um e outro tém um cardter muito fortemente estereatipado, Para compreender bem 9 porqué e o como da seguranga extraot- dinaria que testemunhanios diante dos textos de perseguigo, ¢ pre- ciso enumerar e descrever os esteredtipos. Af a tarefa também niio é dificil. Jamais se trata de explicitar um saber que j4 possufmos, mas de cujo porte nao suspeitamos, pois jamais odesempenhamos de modo sistemdtico. O saber em questo permanece inseride nog exemplos coneretos aos quais o aplicamos € estes pertencem sempre ao dom{- nio da histéria, sobretudo ocidental. Também jamais tentamos apli- car este saber fora deste dominio, por exemple, aos chamados uni- versos “etnolégicos". E para tomar esta tentativa posstvel que agora vou esbogar, ainda que de modo sumatio, uma tipologia ee estered- tipos da perseguigao. 2 OS ESTEREOTIPOS DA PERSEGUICAQ Falo aqui apenas de perseguigdes coletivas ou com ressonfincias jletivas. Por perseguigdes coletivas entendo as violéncias cometi- las dirctamente por multidées assassinas, como o massacre dos ju- us clurante a peste negra. Por perseguicdes com ressonfincias cole- tivas entendo as violéncias do tipa caga As bruxas, legais em suas formas, mas geralmente encorajadas por uma opiniaio publica fliperexcitada. A distingao, por outro lado, nao é essencial. Os terro- fes politicos, principalmente os da Revolugao Francesa, freqiiente- Mente participam de um ¢ de outro tipo. As perseguicSes que nos Interessam se desenvolvem de preferéncia em perfodos de crise que provocam o enfraquecimencto de instituigGes normais ¢ favorecem a formagie de mulsiddes, isto é, de ajuntamentos populares esponta- neous, suscetiveis de substituir instituighes enfraquecidas ou de exer- a pressao decisiva sobre elas. Nao sio sempre as mesmas circunst&ncias que favorecem tais fe- némenos. Por vezes sio causas externas, como as epidemias ou ainda a feca extrema, ou a inundacao, que acarretam uma situagao de fome. ‘Outras wezes sic causas internas, come agitagdes politicas ou conflitas religiosos. A. deverminacdo de causas reais, felizmente, ndo se coloca para nés. Quais sejam, com efeito, as causas verdadeiras, as-crises que desencadeiam as grandes perseguigdes coletivas sao sempre viviclas mais ou menos do mesmo mode por aqueles que as sofrem. A impressio mais viva é invariavelmente a de wma perda radical do préprio social, o fim das regras e das “diferencas” que definem as ordens culow Todas as descrigGes se revinem aqui. Elas podem vir dos maiores escri- cer 20 tores, principalmente no caso da peste, de Tucidides e de Séifocles ao texto de Antonin Artaud, passando por Lucrécio, Boceacio, Shakespeare, Defoe, Thomas Mann ¢ muitos outros ainda. Elas por dem vir de individuos sem pretensées literdrias, e jamais diferem mui- to, Isso no € surpreendente, pois elas contami e recontam incansavel- mente © proprio fato de nao diferir — € a indiferenciagiio da proprio cultural e todas as confusSes que daf resultam. Bis, por exemplo, o.que escreve 0 monge portugues Francisco de Santa Maria em 1697: Desde que se acende em um reino ou em uma reptiblica este fogo violento ¢ impetuoso, vemos os magistrados aturdidas, as populagies apavoradas, o governs politico desarriculado. A justiga nao é mais obe- decida; os trabalhos param; as familias perdem sua coesdo, e as runs sua animagio. Tudo se redut A extrema confusdo. Tudo caiem rutnas. Com efeito, undo ¢ aringido e abalado pelo peso-e pela grandeza de uma cala- midade tlio horrivel. Ay pessoas, sem distingaio de estado ou de fortus na, 80 afogadas por uma tristeza mortal... Aqueles que ontem enter ravam, hoje