Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 71
On ee LC eC rem a ese eS EM eee ce ne ert ood CCE Oe en me ey delxara sob sua responsabilidade e ele, pensando mais em sua propria COUR UC CT Te casi een eee One et fee ESV USE Tel) 4) (ee EN Re eon ner cnn tem es ‘Seu corpo esta velho e cansado, sua mente se perde freque recordagbes. As vezes ele até imagina a propria morte, ou pelo menos 0 que significa estar longe, muito longe. Entio, a velha escrava Beira I Ee UE Yee CTT Escrito por uma descendente de escravos TC ROME H me CEM Roce Go OHTAA O2H0H0 Inferno: tinha vvido nele desde sempre. Ne EO nen aT lugares, sua nédoa se manifesta no preconceito racial e na ci Ganhador do Casa de las Américas, a mais alta honra iterdria de PO Ure nn MCT OM ease ee ee Ey PMU ERE Rata se MMC ee ISBN 978-85-347-0450-5 “,) NIM ff iB Es a 4 iS) pry CACHORRO SR le PREMIO Casa CACHORRO VELHO ee yS oe of ELH Q ELHO TRADUGAO JOANA ANGELICA D'AVILA MELO Copyright © 2006 ‘Teresa Cardenas ‘Todos os direitos reservados rimeiraedigdo publicad no Canada e nos EUA em 2007 por Groundwood Books “Titulo orginal: Pera Viejo alitoras Cristina Fernandes Warth Mariana Warth CCoordenagio editorial ‘Sibia Rebello ‘Tradugao Joana Angélica Avia Melo Revisto de tradugao Raaella Lemos Revisio Tals Monteiro Projet patico de miolo e dagramagao ‘Avon Balms Capa Bruna Benvegnia (Gato segue at nova cera do Acordo Ortgrdico da Lingus Portes) ‘Todor of dictor reservados Pals FlitoraeDistibuidora ida. vetadaareproducto par qualquer ineloiechica eletnicoxerograco ec sem a [esis por escrito da eitoa, de parte ou totalidade do material eer. CIP-BRASIL. CATALOGAGKO-KA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS SDFTORES DU LIVEOS, 8) see (Cena, Ter ‘Cachoro volho Teresa Cirdenas; tradupio Joana Angelica Avila a Melo.“ Rio de fneio Pals, 2010. ip ISBN 978-85:47-0859:5, 1. Fegao mexican. Ll, oana Angélica Avia. Teulo, vost. op: osaser13 Souvserisz213 Tales aoa Distbuidoa tide, FR A Zenita, em sua mem6ria ua Frederico delbuquerque 36-rigenopeis, OX 7 Gerziisbow-niodeteene nt KEyey Para Susy e Felipe ‘nuneaiznon DY wow palaseditoracom bt pallasépallredtora combe | PALLAS Café de montanha Cachorro Velho aproximou do rosto a borda da cuia e cheirou. O aroma do café adogado com mel lhe entrou em cheio, reconfortando-o. Sempre cheirava primeiro. Ja era um costu- me, um ritual aprendido com os anos. Uniu os labios grossos e bebeu um gole. O liquido des- ceu numa onda ardente até seu est6mago. “Bendita Beira!”, sussurrou, satisfeito. No fundo da choupana, uma mulher robus- tae calada se movia com agilidade, afastando jarros enegrecidos e cagarolas. Diante dela, a lenha crepitava no fogio rtistico. 8 teresa cardenas Olhando-a, o velho reconheceu que aquela mulher silenciosa e meio desajeitada fazia 0 café como ninguém em todo o engenho: chei- Toso, amargo, de montanha, silvestre, livre... Cachorro Velho parou de beber. “Café de montanha...?”, murmurou para si mesmo, sem compreender o sentido daquelas palavras que se enredavam em sua cabeca, Pousou a cuia na mesa e foi mancando até a porta da choupana. Ld fora havia uma escuridao quase absoluta. Algumas estrelas brilhavam mortigas no céu opaco, sem lua. Um ventinho frio balangou os ramos das embatibas e o mato da cancela. O velho estremeceu. No patio, os cachorros co- megaram a latir. Eram quatro da manha. Sentou-se dificultosamente num tamborete e