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EM eee SES LEITURA LITERARIA & OUTRAS LEITURAS Sse CS NO‘TRABALHO D “Aceitar que numa sociedade’ podemos ter gente que ‘nunca vai tera menor oportunidade de acesso a uma lei- ‘ura literiia é uma forma perversa de compactuat-mos fom @ exclusio. Nio combina com quem pretende ser demoeritico™, ANA MARIA MACHADO. A FORMAGAO DO LEITOR TIPOS DE LEITURA a? Como deve atuar 0 iduo ~ seja ele profes- — que se propée formar novos leitores? Com relasio & leitura, podemos com certeza afirmar: hd leituras e leituras. Alids, podemos distinguir pelo menos tds forinas de leicuta, ou trésatitu- des do leitor durante o ato de ler. Vejamos. Inicialmente, temos aleitura mecdnica, que consiste na habilida- de de decifrar cédigos e sinais. Até pouco tempo, pensava-se que a alfabetizacio resumia-se a isso: transformar os sinais pretos sobre a folha branca em sons identificdveis a palavras. Habilidade semelhan- te€a de “saber ler” outras linguagens que nao a do alfabeto, como o Cédigo Morse, o Braille, as partituras musicais. Isso é leitura? Sem diivida, mas € o seu nivel mais clementar, ¢ nao ¢ esse tipo de leitura que temos em mente quando pensamos em leitura na escc'a, Outra forma de leitura é o que Paulo Freire denominouleitura de mundo. Diferentemente da leitura mecinica, na qual nos inicia- ‘mos na escola, a leitura de mundo ¢ um processo continuado, que comeca no bergo e s6 se encerra no leito de morte. Com sua habi- lidade de ler © mundo, marcada pela subjetividade de cada um, 0 leitor aproxima-se do texto, tentando decifrar seus c6digos ¢ sinais. A leitura de mundo, portanto, como bem ressaltou Paulo Freire, precede a leitura mecanica e a ela deve somar-se. Essa habilidade de decodificar miltiplos sinais e eédigos diversificados permite-nos, pot exemplo, identificar significados nas modulagées de voz dos contadores de histérias ou perceber intengdes no traco € colorido | das ilustragdes dos livros, leituras de estratos sonoros e visuais que ultrapassam e reforcam as palavras de um texto. Quando associamos a leitura 8 escola, logo pensamos nas aulas de portugués ou no espaco da biblioteca. Portanto, em geral, temos fem mente a leitura de textos escritos, jornais, revistas, livros. Neste caso, estamos falando do encontro de dois leitores, do autor e de seu leitor. Sao dois mundos que se tocam. Se a experiéncia de vita de ambos for parecida, se o texto falar de experiéncias semelhantes &s jé vividas pelo leitor, sea histdria se situar em locais de sua vivencia, se (tempo retratado for aquele que o leitor conheceu, a leitura vai ter © sabor gratificante do reconhecimento. Se, a0 contrétio, o mundo da ficgio lida for totalmente diferente da experiéneia do Ietor, ele terd o prazer da descoberta. Sempre, porém, haverd, no momento da leitura, 0 cruzamento de dois mundos. Por isso, a leitura de umm ‘mesmo livro nunca serd igual para dois leitores, nem para o mesmo leitor, em tempos diferentes de sua vida. Ele poderé, entio, romper a leitura para se perguntar, como Machado de Assis poema, “Mudou o Natal ou mudei eu?”. A terceira forma de leitura € a leitura critica, que alia a leitura mecinica 4 de mundo, numa postura avaliativa, perspicaz, tentan- do descobrir intengées, comparando a leitura daquele momento com outras jé fetas, questionando, tirando conclusées. Esse & um patamar de leitura que néo se atinge de imediato, que requer um percurso por parte do leitor. Para ser capaz de fazer tal leitura, & preciso estar com todo 0 conhecimento ~ a bagagem cultural — a postos, estar com a mente alerta e ser capaz de relacionar, confron- tar, chegar a sinteses e conclusées. Ser um leitor eritico néo é dom, €aprendizado. Pot isso, esté ao alcance de todos nés, € um processo que se cumpre aos poucos. Na escola, 0 professor deve atuar como um guia, conduzindo seus alunos adiante nesse percurso. A trajet6ria percorrida pelo leitor em seu processo de formacio reflete a sua ctescente competéncia, que pode ou nio coincidiy com a série escolar em que se encontra ¢ com a sua idade cronolégi- a. Podem ser reconhecidas seis etapas em sucessio, sendo que as quatro primeiras ‘fevem completat-se na primeira fase do Ensino Fundamental, So elas + Pré-leitor (apenas ouve uma narrativa ser lida ou contada; ou 1e uma narrativa guiado pela