so enrerrades... Recusa-se qualquer piedade pelos amigos, pois toda piedade € perigosa.., Todas as leis do amor ¢ da natureza se encontram afogadas ou eg- quecidas no meio dos horrores de to grande confusio, as criangas sa repentinamente separadas des pais, as mulheres dos muridos, os ir- mos ou os amigos uns dos outros... Os homens perdem sua coragem. natural ¢, no sabendo mais qual consello seguir, caminham come cegos desesperados que se obstinam a cada passo em seu medo e em suas contradighes. A derrocada das instituigdes apaga ou mistura as diferengas hie- tarquicas ¢ funcionais, conferindo a todas as coisas um aspecto si- multaneamente mondétono e monstrudso. Em uma sociedade que nao estd em crise, a impressdo de diferenca resulta por vezes da diversida- de do real e de um sistema de trocas que difere e, por conseguinte, dissimula os elementos de reciprocidade que ele forgosamente com- porta, sob a pena de nao constituir mais um sistema de trocas, ou seja, de cultura. As trocas matrimo , por exemplo, ou mesmo a 'Brancisoo de Santa Masia, Hibedria de sagradas comgregagdes . Lisboa, 1697; Jean Belumeay, p. itz . ieade: por O BODE EXPIATORIO 21 HNECYIPOS DA PERSEGUIGAO hens de consumo nem sempre so visiveis como trocas. Quando iodsdle se transtorna, ao contrario, as trocas se aproximam, uma iprocidade mais répida se instala nao somente nas trocas positivas subsistem apenas na escrica medida do indispensdvel, sob a for- ile permuta, por exemple, mas nas trocas hostis ou “negativas” lem ase multiplicar. A reciprocicade, que se roma visfvel ao mpo que s¢ encolhe, par assim diter, nao ¢ a de bons, mas He ini comportamentos, a reciprocidade dos insultos, dos galpes, vingeinga ede sintomas neuréticos, E por essa razio que as cultu- tradicionais ndo querem essa reciprocidade demasiado proxima, Kmbora oponha os homens uns aos outros, essa m4 reciprocidade iformiza.as condutas e é ela que produz uma predominéincia do mes- , sempre um pouce paradoxal, pois essencialmenre conflinuosa € sista. A experiéncia de indiferenciagfio corresponde, portanto, a iyo cle real sobre o plano das relagdes humanas, mas n4o deixa de ser fers mitica. Os homens, e¢ é 0 que acontece mais uma vez em nossa tendem a projetd-la sobre o universo inteiro e a absolutizd-ta. texto que acabo de citar salienta bem esse processo de unifor- 4io por reciprocidade: “Aqueles que ontem enterravam hoje sao los... Recusa-se qualquer piedade pelos amigos, pois toda pie- perigosa... as criangas so repentinamente separacdas dos pais, fs mulheres dos maridos, os irmaos ou os amigos uns dos outros...” A identidade das condutas acarreta o sentimento de uma confusao e de mi indiferenciacdo universais: “As pessoas, sem distingia de estado oucle fortuna, s4o afogadas por uma tristeza mortal... Tudo se reduz a ua extrema confusdio", A experiéncia das grandes crises sociais no é muito atingida pols diversidade das causas reais. Daf resulta grande uniformidade has descrig&es que se teferem & prépria uniformidade. Guillaume de Miachaut nao € excegao. Ele vé no encurvamento egoista do indivi duo sobre si mesmo e no jogo de represdlias que ele acarreta, isto é, nas conseqiiéncias paradoxalmente reciprocas, uma das causas prin- vipais da peste. Podernos, portanto, falar de um esteredtipo da crise e 2 ver nisso, ldgica e cronologicamente, 0 primeiro esteredti- po da perseguigo. E © cultural que de algum modo se eclipsa, tor- sta € pr 22 © BODE EXPIATORIO nando-se indiferenciado. Compreendendo isso, apreendemos melhor a coeréncia do processo persecurdrio ¢ a espécie de légica que liga entre si todos