cravou os olhos neblinosos nas sombras e si- Ihuetas que se moviam perto do barracio, ar- rastando enxadas e facdes. “De que montanha?”, perguntou-se, com uma careta amarga. cachorro velho 9 Jamais tinha estado numa. Nem sequer sa- bia aonde levava o caminho poeirento que se perdia além da fileira de imburanas e flam- boyants. Nunca em sua vida havia ultrapassa- do acancela do engenho. Tinha setenta anos e nao se lembrava de ter vivido em outro lugar. Cachorro Velho fechou os olhos e suspirou baixinho. No outro extremo do cubiculo, Beira cantarolava num idioma remoto. ‘Ao longe, abafado pelos latidos dos ces, ou- viu-se 0 estalar de um chicote. Beira Avoz soou dura, enrouquecida: — Quer mais um pouco? Cachorro Velho se voltou sobressaltado. Beira o encarava fixamente. Seus grandes olhos pareciam trespassd-lo. Numa das maos ela trazia a cuia e, na outra, um jarro peque- no e fumegante. Tinha o rosto largo e tao des- povoado de emogées quanto 0 canavial depois da queimada. Vestia uma bata largona de teci- do grosseiro, sem bolsos nem forma. Nao usa- va sapatos nem lengo na cabega. 12 teresa cirdenas O velho recordou 0 que os homens do bar- racao diziam de Beira. $6 que ele nao acredita- va em coisas sobrenaturais, nado em sua idade. Em sua longa vida tinha aprendido a nao espe- rar demais do outro mundo, onde se supunha que habitassem os deuses e os espiritos dos antepassados. “Tudo 0 que acontece na terra, de bom e de ruim, é coisa dos homens e de mais ninguém’, dissera a eles uma noite. Mesmo assim, Cum- ba, Eulogio Malembe ¢ os outros continuavam culpando os espjritos malignos pelas esquisi- tices daquela mulher. Cachorro Velho sabia que o fogo queimava. Ele mesmo tinha um brago crestado e quase imprestavel desde aquele incéndio no qual ti- nham morrido a velha Aroni, Mos e Micaela Lucumi, a cozinheira. Havia acontecido trinta anos antes ea pele do anciao ainda ardia. Ele sacudiu a cabeca com forga. As vezes, as coisas que Ihe dofam demais desapareciam com uma boa sacudidela. cachorro velho 13 No fogao a lenha, o lume comegou a defi- nhar. A dgua parou de borbulhar nas panelas. A fumaga invadiu o cubiculo. —Vai tomar ou nao? Tenho coisas a fazer — disse Beira, impaciente. O anciao se remexeu inquieto no banqui- nho. Tinha se esquecido dela por completo. Ultimamente, esquecia-se de tudo. — A madrugé’ té fria — disse, s6 para di- zer alguma coisa, e estendeu a cuia. Beira ser- viu um jorrinho de café no recipiente, e entao o velho atentou para a mao feminina. Era es- cura e sedosa. Talvez suave demais para a de uma escrava. Sulcos finfssimos cruzavam os nés e desenhavam estranhos meandros ao re- dor dos dedos. Oanciao sentiu o toque da mao de Beira. Es- tava fresca como a 4gua do rio no qual ele mer- gulhava quando menino. Pensou que era impossfvel que aquelas maos tirassem caldeirées e jarros do fogo sem a aju- da de nenhum pano, como contavam os ho- 14 teresa cardenas mens do barracao. Também diziam que ela era capaz de saltar entre as chamas sem se quei- mar e de comer fogo, e que, quando os senho- res iam dormir, voava pelo engenho em um enorme caldeirao que soltava fafscas ao rocar as copas das drvores. Sem diivida, eles fanta- siavam. — Coisas de negros ignorantes!