sequéncia de suas imagens ou, ainda, com a ajuda de um adulto); +, Leitor iniciance (Ié sem ajuda textos breves ¢ facilitados); + Leitor em processo (lé textos de dificuldade média, sea ema vela- ‘gio a0 vocabulitio, A construcio narrativa ou ao uso da linguagem); + Leitor fluente (Ié textos mais extensos e complexos); + Leitor competente (Ié textos mais complexos ¢ é capaz de re- conhecer artficios de construsio, bem como estabelecer conexdes ‘entre diversas leituras); + Leitor critico (Ié com total autonomia textos de qualquer ex- tensao, identificando alusdes € subentendidos, assim como estabele- cendo rela es entre o texto lido e a realidade que conhece em suas s de cidadao, sendo, inclusive, capaz de emici juizos cxiticos sobre o texto lido). vivéncias di ‘Ao ingcessar no Ensino Médio, o aluno deve ter atingido esse éil- timo patamar de leitura, habilidade que poderé facilitar seu contato com disciplinas mais aprofundadas, especificas desse nivel de ensi- no. Ocorre, porém, que nem sempre percutso de leitura acom- panha o desenvolvimento fisico ou a progressio escolar do leitor E nesse descompasso entre o esperado ¢ o cumprido que se situa 0 problema maioryto’ professor de portugués quando teabalha com 10 Médio. literatura no MOTIVAGOES PARA A LEITURA Mas voltemos ao problema concreto aqui proposto: a formacio do leitor. Dois requisitos séo fundamentais: a motivagao pata a le tura ea disponibilidade de livvos adequados 20 leitor-alvo, Teorica- mente, 0s profesores de portuguds eas biboteca escolarssatsf- riam esses requisitos, mas sabemos que nao é bem assim. Ana Maria Machado, em um textordé reflexdo sobre esse tema, diz ser inconcebivel que alguém que no saiba nadar scja instrutor de satagao, porém int C108 professores que no sio leitores ren. tam inculcar, sem sucesso, em seus alunos o gosto pela leitura. A propaganda que fazem da leitura soa falsa, pois eles préptios ndo acreditam nela, e os alunos percebem a incoeréncia. Portanto, 0 problema esté mais atrds, esta na formagio leitora dos professotes, que, mesmo tarde, precisa ser de alguma forma recuperada, Mas como seduzir criangas ¢ jovens para a leitura? 28 A taajetbria de leitura deve ser iniciada 0 mais cedo possivel, antes da alfabetizagio escolar, pela audigio de hist6rias e poemas, ‘com a crianga acompanhandé*no livro a versio visual dada pela ilustragio. Ao mencionarem o titulo do texto e sea autor, os grupos de contadores de histérias que se formaram nas iltimas décadas demonstram sua preocupagio de levar 0 livro a0 ouvinte. Além disso, a0 situarem © autor num contexto, a0 contarem alguma par- ticularidade de sua vida (a época em que viveu, seu pais de origem) ou do personagem, eles também ajudam a despertar o interesse € a imprimir esses dados'na mente do ouvinte. A bagagem cultural do jovem leitor vai, entio, pouco a pouco, se entiquecendo. ‘Jno mbito da leitura na escola, uma questio se coloca de ini- pode-se ensinar literatura? Maria de Fétima Cruvinel, profes- sora com larga experiéncia na Area de literatura no Ensino Médio, admite ser possivel associar a leitura literdria & escola, mas ressalva que nio se trata propriamente de ensino da literatura, esclarecendo: -Apesar de se configurar como parte integrante da dscplina in 0a portuguesa, o génergliteréro no se subverte a0 dscurso pedagésico, pocanté“ndo pode ser tomado como contetido programitico a serjentinado, A atividade de leitura deve se co- locar como uma provocacio, para que o letor, diante do texto, 01 seja, dos conflts, das personagens, de suas experincias, de eu Universo, de tudo que the revela sua humanidade,possa se colocar frente a si mesmo, na medida em que se depara com a vida do outro, ov se sentetocado pela subjetividade alheia, considerando também a experéncia de letura do géner lio, por exemple. Dominando a decodificaga’’ db oddigo escrito ¢ alcangando a posicao de leitor em processo, a leitura na escola’ pode passar a ser compartilhada. O procedimento de leitura compartilhada que vai tum pouco além na trajetéria do leitor é 0 circulo de leitura com um leitor-guia. Esse € um procedimento que pode ser utilizado nas dluas etapas do Ensino Fundamental e também no Ensino Médio. Ea crescente complexidade do texto lido que vai definir a série em Tec tine orale enema 1 CRUVINEL. 