os estereétipos de que ele se compe. Diante do eclipse do cultural, os homens se sentem impotente imensidao do desastre os desconcerta, mas ndo lhes vem A mente inte- tessar-se pelas causas naturais; a idéia de que poderiam agir sobre tais causas, aprendendo a conhecé-las melhor, permanece embriondria. Uma vez que a crise é antes de tudo a do social, existe forte tendéncia de explicd-la pelas causas sociais e sobretudo morais. Sao as relagdes humanas que, em todo caso, se desagregam, ¢ os sujeitos dessas relagGes nado poderiam estar completamente alheios ao fend- meno. Todavia, mais do que reprovar a si préprios, os individuos tm forgosamente a tendéncia de reprovar tanto a sociedade em seu con+ junto, @ que nado os compromete com nada, como outros individuos que lhes parecem particularmente nocives por razdes faceis de des- vendar. Os suspeitos sfio acusadas de crimes de um tipo particular. Algumas acusagées s4o de tal forma caracteristicas das perse- guigdes coletivas, que, 4 sua simples mengao, os observadores moder- nos suspeitam que h4 violéncia no ar; ¢ entio procuram em todo lugar outras indices suscertveis de confirmar sua suspeita, isto é, ou- ‘tros esteredtipos persecutérios. A primeira vista, os motivos de acusagiio sfio bastante diversas, mas € fécil indicar sua unidade. De inicio ha crimes de violéncia que tomam como objeto os seres cuja violago € a mais criminal, seja de modo absolute, sejaem relag&o aos individuos que as comete: o rei, 0 pai, o simbolo da auroridade suprema, por vezes também nas socie- dades biblicas e modernas, os seres mais fracos e mais desarmados, particularmente as criangas. A seguir remos 03 crimes sexuais, a violagao, o incesto, a bestiali- dacke. Os mais frequentemence invocados siio sempre aqueles que trans- gridem os tabus mais rigorasos em relacao & cultura considerada. Hi, por fim, crimes religiosos, como a profanagao de hdstias. Af também sdo os mais severos tabus que devem ser transgredidos. ‘Todos esses crimes parecem fundamentais. Eles lesam os pré- prices fundamentos da ordem cultural, as diferengas familiares e hierdr- 23 RSTEREGTIPOS DA PERSEGUICAQ leis sem as quais nao haveria ordem social, Na esfera da ago indivi- lual, cles correspondem, portanto, as conseqtiéncias globais de uma lemiade peste ou de qualquer outro desastre compardvel. Eles nda tontentam em enfraquecer o lago social, mas o destroem comple- (Os perseguidores acabam sempre por se convencer de que u no ndmero de individuos ou até mesmo um sé pode tornar-se mente nocive para toda a sociedade, apesar de sua relativa ijucza. E.a acusagdo estereotipada que autoriza ¢ facilita esta cren- penhando com toda evidéncia um papel mediador. Ela ser- ide ponto entre a pequenez do individuo ea enormidade do corpo cial, Para que malfeitores, até diabdlicos, consigam indiferenciar pxlit 3) comunidade, é preciso que a firam diretamente no coragio ou cubega, ou que comecem por sua esfera individual, nela cometen- yesses crimes contagiosamente indiferenciadores, como o parricfdio, D ineesto etc. Nao temos de nos preocupar com as causas dltimas dessa crenga, ©, por exemplo, os desejos inconscientes de que nos falam os sic:malistas, ou a vontade secreta de oprimir de que nos falam os istas. Situamo-nos aquém disso. Nossa preocupagdo é mais ele- interessa-nos apenas a mecfinica da acusagao eo entrelaga- |, dese: Invite das representagdes ¢ das agdes persecutérias. Temos af um fistoma €, caso sejam absolutamente necessdrias causas para compreendé-lo, bastar-nos-4 a terror inspirado aos homens pelo eclipse do cultural, a confusao ui versal que