—soltouem voz alta, sem perceber. — O que foi que o senhor disse, taita?” — perguntou a mulher, que voltava a se atarefar no fundo do compartimento. Com um leve sorriso, Cachorro Velho se vi- rou para ela, na intengao de lhe contar o que se dizia no barracao. Nao péde. Beira, inclinada sobre o fogio, juntava sem pressa Os carvées acesos. As brasas, brincalho- nas, ardiam entre suas maos. * Em Cuba, “tata” é tratamento que se dispensa aos ancidos negros, correspondente ao brasileiro “pai (“Pai José") ou “tio’. (N. da’) Além do caminho Cachorro Velho nao sabia 0 que aconteceria quando morresse. Na realidade, isso nao lhe importava muito, As vezes, pensava no que o padre Andrés dizia sobre o Inferno, 0 fogo eter- no e tudo o mais, e se sentia inquieto, cheio de dtividas e perguntas. Nao por achar que sua alma arderia se ele nao obedecesse ao patrao, conforme lhe asseguravam, mas porque co- nhecia de perto o fogo e sabia do que ele era capaz. O velho nao temia o Inferno: tinha vivido nele desde sempre. 16 teresa cdrdenas Pelo contrario, o escravo gostava de se ima- ginar morto. Com frequéncia, fechava os olhos para que as imagens lhe viessem mais nitidas. Em sua cabega, via-se vestido num pano es- tranhamente branco. Com um bonito relégio de ouro pendente do colete, tomando a fresca da tarde, na varanda da casa-grande, refestela- do na poltrona do senhor, enquanto este ou a senhora lhe serviam café numa xicara de cristal. Outras vezes contemplava sua alma, seu es- pirito ou seja ld o que fosse, flutuando além da cancela e do renque de embatibas, perdendo- -se de vista no caminho poeirento pelo qual, seguramente, se chegava a uma vida menos dura do que a dele. Ou, talvez, por ali nao se fosse para o Céu nem parao Inferno, mas dire- tamente para a Africa, a terra de selvas e planf- cies onde sua mae nascera. Cachorro Velho suspirou, balancgando a ca- bega, como costumava fazer para espantar o que o perturbava. cachorro velho 17 Quantos anos de vida lhe restavam: trés, quatro, vinte? Toda uma eternidade? Dificil sa- ber. Os escravos nasciam com a morte dentro de si e, as vezes, esta se mostrava de maneira caprichosa. Ou nao se manifestava tao rapida- mente quanto alguns prefeririam ou aparecia quando menos esperavam. Oanciao recordou Nsasi, o menininho de cin- co anos atingido por um tiro escapado do rifle do senhorzinho quando este limpava a arma. Nsasi estava alimentando as galinhas e tom- bou entre os graos de milho sem um suspiro, com os olhos abertos, como alguém a quem arrancam algo das maos. As galinhas, depois do alvorogo, continuaram bicando os graos espalhados entre as roupas dele e ao redor de seus dedos mortos. Tudo aconteceu em menos de um segundo. Na mesma noite, enquanto enterravam Nsasi, a senhora mandou que dessem uma ttinica nova a mae do menininho para que ela paras- se de gritar. O caso do congo Tumba Cerrada 18 teresa cairdenas foi outra coisa. Ele tinha quase cem anos e ain- da caminhava ereto e ligeiro, sem bengala para se apoiar. S6 que nao podia trabalhar no cam- po: suas forgas Ihe faltavam para um trabalho tao duro. Também nao podia ser porteiro, pois estava meio cego e dormia em todo canto. En- tao o senhor mandou que 0 tirassem do barra- cao e nao lhe dessem mais comida, para ver se ele acabava de morrer. Mas Tumba era de espf- rito forte. S6 para contrariar, viveu mais cinco anos, alimentando-se das frutinhas do jam- beiro-rosa, como os passaros do monte, e de uma ou outra boia que o pessoal do barracao Ihe dava as escondidas. Dormia a céu aber- to ou entre as velhas pas da antiga moenda. Qualquer lugar era bom