2008. pins. 29 owe Slee 30 que essa atividade sera realizada, Para ser devidamente apreciada, a leitura de textos de Guimaraes Rosa, por exemplo, precisa ser feita oralmente ¢ ~ dada a complexidade de sua linguagem — precisa ter um guia capaz de esclarecer cuividas. Um guia que se tenha detido com atensio (¢ talvez até munido de dicionério) diante do texto, bem antes de lé-lo em voz alta para seus alunos. Nesse tipo de leitura, com 0 texto em mios, os leitores acom- panham a leitura de um guia (normalmente o professor), que vai Tendo em vor alta, transferindo para a voz as intengdes do texto, demorando-se em explicagées nas passagens mais sutis, chamando 2 atencao para os recursos estilisticos utilizados. Em outras palavras, cle vai desvendando junto com os leitores as entrélinhas do texto. Esse tipo de leitura prepara o leitor para uma leitura auténoma, Em turmas jé mais treinadas, ou naquelas em que alguns alunos se destacam pela leitura expressiva, 0 professor pode alternar a leitura com esses alunos, interferindo apenas com, os comentérios que fo- Ler sozinho, em silencio ~ essa 6, talvéz, a melhor modalidade de fruigio de um livro. Mario Quintana, 0 inesquecivel poeta gaticho, dizia em um de seus textos poéticos que ler € 0 tinico modo de se estar sozinho ¢ acompanhado 20 mesmo tempo. Sébias palavras, pois um livro é um mundo: o mundo de leituras de seu autor e de seus personagens, dialogando com o mundo do leitor. O encon- tro desses dois mundos pode proporcionar ao leitor momentos de prazer, de humor, de esperanca, de consolo, de reabastecimento de energia, de conhecimento de coisas novas. Essa é uma experiéncia rica, da qual todos deveriam poder participar, ¢ cabe 4 escola um papel decisivo nesse processo. © LEITOR QUE FORMA LEITORES Como deve ser a atitude de um promotor de leitura, de um pro- fessor ou de um leitor-guia & frente de um grupo? Em 2008, trans- correram 60 anos do falecimento de Monteiro Lobato, esse grande difusor da leitura e do livro que o Brasil eve a felicidade de possuir. ‘eras Ta a Nbs, professores, podemos buscar em sua obra infantil um modelo = a seguis, na figura da av6 leitora. Dona Benta morava num pequeno sitio, no interior de Séo Pau- Jo, mas sintonizava-se com o mundo todo pela leitura'de jornais e de livros, A leitura trazia o mundo até a roga. £ interessante obser- Bar como ela se portava nas sessées de leitura que promovia, & noite, no Sitio do Picapau Amarelo,™ Em primeiro lugar, Dona Benta tinha a preocupagio de de- |: mocratizar © acesso ao saber. Isso se manifesta de dois modos. O primeizo € trazendo jornais do Rio de Janeiro e de S40 Paulo, bem como livros nacionais ¢ estrangeiros para o meio rural; € 0 segundo é chamando os moradores do sitio para compartilharem os serdes. Seu conhecimento nao se destina apenas aos netos Pe- drinho e Narizinho, mas também & empregada Nastécia, a boneca Emilia, a0 sabugo Visconde. Paralela ¢ correlata & democratizagio do saber, Dona Benta procurava despir-se de autoritarismo. Nos seus ser6es, permicia ‘que os ouvintes tivessem uma participagio ativa, deixando que escolhessem suas preferéncias, que opinassem, que tecessem cri- ticas, emitissem opiniées. Ela sabia ouvir, uma qualidade to im- portante quanto saber ler. Uma represencacio simbélica da afitude antiautoriciria dessa avé ¢ também reveladora da terceir¢caracteristica de’ seu comporta- mento de leitora ~ a adequacig’da linguagem e dos temas 20 nivel de compreensio da platcia ~ é a cadeira em que se assenta nessas ocasi6es. Nos livros de Lobato, Dona Benta acomoda-se numa ca- deira de pernas serradas. Nessa cadeira, ela fica mais baixa, desce 20 nivel de seus netos e, nessa atitude de igualar-se a eles na altura, abranda também a posigio superior que exerce naturalmente na familia, como mateiatca; da mesma forma, desce a linguagem ¢ 0 tratamento dos assuntos de suas leituras a0 nivel de compreensio de seus ouvintes. Leitura sem compréensio nio é leitura. Dessa postura de Dona Benta, que procura democratizar 0 acesso a0 saber, despir-se de atitudes aucoritérias ¢ levar o lei tor/ouvinte a uma compreensio plena do texto lido pela ade- quagao de tema e linguagem, podemos ter um exemplo a seguit, se quisermos ser leitores que formam novos leitores, seja no Ambito doméstico, seja no escolat.

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