se traduz pelo surgimento da multidao; esta, no limite, toma-se una com a comunidade lireralmente nao diferenciada, pri- vaca de tudo aquilo que difere os homens uns dos outros no tempo € ho espago: cis, com feito, que eles se redinem de modo desordenada em um sé e mesmo lugar e momento. A multidao tende sempre 4 perseguicao, pois as causas naturais daquilo que a perturba, daquilo que a transforma em turba, nfio po- dem interessd-la. A multidio, por definigao, procura a agao, mas no consegue agir sobre as causas natutais. Procura, entdo, uma causa acessivel e que satisfaca seu apetite de violéncia, Os membros da mais imediata e a mais evidente. O 24 O BODE EXPIATORIO multidao sao sempre perseguidores em porténcia, pais sonham purifi- car a comunidade de elementos impuros que a corrompem, de trai- dores que a subvertem. Tormarese multidao da mulcidao constitui gio- somente uma unidade com o apelo obscuro que a retine ou que a mobiliza, ou, em outras palavras, que a transforma em moh [inglés = multid’o inclinada ou comprometida com. vialéncia ilegal]. E de mobile [inglés = mével], com efeito, que provém esse termo, tao dis- tinto de crowd [inglés = grupo, ajuntamento] quanto o latim turba [= multidao] o pode ser de vidgus [= grupo de pessoas comuns]. A lingua portuguesa [come-a francesa] nfo comporta essa d istin¢do. Ha apenas mobilizagdo militar ou partidéria, isto &, contra um inimigo ja designado ou que o sera em breve se ainda nao 0 foi pela propria multidao, em virtude de sua mohilidade. Todas as acusagdes estereotipadas circulavam a respeito de ju- deus e de outros bodes expiatérios coletivos durante a peste negra. Guillaume de Machaur, todavia, nao os menciona. Como vimos, ele acusa os jucleus de envenenar os rios. Deixa de lado as acusagdes mais incriveis, e sua relativa moderagdo se deve talvez A sua qualidade de “intelectual”, Quicd ela também tenha uma significagaio mais ge- ral, ligada 4 eyolugaio das menralidades no fim da Idade Média. No decorrer desse perfodo a crenga nas forcas ocultas se enfra- queceu. Mais adiante nos perguntaremos por qué. A busca de culpa- dos se perpetua, mas exige crimes mais racionais; ela procura dara mesma um corpo material, preencher-se de substincia. E por isso, penso, que ela freqiientemente acaba no tema do veneno. Os perse- guidores sonham concentragées de tal modo venenasas que quanti- dades bem reduzidas seriam suficientes para envenenar populagdes inteiras. Trata-se de carregar de lastra de materialidade e, portanto, de Idgica “cientifica” a gratuidade da causalidade magica, doravante demasiado evidente. A quimica assume o papel substitute do puro demoniaco. A finalidade da operagdo permanece a mesma. A acusagie de envenenamento permite langar a responsabilidade de desastres per- feitamente reais sobre pessoas das quais de fato nao foram encontra- das as atividades criminais. Gragas ao veneno, consegue-se persundir PSTURECOTIPOS DA PERSEGUICAD. 25. hi pequeno grupo ou até um sé individuo podem ser nocivos a trl Sociedade sem que se deixem descobrir. O-veneno 6, por- fo, Wo MesMO tempo menos mitico e também to mitico quanto AClisagees anteriores Ou até o puro e simples “mau-olhado”, gracas qual se pode acribuir a qualquer individuo a responsabilidade de © importa qual desgraga. E preciso, pois, ver no envenenamento sates de égua potivel uma yariante do esteredtipo acusador. A prova de que essas acusages respondem todas & mesma ne- nilide € que elas se encontram todas justapostas no processo de iaria. As bruxas suspeitas esto sempre convencidas de participa- ) notuma no famoso sabbar, Nenhum