para ele. Teria vivido daquele jeito por muitos anos mais. Um dia, porém, amanheceu pendurado numa drvore enorme, no fundo do engenho. Quando contaram ao senhor, este assegurou que Tumba Cerrada se cansara de viver. Nin- guém acreditou. Tumba nao podia se pendu- cachorro velho 19 rar sozinho numa 4rvore tao alta. Ao chegar a esse ponto, Cachorro Velho suspirava e dava uma cusparada no chao empoeirado. “Vida de merda!”, grunhia, e entao deseja- va com todas as suas forgas enveredar pelo ca- minho, muito além de onde seus olhos viam. ‘Além de onde seus pés cansados poderiam leva- -lo. Fugir para longe. Longe do Inferno e do se- nhor. Longe. Osenhor Com 0 toque madrugador do sino, os escravos inclinavam a cabega ante o Senhor que pendia nu de uma cruz ao lado do barracao, perto do bebedouro dos porcos. Depois partiam para o canavial cheio de cobras e escorpides, com a béngao do senhor vigario. Sob o sol, cortavam canas e cipds, temendo o acoite do feitor. Na enfermaria, eram tratados com arnica e vinagre, mas convinha fazer siléncio, pois os gritos de dor incomodavam a sesta da senhora. 22 teresa cérdenas No almogo, quando o patrao descia até o pa- tio da fazenda, todos deviam olhar para o chao. Ese o senhorzinho cismasse de sair cavalgando pela propriedade, entéo Cachorro Velho devia abrir a cancela, cabisbaixo e sem dar um pio. Parao porteiro, todos aqueles senhores eram um s6. Quer tivessem cruz, bengala, cavalo, ar- nica, chicote, brevidrio ou coroa de espinhos, dava tudo no mesmo. Um escravo nunca pode- ria ficar ereto diante deles e muito menos fita- -los nos olhos. Os escravos sabiam que 0 patrao era o dono de suas vidas, seu senhor, aquele que deci- dia se eles mereciam viver ou nao, se estavam prontos para constituir familia, se podiam fi- car com os pr6prios filhos ou se estes seriam vendidos como cestas de frutas. O patrao deliberava sobre tudo o que se rela- cionasse as suas vidas e mortes, com mais po- der do que Deus e do que todos os santos dos quais o vigdrio falava aos domingos. cachorro velho 23 Um escravo era apenas um pedaco de carne malcheirosa e mais nada. Um negro era uma besta de carga, um bicho, um bruto, um la- drao, uma alimaria, um saco de carvao... Ape- nas uma pega. Um senhor e um negro jamais poderiam ser iguais. Cachorro Velho sabia disso. Os negros nunca dariam chicotadas em uma crianca que tivesse apenas apanhado um pedago de pio. Ele nunca tinha visto Cumba matar outro homem de pancada, nem Beira cortar a orelha de al- guém, nem Malongo estuprar uma mocinha... Todas aquelas atrocidades tinham vindo sempre dos brancos do engenho ou do feitor. Catecismo Para 0 vigério Andrés, Cachorro Velho era seu melhor aluno nas aulas de catecismo. Aos do- mingos, quando os escravos eram agrupados no patio e o padre pregava sob o brilho do sol, falando do Céu e dos anjos, 0 porteiro baixava a cabeca, humilde e absorto. Felizmente para o velho escravo, 0 vigdrio nao podia ler pensamentos. Se o fizesse, teria descoberto que, em vez de prestar atengao aos serm6es, Cachorro Velho recuava no tempo e se via em crianga, com as pernas encolhidas, sentado no chao do barracao, escutando co- 26 teresa cdrdenas movido a cerimoniosa voz da negra Aroni con- tando-lhe fabulosas historias da Africa. Aroni “Eeeeiiii, escutem todos! O que eu vou contar assombraré vocés! Uma vez conheci um ho- mem que tinha cabelo de marfim e olhos da cor do mar quando se enfurece...” Aroni. Feiticeira das palavras. Bruxa dos de- vaneios. Narrava a qualquer hora e em qualquer lu- gar. Seus contos eram para todos. Sentada no chao, perto das criangas, ou em um tambore- te, junto aos mais velhos. Contava a negros e brancos, aos vivos e aos mortos, ao vento e as canas, aos patos e as formigas que subiam pe- las paredes do barracao. 28 teresa cdrdenas NAo estava louca nem lhticida. Nao era alegre nem triste. Nao chorava nem cantava. Apenas contava histérias, fabulas que tinha escutado quando era menina em sua aldeia, na Africa. De seus labios brotavam histérias de magos, de animais ferozes e encantados, de diabos e de anjos, de peixes de prata e madrepérola, de duendes barbudos, de principes guerreiros que cafam em desgraca. As vezes, Cachorro Velho e 0s outros nao en- tendiam suas palavras, mas a escutavam do mesmo jeito. Acompanhando-a, metiam-se, sem saber como, pelo ttinel estreito que ia até a caverna do ogro; ou viajavam até a Lua le- vados por um peixe magico; ou eram reis com chapelées vermelhos dos quais safam relam- pagos. Ou eram simplesmente homens e mu- Iheres livres, com longos e belos caminhos a percorrer. Aroni e sua voz grossa e melodiosa, como a de um homem que canta. Aroni contando com os bragos abertos sob as arvores; contando de- cachorro velho 29 brugada sobre Cumbé castigado no cepo; con- tando aos filhos dos feitores. Falando do fogo e da 4gua; do tempo e da morte; dos homens e de um pais onde todos podiam se olhar nos olhos. Pobre Aroni. Mae dos contos, mulher de ventre murcho. Quando jovem, havia tomado uma pogao para abortar o filho que um feitor deixara a forga em suas entranhas. A pogo era de cuieira e fedegoso. Galhos ar- rancados da arvore 4 meia-noite. Secou-a para sempre. Foi a mais breve e ter- rivel de suas histdrias, a tnica que ela nunca contou aos outros. Para Cachorro Velho, a ancia era como um amuleto. $6 porque ela vivia, a certeza de que sua mae tinha realmente existido nado o aban- donava. © Aroni o trouxera ao mundo, tirando-o do ventre morno e acolhedor de sua mae. Ela a conhecera, olhara-a nos olhos, escutara sua voz e seus gemidos de parturiente, secara suas lagrimas. 80 teresa cdrdenas As vezes, 0 anciao gostaria de fazer o tempo recuar, de entrar nos olhos de Aroni para des- cobrir em seu interior o rosto materno, mistu- rado a contos e recordagées, e trazé-lo a luz. Mas jé nao se podia fazer nada. O fogo e o tempo haviam cafdo sobre a velha contado- ra de histérias, devorando-a junto com as coi- sas da infancia de Cachorro Velho que ele nao conseguia recuperar. voz € os contos de Aroni permaneciam na cabega do porteiro, mas a verdadeira histéria de sua vida tinha terminado sem um final feliz. Antes Agora, quase com a morte em seus calcanhares, era porteiro. Mas, quando ainda Ihe restavam forgas, havia trabalhado cortando cana, desma- tando, carregando as carrogas com o bagaco, cortando lenha, empilhando carvao, alimen- tando os fornos, esfregando os tachos, lubrifi- cando as pecas da moenda todas as semanas, consertando as portas do barracao, construin- do cepos... E antes, quando rapazinho, tinha sido en- carregado de levar a lenha cortada para a co- zinha da casa-grande; de plantar inhame, 32. teresa cdrdenas cenoura, banana, taioba e abébora; de limpar os chiqueiros; de levar os cavalos até 0 rio para thes dar banho e agua; de consertar as carro- ¢as; de destripar patos, frangos