alibi é possfvel, pois a pre- ca do culpade néio ¢ necessdria para o estabelecimento da wa. A participagao em reunides criminais pode ser puramente es- cal Os crimes e preparagies de crimes de que se compde o sabbat ty cheios de repercuss6es sociais. Encontramos as abominagSes wdicionalmente atribufdas aos judeus em terra crista, ¢ antes deles ps cristios no Império romano. Sempre se trata de infanticidio ri- wl, de protanagdes religiosas, de relagdes incestuosas ¢ de hestiali- Je, Mas as manobras com venenes desempenham também um gran- papel nessas questées, assim como as manobras culpaveis contra Personagens influentes ou prestigiosas. Apesar de sua insignificancia Pessoal, por conseguinte, a bruxa se dispde a atividades suscetiveis de atingir © corpo social em seu conjunto. E por isso que o diabo e sous deménios no menosprezam fazer alianga com ela. Nada acrescento quanto As acusagGes estereatipadas. Vernos sem tificuldade que ha sempre o mesmo estereétipa e sobretudo aquilo {jue o une 20 primeiro, ou seja, o da crise indiferenciada. Passo agora ao terceiro esteredtipo, Acontece que as vitimas de uma multidfo so sempre aleatGrias, embora acontega também que hilo o sejam. Acontece até que os crimes de que so acusadas sejain mas no sio eles, mesmo neste caso, que desempenham o papel, principal na escolla dos perseguidores, e sim a pertinéncia das viti- Mais a certas categorias particularmente expostas A perseguigzio. En- tre as pessoas responsdveis pelo envenenamento dos rios, Guillaume rt 26 ‘O BODE EXPLATORIO de Machaut cita primeiramente os judeus. De todas as indicacSes que ele nos fornece, esta 6 2 mais preciosa a nossa ver, a mais reveladora da distor¢ao persceutéria. No contexto de outros estered- tipos, imagindrios ¢ reais, sabemos que este esteredtipo deve ser real. Na sociedade ocidental e moderna, com efeito, os judeus so freqientemente perseguidos. As minorias étnicas e religiosas tendem a polarizar comas maio- tias. Temos af um critério de selecao vitimatia, relative a cada sacie- dade, sem divida, mas que é transctltural em seu principio. Quase nado existem sociedades que nfo submetam suas minorias, todos os seus grupos mal integrados ou até simplesmente distintos, a certas formas de discriminagao, quando nao de perseguicio. S4o prineipal- mente os mugulmanos os perseguidos na India, no Paquistdo sao os hindus. H4, portanto, tragos universais de selegio vitimdria & sic eles que constituem nosso rerceiro esteredtipo. Ao lado dos eritétios culturais ¢ religiosos, hé os puramente fisicos. A doenga, a loucura, as deformagdes genéticas, as mutilagdes acidentais e até as enfermidaces em geral tendem a polarizar os per- seguidores. Para compreender que temos ai algo de universal, basta olhar ao redor de si ou mesma dentro de si proprio. Ainda hoje mui- tas pessoas nao podem reprimir, no primeiro contato, um ligeiro re- cuo diante da anormalidade fisica. © préprio termo anormal, assim como o termo “peste” na Idade Média, rem algo de tabu; ele ¢, ao mesmo tempo, nobre e maldito, sacer [= sagrado] em todos os senti- dos do termo. Julgamos mais decente substitui-lo pelo rermo inglés handicap [= vantagem ou desvantagem). Os “handicapped” [= portadores de vantagem ou desvantagem|] ainda séo 9 objeto de medidas propriamente discriminatérias & vitimarias, sem medida comum com a perturbagao que sua presenca pode trazer para a fluidez das trocas sociais. E a grandeza de nossa sociedade o fato de ela sentir-se obrigada, doravante, a tomar medi- das em favor deles. A enfermidade se insereve em um conjunto indissocidvel de marcas vitimdrias, ¢ em certos grupos — um internato escolar, por exemplo — todo individuo que experimenta dificuldades de adapta- 27 HST PREOTIPOS DA PERSEGUICAD io, © estrangeiro, o provinciano, o drfao, o filho de familia, o des- wico, ou, simplesmente, o dltimo a chegar, é mais ou menos inter- inbidivel com o doente. (Quando as enfermidades ou as deformagiées sao reais, elas ten- mn i polarizar os espiritos “primitives” contra os indiv{fduos que por sto afligides. Paralelamente, quando um grupo humano romou habito de escolher suas vitimas em certa categoria social, étnica e Higiosa, ele tende a The atribuir as doengas ou deformagées que re- ryuriam a polarizacdo vitimdria, caso elas fossem reais. Essa ten- New aparece claramen te nas caricaturas racistas. Nao é apenas no domf{nio fisico que pode haver anormalidade. wn todos os dominios da existéncia e do comportamento. E é igual- lente em todos os dominios que a anormalidade pode servir de cri- rio preferencial na selegao dos perseguidos. 14, por exemplo, uma anormalidade social; aqui é.a média que fine a norma. Quanto mais a pessoa se distancia do stares social is comum, €¢m um ou outro meio, mais crescem os riscos de perse- igo. Vernos isso sem dificuldade para aqueles que se situam na te baixa da escala. Vemos menos bem, ao contrdria, que A marginalidade dos mise- ou marginalidade de fora, é preciso acrescentar uma segunda, atuinalidade de dentro, a dos ricos e dos poderosos. O monarcae corte freqdeatemente fazem pensar no olho de um ciclone. Esta pla marginalidade sugere uma organizag&o social em redemoinho. tempo normal, sem dtivida, os ricos ¢ os paderosos gozam de nsas tipas de proteges e de privilégios que faltam aos deserdados. lavia, nao sio as circunstancias normais que aqui nos interessam, im os periodas de crise. O mais breve olhar sobre a histéria univer- revela que os riscos de morte violenta nas maos de uma multidao ontrolada sio estatisticamente mais elevados para os privilegia- do que para qualquer ourra categoria. Por fim, so todas as qualidades extremas que atraem, de um a jiro tempo, as indignagées coletivas, nao apenas os extremos da ueza c da pobreza, mas igualmente os do sucesso e do fracasso, da za ¢ da fealdade, do vicio e da virtude, do poder de seduzir e do vet O BODE EXPIATORIO poder de desagradar; € a fraqueza das mulheres, das ctiancas ¢ dos HEREGTIBOS DA PERSESUICAG 29 injustiga. Contrariamente ao que alguns pensam, a distribui- « de bons ¢ de maus elementos na ordem social ¢ cultural nio me teresa. Minha Gnica preocupacio € mostrar que existe um esque- a transcultural de violéncia coletiva e que é facil esbogar, em gran- és trays, seus contornos. A existéncia do esquema é uma coisa, a ancidos, mas também a forga dos mais fortes que se torna fraqueza ero. As multidées, muito regularmente, se voltam con- tra aqueles que antes exerceram sabre elas um. empreendimento ex- A alguns parecerd escandaloso, penso, ver os ricas © 05 podero- sos figurarem entre as vitimas da perseguigio coletiva ao mesmo ti- tulo que a fraqueza © a pobreza. Os dois fendmenos nao sao simétri- cos aos olhos deles. Os ricos e os poderosos exercem sobre sua sociedade uma influéncia que justifica as violéncias das quais eles podem se tornar objeto em perfodo de crise. Ea santa revolta dos aprimides ere. jo de que tal ou tal acontecimenta determinado dela sobressai é tra, Em certos casos, ¢ dificil decidir isso, mas a demonstragao a il vise nfo é afetada. Quando se hesita em reconhecer um estered- » persecutério em tal ou tal craco particular de determinado acon- dmento, ndo é preciso procurar resolver