e porcos; de ti- rar a lama das botas do senhorzinho... E quando nao media nem trés palmos de al- tura alimentava as galinhas; guiava as mulas da carroga de bagac¢o; limpava 0 milho; reco- Ihia a roupa suja da casa-grande; enrolava as tiras de couro para o chicote novo do feitor. E ao nascer... tivera que trabalhar? Cachorro Velho achava que sim, que ja tra- balhava desde o ventre de sua mae. Ja era escravo desde entao. Pulsacgées O porteiro tinha conhecido a tristeza, a dor in- cessante de todas as suas perdas, a inquietagao do medo que nao ia embora, 0 cheiro ameaga- dor da tortura e da morte. No entanto, desconhe- cia qualquer coisa que tivesse a ver com o amor. Duvidava de que seu coragao tivesse a forga ou a resisténcia necessdrias para encontrar 0 caminho correto e chegar aquele sentimento. Talvez a verdadeira razdo para nao o encontrar fosse simples: seu coragao nao o desejava. Na primeira vez que o sentiu bater com in- tensidade, era um menino. Aroni contava so- 84 teresa cdrdenas bre o garoto pobre que encontrou um peixe de prata e foi até a Lua para resgatar sua mae das garras do Diabo. Cachorro Velho gostava tanto daquela histéria que seria capaz de jurar que seu coragao, ao desfruté-la, ficava mais po- deroso do que as moendas do engenho. Pelo menos 0 rufdo com que ele pulsava era bem semelhante. Depois cresceu e nao voltou a ouvi-lo, até que uma tarde o feitor estalou o chicote per- to de sua cabega e o mandou de castigo para o tronco. Ele nao recordava exatamente o moti- vo, talvez nao fosse importante. Um negro nao tinha que fazer muito para ser castigado. De qualquer maneira, todo o seu corpo havia vi- brado como um tambor antes que ele sentisse a primeira chicotada. No entanto, o pior momento que ele atra- vessou com seu coragao foi quando viu o cor- po de Ulundi sumir numa nuvem de poeira atras do cavalo que o arrastava: ele quase lhe fugiu do peito, seguindo seu amigo. cachorro velho 85 O anciao tinha certeza de que os urubus ti- nham devorado seu coragao junto com 0 cadé- ver de Ulundi, pois desde entao nao o sentia. As vezes pousava a mao no peito e era como pousd-la sobre uma pedra. Nenhuma pul- sagao, sequer um rumor. De seu interior nao vinha nada que Ihe garantisse que ele ainda estava vivo. Via os outros trabalhando embaixo de sol ou de chuva, suportando as picadas dos insetos, dormindo amontoados no barraciio, e se per- guntava se com eles acontecia 0 mesmo. Por essa época, duvidou mais do que antes da existéncia de algo acima de suas cabegas. Se nem sequer podia garantir que tinha um coragaéo no peito, como esperar que alguém vivesse entre as nuvens? Cachorro Velho entendia cada vez menos as coisas dos brancos. No domingo seguinte ao do suplicio de Ulundi, quando 0 padre assegurou que o acontecido com seu amigo tinha sido obra da 86 teresa cdrdenas vontade divina e lhe achegou o brevidrio e a cruz para que os beijasse e pedisse perdao pe- los seus pecados, cuspiu neles, como se lan- gasse uma Ccutilada. O sacerdote fugiu correndo da capela. Para seu azar, escorregou na lama e quebrou uma perna e dois dedos da mao direita. Foi a segunda vez de Cachorro Velho no tronco. Por sua “blasfémia’, recebeu de castigo cem chicotadas. A pele de suas costas, sanguinolenta e ras- gada, parecia ferver. Ele quase morreu. No en- tanto, agarrou-se a sua raiva, ofegante. Nao tivera outro remédio a nao ser dar a eles sua vida, mas estava