o problema apenas no el alesse trago, isolado de seu contexto, mas é preciso se perguntar ‘Os outros esteredtipos lhe esto justapostos. A fronteira entre diseriminagao racional e perseguigio arbitra- tia é freqiientemente dificil de tragar. Por razGes politicas, morais, médicas etc., certas formas de discriminagao parecem-nos hoje ra- 20Aveis e, contudo, assemelham-se a formasantigas de perseguigiio; é © caso, por exemplo, da colocagzio em quarentena, em periodo de epidemia, de todo individuo que poderia ser contagioso. Na Idade Média, os médicos so hostis a idéia de que a peste pode se propagar por contato fisico com as doentes. Fles Pertencem em geral a meios esclarecidos e toda teoria do contigio se assemelha demasiadamente a9 preconceito persecutério para nfo lhes parecer suspeita. Todavia, esses médicos erraram. Para que a idéia de contagio possa reaparecer ese impor no séc. XIX em um contexto puramente médica, alheio a mentalidade persecutdria, ¢ preciso que nao se possa mais suspeitar nela.o retorno do preconceito sob um novo disfarce. Ha aqui uma questo interessante, mas que nada tem que ver com a presente obra. Minha tinica finalidade é enumerar os tragos que tendem a polarizar as caultidées violentas contra aqueles que os possuem, Os exemplos que citei sia todos indubitdveis sob este + pecto. O fato de que hoje mesmo se possa justificar algumas dessas violéncias nfo tem muita importincia para o tipo de andlise que continuo a fai ' Nao procuro circunscrever ¢xatamente © campo da persegui+ 40; nde procuro determinar com preciso onde comega e onde ter- Tomo dois exemplos. A maior parte dos historiadores pensa que quia francesa no est isenta de responsabilidade na tevolu- de 1789. A execucio de Maria Antonieta é, portanto, exterior a quema? A rainha pertence a muitas categorias vitimdrias fercnciais; ela nfo sé ¢ rainha, mas também estrangeira. Sua ori- austrfaca volta sem cessar nas acusacdes populares. O tribunal wcondena é fortemente influenciado pela multidao parisiense. co primeiro esteredtipo esta igualmente presente: encontramos Revolugdo todos os tragos caracterfsticos das grandes crises que mas perseguicdes coletivas. Os historiadares nao tém o cos- , sem divida, de tratar os dados da Revolugiio Francesa como \chtos estereotipados de um tinico € mesmo esquema persecutdrio. p prerenco que este modo de pensar deva ser substituido em rodo tias sobre a Revolugiio Francesa. Ele nacesclatece cae nao menos interessante, freqiientemente passada em clo, mas que figura explicitamente no processo da rainha, ou ode ter comerido um incesta com seu filho.® Tomemos agota Gutra condenado como exemplo. Ele de fato nei O ato que desencadeia contra si as violéncias de uma multi- O Negro realmente violentou uma mulher branca. A violéncia de Guill baud por te: chumade a tengiio part esta scusugiode 30 coletiva deixa de ser arbitréria no sentido mais evidente do termo, Ela sanciona realmente o ato que ela pretende sancionar. Poder-se- ia imaginar nessas condigdes que ndo ha distorgSes persecutdrias & ico nao tem mais asignifi- eagao que he atribuo. Na realidade, as distorgdes persecutérias esto coma verdade literal da acusagao. A representagao des perseguidores permanece irracional. Ela inverte a relacfo entre a situago global da sociedade ¢ a transgressiio indivi- dual. Se existe entre os dois niveis uma ligagao de causa ou de moti- que a presenga de esteredtipos da persegr presentes € nao sao incompariv vago, ela sé pade proceder do coletiva para o individual. A menta- lidade persecutéria se move em sentido contrario. Em vez de ver no ividual um reflexo ou uma imitagao do nivel global, micracosmo ins ela procura no individuo a origem e a causa de tudo o que a fere. Real ou nao, a responsabilidade das vitimas sofre o mesmo engrande- cimento fantastico, Sob o aspecto que nos interessa, em suma, niin hd muita diferenga entre o caso de Maria Antonieta e o do Negro petseguido. * * * Exisre uma estreita relagdo, como vimos, entre es dois primei- ros estereétipos. E para relacionar as ¢rise que eles sao acusados de crimes “indiferenciadores”. Na realida- de, porém, so suas marcas vitimdrias que destinam essas vftimas A perseguigdo. Qual a relagiio deste terceiro esteredtipo com os outros dois? A primeira vista as marcas vitimdrias sio puramente diferen- ciais. Mas os sinais culturais também san. E preciso, portant, que haja aqui duas maneiras de diferir, dois tipos de diferengas. Nao ha cultura no interior da qual cada um nao se sinta “dife- rente” das outros e nao pense as “diferengas” como legitimas e neces- sdrias. Longe de ser radical ¢ progressista, a exaltagio contempora- nea da diferenga nado é mais que a expresso abstrata de um moda de ver comum a todas as culturas. Em rodo individuo existe uma ten- déncia de se sentir “mais diferente” dos outros que os outros ¢, para- lelamente, em toda cultura, uma tendéncia em se pensar nfo apenas come diferente das outras, mas como a mais diferente de tadas, por- CBODE EXPLATORIG AUK GCOMPOS DA PERSEGUIGAO. 31 cultura mantém nos individuos que a compdem esse senti- liferenga”. a diferenga no seio do sistema que significam as marcas itimaria, mas a ciferenga fora do sistema, € a possibilida- Wit «sistema de diferir de sua propria diferenga, ou, em outras Wros, de nde diferirdo todo, de cessar de existir como sistema. Vemos isso bem nas enfermidades fisicas. O corpa humano € pivtema de diferengas anatOmicas. Se a enfermidade, mesmo aci- til, inquieta, € porque ela di uma impressao de dinamismo mahilizacor. Ela parece ameagar o sisterna come tal, Procura-se dinserey mas nfo se consegue; ela ajunta ao seu redor as dife- is jue sé ToMMam Monstruasas, elas se precipitam, se encaixam, se é, por fim, ameagam extinguir-se. A diferenca fora do sis- (1 wierroriza porque ela sugere a verdade do sistema, sua relativi. Je, sua fragilidade, sua mortalidade. As categorias vitimdrias parecem predispostas aos crimes iferenciadores. Nunca é sua diferenga propria que € reprovada A ininorias religiosas, étnicas, nacionais, e sim o faro de nao dife- come € preciso ¢ por fim o fato de nao diferir de nenhum modo. esirangeitos siio incapazes de respeitar as “verdadeiras” diferen- j cles ndo tém costumes ou nfo tem gosto conforme os casos; feendem mal o diferencial enquanto tal, © barbares nao é aquele i fila outra lingua, mas aquele que mistura as dnicas distingdes nladeiramente significativas, as da lingua grega. Em tode lugar o eahuldrio dos preconceitos tribais, nacionais ere. exprime o ddio, ya ciferenga, mas de sua privagao. Nao é 0 outro nomos que se outro, mas a anomalia; nfo é a outra norma, mas a anermali- o enfermo se toma disforme; o estrangetro se torna apdiida, io ¢ hom na Riissia apresentar-se como cosmopolita. Os metecos jcaqueiam todas as diferencas porque nao as tem. Os mecanis- ps ancestrais se reproduzem de geracio em gerag¢do na incons- de sua reprodugao, freqiientemente de modo diverso, € pre- Iso veconhecer, em um nivel menos letal do que no passado. Em inssas dias, por exemplo, o anti-americanismo cré “diferir” de to- os OS preconceitos anteriores porque esposa todas as diferengas

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