empenhado em nao lhes pre- sentear sua morte. Asuncién Cachorro Velho nao tivera oportunidade de sa- ber o que era carinho. Essa palavra nem sequer Ihe soava familiar. Claro, tinha estado com mulheres no escuro do barracao, rodeado pelos roncos dos outros. Ou no canavial, ou atraés da cozinha da casa- -grande. Mas nao havia nele a paixao que, por exemplo, percebia nos olhos de Luciano quan- do ele via Keta voltar do rio, trazendo na ca- bega sua cesta de roupas timidas. Ou o afeto de Malongo pelos cavalos e outros animais do engenho. Nem a devogaéo dos homens pelos 88 teresa cardenas deuses que viviam e morriam com eles no bar- racao ou no tronco. E muito menos a ternu- ra de Carlota na hora de semear flores. A terra Parecia retumbar quando ela se aproximava. Avida de suas flores era respeitada do mesmo modo por secas, por inundagées, pelo vento selvagem que soprava sobre os canaviais e pe- las abelhas vorazes que enxameavam depois do aguaceiro. Suas mios pareciam ter um pac- to magico com a natureza. E nem assim comoveram o coragao de Ca- chorro Velho. Depois da morte de Ulundi, ele nao queria ter pactos com ninguém. Nem com mulhe- tes, nem com bichos, nem com plantas. Ficava com uma mulher se ela 0 quisesse; dava ba- nho nos cavalos e cuidava de patos e porcos porque era sua tarefa; cortava as canas e os ci- p6s no campo porque era obrigado, como to- dos os outros escravos. Nao procurava se envolver com algo fora dis- so. Nao queria se comprometernem: sequercom cachorro velho 39 seu coracdo. Que este pulsasse como quisesse, mas que nao o incomodasse com outras coisas. Achava que, se cada um se mantivesse nos trilhos, tudo iria bem. Na vida de um escra- vo, 0 amor s6 poderia ser um estorvo. Disso tinha certeza. Nao queria correr mais riscos além dos que j4 corria por ser uma “pega” do senhor. No entanto, em meio as suas meditagées, 0 velho mentia. Antes que se afastasse definiti- vamente do Amor, ele o conhecera. Naquela época, 0 patrao ainda nao havia comprado Ulundi no barco, nem o senhor- zinho tinha nascido. Cachorro Velho era um rapaz e Aroni continuava viva e contando his- t6ria aos menores. Amanhd em que tudo aconteceu nao era di- ferente das outras que a tinham precedido. O sol flutuava sobre 0 campo como em todas as alvoradas, e os seixos do caminho se insinua- vam entre os dedos dos pés descalgos, como de costume. 40. teresa cardenas Jé no tio, ele arregacou a calca e meteu os cavalos na dgua, sem perder tempo. Ainda de- via colher as hortaligas para o almogo, empi- Ihar carvao e ajudar as escravas domésticas em qualquer outra tarefa. Pensando em tudo © que lhe faltava fazer, comegou a esfregar 0 lombo do primeiro animal com suavidade. A Agua do rio estava fria e transparente, Al- guns peixinhos vinham espiar perto de suas pernas. Na margem, abundavam os buracos de caranguejos e paguros. Cachorro Velho mo- Ihou a cabega do cavalo com o pano, e entao a viu. Ela vinha nadando em sua diregao e, por momentos, 0 sol, que se filtrava entre as folhas das Arvores préximas, desenhava de luz sua pele morena. O cabelo curto e muito crespo se apertava ao redor de sua testa e dos lados do rosto. Os olhos eram de gazela, amendoados e escuros. De repente, ela submergiu na dgua como um peixe e na mesma hora emergiu muito perto dele, se agitando e rindo. chorro velho 4 Somente nesse instante Cachorro Velho no- tou que a moga estava completamente nua. Desconcertado, enredou-se entre os ca- brestos dos animais e caiu ao comprido no tio. Quando conseguiu se levantar, estava encharcado dos pés a cabega e ela ria sem parar. Era a jovem mais bonita que ele vira em sua vida. Poderia ficar contemplando-a para sempre. Nesse momento, ela voltou a cabega e se afastou nadando corrente abaixo. Sem pensar, ele se atirou ao rio e nadou de- senfreadamente. Mas a moga jd estava longe demais. Um momento antes de sumir na curva, po- rém, levantou uma mao, dizendo-lhe adeus. — Como é 0 seu nome? — esgoelou-se Ca- chorro Velho, quase sem forgas. Ela sorriu de novo e lhe gritou: — Asuncién! Eu me chamo Asuncién! — E sua silhueta desapareceu entre as sombras. 42 teresa cdrdenas Ele ficou boiando, sem saber se voltava A Margem ou se continuava atras da moga. Finalmente, saiu. Sentado numa pedra, co- megou a chorar sem saber por qué. Desde aquele dia, procurava ir sempre ao tio. Para lavar cavalos, pescar, pegar tarta- tuguinhas de dgua doce para a fonte que a senhora mantinha no jardim; para fazer qual- quer coisa, enfim, na esperanga de reencon- ‘tar Asuncién, Foi inutil, ela nao apareceu mais. A fuga Cinquenta anos depois, e ainda pensando em Asuncién, Cachorro Velho se apoiou na paliga- dae olhou na diregao do rio. De repente, uma lufada o golpeou na cabega e levou o chapéu para além da cancela. Praguejando, o velho empurtou 0 postigo de troncos e saiu para 0 caminho. Entardecia. A luz do sol dourava as folhas das drvores. Cachorro Velho comegou a caminhar pe- nosamente. A perna lhe dofa. Vinha sentin- do aquela dor havia dias. Beira lhe preparara 44. teresa cardenas varios cataplasmas de artemfsia e mastruz, mas ele, atarefado com as galinhas e os pa- tos, abrindo e fechando a cancela a cada momento, plantando taioba e quiabo atrds da choga, nao tinha achado tempo para aplicd-los. Nesta noite, faria isso. Também se untaria com sebo de carneiro bem quente e depois amarraria 0 pé com uma tira de saco. Ovelho caminhava devagar, profundamente mergulhado em seus pensamentos, Precisava de uma bengala, um pedago de pau qualquer para se apoiar. Pediria a Cumba que lhe pre- Parasse um. De majagua ou, melhor ainda, de magaranduba. Uma vez, fazia muito tempo, Aroni lhe dis- sera que a magaranduba era a madeira mais dura e resistente da floresta. A velha Aroni contava muita coisa, muita... O porteiro recordou seu rosto e viu seus olhos cheios de névoa e seu cabelo ainda preto, ape- sar da idade. Quantos anos teria? cachorro velho 45 Os pés de Cachorro Velho entraram numa moita de losna-branca, espantando borbole- tas e mamangabas. Dentro em pouco o feitor distribuiria as rou- pas. No ano anterior, s6 coubera ao ancido um gorro de bombazina encarnada. Era um bom gorro, mas durante o dia, com o calor, esquentava demais a cabeca. Certa noite, ele desfechou um golpe de facdo numa jiboia-ver- melha que havia rastejado para dentro da cho- ¢a e, sem perceber, rasgou o gorro. Mas nada podia ser jogado fora. Cachorro Velho continuou a usd-lo, aberto sobre a cabega. Até que Bibijagua, a galinha de Beira, escolhera-o como ninho. O porteiro tossiu. Estava encatarrado. Lan- cou a cusparada para um lado, despreocu- padamente, e continuou andando, falando consigo mesmo. Talvez Ihe dessem um paleté ou um corte de pano cru para se cobrir, Com frequéncia acordava no meio da noite tremen- do de frio. Jé estava velho, velho demais. Como

You might also like